Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
269/08.2TBPBL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CITAÇÃO
PRESUNÇÃO ILIDIVEL
ÓNUS DE PROVA
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 225º, Nº 4, E 230º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: I - Os artigos 233º, nº 4 e 238º, nº 1, do anterior Código de Processo Civil (com equivalentes nos atuais 225º, nº4 e 230º, nº1) estabelecem uma presunção ilidível, cumprindo ao citando demonstrar que a morada para onde foi enviada a carta não é a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever a facto que não lhe é imputável.

II - A presunção é por natureza falível. A sua força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contra prova.

III - No caso, pelo conjunto de circunstâncias apuradas, o citando demonstra que a morada para onde foi enviada a carta não era a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever à conduta de terceiro, pessoa que não assegura, podendo fazê-lo, que lhe tenha entregue a carta de citação.

Decisão Texto Integral:






Sumário:

Os artigos 233º, nº 4 e 238º, nº 1, do anterior Código de Processo Civil (com equivalentes nos atuais 225º, nº4 e 230º, nº1) estabelecem uma presunção ilidível, cumprindo ao citando demonstrar que a morada para onde foi enviada a carta não é a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever a facto que não lhe é imputável.

A presunção é por natureza falível. A sua força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contra prova.

No caso, pelo conjunto de circunstâncias apuradas, o citando demonstra que a morada para onde foi enviada a carta não era a sua residência e que o seu não conhecimento se ficou a dever à conduta de terceiro, pessoa que não assegura, podendo fazê-lo, que lhe tenha entregue a carta de citação.


*

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

D..., executado nos autos, veio arguir a nulidade da sua citação, referindo, em síntese, que nunca tomou conhecimento do processo.

A Exequente sustentou, em síntese, que o executado foi notificado para a morada que indicou no contrato e que a notificação foi recebida pela Executada O...

O Senhor Agente de Execução foi convidado a pronunciar-se e referiu, em síntese, que o Executado foi citado na morada constante do título executivo, a carta foi aceite por O... e foi dado cumprimento ao disposto no artigo 241.º do CPC, sendo certo que o expediente não veio devolvido.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão a julgar procedente a arguida nulidade e a declarar nula e sem nenhum efeito a citação do Executado D... e todos os atos subsequentes que dela dependam.


*

            Inconformada, a Exequente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

            ...

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            As questões a decidir são as seguintes:

            Sustentação da matéria de facto relativa ao ponto vi dos factos provados.

            Conferir se ocorre a falta de citação do Executado.


*

A reapreciação da matéria de facto impugnada.

A Recorrente questiona o facto provado em 6.

Para a reapreciação pedida, a Recorrente analisa os avisos de receção, demais documentos e as declarações do Executado e de O..., também executada.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Mas é certo que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respetiva transcrição.

Esta Relação não tem a imediação que o Tribunal recorrido conseguiu com os declarantes.

Reapreciadas as indicadas fontes, a nossa convicção manifesta-se no seguinte sentido:

O Executado foi para Angola em 2007, como o mesmo explica de uma forma que parece aceitável.

O mesmo afirma que nunca teve morada em V... (A diferença no (m) não foi relevante porque, estando o código postal correto, a carta estaria dirigida à morada de O...)

A sua afirmação é condizente com as referências disponíveis nas bases de dados (seg. social, Autoridade Tributária e Registo Civil).

No início do processo, em 2008 e 2009, já constavam moradas diferentes da referida em V... (Esta morada constava do contrato, em janeiro de 2006, igual para os obrigados principais e para D..., como fiador.)

O... declara que não se recorda de ter recebido o expediente de citação, negando ser sua a assinatura (rubrica) aposta no AR.

Esta negação não nos convence: como a depoente confirma o AR de fls.27, os outros três AR que a executada O... nega terem sido subscritos por si, posteriores, teriam então sido feitos por alguém que conhecia a sua identidade, número de identificação civil e data de emissão, conhecia a sua caligrafia e teria algum interesse em ocultar a citação, o que se mostra nada plausível, por falta de outra prova.

Também a caligrafia dos AR, em rubrica, não permite qualquer conclusão segura.

De qualquer maneira, apesar das dúvidas que nos possam merecer tais declarações, no que respeita à assinatura e recebimento do expediente, já nos parece mais seguro e plausível, como diz, que tenha ficado sem contatos com o cunhado, sabendo apenas que ele tinha ido para Angola, pelo que não teve como lhe entregar a citação.

Neste particular, as declarações das duas partes encontram-se e não são infirmadas pelos indícios disponíveis.

Conforme o artigo 466.º, nº 3, do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.

Devemos considerar que só O... pode desmentir as declarações de D...; não o fazendo, de alguma forma está a reconhecer que não cumpriu a obrigação que sobre ela recaía. Também não devemos descurar, pela experiência, alguma ligeireza de alguns funcionários dos Correios, na entrega das cartas a terceiros e na possível falta de advertência sobre a entrega da carta ao destinatário.

Embora conscientes do cuidado a ter com as declarações de parte, sem prejuízo do referido e conforme também com o que diremos infra sobre a presunção legal, neste particular entendemos aceitar como plausíveis as declarações O... a respeito da falta de contatos com o cunhado.

Pelo exposto, julgando procedente a impugnação da Exequente, decidimos também aditar os seguintes esclarecimentos:

Provando-se que O... recebeu o expediente de citação referido em iii),  sendo sua a assinatura referida em iv), também se demonstra:

A carta endereçada para citação do Executado foi entregue a O..., em morada que não era a morada daquele.

E O... não entregou a carta ao Executado, não lhe dando conhecimento da citação pretendida.

Consideram-se então provados os seguintes factos:

...


*

Conferir se ocorre a falta de citação do Executado.

Para a análise deste ato processual, considerando o tempo da sua alegada realização (2008), é aplicável a lei processual anterior, conforme se retira da leitura dos arts.5º, nº3 e 6º, nº3, da Lei 41/2013 que aprovou o novo Código de Processo Civil.

A citação, conforme dispõe o artigo 228º, nº 1, do Código aplicável, é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender.

A lei preocupa-se em assegurar, pelos meios possíveis, o efetivo conhecimento por parte do réu da existência de um processo contra si interposto.

 A sua falta acarreta a anulação do processado posterior à petição (art.194º, a), da lei processual anterior), por estar em causa o direito de defesa e do contraditório, princípios basilares do processo civil. (Neste caso, a anulação é apenas relativa ao identificado Executado.)

O legislador rodeia a citação de inúmeras cautelas, a fim de lhe conferir a necessária fiabilidade.

No caso, está em causa a citação postal.

Dispõe o nº 1 do artigo 236º do C.P.C. que “a citação por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho …(…), incluindo todos os elementos a que se refere o artigo 235º, e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o fará incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé”.

O valor da citação postal está previsto no artigo 238º, nº 1, do C.P.C., na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.03: “a citação postal efectuada ao abrigo do artigo 236.º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de recepção e tem-se por efectuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.

Ora, no caso, a carta endereçada para citação do Executado, entregue a pessoa diversa, foi para morada que não era (ou já não era) a morada daquele.

            Nos termos do referido art.238º, nº1, a lei presume, “salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.”

            Esta presunção decorre de a citação ter sido realizada ao abrigo do art.236º, no qual estão previstas cautelas postais de identificação e advertência.

            Como resulta da expressa salvaguarda, a presunção é ilidível ou passível de prova em contrário.

            Como alertam P. Lima e A. Varela (C.C. Anotado, vol. I, 3ª edição, página 310), “as presunções são meios de prova por sua natureza falíveis, precários, cuja força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contra prova.”

            Poderia entender-se que a “demonstração em contrário” seria a prova (segura) de que a carta não foi entregue.

            Porém, esta prova, de facto negativo, não pode desconsiderar a natureza da presunção e aquela doutrina de que bastará uma “simples contraprova”.

            Entendemos, na salvaguarda da citação, para a referida demonstração, bastará abalar seriamente o facto presumido da entrega da carta, colocando o julgador numa dúvida séria de que esta tenha ocorrido.

            No caso, o conjunto de factos apurados permitem concluir que aquela presunção foi ilidida.

            No contexto, se o terceiro responsável pela entrega não assegura em julgamento que entregou a carta, que é quem o pode fazer, outra prova, além daquela que foi feita, não é exigível ao citando. O terceiro está em melhores condições de certificar a entrega do que o citando de assegurar a não entrega.

A declaração do terceiro que não assegura a entrega é suficiente, na defesa da certeza e segurança jurídicas, para declarar que a mesma não ocorreu.

O abalo sobre a verificação do facto presumido é muito sério.

Se a lei se preocupa em assegurar um efetivo conhecimento, não é nestas condições que ficamos tranquilos a respeito do mesmo.

Assim, ilidida a presunção da entrega, ocorre a decidida falta de citação.

Não é a circunstância do envio de nova carta, agora no âmbito do art.241º da lei em análise, que afasta aquela conclusão. Esta 2ª carta simples é enviada para a residência que está certificada como não sendo do interessado e depois da carta principal não ter sido recebida. O seu valor confirmativo é então inexistente. (Neste sentido, o acórdão desta secção, em coletivo diferente, de 10.2.2015, proc.391/10.5TBMMV-C.C1, não publicado; no sentido de afastar logo à partida o funcionamento da presunção, por se tratar de morada que não é a do interessado, o acórdão do STJ, de 6.6.2019, no proc.1202/15, em www.dgsi.pt.)

Não merece censura a decisão recorrida.

Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Coimbra, 2021-11-23


(Fernando Monteiro)

(António Carvalho Martins)

(Carlos Moreira)