Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1773/08.8TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CHEQUE PRESCRITO
TÍTULO EXECUTIVO
SÓCIO GERENTE
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 46º Nº1 AL. C) DO CPC
Sumário: I – O cheque prescrito vale como título executivo, enquanto documento particular incorporando a obrigação subjacente ou fundamental, desde que não emergente de negócio formal e a causa seja alegada no requerimento executivo;

II – Assumindo o executado o pagamento de dívida da sociedade de que era sócio-gerente mediante entrega de cheques seus à exequente credora dessa sociedade, que os deu à execução, operou-se uma assunção de dívida, essa sendo a causa que esteve na origem dos valores titulados pelos cheques.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

1. Relatório

A..., executado nos autos de execução comum pendentes no 3.º Juízo do TJ de Pombal e em que é exequente “B..., Lda.” veio deduzir oposição, pedindo a extinção da execução, com base na prescrição da obrigação cartular inerente aos cheques por si assinados, os quais foram devolvidos nos serviços de compensação em 22 e 27 de Fevereiro de 2007, quando a acção executiva deu entrada em juízo em 8 de Agosto de 2008, ou seja, mais de 1 ano após a data da sua devolução (art.º 52.º da LUC).

Acrescentou ainda, por antecipação, não poder extrapolar-se para o domínio das relações imediatas, já que os sujeitos da relação jurídica extracartular e os cambiários não coincidem, tendo os cheques dados à execução sido entregues à exequente para amortizar uma letra de câmbio da responsabilidade da devedora “C... , SA” à credora “ B...”, estas, sim, sujeitas da relação fundamental.

Notificada, contestou esta última no sentido do prosseguimento da execução, com fundamento em que, mesmo prescritos os cheques, mantêm a natureza de título executivo, enquanto documentos particulares (art.º 46.º, n.º 1, alín. c), do CPC), uma vez que no requerimento executivo foi invocada a relação causal da sua emissão, alegando-se terem os mesmos sido entregues pelo executado/oponente à exequente para “amortização de uma letra de câmbio aceite pela sociedade “ C..., SA”, cuja letra original era no valor de € 18.000,00, a qual foi por várias vezes reformada”.

 Mais acrescentou que o executado tinha conhecimento da dívida da “ C...” para com a exequente, da qual era sócio-gerente, já antes tendo procedido à entrega à exequente de cheques próprios para pagamento de dívidas dessa firma e que o oponente ao preencher, datar, assinar e entregar os cheques à exequente assumiu a responsabilidade de parte da quantia em dívida da referida firma para com a exequente e o pagamento das quantias constantes dos cheques, cuja simples emissão faz presumir a relação jurídica subjacente.

Proferido despacho saneador, afigurou-se conhecer de imediato do pedido, julgando-se improcedente a oposição e determinando-se o prosseguimento da execução com fundamento em que, independentemente da prescrição, porque do requerimento executivo resulta alegada a relação jurídica subjacente aos cheques é o que tanto basta para, à luz da alín. c) do n.º 1 do art.º 46.º do CPC, conferir força executiva aos cheques enquanto documentos particulares e onde o devedor reconhece um débito de € 6.150,00 a favor da exequente.

Discordante com o assim decidido, recorreu o oponente em alegações que rematou com as seguintes conclusões:

a) - O que está em causa é saber se, tendo a exequente alegado que a quantia exequenda é da responsabilidade da “ C... SA” a quem prestou serviços que não lhe foram pagos, o ora Apelante se constituiu devedor dos montantes neles inscritos valendo os cheques como quirógrafos da obrigação;

b) - O art. 46º do Cód. Proc. Civil refere, na alínea c) do n.º 1, que os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, são títulos executivos;

c) - O cheque, como título cambiário, obedece aos requisitos previstos no art. 1º da LUC e consubstancia, única e somente, uma ordem de pagamento dada a uma instituição bancária, exprimindo, um mandato de pagar uma determinada quantia;

d) - O direito cartular é independente do direito subjacente e, como título executivo, propicia a entrada directa na acção executiva;

e) - O título executivo é imprescindível para a interposição da acção executiva, mas a causa de pedir é a relação substantiva que está na génese da sua emissão, pressupondo-se o seu incumprimento;

f) - O cheque, pela sua literalidade e abstracção, apenas pode servir de título executivo, como documento particular assinado pelo devedor, se o exequente alegar, no requerimento executivo, expressamente, a relação subjacente que esteve na base da sua emissão;

g) - A exequente no seu requerimento executivo não alegou a relação subjacente, entre si e o apelante, na emissão dos cheques;

h) - Apenas o fez em relação à “ C..., SA”, alegando que os cheques foram entregues para pagamento de uma dívida devida por esta sociedade, cujo montante estava titulada por letras por ela aceites;

i) – A mera alegação de entrega de cheques para a reforma de letras (amortização de uma dívida), não relata qual a razão substancial que conduziu à emissão dos cheques, ou seja, não caracteriza a relação extracartular que possa vincular o sacador dos títulos de forma a poder defender-se na oposição;

j) - Não o fazendo naquela sede, não o poderá fazer posteriormente, uma vez que tal implicaria uma alteração à causa de pedir;

l) - A presunção inserta no art. 458.º do Código Civil apenas vale entre o credor e o devedor originários, dispensando o credor de provar a relação fundamental, caso de trate de negócios puramente abstractos;

m) - Para que os cheques sacados pelo apelante pudessem ser considerados títulos executivos seria necessário que o sacador, ora apelante e executado, fosse parte na relação substancial credor/devedor originários;

n) - Como se retira do requerimento executivo o devedor originário é a “C... SA”, a quem a exequente prestou serviços que não foram honrados e não o apelante;

o) - Como o cheque não refere a causa da sua emissão, deveria essa causa ter sido alegada, no requerimento executivo, pela exequente, uma vez que a obrigação que se pretende executar não é a cartular, mas sim a causal, da qual os cheques prescritos são meros quirógrafos;

p) - Ao julgar improcedente a oposição à execução o tribunal a quo violou o disposto no art. 52º da LUC.

A apelada respondeu no sentido da defesa do julgado.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questão a apreciar:

- Se os cheques dados à execução, não obstante prescritos, podem valer, enquanto documentos particulares assinados pelo devedor, como títulos executivos.

O que passa por averiguar se entre o executado e a exequente existe e foi alegada verdadeira relação causal ou subjacente à emissão dos títulos, ou se o mesmo é terceiro em relação à exequente, enquanto credora da sociedade “ C...” de que aquele era sócio-gerente, respeitando os cheques a uma dívida desta para com aquela.


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            2. Fundamentação

            2.1. De facto

            O quadro factual relevante é o que pacificamente resulta do antecedente relatório e para onde, brevitatis causa, se remete.


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            2.2. De direito

            É largamente maioritária na doutrina e na jurisprudência[1] (o que veio ser reforçado com a nova redacção dada à alín. b) do n.º 3 do art.º 810.º do CPC pelo DL n.º 38/03, de 8.3 e, depois, à alín. e) do n.º 1 do mesmo preceito pelo DL n.º 226/08, de 20.11, no sentido de que, no requerimento executivo, o exequente “expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo) o entendimento de que uma vez extinta, por prescrição, a obrigação cambiária incorporada no cheque, este pode continuar a valer como título executivo enquanto documento particular assinado pelo devedor (quirógrafo) no quadro das relações imediatas (credor originário/devedor originário) para execução da respectiva obrigação causal ou subjacente, desde que esta seja alegada no requerimento executivo e não constitua um negócio jurídico formal.

            A referência a credor/devedor originária visa excluir qualquer situação que remeta para o domínio das relações mediatas, como o endosso do cheque.

            Aliás, no transcrito sumário do acórdão do STJ de 19.104[2] em que o recorrente fundamenta as alegações e se refere a “credor e devedor originário”, o ponto IV (não transcrito) acrescentava que “Assim, quem adquirir um cheque por endosso do tomador não pode executá-lo contra o emitente a coberto dos art.ºs 46.º, n.º 1, ali. c) do CPC e 458.º do CC”.

            Ora, a questão que importa já resolver é saber, por um lado, se foi alegada a causa da relação jurídica subjacente, e foi, uma vez assente (não dispomos aqui do respectivo requerimento executivo) que os cheques se destinaram à “amortização de uma letra de câmbio aceite pela sociedade “ C..., SA” …(o que, contrariamente ao sustentado nas alegações permitia o contraditório) e, por outro, se esta causa seria apenas de considerar na relação exequente enquanto credora e a “ C...” enquanto devedora, sendo o recorrente terceiro nessa relação.

            Para responder a esta parte da questão importa considerar que os cheques dados à execução se destinaram ao pagamento da dívida da sociedade “ C...” perante a sociedade exequente “ B...”, o que configura uma “transmissão singular de dívida” (assunção de dívida) a que se reporta a alín. a) do n.º 1 do art.º 595.º do CC.[3]

            Daí que o executado oponente assuma aqui a posição de devedor originário, por via desse contrato de assunção de dívida, eventualmente com declaração negocial tácita (art.º 217.º, n.º 2, do CC) e, assim, demonstrada fica a causa que esteve na origem dos valores titulados pelos cheques entregues à exequente.

            Soçobra, deste modo, a conclusão recursiva de que a exequente não alegara a relação subjacente entre si e o recorrente, tendo que improceder a apelação.

            Numa das conclusões o recorrente faz apelo à presunção a que se reporta o n.º 1 art.º 458.º do CC (declaração unilateral de reconhecimento de dívida), de que apenas vale entre credor e devedor originários.

            A esta última parte já acima lhe demos resposta. A 1.ª, era uma outra via jurisprudencial, minoritária, para conferir valor ao cheque como título executivo ainda que despido de alguns dos requisitos ou condições imperativamente previstas na LUC, pelo que não se justifica maior abordagem.

            3. Em síntese

            I – O cheque prescrito vale como título executivo, enquanto documento particular incorporando a obrigação subjacente ou fundamental, desde que não emergente de negócio formal e a causa seja alegada no requerimento executivo;

            II – Assumindo o executado o pagamento de dívida da sociedade de que era sócio-gerente mediante entrega de cheques seus à exequente credora dessa sociedade, que os deu à execução, operou-se uma assunção de dívida, essa sendo a causa que esteve na origem dos valores titulados pelos cheques.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente.


Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] V. Lebre de Freitas, “A Acção Executiva- Depois da reforma da reforma”, 5.ª ed., pág. 61 e, por todos, Ac. STJ de 27.11.07, Proc. 07B3685, in www.dgsi.pt.
[2] Proc. 03A3881, in www.dgsi.pt
[3] Em sentido paralelo, v. o Ac. STJ de 13.10.09, Proc. 574/07.5TBPFR.P1.S1.