Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
744/12.4EACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
JULGAMENTO
REGISTO DA PROVA
CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DA COVILHÃ - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 66.º E 75.º, N.º 1, DO RGCO; ARTS. 20.º, N.º 4, E 32.º, N.º 10, DA CRP
Sumário: I – No âmbito do processo de contra-ordenação, está legalmente afastada a documentação da prova produzida em audiência de julgamento.

II – Os arts. 66.º e 75.º, n.º 1, do RGCO, de cuja previsão, conjugada, decorre a inadmissibilidade legal do registo da prova produzida em audiência, não afrontam os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do arguido, não violando, por conseguinte, os preceitos contidos nos arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 10, da CRP.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Clube de Campismo e Caravanismo da A... veio interpor recurso da sentença que, julgando a impugnação judicial da decisão administrativa (PSP – Direcção Nacional – Departamento de Segurança Privada) totalmente improcedente, manteve a coima aplicada de € 2.500,00 pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 160º, 161º, n.ºs 1 e 3 e 163º, n.º 1, do DL n.º 422/89, de 2 de Dez., na redacção do DL n.º 114/2011, de 30 de Nov..

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:
1. Conforme resulta dos autos, nomeadamente do auto de notícia de fls., vem o Recorrente acusado da prática da contraordenação prevista disposto no artigo 160.º, n.º 1 e 161.º do Decreto-Lei n.º 422/89 de 2 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei 114/2011 de 30 de Novembro, tendo-lhe sido aplicada uma coima no montante de 2.500,00€. Inconformado com a decisão administrativa de fls., veio o Recorrente dela interpor recurso pelos factos e direito de fls. e que aqui se dão por reproduzidos. Tendo o MM. Juiz “A QUO”, proferir a sentença de fls., na qual julgou o recurso improcedente, e nessa medida, manteve a decisão recorrida.
2. Decisão que se ora se impugna, já que, se considera que: a sentença padece de nulidade por falta de documentação da matéria de prova; a sentença padece de nulidade por falta de fundamentação da matéria de prova;
3. Nulidade da Sentença - Falta de documentação da matéria de prova – Dispõe o artigo 66.º do RGCO que “salvo disposição em contrário, a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito”, ora, o DL 17/91, de 10 de Janeiro, com as sucessivas alterações, relativo ao processamento das transgressões e contravenções, dispõe no artigo 13.º, n.º 3 que “no início da audiência, o tribunal avisa, sob pena de nulidade, quem tiver legitimidade para recorrer da sentença de que pode requerer a documentação dos actos da audiência, a efectuar por súmula”. No caso em apreço, tal advertência não foi feita, pelo que os actos subsequentes são nulos, nulidade que aqui se evoca para os devidos efeitos legais.

4. Todavia, sempre se dirá que, a falta de documentação dos actos da audiência, supostamente autorizada pela lei (art. 66.º, DL 433/82), assim como a proibição do recurso na matéria de facto (art. 75.º), afrontam os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do Arguido (arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 10 da CRP), padecendo aquelas normas de inconstitucionalidade material.
5. Nos presentes autos, a prova produzida na audiência, não foi documentada, como o processo evidencia, o que representa uma nulidade nos termos acima referidos, bem como um atropelo aos direitos da defesa, sendo certo que, levanta-se desde logo o problema da constitucionalidade da lei.
6. Caso assim não se entenda – o que se contesta pelos motivos supra indicados também se dirá que em virtude da remissão para o Código de Processo Penal, como direito subsidiário (art. 2º.); entre essas normas avultam estas duas (art. 13.º), uma a remeter especialmente para o dito código, quanto ao julgamento em processo comum (n.º 7), e outra que estabelece que a gravação da audiência é obrigatória, pelo que, e não tendo a mesma ocorrido há uma nulidade, nulidade esta que aqui também se suscita.
7. Desta forma, a exclusão da documentação da prova obtida por via interpretativa (art. 66.º), como, mais directamente, a proscrição do recurso em matéria de facto (art. 75.º), afrontam pelo menos dois princípios constitucionais, o do direito de defesa (art. 32.º, n.º 10) e o do processo equitativo (art. 20.º, n.º 4).
8. Assim, negando o recurso naquilo que é o mais importante, limitando-o à matéria de direito, a lei afecta o direito de defesa garantido pela Constituição numa sua dimensão essencial – a do recurso – subtraindo por outro lado o procedimento à exigência constitucional do processo equitativo. Como admitir, assim, neste âmbito, a proibição do recurso em matéria de facto, condicionando-se com isso a decisão jurídica mediante um julgamento sem controlo do facto, posto que incontrolável?
9. Por outro lado, a sentença do MM.º Juiz “A Quo” e face à interpretação efectuada aos preceitos legais, enferma de uma clara e manifesta inconstitucionalidade por violação das normas contidas nos arts. 20.º, n.º4, 32.º, n.º 10 e 202.º da Constituição da República Portuguesa.
10. Caso assim não se entenda, o que se contesta pelos motivos indicados, sempre se dirá que a Sentença é nula por falta de fundamentação: A decisão administrativa corroborada pela sentença recorrida aplicou ao Recorrente uma coima no valor de 2.500€ nula, em virtude de ter sido imputada a prática da infração a título de dolo. Calcorreando os autos não se vislumbra qualquer elemento que possa justificar tal imputação.
11. Acresce o facto de a condenação em processo contraordenacional ser materialmente uma acusação em processo penal, pelo que se lhe aplicam, subsidiariamente, os preceitos legais do CPP, impondo-se maior rigor na sua elaboração.
12. Certo que a própria decisão quer administrativa, quer a sentença proferida pelo MM.º Juiz “A Quo” são omissas, na fundamentação, já que, não é indicado qualquer motivo que possa fundamentar o comportamento da requerente a título de dolo. Pelo que é assim NULA a decisão recorrida por falta de fundamentação.
13. O artigo 50.º do Decreto Lei n.º 433/82 consagra o direito de defesa do arguido impondo que lhe seja assegurada a efectiva e material possibilidade de produzir provas que considere indispensáveis para fazer valer a sua posição. Por tal razão se decidiu que a decisão da autoridade administrativa que não fundamente devidamente tal decisão (como aconteceu no caso em apreço) nos termos do artigo 41.º, n.º 1, 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82 e art. 120.º, n.º 2 d) do Código de Processo Penal (insuficiência de inquérito ou da instrução), por violação do direito de defesa do Arguido é nula.
14. A declaração de nulidade nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do Código do Processo Penal (ex vi artigo 41.º, n.º 1 do decreto lei nº 433/82) torna inválido o acto em que se verifiquem as nulidades, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
15. Assim sendo e face ao supra mencionado resulta à saciedade que a decisão em apreço enferma de vícios, que determinam a sua NULIDADE, nulidade essa que aqui expressamente se evoca para os devidos e legais efeitos.
16. Todavia, sempre se dirá, caso se entenda que a decisão recorrida não é nula nem inconstitucional - o que se contesta pelas razões supra sumariadas - então também se dirá que a sanção aplicada é deveras excessiva. A recorrente não teve qualquer proveito com a referida máquina. É uma associação sem fins lucrativos, sendo certo que no exercício de 2015, teve um prejuízo de 6 996,58€. Por outro lado a máquina esteve instalada durante 3 dias no período em que o Parque de Campismo já não é muito frequentado pelos seus utentes (2ª quinzena de setembro). Pelo que se considera adequado e caso se entenda que a recorrente tinha conhecimento da ilicitude dos factos a aplicação de uma pena de ADMOESTAÇÃO.
17. Sem prescindir, caso assim não se entenda - o que se contesta pelas razões acima mencionadas - sempre se dirá que no pressuposto de se considerar que à recorrente podem ser imputadas tais infrações no máximo deve ser aplicada uma coima especialmente atenuada no valor de 1.250€.

Nestes termos e nos demais de direito e com o sempre mui douto suprimento deve alterar-se ou revogar-se a douta sentença nos termos constantes nestas conclusões.


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A Magistrada do Ministério Público defendeu que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela sociedade arguida e, em consequência, ser mantida a sentença recorrida, tendo rematado a sua resposta nos seguintes termos:

1. Não há lugar à gravação da prova produzida em audiência nos processos de contra-ordenação em que haja impugnação judicial de coimas aplicadas pela autoridade administrativa como resulta do art. 75.º n.º1 do RGCO (neste sentido veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Fevereiro de 2013, do Desembargador José Carreto (disponível em www.dgsi.pt)

2. A 2.ª instância apenas conhece matéria de direito, o Tribunal da Relação funciona em sede de contra-ordenacional como tribunal de revista só apreciando questões de direito.

3. Estando garantido o duplo grau de jurisdição, não houve violação do artigo 20.º, n.º 4 e 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

4. A decisão administrativa e a sentença da 1.ª instância mostram-se devidamente fundamentadas e não padecem de qualquer omissão, designadamente no que respeita ao elemento subjectivo dolo.

5. Sem prejuízo do referido, não existe no RGCO um regime especial quanto à fundamentação da decisão da Autoridade Administrativa, ao contrário do que sucede noutras áreas das contra-ordenações.

6. Também não houve violação do artigo 13.º, 20.º, n.º4 e 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que este artigo não exige que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal (neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Fevereiro de 2012).

7. No nosso entender e salvo melhor opinião, a actuação do arguido não pode ser classificada como de relevância ou gravidade diminuta, pois que demonstra um absoluto desrespeito pelos procedimentos estabelecidos por lei em matéria de jogo.

8. A coima foi fixada pelo mínimo legal. Não se vislumbram as circunstâncias excepcionais previstas no art. 72.º, nº 2 do Código Penal ou quaisquer outras – de carácter atenuante extraordinário, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima (nº 1 do art. 72º).

9. Com estes elementos entendemos que jamais se poderia condescender com a aplicação de uma pena de admoestação ou do instituto da atenuação especial da pena.

Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da decisão recorrida não padecer de qualquer nulidade, pelo que o recurso deve improceder.

Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da sentença recorrida:

II - Da matéria de facto

Provados:

1. No dia 19 de Setembro de 2012 celas 13 horas, no café Snack Bar do parque de campismo do B... , A... , que era economicamente explorado, pelo Clube de Campismo e Caravanismo da A... , encontrava-se, em exploração, de livre acesso ao Público, uma máquina extractora de cápsulas;

2. Nessa mesma data, encontravam-se dois cartazes pendurados na parede associados a máquina acima referida possuindo um deles a inscrição LOUCOSSAUROS e vários números apostos nele e o outro sem nenhuma designação, possuindo vários objectos, com números apostos

3. A máquina é constituída por um corpo superior de forma rectangular e estrutura acrílica transparente e um corpo inferior, também rectangular em estrutura plástica e opaca;

4. O jogo desenvolvido por esta máquina desenrolava-se da seguinte forma: ao inserir na ranhura do expositor uma moeda de €1,00 e, após rodar o manípulo da máquina, saía aleatoriamente uma cápsula, contendo três senhas dobradas e numeradas e, logo que forem desdobradas e confrontadas com os números existentes nos cartazes expositores resulta uma de três situações: a senha contém apenas uma figura de um dinossauro, pelo que o jogador não tem direito a prémio; o número da senha não coincide com qualquer um dos números do cartaz de prémios e o Jogador não tem direito a prémio e; o número da senha coincide com um dos números constantes no cartaz, seguidamente retira-se o picotado, ficando a descoberto um outro número, que irá corresponder ao prémio ganho pelo jogador, este prémio pode ir de um valor mínimo de vales de desconto de €5 a um valor máximo de vales de desconto de €50 e o objecto identificado com o mesmo número no cartaz expositor de prémios;

5. Procedeu-se à apreensão dos bens constantes dos autos de apreensão/entrega existentes nos autos, todos associados à exploração das modalidades afins de jogo de fortuna ou azar acima descrita;

6. O resultado do jogo dependia em tudo da sorte, independentemente da perícia ou destreza do jogador, dado que a única intervenção do jogador era introduzir uma moeda na máquina em referência e rodar o manípulo;

7. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo obter proveito económico em resultado das jogadas efectuadas pelos seus clientes, benefício que sabia ser ilegítimo por ser proibido por lei o desenvolvimento de tais modalidades afins de jogo de fortuna ou azar, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei;

8. A exploração deste tipo de jogos constitui uma «modalidade afim de jogo de “fortuna ou azar” a qual só é permitida quando devidamente autorizada pelo membro do Governo responsável pela administração interna, o que não se verificou na situação;

9. Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à arguida.


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10. Por despacho n.º 19185/2008 declarada a utilidade pública da recorrente.

11. No ano fiscal de 2015 a recorrente apresentou o resultado líquido de exercício negativo de 6.998,58 euros.


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Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão, nomeadamente que:

a) O director administrativo geral Sr. C... desconhecia a natureza da máquina e, ainda, da necessidade de licença;

b) O director administrativo geral Sr. C... tenha agido sem autorização e conhecimento da direcção;

c) A direcção apenas em 19 de Setembro teve conhecimento da instalação da máquina.


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II - MOTIVAÇÃO

A materialidade dada como provada colhe a sua demonstração na apreciação crítica de toda a prova produzida nomeadamente:

Auto de notícia de fls. 9, auto de apreensão de fls. 10 e fotografias de fls. 12 a 15, relatório pericial elaborado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade do Jogo sobre o funcionamento e qualificação da máquina apreendida, sendo que a recorrente aceita tal factualidade e, ainda, (embora à posteriori) a colocação da máquina à consignação.

Mais se valorou os depoimentos sobre os factos vertidos no auto dos Sr. inspectores da ASAE F... e G... que fiscalizaram o local e verificaram a existência da máquina e condições funcionamento;

Considerando o depoimento da testemunha E.... (director até Setembro de 2012) que fez um historial da recorrente, as dificuldades financeiras, a utilidade pública e ter colocado, a partir de 2010, um Administrador no parque, Sr. C... ; depoimento do Sr. C... prestou depoimento dizendo ter informado a direcção da colocação da máquina; a testemunha D..., recepcionista, confirmou que máquina “dava dinheiro” e que o “ C... ” – administrador tinha dado autorização para a instalação da máquina, deu-se como provado o conhecimento da direcção aquando da instalação da máquina (não provados os factos contrários) pois ela era representada, de facto, pelo director geral e a conduta dolosa da arguida pois é consabido na comunidade da ilegalidade de exploração de tais máquinas, de fortuna azar” de máquinas de dar dinheiro; sendo, ainda, consabido, que a exploração da máquina exige, ainda, instruções sobre o seu u funcionamento e acordo quanto à repartição dos lucros, pelo que não pode invocar, em nenhum momento, o desconhecimento sobre a natureza e funcionamento da máquina, assim se dando como não provados os factos contrários.

Os factos atinentes à utilidade pública e situação financeira aos documentos juntos com a impugnação e depoimento da testemunha E... , suporá referido.


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APRECIANDO

Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82, de 27.10 (RGCO), este tribunal conhece apenas da matéria de direito, isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, conforme acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, I-A Série de 28-12-95.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, são as seguintes as questões suscitadas pela recorrente:

- a nulidade da sentença por falta de documentação da matéria de prova; e, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 66º e 75º, n.º 1 do RGCO;

- a nulidade da decisão administrativa e, da sentença que manteve tal decisão, por omissão de fundamentação, dado não ter indicado qualquer motivo que possa fundamentar o comportamento da arguida a título de dolo;

- subsidiariamente, a aplicação da pena de admoestação ou, ser aplicada uma coima especialmente atenuada no valor de 1250,00 €.


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A- Da documentação da prova produzida em audiência de julgamento no processo de contra-ordenação e, da inconstitucionalidade dos artigos 66º e 75º, n.º 1 do RGCO:

Alega a recorrente:

Resulta do artigo 66.º do RGCO que “salvo disposição em contrário, a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito”, ora, o DL 17/91, de 10 de Janeiro, com as sucessivas alterações, relativo ao processamento das transgressões e contravenções, dispõe no artigo 13.º, n.º 3 que “no início da audiência, o tribunal avisa, sob pena de nulidade, quem tiver legitimidade para recorrer da sentença de que pode requerer a documentação dos actos da audiência, a efectuar por súmula”.

No caso em apreço, tal advertência não foi feita, pelo que os actos subsequentes são nulos, nulidade que aqui se evoca para os devidos efeitos legais.

Todavia, sempre se dirá,

A falta de documentação dos actos da audiência, supostamente autorizada pela lei (art. 66.º, DL 433/82), assim como a proibição do recurso na matéria de facto (art. 75.º), afrontam os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do Arguido (arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 10 da CRP), padecendo aquelas normas de inconstitucionalidade material.

Nos presentes autos, a prova produzida na audiência, não foi documentada, como o processo evidencia.

Ora, tal facto, não pode deixar de ser alvo de reparo, pois, representa uma nulidade nos termos acima referidos, bem como um atropelo aos direitos da defesa, sendo certo que, levanta-se desde logo o problema da constitucionalidade da lei.

Desde já se adianta que não assiste razão à recorrente quanto às questões ora suscitadas.

Com efeito,

Dispõe o artigo 66º do RGCO que «Salvo disposição em contrário, a audiência em primeira instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções não havendo lugar a redução da prova a escrito.».

E, estabelece o n.º 1 do artigo 75º do RGCO que «Se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.».

Em anotação ao citado artigo 66º, dizem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral ([1]):

O presente normativo remete para o artigo 13º do Decreto-Lei 17/91 de 10 de Janeiro, que regula a audiência de julgamento das transgressões e contravenções.

Perfilhamos o entendimento de que a aplicabilidade dos n.ºs 1, 2, 3 e 4 daquele artigo 13º é colocada em causa pelo disposto nos artigos 62º, n.º 1, 69º e parte final do presente artigo 66º.

Na verdade o n.º 1 não se aplica porque o artigo 62º, n.º 1 define a forma pela qual a acusação é deduzida em processo contra-ordenacional.

O n.º 2 daquele artigo 13º não se aplica porque unicamente estabelece a obrigação de substituir o Ministério Público (em caso de falta) quando a transgressão é punida com pena de prisão. Porém, dado o disposto no artigo 69º do presente Regulamento, quando o Ministério Público faltar, tem sempre que ser substituído, nos termos do artigo 330º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Da expressão “não havendo lugar à redução da prova a escrito” utilizada na norma anotada resulta que não se aplicam os n.ºs 3 e 4 do citado artigo 13º, nem o artigo 363º do Código de Processo Penal, o que, aliás, está de acordo com o disposto no artigo 75º. É nosso o sublinhado

Conclui-se por esta forma que, do artigo 13º do Decreto-Lei 17/91, aplicam-se, apenas os n.ºs 5 a 7 (…).

Sobre a aludida questão se pronunciou António Bessa Pereira ([2]) no mesmo sentido, quando refere que A expressão não havendo lugar à redução da prova a escrito deve ser (actualmente) entendida como também não permitindo a gravação da audiência. A proibição de gravar a audiência ou de reduzir a escrito a prova está conforme o disposto no artigo 75º, que estabelece que, em sede de recurso, a 2ª instância apenas conhece da matéria de direito.

Na verdade, a gravação da prova produzida em audiência visa, por um lado, o refrescar da memória para efeitos probatórios do próprio tribunal e, por outro, assegurar a correspondência entre a prova que é produzida e a que resulta do julgamento, como condição essencial para, em sede de recurso, se reapreciar a matéria de facto em caso de impugnação desta.

Ora, estando vedada a intervenção do tribunal de 2ª instância em sede de decisão sobre a matéria de facto e, nessa medida, a possibilidade deste tribunal se socorrer da eventual gravação da prova oral produzida em audiência de julgamento, tal gravação não teria qualquer utilidade, representando um acto perfeitamente inútil. - Cfr. Acórdãos RP de 13-2-2013, Proc. n.º 786/12.0TBSJM.P1; RC de 25-6-2015, Proc. n.º 555/14.2TTCBR.C1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

 Por conseguinte, não havendo lugar à documentação da prova produzida em audiência de julgamento no processo de contra-ordenação, improcede a invocada nulidade da sentença.


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Suscitou a recorrente a inconstitucionalidade material das normas contidas nos artigos 66º e 75º, n.º 1 do RGCO por, em seu entender, afrontarem os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do Arguido (arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 10 da CRP).

Porém, sem razão, como já se mencionou, já que as citadas normas não violam qualquer garantia de defesa da arguida constitucionalmente tutelada.

Prevê o artigo 73º do RGCO quais as decisões que admitem recurso para a Relação, ficando, assim, assegurado o direito à apreciação jurisdicional de certas decisões sancionatórias administrativas.

Ora, como sublinhou Eduardo Correia ([3]) “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético jurídico, não estando, portanto, sujeito aos princípios e corolários do direito criminal”.

Sobre a conformidade constitucional das referidas normas (artigos 66º e 75º, n.º 1 do RGCO), se pronunciou o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 73/2007 e 612/2014, deixando-se consignado neste último acórdão (612/2014) o seguinte:

«Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que não tem sofrido alterações ao longo de décadas, «são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contraordenações».

Ora, estando em causa ilícitos substancialmente diferentes, (…) afigura-se materialmente fundada a norma que, como a que consta do sindicado artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, nega ao arguido em processo de contraordenação a possibilidade de sindicar perante o tribunal da relação a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância, em sede de impugnação judicial da decisão que lhe aplica uma coima, contrariamente ao que sucede com o arguido em processo-crime.

É que, independentemente do grau de complexidade dos factos em discussão e do montante da coima aplicável, o certo é que estará sempre em causa a prática de uma contraordenação e a aplicação, por via dela, de uma coima. E uma contraordenação não é equiparável, quer na perspetiva do bem tutelado, quer na perspetiva das reações sancionatórias que determina, à prática de um crime; neste último caso, e como é sabido, está em causa a ofensa de bens e valores tidos como estruturantes da sociedade e a notícia da prática de um crime desencadeia, pela sua gravidade, um complexo processo com vista a determinar o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas que, sendo de prisão ou multa, assumem sempre um sentido de retribuição ou expiação ética e uma finalidade ressocializadora cuja realização pode implicar, no limite, a privação da liberdade do arguido; nada disso se passa com as contraordenações que, sendo ilícitos, não comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial.

Por isso, acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e defesa do arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), quer na fase judicial (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), justifica-se que o legislador, na ponderação dos valores em presença, opte por um padrão de simplicidade e celeridade processuais que, no domínio dos recursos, se manifesta na norma, ora questionada, que limita, em princípio, os poderes de cognição da segunda instância à matéria de direito.

Apreciando precisamente a norma, ora sindicada, do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, à luz do referido parâmetro constitucional, considerou, aliás, o Tribunal Constitucional, que a Constituição não impõe, mesmo no âmbito do processo criminal, a garantia de um segundo grau de reapreciação da matéria de facto ou um duplo grau de recurso em matéria de facto (cf. Acórdãos nºs. 73/2007 e 632/2009 e, secundando-os, Acórdão n.º 6/2013), pelo que, representando a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, em processos de natureza contraordenacional, uma decisão proferida «já em grau de reapreciação» – justamente porque se trata de um recurso que incidiu sobre a decisão que aplicou a coima –, a pretensão de obter uma segunda reapreciação da matéria de facto pelo tribunal da relação excederia, desde logo, o âmbito de tutela do direito ao recurso, tal como vem sendo densificado pela jurisprudência constitucional.

Concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, na interpretação que limita o recurso para o Tribunal da Relação, em processos de contraordenação, à matéria de direito, necessariamente se impõe idêntico juízo para a norma que, extraída da conjugação desse preceito legal com o artigo 66.º do mesmo RGCO, não admite, em tais processos, o registo da prova produzida em audiência (neste sentido, cf. Acórdãos nºs. 50/99 e 73/2007, cuja doutrina aqui se reafirma).

Na verdade, a inadmissibilidade do registo de prova produzida em audiência decorre da impossibilidade do recurso da decisão sobre matéria de facto, e é sob esta exclusiva perspetiva que a recorrente reflexamente dirige àquela norma as mesmas suspeitas de inconstitucionalidade que infundadamente levantou sobre esta última, pelo que, nada se dizendo de novo ou autónomo, é de reiterar quanto à norma extraída do sindicado artigo 66.º do RGCO as razões por que se não julgou inconstitucional a norma do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO.».

Nos termos expostos, acompanhando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, concluímos pela inexistência das invocadas inconstitucionalidades.

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B- Da nulidade da decisão administrativa e, da sentença que manteve tal decisão, por omissão de fundamentação:

Invoca a recorrente a nulidade da decisão administrativa e, da sentença que manteve tal decisão, por omissão de fundamentação, dado não ter sido indicado qualquer motivo que possa fundamentar o comportamento da arguida a título de dolo.

Conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 58º (sob a epígrafe Decisão Condenatória) do DL n.º 433/82, de 27 de Out.:

A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas,

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

Como verificamos a decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal – cfr. artigo 374º do CPP – embora de uma forma simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo ([4]).

“Colocada a necessidade da fundamentação, e radicando a mesma num incontornável direito a conhecer as razões do sancionamento, é evidente que o mesmo é comum aos dois tipos de processo e, consequentemente, entende-se que o incumprimento dos requisitos enumerados no n.º 1 implica a existência de uma nulidade nos termos cominados no artigo 379º do Código de Processo Penal.

Importa, porém, salientar que nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada” ([5]).

A arguida (ora recorrente) interpôs recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa.

E, conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 64º do RGCO, em processo contra-ordenacional, interposto recurso da decisão da entidade administrativa, o juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

In casu, realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida a sentença recorrida.

Ora, aplicando-se subsidiariamente as normas do processo criminal (cfr. artigo 41º do RGCO), a decisão proferida em recurso de decisão administrativa que aplicou uma coima tem de obedecer aos requisitos referidos no artigo 374º do CPP, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma.

No caso vertente, a sentença recorrida, julgando a impugnação judicial da decisão administrativa (PSP – Direcção Nacional – Departamento de Segurança Privada) totalmente improcedente, manteve a coima aplicada de € 2.500,00 pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 160º, 161º, n.ºs 1 e 3 e 163º, n.º 1, do DL n.º 422/89, de 2 de Dez., na redacção do DL n.º 114/2011, de 30 de Nov..

Acontece que, ao contrário do que vem invocado pela recorrente, está a decisão administrativa fundamentada (e no caso, exaustivamente), de acordo com o determinado pelo artigo 58º, designadamente quanto à imputação da infracção a título de dolo. Para tanto, vejam-se as fls. 2 a 12 da decisão administrativa, a que correspondem as fls. 31vº a 36vº dos autos.

De igual modo, está a sentença recorrida fundamentada quanto ao elemento subjectivo da contra-ordenação praticada pela arguida, como se observa pela leitura da mesma.

Nos termos expostos, improcede a invocada nulidade, por falta de fundamentação.


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C- Da aplicação da pena de admoestação ou, de uma coima especialmente atenuada:

 Sustenta a recorrente que se mostra adequada a aplicação de uma pena de admoestação, porquanto:

- a sanção aplicada é deveras excessiva,

- não teve qualquer proveito com a referida máquina,

- é uma associação sem fins lucrativos, e no exercício de 2015 teve um prejuízo de 6.996,58 €, e,

- a máquina esteve instalada durante 3 dias no período em que o  Parque de Campismo já não é muito frequentado pelos seus utentes (2ª quinzena de Setembro).

Dispõe o n.º 1 do artigo 51º do DL n.º 433/82 que “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

Segundo António Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in ob. cit., pág. 144, a admoestação surge aqui como um mero aviso ao infractor por razões de menor ilicitude e culpa, sendo materialmente equivalente a “uma advertência com dispensa de coima”.

No caso vertente, os factos ocorreram em 19 de Setembro de 2012 e, pese embora tenha sido dado como provado que no ano fiscal de 2015 a recorrente apresentou o resultado líquido de exercício negativo, não se apuraram os resultados líquidos de exercício nos anos anteriores.

Estamos perante uma infracção que exige uma licença de exploração, a qual não foi obtida pela arguida, restando-lhe retirar a máquina de jogo do local, desactivá-la, e impedir que fosse utilizada pelos seus utentes até ser obtida a licença em falta.

No que respeita à gravidade da contra-ordenação em causa, tal como vem assinalado na decisão administrativa “A contra-ordenação praticada pela arguida decorre da existência no seu estabelecimento comercial de uma máquina que desenvolvia um jogo, que desenvolvia uma modalidade afim do jogo de fortuna ou azar, a gravidade da consequência da prática desta contra-ordenação é séria, uma vez que existe na sociedade uma censura ético-social quanto à prática do jogo, o que motivou a adopção de legislação que apenas possibilita a respectiva prática em determinados locais, e que estipula que a realização de modalidades afins se encontre regulamentada e sujeita a autorização do membro do Governo responsável pela Administração Interna.”.

Por conseguinte, resulta de forma inequívoca que quer a gravidade da infracção, quer a gravidade da culpa da recorrente não podem ser tidas por reduzidas para efeitos da aplicação da sanção admoestação.

Finalmente, pretende a recorrente que a coima seja especialmente atenuada, no valor de 1250,00 € (atendendo ao disposto no n.º 3 do artigo 18º do RGCO).

A este propósito, concordamos com a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de 1ª instância, quando refere na sua resposta ao recurso: «Todas as circunstâncias de sentido atenuante que a recorrente destaca na sua motivação, foram já valoradas, tendo até conduzido à fixação da coima no mínimo. E, no caso, não se vislumbram as circunstâncias excepcionais previstas no art. 72º, n.º 2 do Código Penal ou quaisquer outras – de carácter atenuante extraordinário, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima (n.º 1 do art. 72º)».

Em função do exposto, estamos, também, em crer que tal quadro de especial diminuição da culpa ou das exigências de prevenção não resulta da análise dos autos.


*

Termos em que, improcede, na totalidade, a argumentação da recorrente.

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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs

                                                                 *****                                                                         

Coimbra, 21 de Junho de 2017

(Elisa Sales – relatora)

(Paulo Valério – adjunto)


[1] - in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2ª ed., Almedina, pág. 183.
[2] - in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 7ª ed., Almedina, págs. 142-143.
[3] - in Direito Penal e de Mera Ordenação Social, no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, pág. 268.
[4] - cfr. Oliveira Mendes e Santos Cabral, ob. cit., pág. 157.
[5] - obra citada, pág. 159. Cfr. ainda Ac. RC de 4-6-2003, CJ, Tomo 3, pág. 40.