Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6500/11.0TBLRA-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO PROMESSA
PROVA DOCUMENTAL
NULIDADE PROCESSUAL
GRAVAÇÃO DA PROVA
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
EMPRESA DE CONSTRUÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 358, 410, 755 Nº1 F) CC, 155 Nº4 CPC, 377 Nº1 B) CT
Sumário: 1 - A declaração, pelo promitente vendedor, em contrato promessa de compra e venda, de recebimento do comprador de certas quantias pela prometida venda, não faz prova quanto à sua efetiva entrega, máxime se este facto é impugnado, antes sendo a força probatória de tal documento livremente apreciada – artº 358º nºs 3 e 4 do CC.
2. Não provado pela interessada promitente compradora que entregou à vendedora tais quantias, não se pode concluir que ela detém um crédito sobre esta, pelo que àquela não assiste jus ao direito de retenção sobre a coisa, ao abrigo do artº 755º nº1 al. f) do CC.

3.Perante divergência anterior, o NCPC - artº 155º nº4 do CPC – optou, pela tese de que a falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada - e não nas alegações -, sendo que tal nulidade atípica deve ser arguida logo na 1ª instancia, e devendo o arguente, para a sua concessão, demonstrar a sua essencialidade.

4. Nos termos do AUJ n.º 8/2016 no DR, 1.ª série, 15.04 2016, referente ao Ac. do STJ de 23.02.2016, p. nº1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A in dgsi.pt «Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003», pelo que, provados estes requisitos, ao respetivo trabalhador tal privilégio não pode ser concedido.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Na sequência da declaração da insolvência de E (…) Lda, foi apresentada pelo Sr. Administrador da insolvência a lista definitiva de credores.

Entre outros e no que para o caso interessa, a C (...) (fls.177-186) – impugnou a natureza dos créditos laborais reconhecidos a alguns credores indicados por não terem documentado os seus contratos de trabalho ou indicado o imóvel onde executaram as suas funções, para que lhe pudesse ser reconhecido quaisquer privilégios imobiliários.

A tal pretensão respondeu, vg., o credor G (…), pugnando pelo seu indeferimento pois que, disse, foi trabalhador da insolvente e exerceu funções  nas frações de cada um dos lotes por esta mandados erigir  em Leiria e em Santarém.

Mais a credora  N (…) (fls.372 a 390) - impugnou a natureza comum do seu crédito de 82.500,00 € (80), invocando o seu direito de retenção sobre o objeto do contrato prometido e incumprido (fração E – do n.º 2321 da CRP de Leiria) e consequentemente da sua natureza de garantido.

A C (...) respondeu às impugnações formuladas pelos credores, vg., a aludida N (...) , pugnando pelo seu indeferimento e consequente manutenção do reconhecimento dos créditos da forma como o foram inicialmente pelo Sr.AI.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu, para além do mais e no que para o caso interessa:

«Em face do exposto julgo:

4.1. As impugnações formuladas C (...) (fls.177-186) e pelo B (...) (fls.271-277) a respeito dos créditos laborais de (…) parcialmente procedentes por provadas no sentido dos reconhecidos e respetivos créditos laborais apenas serem detentores de um privilégio mobiliário geral a que alude o art.333.º n.º 1 al. a) do Código do Trabalho.

4.6. A impugnação formulada por N (…) improcedente por não provada, absolvendo-se a massa insolvente, a devedora e os demais credores do que por si foi peticionado.».

(sublinhado nosso)

3.

Inconformados recorreram os credores N (…) e G (…)

3.1.

Conclusões da credora N (...) :

(…)

Contra alegou a credora C (...) , pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

3.2.

Conclusões do credor G (…):

(…)

Contra alegou a credora C (...) , pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

A - Do recurso da recorrente N (...) :

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Garantia do seu crédito pelo direito de retenção sobre o imóvel prometido comprar.

B- Do recurso do recorrente G (...) :

3ª- Nulidade  processual  por deficiência da gravação dos depoimentos  com anulação e repetição do ato viciado e dos atos posteriores que dele dependam.

4ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

5ª – Garantia do seu crédito pelo privilégio imobiliário especial do artº 333º nº1 al. b) do C. Trabalho.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Por conseguinte - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Ademais, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genéricamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas ou das objetivas evidencias e emanações probatórias, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

5.1.3.

No caso vertente.

O julgador deu como não provada a entrega efetiva do valor do sinal e posterior reforço, aduzindo o seguinte argumentário:

«O tribunal para dar como provados e não provados os factos consignados como tal valorou de forma entrecruzada todos os elementos documentais – sendo os estes os que se mostram mencionados em cada um dos factos, quer pela circunstância de serem documentos autênticos como pelo facto de se tratarem documentos particulares não impugnados pelas partes - e testemunhais que foram produzidos nas sessões de audiência e julgamento, analisados á luz das regras da experiência comum e tendo por referência os temas de prova.

 N (…) outorgou o contrato de promessa de compra e venda referido em 2.1.78 dos factos provados, mas não resultou minimamente demonstrado um qualquer fluxo de caixa entre a promitente compradora e vendedora nos termos do contrato e de seu aditamento – 2.1.81 – no valor respetivamente de 42.500,00 € e de 10.000,00 €.

Não obstante as declarações de quitação contidas naqueles contratos nos casos referidos em ii) – apenas quanto ao aditamento contratual – ii) e v) convidados a demonstrar os referidos pagamentos os impugnantes não lograram demonstrar que efetivamente tinham entregado aquelas avultadas quantias. Que de acordo com as regras de ser das coisas teriam suporte documental decorrente da sua transferência bancária, liquidação por meio de cheque, título cambiário, depósito em conta ou qualquer outro meio de pagamento válido, e se entregue em numerário o promitente comprador poderia ter comprovado o ato do seu levantamento em conta ou empréstimo por terceiro se aplicável, entre outras hipóteses, por referência à data daquelas declarações e quitação.

Também o Sr. Administrador Judicial se revelou incapaz de certificar o recebimento daquelas quantias, embora para os casos referidos em i), ii) – quanto ao sinal de 15.000,00 € - e iv) a ausência de uma contraprova, por assim dizer, não haja conseguido abalar a comprovação da entrega dos mencionados cheque.

Louvando-nos no douto acórdão do STJ de 12.01.2012 que acompanhamos, “(…), neste concreto circunstancialismo, temos por seguro que a eventual força probatória plena da declaração de confissão (…) celebrada entre A e B nunca poderia vincular irremediavelmente C, impedindo-lhe a demonstração de que, na base de tal escritura e da confissão nela contida, se não encontraria, afinal, uma válida relação obrigacional, garantida pela hipoteca: o que a dita força probatória plena impede é que – sem invocação, nomeadamente, de um vício da declaração negocial que inquine irremediavelmente a própria declaração confessória – não é possível ao confitente exonerar-se, perante o seu credor, a quem fez a confissão da dívida, do facto desfavorável nela contido – mas já não obviamente que terceiros, cujos direitos são abalados pelo reconhecimento confessório, possam pôr em causa, mediante a utilização de quaisquer meios probatórios, a validade e veracidade de declaração confessória a que são inteiramente estranhos - e cuja subsistência prejudica a consistência dos seus direitos.”

E continuando, “na verdade, o art.358.º, n.º 2, do CC apenas confere força probatória plena à confissão extrajudicial que – constando, designadamente, de documento autêntico, for feita à parte contrária; prescrevendo, porém, o n.º 4 deste preceito legal que a confissão judicial feita a terceiro é livremente apreciada pelo tribunal.”

Na presente situação litigiosa, …as mencionadas declarações confessórias de recebimento de sinal pelo promitente vendedor não foram naturalmente feitas aos credores hipotecários ou a qualquer outro credor da insolvente, mas ao próprio promitente-comprador, não podendo, consequentemente, este último prevalecer-se da referida força probatória plena no confronto com outro credor do promitente vendedor que o impugna com vista a destruir de forma sub-reptícia o principio da igualdade dos credores e a plena eficácia da prioridade concedida pela hipoteca sobre o imóvel objeto de prometida transmissão.

Tal como na situação de facto que subjaz ao mencionado acórdão do STJ concluímos neste caso que as declarações confessórias decorrentes das declarações de quitação aludidas e constantes dos apontados contratos de promessa de compra e venda de imóveis onde intervieram promitente vendedora e compradores, “(…) não faz[em] prova plena relativamente a terceiros cujos direitos possam ser abalados pelo teor do reconhecimento confessório, em termos de lhes precludir a utilização de todo e qualquer meio de prova, admitido em direito, para convencer da invalidade ou inveracidade do reconhecimento confessório que, porventura, conste da escritura” ou documento particular.

Para além disso, no caso dos autos, a força probatória plena que poderia emergir das declarações confessórias da promitente vendedora são também manifestamente abaladas pela aquisição processual – trazida pelos próprios impugnantes e sua prova testemunhal - de uma realidade factual substancialmente diversa da que resulta daqueles apontados contratos promessa de compra e venda e seus aditamentos e das declarações de quitação contidas nos aludidos documentos particulares.»

Já a recorrente pugna pela prova da entrega apenas com base no teor do contrato promessa e seu aditamento e no depoimento da testemunha (…).

Perscrutemos.

Em primeiro lugar e contra o que supra se referiu ser necessário, a recorrente não impugna e escalpeliza todos os meios probatórios aduzidos pelo julgador, e os argumentos – pelo menos os essenciais – por este invocados.

Na verdade, e para além da alusão ao depoimento da mencionada testemunha e ao teor do contrato promessa, o Sr. Juiz a quo fundou outrossim a sua decisão  nas regras da experiência comum «as regras de ser das coisas» e  em todos os elementos probatórios produzidos no processo, vg. pelos próprios impugnantes, os quais  o convenceram « de uma realidade factual substancialmente diversa da que resulta daqueles apontados contratos promessa de compra e venda e seus aditamentos e das declarações de quitação contidas…»

Tanto bastava, em função do que supra se referiu, para que a presente pretensão soçobrasse.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, certo é que os meios probatórios em que a recorrente se alicerça, não se apresentam, só por si, suficientes para ela obter ganho de causa.

Efetivamente, o depoimento da testemunha F (...) é pouco mais do que irrelevante ou inócuo.

No que concerne à efetiva entrega das quantias falou apenas por ouvir dizer, ao representante da insolvente e ao pai da recorrente, nada sabendo, em concreto, sobre se aquela entrega se verificou, ou não.

Ademais, a sua própria filha esteve envolvida com a insolvente em negócio semelhante, e disse ser amigo de longa data do pai da recorrente.

O que, sem  que tal signifique que sobre ela se queira lançar um apriorístico labéu de infidedignidade, importa uma apreciação do seu depoimento cum granno sallis, ie.,cautelosamente, validando-o apenas naquilo em que ele seja alcandorado em razão de ciência inatacável ou muito credível e/ou seja corroborado por outros meios de prova.

Ora nada disto se verificou, como se viu.

No atinente ao valor probatório da quitação das quantias em causa dada no contrato promessa e no documento complementar, o acervo o argumentativo do julgador mostra-se curial.

Na verdade, os documentos consubstanciam uma confissão de recebimento das quantias, de cariz extrajudicial e vertida em documento particular.

Decorrentemente, ela não faz prova plena quanto aos factos em causa, mas antes tais declarações são livremente apreciadas pelo tribunal – artº 358º nº 3 do CC.

Ademais e como é realçada na decisão, estamos, na economia das posições das partes no presente processo e dos intervenientes no contrato promessa, perante uma confissão extrajudicial feita a terceiro, pelo que, outrossim por esta motivo, tal livre apreciação é concedida ao tribunal – artº 358º nº4 do CC.

Nesta conformidade e até porque o recebimento foi impugnado pelo credor ora recorrido, competia à recorrente a prova da efetiva e real entrega das quantias referidas na promessa e posterior documento.

Ora como bem e sagazmente o Sr. Juiz concluiu, tal prova não foi consecutida, pois que a produzida mostra-se claramente insuficiente.

É que, a montante do contrato, não foi apurada a origem/saída do dinheiro, e, a jusante do mesmo, não foi possível desvendar o seu paradeiro/beneficiário.

Destarte, e por um lado, não se compreende, e é probatoriamente sintomático, que  a recorrente, não tenha  provado que tais verbas tenham saído da sua esfera jurídico-patrimonial (ou da do seu pai,  o qual pelos vistos é que alegadamente pagou),  o que, como bem se expende na decisão, poderia ser efetivado por variadíssimos modos: «transferência bancária, liquidação por meio de cheque, título cambiário, depósito em conta ou qualquer outro meio de pagamento válido, e se entregue em numerário o promitente comprador poderia ter comprovado o ato do seu levantamento em conta ou empréstimo por terceiro…».

Por outro lado, outrossim não é aceitável que tais quantias não tenham sido formalmente refletidas na contabilidade e nos fluxos financeiros da insolvente.

Até porque nos encontramos não perante montantes minudentes, mas antes muito significativos.

Destarte, a convicção e consequentemente decisão do Sr. Juiz são as mais consentâneas com a prova produzida e não produzida.

Ou, mesmo que assim não se entenda, a prova produzida pela recorrente  não  é a bastante no sentido por ela propugnado, permitindo que a decisão recorrida se situe dentro da margem de álea que a lei concede ao julgador.

Enfim, mesmo  que ainda assim não se entendesse, sempre nos encontraríamos perante uma situação de dúvida a qual se resolveria contra a parte a quem o facto aproveita, neste caso a recorrente – artº 414º do CPC.

Em conclusão final: a decisão, neste particular conspeto, não merece censura.

5.1.4.

Decorrentemente, os factos a considerar são os apurados na 1º instância, a saber:

2.1.78. Por acordo escrito designado de contrato de promessa de compra e venda datado de 10.12.2010 melhor documentado a fls.799-800, cujo teor dou aqui por integrado, a E (…) Lda., representada pelos seus dois gerentes, prometeu vender a N (…) e esta última comprar contra o pagamento de 150.000,00 €, a fração autónoma designada pela letra A sita no rés-do-chão do prédio constituído em propriedade horizontal composta por uma garagem e arrecadação no sótão sita na urbanização A (...) , Leiria, inscrita na respetiva matriz sob o n.º 2853 e melhor descrita na CRP de Leiria sob o n.º 2321.

2.1.79. Tendo no ponto a) da cláusula 2.ª sido dada quitação do recebimento de 42.500,00 € a título de sinal e princípio de pagamento e,

2.1.80. No ponto b) da mesma cláusula sido estabelecido que o remanescente do preço seria entregue com a assinatura do contrato definitivo.

2.1.81. Por documento escrito designado de aditamento ao contrato de promessa de compra e venda celebrado, melhor documentado a fls.801 e datado de 02.08.2011, a E (…) Lda e N (…) fizeram consignar que o apartamento objeto do contrato se encontrava naquela data em fase de acabamentos e beneficiava já da licença de utilização emitida pelo Município de Leiria sobre o n.º 69/10.

2.1.82. Mais declarou aquela entregar naquela data as chaves da fração prometida vender, podendo a promitente-compradora fazer as obras de melhoramento que entender, habitá-la ou alugá-la, contra a entrega da quantia de 10.000,00 € a título de sinal e de reforço do pagamento do preço, assumindo ainda esta último os trabalhos de acabamento em falta que se computaram em 30.000,00 €.

2.1.83. Desde essa data que a fração tem estado afeta em exclusivo da promitente compradora que, nomeadamente proveu pela instalação de eletricidade (desde 22.02.2012 – fls.824), de água (fls.829) e de gás (fls.858), instalando equipamento de cozinha (fls.861—3), instalação de iluminação (fls.866-8); exaustor (fls.862); mobiliário da Moviflor (fls.864-5).

5.2.

Segunda questão.

O julgador decidiu, de jure, alcandorado no seguinte discurso argumentativo:

«A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, independentemente da eficácia real ou meramente obrigacional do contrato, uma tutela reforçada ao conceder-lhe o direito de retenção (art.755.º n.º 1 al.f) do Código Civil).

Particularmente espinhosa tem sido a questão de saber se o promitente-comprador, beneficiário da tradição da coisa objeto mediato do contrato definitivo prometido, pode ou não considerar-se possuidor. Se tem a posse daquela coisa.

Com a devida vénia aderimos ao enquadramento legal efetuado no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.01.2013 no processo n.º 511/10.0TBSEI-E.C1 disponível para consulta em www.dgsi.pt., que pela sua clareza sempre nos guia nestas matérias, quando a respeito da enunciada questão - necessidade do credor ser um possuidor da coisa ou ter o seu direito de retenção reconhecido previamente por sentença - responde de forma negativa às duas questões.

Concluindo que é legítimo colocar a questão do crédito do promitente fiel e sua garantia real no âmbito do apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência onde deve reclamar aquele seu crédito – fase em processual em que nos encontramos – e que a traditio que é exigida pelo direito de retenção se basta com a mera detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse, que assim não constitui requisito daquela garantia real. Não vemos razões para dissentir.

Pelo que tendo por referência cada um dos impugnantes resultaria à luz do apontado critério a existência de uma detenção material lícita da coisa objeto do contrato prometido.

Mostra-se entretanto uniformizada jurisprudência através do A.U.J. do STJ n.º 4/2014 publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 95, de 19 de maio de 2014, de acordo com a qual "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º nº 1 alínea f) do Código Civil".

O mesmo Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender uniformemente desde então que o art.755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil deve ser interpretado restritivamente no sentido de que o direito de retenção deve ser reconhecido apenas ao promitente-comprador consumidor.

Fundamentando esta sua posição da seguinte forma.

A Lei n.º 24/96 define no artigo 2.º, n.º 1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”

O Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14.02, por sua vez define o consumidor para efeitos deste normativo como sendo “a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. Este Decreto-Lei transpôs a Diretiva n.º 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos de sua aplicação como sendo “consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

Profissional: qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue, incluindo através de outra pessoa que actue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional. (…)”

No caso em apreço os fiéis promitentes são pessoas singulares que integram em abstrato e num seu primeiro plano a noção restrita de consumidor final à luz da definição que foi dada no ponto anterior…

Como é sabido, na maioria dos casos, são nulos os negócios celebrados com “falta de vontade” (vide artigos 240º a 247º e 248º a 250º do CC). A nulidade daquelas declarações de quitação acarreta a restituição de tudo o que tiver sido prestado, de acordo com o disposto no art.289.º Código Civil, sendo impeditiva dos direitos reclamados nesta reclamação de créditos pelos mencionados impugnantes e constitutiva dos direitos peticionados pelas respondente C (...) e Caixa Geral de Depósitos, em sede das suas respostas e, como tal, julga-se que o ónus da prova dos factos integradores da apontada nulidade, por simulação, que lhes competia se mostra minimamente observado (art.342.º, n.º 2 Código Civil), num contexto extramente difícil de prova negativa.»

Esta subsunção dos factos ao direito pertinente e a interpretação das normas atinentes revelam-se, na sua essencialidade relevante, apropriadas e curiais, havendo que corroborá-las.

Efetivamente, o caso, subsume-se até certo ponto e em certa medida, na previsão do artº 755º nº1 al. f) do CC a saber:

«Gozam ainda do direito de retenção:

 O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º»

Como se mencionou na decisão, a recorrente provou os requisitos necessários à aplicação deste segmento normativo, à exceção de um: o seu crédito resultante do não cumprimento.

Tanto basta para que o direito de retenção ao abrigo deste preceito não possa ser concedido.

Apenas um reparo, quanto à mencionada nulidade, por simulação, do contrato promessa.

Tal nulidade não se provou.

Na verdade, perante os factos apurados não pode concluir-se que as quantias não foram entregues.

E da não prova da entrega não pode concluir-se que esta se não verificou.

Como é consabido da não prova de um facto não pode dar-se como provado o facto seu contrário.

Ademais, e como se viu, a referência a tal nulidade é desnecessária e irrelevante na economia do objeto da presente pretensão, pois que o caso fica resolvido com a não prova pela recorrente de um dos elementos constitutivos do  seu direito: não provada a entrega das quantias e o  correspondente direito de crédito, soçobra  o seu pedido de concessão do direito de retenção sobre o imóvel.

5.3.

Terceira questão.

No domínio do CPC na sua redação pretérita era entendido que a deficiente ou inexistência da gravação da prova  prevista no D.L. n.º 39/95 de 15/2  constituía nulidade processual secundária – artº 201º - a arguir mediante reclamação, perante o tribunal de 1ª instância, mantendo-se, porém, se indeferida, no âmbito do recurso para a Relação. – Acs. do STJ de 23-10-2008, dgsi.pt, p.08B2698  e de 13-01-2009, p. 08A3741.

Quanto à oportunidade de tal arguição entendia-se ser aplicável o disposto no artº 205º.

E no atinente à sua tempestividade, hoc sensu, existiam duas orientações no STJ.

Uma  defendia  «estar em tempo a arguição operada nas alegações de recurso de apelação» «pois é da normalidade da vida forense que as partes não vão pedir a audição de todo o material áudio para verificar da perfeição técnica da gravação, a não ser no momento da elaboração da sua alegação para dela fazerem constar os concretos meios probatórios em que fundam a sua discordância…» - cfr, entre outros, o AC do STJ de 29.04.2014, p. 1937/07.1TBVCD.P1.S1 (proferido em caso ainda no domínio de aplicação da lei anterior)

Para outra, o prazo de arguição do vício de deficiência de gravação, era de dez dias  - art. 153º nº 1 do CPC - e iniciava-se imediatamente após o termo da audiência de discussão, ou, pelo menos, após a data de entrega à parte da cópia da gravação.

Pois que se entendia que a parte devia então diligenciar, dentro do aludido prazo, pela audição dos registos magnéticos, presumindo-se um comportamento negligente da mesma parte - ou do respetivo mandatário - caso não efetuasse esta audição.  – cfr. Ac. do STJ de 22-02-01 Revista nº 3678/00-7ª.

A lei atual veio  tomar  partido por este último entendimento.

Pois que estatui: «a falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada» - artº 155º nº4 do CPC.

Naturalmente que esta opção teve na sua génese o fito que enformou a reforma, qual seja, o de uma maior celeridade processual.

Destarte: «I – Conjugando os nºs 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º, resulta dever ser disponibilizada às partes … “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização …deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º …e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º…

II - Quando assim não ocorra, ou seja, quando a parte se limite…a recorrer no prazo de trinta dias depois de notificada da Sentença …a questão da omissão ou da deficiência da gravação fica precludida como questão operante no processo, por esgotamento do prazo em que deveria ter sido suscitada.

III - Em qualquer caso, no actual regime (no Novo CPC) não é na instância de recurso que essa questão deve (pode) ser suscitada (veja-se a referência ao nº 1 do artigo 195º no trecho intermédio do artigo 630º, nº 2 do CPC)…» - Ac. da RC de 10.07.2014, p.64/13, in dgsi.pt.; cfr. ainda, o Ac. da RP de 13.02.2014, p. 142046/08.3YIPRT.P1.

Por outro lado há que ter presente que a nulidade apenas pode ser atendida se influir no exame e decisão da causa.

É o que dimana da aplicação da regra geral do artº 195º do CPC e é consignado na própria legislação especial do cit. DL o qual no seu artº 9º estatui: «Se em qualquer momento se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra impercetível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.»

Ou seja, apenas se justifica a repetição quando a deficiência, objetivamente, implique a impercetibilidade do que ficou dito, ou na totalidade, ou na parte que o recorrente aduz e que reporta como essencial para a fundamentação da sua pretensão de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Na verdade: «importa saber se a parte imperceptível é essencial para o apuramento da verdade (de acordo com o citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95) havendo que considerar que esse pressuposto deve ser afirmado pelo recorrente, que tem de aduzir razões para de tal convencer o Tribunal» - Ac.do STJ de 02.02.2010, p. 1159/04.3TBACB.C1.

No caso vertente.

Considerando que o recorrente nada invoca em contrário há que dar como bom que a gravação lhe foi disponibilizada no prazo de dois dias a que alude o nº3 do artº 155ª.

Em todo o caso é ele próprio que alega que: «ao escutar e traduzir os seus depoimentos, verifica-se que os mesmos não são audíveis».

Ou seja, a nulidade foi arguida no prazo de 25 dias que lhe assistia para o presente recurso.

E o recorrente não invocou tal nulidade perante o tribunal recorrido como devia.

Por conseguinte, por aqui se conclui que a arguição da nulidade não apenas se mostra extemporânea como erradamente direcionada.

Ademais, nem o recorrente explicita cabalmente a necessidade/essencialidade da parte dos depoimentos que ele considera inaudíveis, acabando, ele próprio, por impugnar a   matéria de facto com base em tais depoimentos.

Por conseguinte, esta sua pretensão tem de naufragar.

5.4.

Quarta questão.

5.4.1.

Valem  aqui   os fundamentos dogmáticos  expostos em 5.1.1 e 5.1.2.

Para além do que supra se aludiu, há que dizer que o ora recorrente não cumpriu o disposto no artº o artº 640º nº1 al. a)  do CPC, a saber:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados».
O  que acarreta a liminar rejeição da sua pretensão.

Mesmo que assim não fosse, perscrutada a sua alegação, e num esforço exegético, parece que ele pretende que se dê como provado que a insolvente tinha a sua sede nos contentores das obras que ia edificando e que o seu único local de trabalho e dos restantes trabalhadores onde eles exerciam a sua atividade eram as obras de Leiria e Santarém, as únicas da insolvente.

Aduz, para tanto os depoimentos das testemunhas (…)

Ora do depoimento da testemunha (…), aliás seu filho, não resulta tal factualidade, antes pelo contrário.

Na verdade, inquirido disse que nas obras existiam contentores que funcionavam como escritório.

Daqui dimana que pela própria natureza do espaço usado – contentores – estes funcionavam apenas como escritório para assuntos imediata, direta e urgentemente atinentes às obras onde se situavam.

 E naturalmente, aqui outrossim pela própria natureza das coisas, de um modo contingente, aleatório e incipiente.

Tanto assim que, perguntado, na instância, se no Largo (...) , em Leiria era onde a insolvente centrava toda a sua atividade económica e resolvia as questões de trabalho e de recursos humanos, respondeu que sim, que era onde se faziam as faturas e tudo e que era onde trabalhava a (…) com quem tratavam tais assuntos.

E se não se apurou que a sede da insolvente fossem os ditos contentores, muito menos e provou, porque nenhuma prova foi feita nesse sentido, que as obras da mesma se resumissem aos blocos de leiria e que apenas nelas, que não noutras, o recorrente tenha prestado a sua atividade.

5.4.2.

Decorrentemente os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

2.1.10. G (…) foi admitido ao serviço da E(…) em 01.12.2004, inicialmente com a categoria profissional de pedreiro e auferindo um salário base de 628,32 € e mais tarde como encarregado de obra e auferindo um salário base de 900,00 €, de entre outros complementos remuneratórios.

2.1.11 Tendo exercido as suas funções por conta, sobre a direção e interesse daquela sociedade até 15.01.2011.

2.1.12. Sendo credor dos valores reclamados a título de salários em atraso, subsídios vencidos e indemnização pela cessação do seu contrato de trabalho, cfr. reclamação junto do Sr.AI de fls.618/9, e por este último reconhecido na lista de credores em 69, como detendo um privilégio mobiliário geral.

2.1.13. Desempenhando a sua atividade onde lhe indicavam e com os meios que lhe forneciam nos imóveis que a sociedade construía ou adquiria para a sua venda ou revenda.

5.5.

Quinta questão.

5.5.1.

O Sr. Juiz decidiu, juridicamente, nos seguintes termos:

«Os valores peticionados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial também se nos afiguram em linha com os seus direitos legalmente estatuídos, muito embora assista razão à impugnante C (...) quando aduz que os seus créditos não possuem a natureza atribuída de privilégio imobiliário especial previsto pelo art.333.º n.º 2 al.b) do Código de Trabalho, pela simples razão de que a E (...) à data da sua declaração de insolvência tinha a sua sede num imóvel de que não era proprietária – como esclarecido pelo Sr. AJ em audiência – e os demais imóveis apreendidos destinavam-se à sua revenda em execução daquele que era o seu objeto social.

A questão em causa tem-se colocado amiúde na jurisprudência e com especial ênfase no setor de atividade da insolvente – da construção civil e comercialização dos prédios construídos ou adquiridos para revenda – muito penalizada com a crise conjuntural mundial vivenciada desde 2008 e onde se se vem colocando a questão de saber sobre quais os concretos bens que efetivamente poderiam garantir os créditos laborais dos trabalhadores nos termos daquele normativo.

A resposta da jurisprudência e da doutrina mais avalisada foi sempre uniforme em dizer – por todos vide o acórdão do STJ de 13.01.2015 disponível para consulta em www.dgsi.pt. – que “o que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial aos créditos laborais é, sem dúvida, a especial ligação funcional – e não meramente naturalística – do trabalhador ao imóvel, através do exercício da sua actividade, a qual, tendo de ser circunscrita no espaço e no tempo, não pode ser reportada aos diversos prédios ou fracções autónomas em cuja construção tenha participado, o que, podendo até integrar já património alheio por via de subsequente comercialização, não pode constituir o imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade, antes tendo de ser encarado como o resultado ou produto da respectiva actividade, como o seriam, v.g., os artigos de vestuário ou calçado produzidos pela respectiva entidade patronal que tais actividades tivesse por objecto.”

Adiantando-se ainda naquele arresto que “o entendimento contrário acarretará, designadamente nas empresas de construção civil, um tratamento discriminatório – completamente arbitrário e alheado do critério interpretativo dimanado do art. 9.º, n.º 3, do CC, e, pois, não prosseguido pelo legislador – entre trabalhadores da mesma empresa, conforme as funções por si exercidas o sejam no estabelecimento da respectiva sede – v.g. pessoal administrativo, da área financeira, de gestão, etc. – ou nos seus edifícios construídos ou em edificação – v.g. trolhas, serventes, carpinteiros, canalizadores, pintores, electricistas, etc.”

Valendo-nos do doutrinado por referência à matéria de facto dada como provada e acima de tudo à circunstância de todos os prédios apreendidos serem compostos por edifícios constituídos em propriedade horizontal ou em edificação com vista a uma sua posterior comercialização, podemos concluir que assiste razão aos credores impugnantes (CEMG e CGD, S.A.) quando invocaram que não assistia a nenhum daqueles credores a referida garantia do seu crédito – privilégio imobiliário especial – pela simples razão de que de acordo com aquele critério funcional – na ausência de sede instalada em imóvel próprio – os bens que constituem o desenvolvimento, principal ou conexo, do objeto societário desta sociedade de construção civil não poderão constituir a garantia imobiliária que o legislador quis consagrar e como tal não têm os mencionados e reconhecidos créditos laborais outra garantia (por referência ao auto de apreensão) que não a vertida na al.b) do n.º 1 do art.333.º do Código de Trabalho.»

(sublinhado nosso)

5.5.2.

Atentemos.

Estatui o artº 333º  nº 1 al. b) do Código do Trabalho:

1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

Discutia-se na doutrina e jurisprudência a abrangência deste segmento normativo.

A maioria desta propendia para uma interpretação restritiva do mesmo no sentido de que o privilégio apenas poderia ser concedido relativamente a imóveis nos quais os trabalhadores exercessem a sua atividade com alguma estabilidade, consistência e perenidade e/ou que fossem o centro organizacional da empresa.

E, assim, no domínio da atividade da construção civil, não sendo abrangidos os imóveis que o trabalhador edifique e se destinem a serem vendidos ou, no mínimo, que tenham sido vendidos.

Neste sentido, e para além do Aresto citado na decisão, se pronunciaram, vg., os seguintes arestos:

«O privilégio imobiliário estabelecido no art. 377.º, n.º 1, al, b), do CT (aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27-08) abrange os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercia a sua actividade, exigindo uma conexão entre a actividade do trabalhador e o prédio onde essa actividade era exercida e, bem assim, que esse imóvel integre o complexo organizacional do empregador.

 Esses bens imóveis, devem, pois, integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; devem estar afectos à actividade prosseguida pela empresa e, como tal, à actividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.

 As fracções de edifícios construídos pela insolvente, destinadas a comercialização, representam o produto da actividade da empresa, integram o seu património, mas não a organização empresarial estável dos factores de produção com vista ao exercício daquela actividade.» - Ac. do STJ de   13.11.2014, p. 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1 in dgsi.pt

E, noutra nuance, mas com a mesma, fulcral, interpretação:

 «Encontram-se afastados do âmbito e alcance do privilégio imobiliário especial consagrado naquele normativo, todos os imóveis construídos pela Insolvente, destinados à actividade de construtora imobiliária desta e onde, além do mais o ora Recorrente, desempenhou pontualmente as suas funções enquanto canalizador, mas onde e após ter efectuado o trabalho correspondente ao seu ofício, neles deixou de prestar qualquer actividade, embora tivesse continuado ao serviço da Insolvente.

 Apenas se poderá encontrar abrangida por tal privilégio a sede da empresa, entendida esta como o seu estabelecimento comercial ou o local onde a mesma centre toda a sua actividade económica, epicentro de toda a gestão, já que sempre foi a esta e só a esta, que o Recorrente, enquanto funcionário, se manteve ligado e não a todos aqueles outros imóveis, onde por força do exercício da sua especifica arte prestou funções temporárias e apenas durante a edificação dos mesmos» - Ac. do STJ de  13.11.2014, p. 1315/11.8TJVNF-A.P1.S1

(sublinhado nosso).

Esta controvérsia doutrinal e jurisprudencial foi pacificada pelo Acordão Uniformizador de Jurisprudência  prolatado em de 23.02.2016 no processo nº1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A  in dgsi.pt, e publicado como AUJ n.º 8/2016 no Diário da República, 1.ª série — N.º 74 — 15 de abril de 2016, citado pela recorrida, o qual tem o seguinte teor:

 «Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.»

Certo é que os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência perderam a natureza de ato normativo de interpretação e integração autêntica da lei com força vinculativa genérica que era atribuída aos Assentos antes da jurisprudência constitucional a ter  quebrado – cfr. Ac. do T. Const. nº743/96 de 28.05.1996.

Porém, não poderão deixar de ser reconhecidos, pelo menos tendencialmente, com força vinculativa jurisprudencial, devendo, assim, por princípio, as suas diretivas ser acatadas, maxime pelos tribunais inferiores, no âmbito da hierarquia existente nos tribunais judiciais.

Tal força advém do facto de provirem do Pleno das Secções do STJ, o que lhes confere autoridade e força persuasiva – cfr- preâmbulo do DL. 329-A/95 de 12.12. -  e havendo que lhes conceder o benefício ou a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.

O que, no que tange às instâncias, resulta, acrescidamente e desde logo, de, independentemente do valor da causa, ser sempre admissível recurso da decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do STJ – cfr. alínea c) do n.º 2, do artigo 629º do CPC.

Por conseguinte:

«…embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada»- Cfr. Ac.s do STJ de  14.05.2009 in dgsi.pt. p. 218/09.OYFLSB; de 05.11.2009, p. 418/07.8PSBCL-A.S1; e Isabel Alexandre, in Problemas Recentes de Uniformização de Jurisprudência em Processo Civil,  in ROA, 60º, 01/2000, p. 103 e segs.

No caso vertente não estão verificados quaisquer pressupostos que  tenham a virtualidade e força bastantes para obviar à aplicação da jurisprudência fixada.

Antes pelo contrário esta se mostra consonante, desse logo em tese, com os contornos deste caso.

E, em concreto, perscrutando os factos dados como provados – máxime o apurado em 2.1.13.  da decisão e supra mencionado em 5.3.2. -, concluiu-se que eles se subsumem  no conspeto decisório/impositivo do mencionado AUJ.

Tanto basta para que, brevitatis causa, se possa extrair a final conclusão de que outrossim esta questão do recurso não possa proceder.

6.

Sumariando.

I - A declaração, pelo promitente vendedor, em contrato promessa de compra e venda, de recebimento do comprador de certas quantias pela prometida venda, não faz prova quanto à  sua efetiva entrega, máxime se  este facto é impugnado, antes sendo a força probatória de tal documento livremente apreciada – artº 358º nºs 3 e 4 do CC.

II - Não provado pela interessada promitente compradora  que entregou à vendedora tais quantias,  não se pode concluir que ela detém um crédito sobre esta, pelo que àquela não assiste jus ao direito de retenção sobre a coisa, ao abrigo do artº 755º nº1 al. f) do CC.

III -Perante divergência anterior, o NCPC - artº 155º nº4 do CPC – optou, pela tese de que a falta ou a deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada - e não nas alegações -, sendo que tal nulidade atípica deve ser arguida logo na 1ª instancia, e devendo o arguente, para a sua concessão, demonstrar a sua essencialidade.

IV - Nos termos do AUJ n.º 8/2016 no DR, 1.ª série, 15.04 2016, referente ao Ac. do STJ de 23.02.2016, p. nº1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A  in dgsi.pt «Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003», pelo que, provados estes requisitos, ao respetivo trabalhador tal privilégio não pode ser concedido.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar os recursos improcedentes e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 2016.09.20.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos