Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1600/16.2T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CASO JULGADO
IDENTIDADE DE SUJEITOS
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 278, 576, 581, 621 CPC, LEI Nº 98/2009 DE 4/9
Sumário: 1. A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.
2.- Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

3.- O critério legal da identidade de sujeitos para efeitos de caso julgado é que as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e não física.

4.- Este critério da qualidade jurídica abrange os devedores solidários.

5.- É no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar todos os danos patrimoniais e morais, caso entenda que o acidente de trabalho e simultaneamente de viação tenha sido provocado pelo empregador – art. 18º, nº 1, da Lei 98/2007 (que regula a reparação por acidentes de trabalho).

6.- Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada derivados do acidente de trabalho e simultaneamente de viação, por efeito preclusivo do caso julgado, já não o pode fazer depois, seja no âmbito de acção emergente de acidente de trabalho, seja através de acção cível de processo comum.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. L (…), residente em (...) , intentou contra I (…) e A (…)  residentes em (...) e F (…) – Companhia de Seguros, SA, com sede em (...) , acção declarativa pedindo que sejam os RR condenados a pagar-lhe a quantia de 30.005 € correspondente a:

a) 12.000 € a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho;

b) 300 € a título de compensação por peças de vestuário inutilizadas;

c) 17.705 € de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

d) a quantia que se vier a apurar correspondente a despesas de deslocação obrigatórias no âmbito deste processo;

Alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de um acidente de viação, por culpa exclusiva do réu A (…), que foi simultaneamente acidente de trabalho e que foi já objecto de decisão no processo 143/14.3T8FIG do 2º Juízo Central de Trabalho da Figueira da Foz. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo que tal réu conduzia foi transferida para a ré seguradora.

Os 1ºs RR contestaram, e, além do mais, impugnaram a dinâmica do acidente.

A R. F (…) contestou, invocando, além do mais, a exclusão da indemnização por danos materiais da garantia do seguro e o ressarcimento da A. no âmbito laboral por danos patrimoniais decorrentes da desvalorização de que ficou portadora, defendendo-se, no mais, por impugnação.

Todos os RR atribuíram a culpa pela produção do acidente à conduta da A. por ter optado por ser transportada no reboque.

*

Anteriormente à realização da audiência de julgamento foi, então, proferida decisão que decidiu julgar verificada a excepção dilatória do efeito preclusivo decorrente da autoridade do caso julgado, e absolver os réus da instância.

*

2. A A. recorreu, concluindo que:

(…)

3. A 2ª R. F (…)contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

4. O mesmo fizeram os 1ºs RR.

II – Factos Provados

A) Os RR I (…) e A (…) são proprietários de várias vinhas e dedicam-se à apanha de uvas que entregam nas Cooperativas da região, contratando ano após ano, trabalhadores para o efeito.

B) Pelas 14 horas e 20 minutos do dia 5 de Outubro de 2013, no lugar e freguesia de Cordinhã, concelho e comarca de (...) , ocorreu um acidente de viação do qual resultaram para a, aqui, A L (…)  ferimentos e sequelas permanentes.

C) A R I (…) é proprietária do veiculo automóvel, ligeiro de Passageiros, marca Land Rover, modelo Defender 90 TDI com a matricula (...) HE, com a apólice no (...) da Companhia de Seguros F (…) S.A. e do reboque com a matrícula AV- (...) .

D) O acidente ocorreu depois da hora de almoço quando R A (…) transportava os trabalhadores, distribuídos pelo jipe designado de HE e o atrelado (matrícula AV- (...) ) acoplado ao mesmo, onde seguiam várias pessoas entre as quais a A. que estavam a ser recolocados nas vinhas propriedade dos RR I (…) e A (…)  para a realização das vindimas.

E) O R A (…) conduzia o jipe e respectivo atrelado transportando a A, entre outros, para a vinha e foi durante a deslocação que ocorreu o acidente.

F) A via tem cerca de 4,30metros de largura.

G) O local é marginado de ambos os lados por terrenos agrícolas.

H) Aquando do acidente a autora tinha 64 anos de idade

I) Tendo por objecto o referido acidente correu termos a Acção de Acidente de

Trabalho, processo no 143/14.3T8FIG, na Comarca de Coimbra – Figueira da Foz – Instância Central – 2a secção de Trabalho J1, onde foram partes a autora e a ré seguradora.

J) No âmbito desse processo, ocorreu em 14.04.15 a tentativa de conciliação, no decurso da qual a aqui autora declarou estar paga de todas as indemnizações legais devidas pela entidade seguradora relativamente a períodos de Incapacidade temporária, até à data da alta conferida pela seguradora;

K) E o legal representante da seguradora responsável declarou reconhecer o acidente como de trabalho, e aceitar a responsabilidade remuneratória para si transferida no valor anual de 10.950,00 € (30,00 € x 365 dias),

L) Não se conseguiu a conciliação em virtude da seguradora não estar de acordo com o resultado do exame médico a que a sinistrada foi submetida.

M) Foi realizada Junta médica em 25.06.15 e proferida sentença em 08.09.15 pela qual se fixou a Incapacidade Permanente Parcial em 19,95735€ desde 30.09.14 e condenou a seguradora a pagar à aqui autora o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 1.529,73 €, devida desde 30.09.2014, e a quantia de 42 €a título de despesas com deslocações obrigatórias, e bem assim juros vencidos e vincendos sobre aquelas prestações pecuniárias.

N) Essa sentença transitou e julgado em 05.10.2015.

O) Em 17.11.15 a autora recebeu da seguradora o capital de remição no montante de 15.188,69€ e da quantia de 42,00€ relativa a despesas de transporte e ainda a quantia de de 700,03 relativa a juros de mora.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as únicas questões a resolver são as seguintes.

- Verificação de caso julgado.

- Inconstitucionalidade do art. 18º da Lei 98/2009 de 4.9.

2. Na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:

“Na presente acção, a autora pretende receber uma indemnização complementar pelos danos decorrentes do acidente de viação e de trabalho, justificando a presente demanda, subsequente ao processo laboral, com alegação de que a indemnização do acidente de trabalho não contempla os danos que devem ser reparados em sede de responsabilidade civil.

E assim é, quando o responsável pelo acidente é um terceiro.

Com efeito, nos termos do no 1 do art. 17o da Lei no 98/2009, de 04 de Setembro que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais “quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.

Contudo, no caso concreto, a responsabilidade culposa pela produção do acidente é atribuída pela autora à própria entidade patronal e não a um terceiro.

E “quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais” - cfr. art. 18o, no 1 da referida Lei.

Não é pois correcto o pressuposto de que partiu a autora ao propor a presente acção.

A fixação judicial das indemnizações e pensões devidas eventualmente por aqueles que a NLAT considera responsáveis pela reparação do acidente de trabalho deverá ser feito na acção especial emergente de acidente de trabalho prevista no Código de Processo do Trabalho.

O processo emergente de acidente de trabalho é um processo especial que se inicia por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente (artigo 99o, no 1 do CPT), tendo como finalidade instruir o processo com todos os elementos necessários para a identificação dos possíveis beneficiários e responsáveis e para a definição dos direitos e obrigações de uns e de outros, de modo a que seja possível reunir em juízo todos os interessados, num ato presidido pelo Ministério Público (Magistrado) – tentativa de conciliação – onde se procura que cheguem a acordo, segundo os parâmetros legais.

À tentativa de conciliação são chamadas o sinistrado ou seus beneficiários legais, as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes da participação (artigo 108o, no 1 do CPT).

Na tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, este promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, nomeadamente o resultado de exame médico e as circunstâncias que possam influir na capacidade de ganho do sinistrado (artigo 109o do CPT).

Perante essa proposta ou as partes estão de acordo, aceitando-o, ou não estão de acordo, rejeitando-o.

Se houver acordo, de harmonia com o disposto no artigo 111o do CPT, têm de constar dos autos:

- A identificação completa dos intervenientes;

- A indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos;

- A descrição pormenorizada acidente;

- A descrição pormenorizada dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.

Nos casos de falta de acordo, face ao estatuído no artigo 112o do CPT, deve constar nos autos o seguinte:

Consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.

Diga-se, ainda, que o interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um dos factos atrás mencionados, estando já habilitado a fazê-lo é, a final, condenado como litigante de má-fé (artigo 112o, no 2 do CPT).

Obtido o acordo é o mesmo de imediato submetido à apreciação do juiz que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e pelas normas legais, regulamentares ou convencionais (artigo 114o, no 1 do CPT).

Homologado o acordo e transitado o despacho homologatório, finda a fase conciliatória do processo, não havendo, neste caso, lugar à fase contenciosa prevista no artigo 117o e ss. do CPT.

Não havendo acordo passa-se para a fase contenciosa.

De acordo como disposto no artigo 119o do CPT a fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho pode iniciar-se de dois modos diferentes, com regimes diferentes, consoante o âmbito da discordância entre as partes na fase conciliatória do processo.

1o- Quando na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade (artigo 138o, no 2 do CPT), a fase contenciosa do processo inicia-se mediante requerimento, do interessado que não se tiver conformado com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo (artigo 117o, no 1, alínea b) do CPT), no qual formula pedido de junta médica. Após segue-se a realização do exame pedido (artigo 139o do CPT) e a sentença onde se fixa de modo definitivo a natureza, o grau de desvalorização do sinistrado e o valor da causa (artigo 140o, no 1 do CPT).

2o- Quando a questão da discordância entre as partes não é a anteriormente referida ou não é só essa, a fase contenciosa tem o seu início com a petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos (artigo 117o, no 1, alínea a) do CPT), contra a entidade responsável, seguindo-se a citação (artigo 128o do CPT), a contestação (artigo 129o do CPT), a eventual resposta (artigo 129o, no 3 do CPT), o saneamento e condensação processual (artigo 131o do CPT), a instrução (artigo 63o e ss, por remissão do artigo 131o, no 2 do CPT) – realizando-se exame por Junta Médica, se for caso disso (artigo 138o, no 1 do CPT), o qual corre por apenso (artigo 131o, no 1, alínea e) e 132o, ambos do CPT) – o julgamento e a sentença (artigo 135o do CPT), em que se decide globalmente a causa.

No primeiro caso a tramitação é processualmente mais simples, uma vez que a única questão que se mantém em pé apenas demanda a realização de prova pericial (Junta Médica), pois a parte ou as partes não se conformaram com o resultado do exame efetuado pelo perito médico na fase conciliatória.

Pode-se dizer que a fase contenciosa destina-se apenas a provocar uma decisão judicial que supere o litígio que subsiste.

É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111o e 112o do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele.

Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.

Do confronto daqueles normativos (artigos 111o e 112o do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.

É por isso que, conforme refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 06-03-2002[16], “se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais, não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade patronal, não pode agora o recorrente, pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-ré patronal numa quantia a titulo de danos morais.” – Acórdão da Relação do Porto de 07.09.2015, proc. 628/14.1TTPRT.P1.

Como se depreende dos factos provados, à tentativa de conciliação apenas foram chamadas as aqui autora e a ré seguradora. Nessa diligência não foi levantada a questão da culpa da entidade empregadora na produção do acidente e o desacordo centrou-se no resultado do exame médico a que a sinistrada foi submetida. Nunca a sinistrada questionou que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade empregadora, nem a aqui ré seguradora deixou de aceitar que se tratava de acidente de trabalho, caracterização essa que parece agora querer por em causa, quando atribui à ré a culpa pela respectiva produção.

Por essa razão, iniciou-se a fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho apenas para decisão quanto ao ponto que ficou por dirimir na fase conciliatória – a extensão da incapacidade de que ficou a padecer a autora.

Entendendo que o acidente foi provocado pelo empregador ou seu representante, como defende a autora, deveria a sinistrada ter reclamado o ressarcimento de todos os danos dele emergentes no âmbito do processo emergente de acidentes de trabalho – cfr. art. 18o da Lei no 98/2009, de 04 de Setembro.

Não o tendo feito, e tendo transitado em julgado a sentença proferida no termo da fase contenciosa do processo laboral, ficou precludido o respectivo direito, sob pena de violação da autoridade do caso julgado.

O caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa[20].

A primeira daquelas funções, ou seja, a função positiva, é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida mediante a exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580o no 2 do C.P.C.).

Podemos, pois, afirmar que a autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica[21].

Assim, enquanto que a exceção de caso julgado tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tripla identidade a que se refere o artigo 581o do CPC (de sujeitos, pedido e causa de pedir), a autoridade de caso julgado de sentença transitada pode atuar independentemente da verificação de tais requisitos[22], implicando, contudo, a proibição de novamente apreciar ou discutir certa questão[23].

A distinção entre exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado é feita pelo Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[24] da seguinte forma: “A exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”. E mais à frente: “ verifica-se que o caso julgado material pode valer em processo posterior como autoridade de caso julgado, quando o objeto da acção subsequente é dependente do objeto da acção anterior, ou como exceção de caso julgado, quando o objeto da acção posterior é idêntico ao objeto da acção antecedente.

Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu especto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”[25].

Também o Prof. JOSÉ LEBRE DE FREITAS [26] acentua que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

Além do mais, acrescentaremos, que a autoridade do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado[27].

Seguindo os ensinamentos do Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[28] “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»”

(...)

“A questão tem a ver com os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho que limitam, conforme vimos, a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.

Significa isto que, no caso em apreço, mais do que a típica situação de exceção dilatória de caso julgado, decorrente de se repetir, em acção subsequente, pedido idêntico ao já apreciado em acção anterior, mediante sentença vinculativa das partes, e fundado na mesma causa de pedir, estamos confrontados com o tema da eficácia preclusiva da decisão que apreciou definitivamente certa pretensão, plenamente equiparável à figura do caso julgado. Ou seja: a exceção dilatória de caso julgado não se funda aqui na exata repetição de uma acção, objetiva e subjetivamente idêntica à que foi prévia e definitivamente julgada, mas na figura do efeito preclusivo que a doutrina vem equiparando e integrando no instituto do caso julgado, de modo a que a indiscutibilidade da decisão abranja, não apenas as questões nela expressamente decididas, mas todas as que o demandado tinha o ónus de suscitar durante o processo, como meio de influenciar a decisão final sobre o mérito da causa[29], ou seja, o efeito preclusivo do caso julgado tanto abrange o que foi deduzido pela sinistrada no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho na configuração já exposta, como o dedutível, ou seja, aquilo que poderia e deveria ter sido deduzido, mas não o foi.” - Cfr. Acórdão da Relação do Porto acima identificado.

Verifica-se, por conseguinte, o efeito preclusivo decorrente da autoridade do caso julgado o que constituiu uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa (art. 278o, no 1, al. e) e 576o, no 2 do CPC).”.

Concorda-se com o decidido, mas não integralmente com a fundamentação jurídica apresentada, pelo que cabe explicitar, o que se fará tendo em conta, também, as objecções colocadas pela recorrente.

Da própria exposição de direito apresentada na decisão recorrida, nomeadamente doutrina citada, decorre que não estamos perante uma situação de autoridade de caso julgado, mas sim, de excepção de caso julgado.

Efectivamente, como decorre da lição citada de Lebre de Freitas (em CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 6. ao anterior artigo 498º do CPC, pág. 354) pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito enquanto que a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

Também M. Teixeira de Sousa (Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, BMJ nº 325, pág. 176) professa que o caso julgado material pode valer em processo posterior como autoridade de caso julgado, quando o objecto da acção subsequente é dependente do objecto da acção anterior, ou como excepção de caso julgado, quando o objecto da acção posterior é idêntico ao objecto da acção antecedente. 

Ora, como bem salienta a recorrente julgada, em termos definitivos, certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto dessa primeira causa, sobre essa precisa «quaestio judicata», impõe-se necessariamente em todas as acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, ainda que, incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante da relação material controvertida na acção posterior. A atribuição de valor de caso julgado com base numa relação de prejudicialidade supõe ou exige que o fundamento da decisão transitada condicione a apreciação do objecto de uma acção posterior, não se vislumbrando na sentença qualquer condicionante à apreciação do concreto objecto destes autos, atenta a inexistência de uma qualquer relação de prejudicialidade entre ambos os processos e entre as questões neles debatidas. Entendemos, pois, que inexiste a figura de autoridade de caso julgado. Poderá, sim, é haver a excepção de caso julgado (arts. 621º e 581º do NCPC). Prosseguindo, pois.

Começamos por constatar que se verifica identidade de causa pedir, pois a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico: a eclosão de um acidente de viação, simultaneamente de trabalho, em que está em jogo a responsabilidade civil extracontratual complexa, constituída pelos factos ilícitos e danos provocados à lesada A.

Quanto à identidade de sujeitos a recorrente nega que ela exista, pois os 1ºs RR não foram demandados na acção de acidente de trabalho. Não foram porque transferiram a sua responsabilidade para a 2ª R. seguradora. E na presente acção também não deviam ter sido demandados, pela mesma razão, porque existia contrato de seguro que cobre o montante peticionado, face ao que dispõe o art. 64º, nº 1, a), do DL 291/2007, de 21.8 (regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) – aliás os 1ºs RR invocaram a sua ilegitimidade correctamente que só não foi reconhecida por a 1ª instância ter decidido erradamente tal questão. Dir-se-á, pois, que se os ditos 1ºs RR tivessem sido afastados da presente instância, por força da sua ilegitimidade, o argumento da recorrente já não poderia ter acolhimento.

De qualquer modo, o critério legal é que as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e não física. E são-no, pois os 1ºs RR e a 2ª R. são devedores solidários principais, embora uma solidariedade imprópria, em sentido lato, visto que a R. seguradora responde e só ela responde por para ela ter sido transferida a responsabilidade civil dos 1ºs RR.

Tanto é assim que a extensão subjectiva da eficácia do caso julgado abrangerá estes 1ºs RR, quer no que foi decidido na acção de acidente de trabalho como naquilo que for decidido na presente acção, como ensina L. Freitas, ob. cit., nota 3., pág. 348/349, e arts. 522º do CC e 32º, nº 2, 311º, 316º, nº 2 e 3, a), e 320º do NCPC.          

Relativamente à identidade de pedido é que reside o cerne da questão do presente recurso.

Principiemos por constatar que numa e noutra causa a A. pretende obter o mesmo efeito jurídico, o objecto do seu direito é ser indemnizada pelos danos sofridos em virtude do referido acidente de viação, simultaneamente de trabalho.  

Dispõe o art. 26º, nº 1, do mencionado DL 291/2007, que quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho, se aplicarão as disposições deste decreto-lei, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho.

A A./apelante entende que o acidente foi provocado pelo empregador. O art. 18º, nº 1, da referida Lei 98/2009 (que regula a reparação dos acidentes de trabalho), com a epígrafe “actuação culposa do empregador” determina que quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador (ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho), a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador. Enquanto o seu nº 4, dispõe que no caso previsto no artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho, fixada segundo as regras que a seguir estipula (é claramente normativo diferente da anterior lei que regulava tal tipo de reparação de acidentes de trabalho - a Lei 100/97, de 13.9 - que no seu também art. 18º não tinha tal tipo de previsão).

Ou seja, perante a lei vigente, a A. sinistrada deveria ter reclamado na acção de acidente de trabalho o ressarcimento de todos os danos, e não só os respeitantes à redução da sua capacidade de trabalho ou de ganho. Agora na presente acção vem reclamar danos patrimoniais derivados de lucros cessantes, no montante de 12.000 €, por perda de capacidade de ganho, danos materiais, no montante de 300 €, por inutilização de vestuário e perda de um relógio e damos morais, no montante de 17.705 €.  

Estamos aqui perante o fenómeno do efeito preclusivo do caso julgado, que se caracteriza por uma inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (vide L. Freitas, ob. cit., nota 3. ao anterior art. 671º do NCPC, pág. 714).

Na verdade, o caso julgado abarca o deduzido e o dedutível, isto é, estão abrangidos pela força do caso julgado todas as possíveis razões do autor invocadas e meios de defesa deduzidos, como também as que não foram alegadas ou deduzidas, mas eram alegáveis ou dedutíveis, desde que pertinentes para a resolução do litígio. Significa isto que o caso julgado abrange não só o que foi efectivamente deduzido, mas, também, o que poderia ter sido deduzido e o não foi. Na segunda acção não pode a parte alegar factos, formular pedidos ou apresentar defesas que deveria ter apresentado e alegado na primeira acção, mas que, por qualquer razão, o não fez, abarcando, assim, o caso julgado, não só o que foi objecto de discussão no processo, mas também tudo aquilo que a esse objecto respeitando tivesse o autor ou o réu o ónus de submeter também à discussão (neste sentido pode ainda ver-se Manuel de Andrade, Noções Elementares, pág. 324, Anselmo de Castro, D. Proc. Civil, Vol. III, pág. 394, e Ac. do STJ, de 21.4.2010, Proc.6640/07.0TBSTB e da Rel. Porto, citado na decisão recorrida, ambos em www.dgsi.pt).

3. Suscita a recorrente a inconstitucionalidade do art. 18º da Lei 98/2009. Os 1ºs RR nas contra-alegações dizem que tal questão é nova, pois foi suscitada apenas em recurso, não podendo, pois, ser conhecida. Por princípio, não cabe, aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la, salvo se forem de conhecimento oficioso, como é o caso de questão de inconstitucionalidade das normas suscitadas nas alegações de recurso (vide L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 5. ao art. 676º, pág. 8). Como é a nossa hipótese, pelo que é possível conhecer de tal questão.

Contudo, a apelante limita-se a concluir por tal inconstitucionalidade (conclusões XI e XII), dizendo que tal normativo é “muito “ambíguo” um tanto ao quanto “dúbio”, sem se perceber como é que um texto legal a ser ambíguo pode ser inconstitucional, e sem se perceber, também, porque a apelante não o justifica, porque é que a reclamação obrigatória do trabalhador da totalidade dos damos patrimoniais e morais em acção de acidente de trabalho e simultaneamente de viação coarcta direito a indemnizações dos mesmos. Qual é a norma constitucional violada, qual é o princípio constitucional ofendido ?

Assim sendo, improcede tal questão.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC)

i) A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida;

ii) O critério legal da identidade de sujeitos para efeitos de caso julgado é que as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e não física; este critério da qualidade jurídica abrange os devedores solidários;

iii) É no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar todos os danos patrimoniais e morais, caso entenda que o acidente de trabalho e simultaneamente de viação tenha sido provocado pelo empregador – art. 18º, nº 1, da Lei 98/2007 (que regula a reparação por acidentes de trabalho);

iv) Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada derivados do acidente de trabalho e simultaneamente de viação, por efeito preclusivo do caso julgado, já não o pode fazer depois, seja no âmbito de acção emergente de acidente de trabalho, seja através de acção cível de processo comum.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas a cargo da A./recorrente.

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Coimbra, 26.2.2019

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos ( vencido )

Maria João Areias

Voto vencido Juiz Desembargador Fonte Ramos.

Sendo certo que a eficácia preclusiva do caso julgado e indiscutibilidade da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada na sentença transitada, i.é., o conteúdo dessa decisão , compreende não apenas as questões nela expressamente decididas mas todas as que a parte tinha o ónus de solicitar durante o processo, de modo a conformar a decisão final sobre o mérito da causa, afigura-se-nos, contudo, que as circunstâncias e especificidades da precedente acção especial de acidente de trabalho ( em que dominam a celeridade processual e as soluções consensuais, normalmente com a intervenção de uma seguradora laboral), não afastavam a possibilidade da autora da acção cível demandar a seguradora e eventualmente a própria entidade empregadora a título de culpa pela produção do evento e visando , pelo menos, a adequada compensação pelos danos não patrimoniais sobrevindos e pelos danos patrimoniais não considerados naquela acção laboral.