Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/20.7T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO A RESTITUIÇÃO
DETENTOR LEGÍTIMO
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 1311º DO C: CIVIL.
Sumário: I – Não basta o reconhecimento do direito de propriedade do autor para que a obrigação de restituir a coisa reivindicada seja imposta.
II – Assim, se o detentor ou possuidor da coisa reivindicada demonstrar que é titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível com o direito do proprietário, não existirá fundamento para ordenar a restituição da coisa reivindicada.
Decisão Texto Integral:    



            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

               1 – RELATÓRIO

C..., residente na Rua ..., intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, na forma única, contra C... e G..., residentes na Rua ..., peticionando:

a) Que os réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano sito na Rua ...;

b) Que os réus sejam condenados a absterem-se de continuar a explorar o estabelecimento comercial “Café ...”, existente no rés-do-chão do prédio identificado em a);

c) Que os réus sejam condenados a restituir à Autora a parte do prédio que ocupam contra a vontade desta, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava quando o receberam a título oneroso do C...;

d) Que os réus sejam condenados a pagarem uma sanção pecuniária compulsória de €100,00 (cem euros), por cada dia, contados desde a sua citação até entrega efetiva do estabelecimento que integra o rés-do-chão do prédio identificado no artigo 1º desta petição – artigo 829º -A do Código Civil.

Para tanto, alega, em síntese, que é dona e legítima possuidora do prédio urbano, composto de cave para arrumos, rés-do-chão para comércio e primeiro andar para habitação, sito na Rua ...

O direito de propriedade da Autora advém-lhe do facto de haver adquirido por sucessão de sua mãe, M..., o prédio rústico, com a área de 5700m2, descrito na Conservatória do Registo Predial em nome da mesma, onde foi construído o prédio supra identificado, e ainda um barracão.

Alega ainda a Autora que viu reconhecido o seu direito de propriedade por acórdão proferido pelo douto Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo Nº ...

A Autora casou com C..., em 29/04/1973, no regime da comunhão de bens adquiridos tendo o seu casamento sido dissolvido por divórcio por sentença de 28/06/94. No estado de casada com o C..., a A. construiu o prédio urbano, no entanto, conforme reconhecido naquele Douto Acórdão, a Autora é a única dona do prédio rústico e as construções (casa de habitação e barracão) construídas no prédio rústico faziam parte da comunhão conjugal do dissolvido casal, e como tal integravam-se nela como bens comuns.

No mencionado acórdão do STJ, o C... apenas e tão-somente viu reconhecido o direito de retenção da casa de habitação e barracão, tendo em conta o direito a metade do valor das construções.

Após o divórcio, o C... explorou o estabelecimento comercial denominado de Café ..., existente no rés-do-chão do prédio urbano propriedade da Autora e cedeu a exploração do identificado estabelecimento a terceiros, estipulando condições, assinando contratos e recebendo os correspondentes valores.

Em 23 de outubro de 2019 o C... veio a falecer no estado de casado com N...

A autora requereu a Notificação Judicial Avulsa dos Réus, onde comunica que é a única e exclusiva proprietária do prédio urbano e concedeu aos Réus um prazo de 8 dias para se absterem de explorar o seu estabelecimento comercial “Café ---” e procederem à entrega do mesmo, nele, ainda hoje, continuam a exercer o seu negócio e não o entregaram voluntariamente até esta data.

Mais invoca a autora que nunca celebrou com qualquer dos Réus, ou com quaisquer outras pessoas, acordo de cedência de exploração do estabelecimento comercial em crise ou, sequer, com eles celebrou um qualquer contrato de arrendamento,

Termina alegando que a situação descrita está a causar graves prejuízos à Autora, privando-a de qualquer rentabilização económica do estabelecimento comercial “Café ...”.

Regularmente citados (fls. 29 e 30), os réus não constituíram mandatário, nem apresentaram contestação.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 567.º do Código de Processo Civil, em decorrência do que a A. apresentou as suas alegações.  

Na sequência foi proferida sentença, na qual se considerou, em suma, que face à factualidade apurada, se tinha de considerar que a A. era dona e legítima proprietária do prédio em causa, pelo que, nos termos legais dos arts. 1305º e 1311º do C.Civil, «ao titular do direito de propriedade é reconhecido o direito de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito e que tal direito não seja perturbado, bem como a consequente restituição do que lhe pertence», sendo certo que, quanto ao pedido, igualmente formulado, de os RR. se absterem de continuar a explorar o estabelecimento comercial “Café ...”, existente no rés-do-chão do prédio propriedade da A., a conclusão era a de que, não obstante a propriedade do imóvel não se confundir com a propriedade do estabelecimento comercial [nem, aliás, a A. tendo alegado ser proprietária desse estabelecimento comercial, nem ser de legitimar a A. a explorá-lo], importava garantir a restituição da coisa à A., na decorrência da ação de reivindicação, donde «atentando no elenco dos factos provados, resulta dos mesmos que o estabelecimento comercial explorado pelos réus se situa no imóvel, propriedade da autora, objecto da presente acção de reivindicação, nesta medida, terão os réus de se abster de explorar o estabelecimento comercial, na medida em que lesam o direito de propriedade da autora», isto sem embargo de não ser de proferir a igualmente requerida condenação dos RR. no pagamento da Sanção Pecuniária Compulsória, por cada dia, contados desde a sua citação até entrega efetiva do estabelecimento comercial, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«DISPOSITIVO

Em face do exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

a) Reconhece-se que a autora C... é proprietária do prédio urbano situado na Rua ..., composto por casa de rés-do-chão e 1.º andar para habitação e logradouro, com as seguintes confrontações: ...

b) Condenam-se os réus C... e G... a restituir à Autora a parte do prédio que ocupam contra a vontade desta, livre de pessoas e bens e nas exactas condições em que se encontrava quando o receberam a título oneroso do C...;

c) Condenam-se os réus a absterem-se de continuar a explorar o estabelecimento comercial “Café ...”, existente no rés-do-chão do prédio mencionado em a).

d) Absolver os réus do pedido de condenação no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

Custas pelas partes, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 25% para a autora e 75% para os réus.

*

Inconformados com essa sentença, apresentaram os RR. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
...
NESTES TERMOS, DEVE SER JULGADO PROCEDENTE O RECURSO REVOGANDO-SE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, ORDENANDO-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE JULGUE TOTALMENTE IMPROCEDENTE, POR FALTA DE LEGITIMIDADE DA AUTORA, A ACÇÃO PROPOSTA PELA A. CONTRA OS RECORRENTES
ASSIM SE FARÁ INTEIRA JUSTIÇA!»

A A. apresentou contra-alegações pugnando no sentido de se «manter na íntegra a douta sentença recorrida e julgar totalmente improcedente, por não provado, o recurso apresentado, com o que farão, como sempre, a tão costumada JUSTIÇA.».

               O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando oportunamente pela sua subida devidamente instruído.

               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos RR./recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- desacerto da decisão recorrida por não ter considerado que os RR. ocupam legitimamente o prédio propriedade da Autora [nem considerar que esta não tem direito à posse do mesmo]?

3 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Vejamos o elenco factual que foi considerado “fixado”/“provado” pelo Tribunal a quo, sendo certo que o recurso deduzido pelos RR./recorrentes se encontra circunscrito à matéria de direito. 

Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “Factos provados”:

               ...

               4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar diretamente na apreciação da questão substantiva/de mérito supra enunciada, a saber, a de que houve desacerto da decisão recorrida por não ter considerado que os RR. ocupam legitimamente o prédio propriedade da Autora [nem considerar que esta não tem direito à posse do mesmo].

Ora – e ressalvado o juízo antecipatório! – importa efetivamente reconhecer razão aos RR./recorrentes, e basicamente pela ordem de razões por eles eleita como argumento primordial.

Senão vejamos.

Na argumentação conclusiva da A. ora recorrida – a qual, nessa medida, foi desconsiderada na sentença recorrida! – os RR. estavam «a ocupar parte do prédio da Autora, sem que, para tal, possuam qualquer título que o legitime.» [cf. art. 25º da p.i.].

Por sua vez, na sentença recorrida, concluiu-se que resultando dos factos apurados «que o estabelecimento comercial explorado pelos réus se situa no imóvel, propriedade da autora, objecto da presente acção de reivindicação, nesta medida, terão os réus de se abster de explorar o estabelecimento comercial, na medida em que lesam o direito de propriedade da autora».

Sucede que, salvo o devido respeito, com esta linha argumentativa da sentença recorrida postergou-se a análise e ponderação sobre o eventual título – e legitimidade do mesmo! – à luz do qual os RR. se encontravam a ocupar a parte do imóvel reivindicado [onde funciona o estabelecimento comercial “Café ...”], sendo certo que, ao invés do que a A. sustentava e sustenta nos autos, os RR. tinham e têm título legítimo para a detenção da parte do imóvel em causa.

Rememoremos, antes de mais, alguns conceitos dogmáticos.

A Autora, ora recorrida, sustentou a sua pretensão reivindicativa da parte do imóvel [onde funciona o estabelecimento comercial “Café ...”] no facto de ser proprietária desse imóvel e de nunca ter celebrado com qualquer dos RR., ou com quaisquer outras pessoas, acordo de cedência de exploração do estabelecimento comercial em crise, nem com eles celebrou um qualquer contrato de arrendamento.

Ora, quanto ao direito de propriedade da autora/recorrida, como resulta da factualidade provada, nunca tal constituiu uma questão controversa, pois os RR. não negaram essa titularidade nem se arrogaram algum direito incompatível com o direito da Autora.

Porém, como decorre do art. 1311º, nº 2 do C.Civil (e tem sido doutrinal e jurisprudencialmente pacífico), não basta o reconhecimento do direito de propriedade do autor reivindicante para que a obrigação de restituir a coisa reivindicada seja automaticamente imposta.

Assim, se o detentor ou possuidor da coisa reivindicada demonstrar que é titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível (em duração mais longa ou mais curta) com o direito do proprietário, não existirá fundamento para que a restituição da coisa seja determinada por força da ação de reivindicação.[2]

 No caso concreto, os RR./recorrentes, nas suas alegações recursivas, alegaram, de forma expressa, a existência de um contrato de cessão de exploração a favor dos mesmos do estabelecimento comercial [“Café ...”] que funciona na parte do imóvel reivindicado, em que foi outorgante o detentor desse estabelecimento, a saber, o ex-marido da Autora, C...

De referir que esse mesmo contrato de cessão de exploração foi reconhecido como existente pela própria Autora na p.i., e figura nesses termos na factualidade dada como apurada[3].

Ora se assim é, está quanto a nós insofismavelmente apurado o título legítimo para a detenção dos RR., que é o referenciado contrato de cessão de exploração.

Na verdade, estando – ao que é reconhecido e aceite pelas partes – esse contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial em vigor, não assiste à Autora ora recorrida o direito a lhe ser entregue pelos RR. a parte do imóvel reivindicado onde funciona esse estabelecimento.

E nem se argumente – como ainda intentou a Autora, quer em escrito que enviou oportunamente aos RR. e juntou com a p.i., quer nas contra-alegações recursivas – que tinha ocorrido a “caducidade” [ex vi do art. 1051º, al. c) do C.Civil] de qualquer direito com base no qual o falecido C... tinha permitido a exploração do estabelecimento comercial.

É que não é aqui de aplicar o regime do contrato de locação tout court [ou pelo menos na interpretação que a A./recorrida dele estará a fazer].

Como decorre do art. 1109º do mesmo C.Civil[4], aplicam-se antes às situações de “locação de estabelecimento” como é a que está aqui em causa – definido para efeitos desse enquadramento como «A transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado» – as normas constantes do art. 1108º a 1113º do mesmo C.Civil, donde, à luz do disposto no art. 1110º, nº1 do mesmo C.Civil, para além de lhe ser aplicável o que tiver sido estabelecido pelas partes, designadamente em termos de “duração” do contrato [o que in casu objetivamente se desconhece], sempre se aplicarão as regras gerais de “Transmissão da posição do locador” constantes do art. 1057º do C.Civil, isto é, com a posição ativa do falecido C... no contrato de cessão de exploração invocado, a transmitir-se para os seus herdeiros, que não a “caducar”…

Por outro lado, importa ter presente que mesmo na sentença recorrida não deixou de se fazer quanto ao particular da propriedade do estabelecimento comercial em causa uma correta distinção, em termos teoréticos, da mesma relativamente à propriedade do imóvel onde aquele se encontra instalado, mormente com a afirmação de que «O estabelecimento comercial não se confunde com o imóvel onde se encontra instalado, podendo abrangê-lo ou não. Nesta medida, não tendo a autora alegado ser proprietária do estabelecimento comercial, não cabe ao Tribunal proferir qualquer tipo de decisão que legitime a autora a explorar o estabelecimento comercial.»

Sucede que, salvo o devido respeito, não se retirou de tal as devidas consequências, senão mesmo se operou um salto lógico.

Vejamos – e com especial enfoque na relação do estabelecimento comercial com o imóvel onde se encontre instalado.

Ressalve-se, desde já, que nem todos os estabelecimentos carecem deste elemento, como é o caso, por exemplo, dos estabelecimentos de venda ambulante.

Contudo, no caso de estabelecimento instalado em imóvel – como é o caso que nos ocupa – há que distinguir, desde logo a propriedade, ou outro direito real, sobre o prédio, da propriedade, ou outro direito real, sobre o estabelecimento comercial, isto porque um não implica o outro.

Assim, o titular do prédio pode ser o titular do estabelecimento, ou não: pode o estabelecimento estar instalado em prédio arrendado; pode até o estabelecimento ser locado, e aqui, quem explora o estabelecimento é um sujeito, o proprietário deste é outro, e o proprietário do prédio um terceiro; o imóvel pode estar na organização mercantil a diversos títulos, como sejam, a título de exemplo, a propriedade, o usufruto, o arrendamento, a mera disponibilidade simples e comodato.

Por outro lado, nada se altera também no estabelecimento se o imóvel era detido a um título e passou a ser detido por outro: pense-se, por exemplo, no caso de o imóvel ser arrendado e posteriormente adquirida a sua propriedade pelo titular do estabelecimento, ou vice-versa; pelo que não se confundem estas qualidades, as quais apresentam particular relevo nas relações entre prédio e estabelecimento e sua negociação.

Pode, assim, haver alienação ou locação do estabelecimento sem que o elemento “prédio” o acompanhe.[5]

Em contraponto, temos que findo o contrato, após um período temporal maior ou menor, o locatário terá de restituir ao locador o estabelecimento comercial.

De referir que quanto à questão do estabelecimento comercial poder ser objeto de uma ação de reivindicação enquanto unidade, pelo seu proprietário ou usufrutuário face ao locatário do mesmo [ou qualquer sujeito que o detenha ou possua sem para tal estar legitimado], a resposta claramente dominante em termos doutrinários é de sentido positivo.[6]

Donde, é efetivamente possível uma ação ter por objeto o todo, sem necessidade de individualizar os elementos que o compõem.

Acontece que, no caso vertente a Autora ora recorrida não propôs a ação sustentada na propriedade do estabelecimento comercial em causa, assim como não o reivindicou a se.

Assim sendo, não se lhe pode reconhecer legitimidade para ver cessada a exploração do estabelecimento pelos RR., sobretudo pela via indireta da reivindicação da parte do imóvel onde aquele se encontra instalado e a funcionar a coberto de um contrato cuja validade e vigência não se vislumbra ter sido questionada fundada e incontroversamente nestes autos.

O que tudo serve para dizer que apesar de a Autora [da reivindicação] ter demonstrado o seu direito, não logra obter a restituição da coisa por resultar do alegado pela própria – e reforçado nas contra-alegações recursivas – a plena demonstração de que os RR. dispõem de título que legitime a sua detenção, conforme dispõe o nº2 do art. 1311º do C.Civil.

Nestes termos procede o recurso, com a revogação dos segmentos do dispositivo constantes sob as alíneas “b)” e “c)”, com a consequente absolvição dos RR. de todos os pedidos formulados, sem embargo de subsistir o reconhecimento do direito de propriedade operado sob a alínea “a)”.

Sendo certo que as custas serão integralmente suportadas pela A./recorrida (cf. art. 535º do n.C.P.Civil).

 5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Não basta o reconhecimento do direito de propriedade do autor para que a obrigação de restituir a coisa reivindicada seja imposta.

II – Assim, se o detentor ou possuidor da coisa reivindicada demonstrar que é titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível com o direito do proprietário, não existirá fundamento para ordenar a restituição da coisa reivindicada.
            6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, na procedência do recurso, manter o reconhecimento do direito de propriedade operado sob a alínea “a)”, mas revogar a decisão recorrida quanto aos segmentos do dispositivo constantes sob as alíneas “b)” e “c)”, com a consequente absolvição dos RR. de todos os pedidos formulados, donde, a alínea “d)” desse dispositivo é reformulada passando a figurar com a seguinte numeração e teor:

«b) Absolver os réus de todos os pedidos formulados contra si.».

Custas em ambas as instâncias pela A./recorrida.

                                                           Coimbra, 20 de Abril de 2021

                                                                    Luís Filipe Cravo

                                                                   Fernando Monteiro

                                                                   Ana Márcia Vieira




[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira
[2] Afirmam PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 1987, a págs.116, que o demandado pode «contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa (a título de usufrutuário, locatário, credor pignoratício, etc.).»; neste preciso sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 09.04.2019, proferido no proc. nº 697/10.3TCFUN.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] cf. factos apurados sob os pontos “6.”, “7.” e “8.”, a saber:
«6. Desde que o café iniciou a sua actividade que o faz sob os dizeres “Café …”.
7. Após o divórcio, o C… explorou o estabelecimento comercial denominado de Café…, existente no rés-do-chão do prédio urbano propriedade da Autora.
8. Após, o C… cedeu a exploração do identificado estabelecimento “Café C… ” a terceiros, estipulando condições, assinando contratos e recebendo os correspondentes valores.»

[4] Na linha de um entendimento já anteriormente constante do art. 1085º, nº1 do C.Civil [norma ulteriormente revogada pelo DL nº 321- B/90 de 15 de Outubro /R.A.U.], «Não é havido como arrendamento de prédio urbano ou rústico o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com a fruição do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado».
[5] E, não se encontrando o estabelecimento absolutamente vinculado a este, não deixa de haver um negócio sobre aquele mesmo estabelecimento, que manterá a sua identidade e organização tal como anteriormente ao negócio…
[6] Vide mais aprofundadamente sobre a questão, BARBOSA DE MAGALHÃES, “Do estabelecimento comercial”, in: Estudos de Direito privado, Lisboa, 1951 e FERRER CORREIA, “Reivindicação de estabelecimento comercial como unidade jurídica”, in: Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, 2ª edição, Coimbra, 1985.