Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1368/12.1TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - VARAS MISTAS 1ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.90, 128, 129 CIRE, 755 CC
Sumário: 1.- A reclamação, verificação e graduação de créditos, em processo de insolvência, tem por objecto todos os créditos da insolvência, sendo os credores admitidos a reclamar os seus créditos independentemente de se encontrarem, ou não, munidos de título executivo;

2.- O promitente-comprador que pretenda reclamar o seu crédito derivado do incumprimento de um contrato-promessa, invocando a traditio como fundamento de um direito de retenção, ao abrigo do art. 755º, nº1, f), do CC, não precisa de se munir de uma prévia sentença de condenação a reconhecer o seu crédito, por incumprimento do promitente vendedor, e a tradição da coisa para ele, podendo e devendo o reconhecimento do seu crédito e da respectiva garantia operar no próprio processo de reclamação de créditos previsto nos arts. 128º e segs. do CIRE.

Decisão Texto Integral: I – Relatório


1. F (…), residente em Pombal, intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra Massa Insolvente de R (…) S.A.
Alegou que a R (…) foi declarada insolvente. Que nesses autos, Proc.462/12.3TJCBR, reclamou o direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela G do edifício descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o número (...), e sobre a fracção autónoma designada pela letra E do edifício descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o número (...). Tal direito de retenção, relativo a 2 créditos no total de 116.500 €, valor correspondente ao que pagou aquando da celebração dos contratos-promessa relativos a tais fracções, não foi reconhecido pela administradora da massa insolvente, com a justificação que não foi junta prova da entrega efectiva das referidas fracções autónomas, e a discussão e decisão sobre o direito de retenção não poderá ter lugar no processo de insolvência, por ter natureza urgente. Por isso, o A. intentou a presente acção, peticionando, além do mais, que a R. seja condenada a reconhecer o seu direito de crédito de 116.500 €, bem como o direito de retenção sobre as identificadas fracções. 
A R. deduziu contestação, alegando, além do mais, haver litispendência, pois naquele Proc.462/12-H, correspondente a um apenso de reclamação de créditos, os fundamentos são os mesmos da presente acção, e impugnando que o A. tenha tido posse sobre as aludidas fracções.
O A. replicou, dizendo, além do mais, inexistir litispendência.
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Logo de seguida, foi proferido despacho que julgou haver erro na forma do processo, e em consequência absolveu a ré da instância.
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2. O A. interpôs recurso, tendo concluído como segue:
1- Foram alegados factos que, a serem provados, podem permitir concluir ter ocorrido a traditio da coisa e decidir que o recorrente goza do direito de retenção, face ao incumprimento imputável à massa insolvente, nos termos do artigo 442º, ut alínea f) do nº 1 do artigo 755º, ambos do Código Civil.
2- Nos termos do disposto no artigo 759º, nº 2 do C.C., tal direito prevalece sobre a hipoteca.
3- O reconhecimento do crédito do recorrente pode ficar condicionado ao resultado da presente ação.
4- “Em processo de verificação e graduação de créditos, apenso a processo de insolvência, a simples alegação, por parte do credor reclamante, de factos eventualmente integradores do direito de retenção, consagrado na alínea f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil, é, por si só, insuficiente para que lhe seja reconhecido o privilégio consagrado no nº 2 do artigo 759º do mesmo diploma, com a consequente primazia sobre hipoteca, mesmo com registo anterior.”
5- “Para que tal possa ser uma realidade, torna-se necessário que prove os factos dessa alegação, juntando, para tanto, o título justificativo, que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente vendedor e a tradição da coisa para o promitente comprador.
6- “A especialidade do processo de insolvência não se coaduna com a morosidade advinda da prova da existência de título em momento posterior ao da apresentação à reclamação do respectivo crédito.”
7- “Mas a falta de título, no momento da abertura do crédito, não é (era) motivo para, sem mais, os credores ficarem, desfavorecidos: é que o artigo 146º do C.I.R.E. possibilita o reconhecimento de outros créditos, mesmo findo o prazo das reclamações, nos precisos termos consagrados no artigo 146º do C.I.R.E.”
8- Não se verifica, pois, erro na forma de processo.
9- Pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e ordenar-se o prosseguimento do processo.
10- (…)
JUSTIÇA
3. A Massa Insolvente recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 685º-A, e 684º, nº3, do CPC).
Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.
- Erro na forma do processo.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:
“Dispõe o artigo 128º, sob a epígrafe, Verificação de créditos:
1. Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os elementos probatórios de que disponham, no qual indiquem:
a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros;
b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas;
c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste último caso, os bens ou direitos objecto de garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável;
d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes.
e) A taxa de juros moratórios aplicável. ()
3. A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.
Quer deste normativo, quer do artº 129º no 1 do CIRE decorre que a reclamação em processo de insolvência não se restringe aos credores munidos de título executivo, já que todos os credores da insolvente devem reclamar o respectivo crédito no processo de insolvência, para aí poderem obter a sua satisfação.
Por outro lado, citando o ac. da RP de 6.11.2012 se o credor não necessita de um título executivo que lhe reconheça a existência do seu crédito, por maioria de razão não carecerá de uma sentença prévia lhe seja reconheça o respectivo direito de retenção para que o possa invocar no processo de insolvência, uma vez que, resultando este directamente da lei, poderá a verificação dos respectivos pressupostos ser apreciada e reconhecida na própria sentença de verificação e graduação de créditos (in www.dgsi.pt).
Logo, e em face do disposto no artº 90º e 128º do CIRE os credores da insolvência para poderem obter o pagamento do crédito de que se arrogam titulares têm que exercer no processo de insolvência os direitos que lhe assistem, ainda que eles já se encontrem reconhecidos noutro processo ou que se encontre pendente um processo.
É neste contexto que o citado acórdão se pronuncia afirmando que não faria qualquer sentido exigir-se ao credor que pretenda invocar a garantia real consistente no direito de retenção previsto no nº1 do art. 755º do CC, que obtenha o prévio reconhecimento de que goza de tal garantia - ou o reconhecimento de que, havendo traditio, houve incumprimento por banda do promitente vendedor por via de uma sentença judicial autónoma, quando a propositura de uma tal acção nem sequer o dispensaria da reclamação de tal crédito no processo de insolvência. Por outro lado, uma vez reclamado o crédito, caso o mesmo não tenha sido reconhecido pelo Administrador de Insolvência, quanto ao seu montante ou garantias invocadas, ou tendo sobre o mesmo recaído a impugnação de algum credor, abre-se no processo de insolvência um incidente processual de natureza declarativa, que culminará na audiência de discussão e de julgamento e na sentença, caso se torne necessária a produção de prova sobre os factos articulados pela reclamante, de acordo com o disposto nos arts. 131º a 140º do CIRE.
E, assim sendo, o procedimento previsto nos arts. 128º e ss. será o adequado à apreciação e reconhecimento dos créditos reclamados e suas garantias, ainda que envolva matérias para as quais o juiz da insolvência não fosse directamente competente (ex., reconhecimento de créditos laborais) art. 96º do CPC.
No enquadramento legal que acabamos de referir, alega o autor que reclamou o seu crédito no processo de insolvência e que aí invocou o direito de retenção. Porém, tal crédito não foi reconhecido pela Srª administradora da massa insolvente e a discussão e decisão sobre o direito de retenção não poderá ter lugar no processo de insolvência, por ter natureza urgente.
Ora, a justificação que o autor invoca para intentar a presente acção não merece qualquer acolhimento, já que o apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência é, não só lugar próprio para o titular de crédito proveniente de incumprimento de contrato-promessa celebrado com o insolvente reclamar esse crédito e invocar, se for caso disso, o direito de retenção que a lei lhe reconheça, como será mesmo o único lugar próprio para o fazer e discutir perante a massa insolvente e seus credores.
Por outro lado, a sentença que nos presentes autos viesse a ser proferida não seria invocável contra os demais credores, excepto se fosse instaurada contra todos os credores.
Concluindo, o meio processual próprio para o autor deduzir a sua pretensão é a reclamação de créditos por apenso aos autos de insolvência.
Ora, o erro na forma de processo (que é do conhecimento oficioso do Tribunal) ocorre quando há desconformidade entre a natureza e/ou a forma de processo escolhida pelo autor/requerente e a pretensão que deduz, já que aquele é determinado pelo pedido formulado …. Existe erro na forma de processo quando se utilizada uma forma processual inadequada segundo os critérios da lei.
A este respeito estatui o art.º 199.º, n.º 1, C.P.Civil: O erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.. E acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal: Não devem, porém, aproveitar-se os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
Em face de todo o exposto, julga-se verificado o erro na forma do processo, que no caso determina a nulidade de todo o processo, já que os actos praticados não podem ser aproveitados (tanto mais que, como o autor alega reclamou o seu crédito nos autos de insolvência) e em face disso a absolvição da ré da instância (artºs 494º, al. b) e 288º, al. b) do CPC)”.
Cremos que a decisão está correctamente analisada e fundamentada. Consideramos, por isso, que não é de seguir o Ac. do STJ de 30.11.2010, citado pelo recorrente nas suas alegações, que por sua vez reproduz o Ac. do mesmo tribunal de 19.11.2009, ambos em www.dgsi.pt, em que o STJ, conforme decorre da fundamentação dos ditos acórdãos e do sumário publicado, dá prevalência à posição contrária à decisão recorrida. O sumário publicado reza assim: em processo de verificação e graduação de créditos, apenso a processo de insolvência, a simples alegação, por parte do credor reclamante, de factos eventualmente integradores do direito de retenção, consagrado na al. f) do nº 1 do art. 755º do Código Civil, é, por si só, insuficiente para que lhe seja reconhecido o privilégio consagrado no nº 2 do art. 759º do mesmo diploma, com a consequente primazia sobre hipoteca, mesmo com registo anterior; para que tal possa ser uma realidade, torna-se necessário que prove os factos dessa alegação, juntando, para tanto, o título justificativo, que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente vendedor e a tradição da coisa para o promitente comprador.
O cerne da questão é este:
Para reconhecimento e graduação do crédito relativamente ao qual é invocado um direito de retenção com base no incumprimento de um contrato promessa é necessária uma sentença que reconheça tal crédito e o respectivo direito de retenção.
Não, dizemos nós, porquanto, e desde logo, o reconhecimento de um crédito em processo de insolvência não depende de o credor dispor de um título executivo.
É assim, quando se instaura uma execução (art. 45º, nº 1, do CPC), ou quando se reclama um crédito no concurso de credores (art. 865º, nº 2, do CPC). Contudo, tal exigência não se mostra reflectida no art. 128º do CIRE, como decorre claramente do transcrito art. 128º, nº 3, do CIRE, de onde se extrai que a reclamação em processo de insolvência não se restringe aos credores munidos de título executivo, pois todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, devem reclamá-lo no processo de insolvência, para aí poderem obter satisfação.
Aliás, em reforço desta ideia, da desnecessidade de título exequível, verifica-se mesmo, nos termos do art. 129º, nº 1, do CIRE, que pode haver reconhecimento pelo administrador da insolvência, não só quanto aos credores que tenham deduzido reclamação, como daqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento. Basta para este último efeito que o referido administrador tenha ao seu alcance todos os elementos que, segundo o transcrito art. 128º, nº 1, devem constar do requerimento de reclamação, e dos respectivos meios probatórios necessários à demonstração de tais elementos.
Aliás a doutrina já se pronunciou no sentido da prescindibilidade do título executivo, nomeadamente Catarina Serra, que defende que o título que habilita o credor ao pagamento se forma, assim, durante o processo, através do procedimento de verificação de créditos, ficando concluído no momento em que o crédito obtém reconhecimento judicial (vide A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora 2009, pág. 288).
Pelo exposto defendemos abertamente que se o credor não necessita de um título executivo que lhe reconheça a existência do seu crédito, não carecerá obviamente de uma sentença prévia lhe seja reconheça o respectivo direito de retenção para que o possa invocar no processo de insolvência, uma vez que poderá a verificação dos respectivos pressupostos ser apreciada e reconhecida na própria sentença de verificação e graduação de créditos.
Veja-se, também, por outro lado, que segundo o disposto no art. 90º do CIRE, “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
O que leva L. Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação a tal norma, a professar que o corolário de tal preceito é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (cfr. CIRE Anotado, 2ª Ed., 2008, nota 2., pág. 364. Mais à frente, na nota 3. ao art. 128º, pág. 448, voltam a reafirmar esta ideia).
Da conjugação desta norma com o citado art. 128º, resulta que, um vez declarada a insolvência do devedor, aos credores que aí pretendam obter a satisfação do seu crédito resta-lhes um único caminho (ainda que o seu crédito tenha sido reconhecido por decisão definitiva ou ainda que se encontre pendente acção declarativa para o seu reconhecimento): a reclamação de créditos no processo de insolvência.
Reclamação que só é possível mediante o procedimento e no prazo previstos nos arts. 128º e segs. do CIRE, e que dá lugar, caso o crédito não tenha sido reconhecido pelo administrador de insolvência, quanto ao seu montante ou garantias invocadas, ou tendo sobre o mesmo recaído a impugnação de algum credor, a que se abra um incidente processual de natureza declarativa, e que passando pelo saneamento do processo – com selecção da matéria de facto, que abarcará, nos termos conjugados dos arts. 136º do CIRE e 511º do CPC, o crédito ainda não reconhecido (cfr. Carvalho Fernandes e J. Labareda, ob. cit., nota 8. ao artigo 136º, pág.468) - culminará na audiência de discussão e de julgamento, que comporta a prova e demonstração da existência do respectivo crédito, e na sentença, de acordo com o disposto largamente nos arts. 130º a 140º do CIRE.
Daí que se concorde com o argumento invocado na decisão recorrida, acima transcrito, e avançado pelo acórdão da Rel. Porto citado em tal decisão, de que “não faria qualquer sentido exigir-se ao credor que pretenda invocar a garantia real consistente no direito de retenção previsto no nº1 do art. 755º do CC, que obtenha o prévio reconhecimento de que goza de tal garantia - ou o reconhecimento de que, havendo traditio, houve incumprimento por banda do promitente vendedor - por via de uma sentença judicial autónoma, quando a propositura de uma tal acção nem sequer o dispensaria da reclamação de tal crédito no processo de insolvência”. E acrescentamos nós, nem o dispensaria da discussão da existência do crédito e seu reconhecimento, incluindo a garantia real, caso haja não reconhecimento pelo administrador da insolvência ou impugnação por qualquer outro interessado credor.
Assim sendo, o procedimento previsto nos arts. 128º e segs. é o adequado à apreciação e reconhecimento dos créditos reclamados e suas garantias.
A seguir-se a posição contrária do STJ e transpondo para o caso em apreço o que resulta da acção executiva, em que o art. 869º, nº 5 do CPC, impõe o litisconsórcio necessário passivo do exequente, executado e restantes credores reclamantes, na acção autónoma a propor pelo credor com garantia real que não tenha título, o A. teria de propor uma acção autónoma contra todos os credores reclamantes ou reconhecidos pelo administrador no processo de insolvência e contra a insolvente, para obter o efeito de caso julgado. Não vemos razão para isso, já que tal caso julgado pode perfeitamente obter-se no apenso declarativo de reclamação de créditos para o efeito pretendido, que é o reconhecimento e graduação dos créditos reclamados, suas garantias e posterior pagamento.
De outro lado, o outro argumento do STJ, para sustentar a sua posição, e invocado pelo recorrente nas suas alegações, tem a ver com a circunstância de que se assim não fosse não faria qualquer sentido o preceituado no art. 106º do citado CIRE, que determina que no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador. A não ser assim, diz-se, acabaria o administrador por ser obrigado a reconhecer a existência de um qualquer contrato promessa apenas mediante a simples alegação do promitente-comprador de que, tendo havido traditio, houve incumprimento por banda do promitente-vendedor, tornando incompreensível o regime excepcional consagrado naquele artigo 106º e, o que é mais grave, favorecendo de forma totalmente desajustada, a posição do promitente-comprador de um simples contrato sem eficácia real, bastando tão só a verificação das alegações referidas.
Bem, há que notar, desde logo, que o art. 106º do CIRE apenas diz respeito ao contrato-promessa não totalmente cumprido por ambas as partes à data da insolvência, ou seja, ao negócio “em curso”, como decorre da epígrafe do capítulo IV, em que se insere tal normativo, pois pressupõe-se que o cumprimento ainda seja possível (vide C. Fernandes e J. Labareda, ob. cit., nota 5. ao artigo 102º, pág. 389).
Assim, e antes de mais, haverá que distinguir entre o incumprimento definitivo, imputável ao promitente-vendedor, da promessa de compra e venda que importe a extinção do contrato-promessa (por ex., por resolução) antes da declaração de insolvência (que, em princípio, terá como consequência o pagamento do sinal em dobro e a atribuição ao promitente-comprador de um direito de retenção, ou caso tal não suceda será um crédito comum, ou garantido se gozar de uma outra garantia real) e o contrato-promessa que se não ache totalmente cumprido por uma das partes, pelo promitente-vendedor, à data da insolvência.
Ora, naquela primeira situação o administrador de insolvência não tem de se bastar com a mera alegação, por parte do promitente-comprador que obteve a tradição, de que já teria ocorrido o incumprimento definitivo do contrato por parte do promitente-vendedor à data da insolvência, pois dentro dos amplos poderes de averiguação que decorrem da conjugação do disposto nos arts. 128º, nº 1, e 129º, nº1, do CIRE, o administrador deverá proceder à indagação dos factos em causa, exigindo a apresentação dos meios probatórios necessários para demonstrar a verificação dos elementos que a lista tem de conter e, eventualmente, a apresentação de prova documental quando se trate de factos que só se possam provar por essa via, a fim de deles concluir se antes da declaração da insolvência ocorrera já o incumprimento definitivo do insolvente promitente vendedor.
Já nesta última situação, se o contrato-promessa não tiver eficácia real é-lhe aplicável o regime geral do art. 102º, assim como se aplica tal regime geral se o contrato-promessa tiver eficácia real, mas não tiver havido tradição da coisa. É o que se retira, por interpretação, da conjugação do dito art. 106º, nº 1, com o disposto no art. 102º, nº 1 (nesta mesma linha de pensamento pode ver-se C. Fernandes e J. Labareda, notas 2. e 5. ao artigo 106º, pág. 400).
Nestes dois casos o administrador decidirá ou pela execução do contrato ou recusando-o. Não se alcança, por isso, o argumento usado pelo STJ.
Só no caso expressamente previsto no falado art. 106º, nº 1, o administrador está vinculado ao cumprimento do contrato.
Em conclusão, não assiste razão ao apelante ao defender que o reconhecimento do direito de retenção invocado por ele como credor depende da verificação prévia de sentença que reconheça o seu invocado direito de retenção, previsto no art. 755º, nº 1, f), do CC, sendo, sim, adequado, o incidente declarativo de reclamação de créditos previsto nos arts. 128º e segs. do CIRE.
3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):
i) A reclamação, verificação e graduação de créditos, em processo de insolvência, tem por objecto todos os créditos da insolvência, sendo os credores admitidos a reclamar os seus créditos independentemente de se encontrarem, ou não, munidos de título executivo;
ii) O promitente-comprador que pretenda reclamar o seu crédito derivado do incumprimento de um contrato-promessa, invocando a traditio como fundamento de um direito de retenção, ao abrigo do art. 755º, nº1, f), do CC, não precisa de se munir de uma prévia sentença de condenação a reconhecer o seu crédito, por incumprimento do promitente vendedor, e a tradição da coisa para ele, podendo e devendo o reconhecimento do seu crédito e da respectiva garantia operar no próprio processo de reclamação de créditos previsto nos arts. 128º e segs. do CIRE.

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente.
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  Coimbra, 1.10.2013

Moreira do Carmo ( Relator )
Fonte Ramos
Inês Moura