Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1156/05.1TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INVENTÁRIO
ACÇÕES TITULADAS AO PORTADOR
CIRCULAÇÃO
TRADITIO
PRESUNÇÃO DA EXISTÊNCIA
TITULARIDADE
TÍTULO
DECISÃO PROVISÓRIA
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 4.º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1336º/2 E 1350º/1/3 DO VCPC
Sumário: 1 - No processo de inventário devem resolver-se todas as questões de que dependa a definição dos bens a partilhar, contanto que elas possam ser resolvidas em face da instrução sumária compatível com a índole do processo; daí que, decorrente da limitação da prova se produzir sumariamente, se devam relegar os interessados para fora do inventário quando de todo se afigure impossível assegurar-lhes aqui amplos meios de defesa dos seus pontos de vista.

2 - É justamente o caso da decisão definitiva a proferir sobre o relacionamento ou não de acções tituladas ao portador – sobre a titularidade/propriedade de tais acções tituladas ao portador – que antes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges circularam (através da traditio) para terceira pessoa.

3 - Tendo sido praticado o facto formal – entrega dos títulos – apto a transferir a legitimação para a terceira pessoa, esta, enquanto portadora das acções, beneficia da presunção de existência e titularidade do direito, ou seja, é ao interessado que pretende incluir tais acções no acervo hereditário que cumpre alegar e provar a falta ou os vícios do negócio subjacente de transmissão dos títulos/acções para a terceira pessoa.

4 - Daí que, em face da complexidade da questão (do afastamento da presunção), da larga alegação e transcendência, que exige prova demorada e vasta, a mesma não possa ficar no inventário definitivamente resolvida; ou seja, a decisão deve ser, em face da referida presunção, de não relacionação (exclusão) de tais acções ao portador, todavia, tal decisão deve ser apenas provisória, “com ressalva do direito às acções competentes, nos termos previstos no n.º 2 do art. 1336.º”.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A... , divorciado, com os sinais dos autos, requereu – por apenso ao processo em que foi decretado o divórcio do casamento que celebrou com B... , também identificada nos autos – que se procedesse a inventário para partilha de bens.
Nomeado o cabeça de casal (o próprio requerente), junta a relação de bens, apresentada e decidida a reclamação da requerida, foi designado dia para a conferência de interessados.
“Conferência” em que, não havendo acordo quanto à composição dos quinhões, se começou por deliberar sobre o passivo relacionado, após o que o Exmo. Juiz declarou abertas as licitações.

Seguiram os autos a sua posterior marcha normal, tendo sido elaborado o mapa da partilha e proferida a sentença homologatória, de que o requerente A...recorreu, recurso que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, visando a manutenção na relação de bens tanto da verba n.° 4 como da verba n.° 85.

Foram oportunamente apresentadas as alegações.

Concluiu o requerente/apelante:

1°) Tal como acertada e cristalinamente enunciado pelo Meritíssimo Juiz “a quo, a págs. 4 e 5 do douto Despacho recorrido, “A dúvida sobre a realidade de um facto ... resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita», pelo que, sendo “... ao interessado reclamante que compete a prova ... da não existência dos bens ... cuja exclusão requer», só a absoluta certeza da inexistência desses bens poderá determinar a eliminação das atinentes verbas da relação de bens; caso contrário, na dúvida (por mínima que seja), tais verbas devem manter-se.

2.º) Ou poderia o Mm. Juiz a quo ter optado por remeter as questões para os meios comuns nos termos do disposto no Art. 1350.º/1 do Código de Processo Civil.

3 º) O Meritíssimo Juiz “a quo”, através do douto Despacho recorrido, sustentou a sua absoluta certeza de que o ex-casal (incluindo, portanto, o ora Recorrente) teria doado à sua filha as questionadas acções ao portador em duas concomitantes circunstâncias: esta figurar como participante, na qualidade de accionista, na acta de uma das assembleias gerais da empresa e o próprio Recorrente ter afirmado à testemunha C... que as acções teriam advindo à posse da sua filha por doação dos pais (ou seja, também dele próprio).

4.º) Quanto à primeira circunstância (participação numa assembleia geral), convirá desde logo relevar que, por si só, a mesma não permite a conclusão (muito menos, absolutamente segura) de que, lá por a filha se ter apresentado numa assembleia geral como portadora das acções, estas hajam validamente saído do património comum do casal constituído pelos seus pais (poderia tê-las furtado, por exemplo, ou, como no caso será bastante mais plausível, poderia ser que só um dos progenitores lhe tivesse feito entrega do títulos); tanto assim é, aliás, que o próprio Meritíssimo Juiz “a quo” cuidou (e bem) de tentar legitimar a posse dos títulos pela filha com a doação dos pais (ambos e, portanto, também o ora Recorrente).

5) Em todo o caso, sempre haverá que atentar às especificidades do concreto caso em apreço, que não podem senão suscitar enormes e fundadas dúvidas sobre a efectiva ocorrência da suposta doação:

a) de acordo com a prova testemunhal produzida a tal respeito, a doação das acções pelos pais à filha teria como finalidade viabilizar ali o futuro profissional da filha (que estava em formação na área de actividade a que se dedica a empresa), até de modo a aligeirar a vida profissional da mãe (que administrava a empresa desde a sua fundação, sendo que, no dizer de uma das testemunhas, “a idade é uma situação que não perdoa”); pois bem, não só a mãe continuou e continua a administrar a empresa, como nunca a filha para lá foi, tendo inclusivamente vendido pouco tempo depois a um outro accionista as acções que (supostamente) lhe tinham sido doadas pelos seus pais!?

b) a empresa tinha a mesma composição societária desde a sua fundação e não há notícia de qualquer diferendo entre os seus sócios e/ou accionistas (que, aliás, já anteriormente assim haviam privado numa outra empresa em que trabalhavam), pelo não será difícil conceber (ainda que em mera conjectura de raciocínio) que os demais accionistas tudo pudessem fazer para auxiliar a Requerida (ela, sim, sua co-accionista, não o ora Recorrente), revestindo-se, pois, da maior importância os procedimentos exteriores à empresa, na medida em que só aí a Requerida poderia encontrar dificuldades em prosseguir o seu propósito de subtrair as acções ao património comum do ex-casal; pois bem, o que se constata é que nenhum desses procedimentos se mostra ter sido observado — não foi entregue a declaração de transmissão de acções a que alude o Art. 138°/1 do CIRS, na redacção do DL no 198/2001 (omitida por duas vezes, aquando da suposta doação das acções e, depois, também aquando da sua alienação a um outro accionista) e também a alienação das acções a um outro accionista não foi incluída na declaração de IRS da filha (através do preenchimento do respectivo Anexo G!?

c) tratando-se de uma empresa escrupulosa no cumprimento das respectivas obrigações (como resultou dos depoimentos testemunhais colhidos), a inobservância da primeira daquelas formalidades obstaria a que a filha pudesse exercer quaisquer direitos sociais, muito menos participar em assembleias gerais da sociedade; pois bem, mesmo dispondo de ROC (a quem compete, além do mais, fiscalizar pelo cumprimento da legalidade), a filha surge numa acta como participante numa assembleia geral, sem que sequer se mostre ter-lhe sido solicitada comprovação de entrega da referida declaração!?

6°) Quanto à segunda circunstância (o próprio Recorrente ter afirmado à testemunha C...que as acções teriam advindo à posse da sua filha por doação dos pais), aquilo que, na realidade, a testemunha C... afirmou foi, apenas e tão somente, que o ora Recorrente lhe teria dado a conhecer a intenção de doar as acções à filha e nada mais; o resto (que essa doação teria realmente ocorrido), deduziu-o a testemunha ao saber que a filha do ex-casal teria comparecido a uma assembleia geral da empresa na posse dos títulos.

7°) Por fim, decidiu o Meritíssimo Juiz a que” eliminar a verba n.° 4 da relação de bens, uma vez que o valor da indemnização declarada em acção judicial, depois de deduzido o montante relativo a despesas e honorários com a Mandatária, foi distribuído pelos Autores, recebendo o cabeça de casal a sua parte através de cheque que lhe foi entregue por um cunhado e que foi levantado tardiamente

8.º) Com efeito, não resulta do conteúdo da carta da lustre Mandatária na Acção, enviada ao Recorrente, que lhe tenha sido entregue qualquer cheque, nem mencionada qualquer quantia.

9°) Não foi junta aos autos cópia do cheque e de quem procedeu ao seu levantamento, pelo que não foi produzida qualquer prova relativamente a esse pagamento, devendo, assim, ser mantida a verba n°4 da relação de bens.

(…)”

Concluiu a requerida/apelada:

1ª - Deve improceder a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.

2ª - Pois que os concretos meios probatórios existentes no processo impunham a decisão recorrida,

3ª - Ou seja, a douta decisão que eliminou da relação de bens, as verbas n.ºs 85 (acções) e verba n.º4 (valor da indemnização) do acervo a partilhar.

Vejamos,

4ª - Testemunha C...melhor identificada na acta de 23 de Janeiro de 2012, ouvido no dia 23/01/2012, 14:14:26 a 14:33:30, total 00:19:03, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital, e que contrariamente ao que o Apelante alega, não só referiu no seu depoimento que o Apelante tinha intenção de doar as acções à filha do ex casal como ouviu dele que o mesmo doou as acções á filha;

Testemunha D... esta acionista da referida Empresa E... , S.A., melhor identificada na acta de 23 de Janeiro de 2012, ouvida no dia 23/01/2012, 10:26:22 a 11:14:40, total 00:48:17, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital.

Do seu depoimento resulta e passa a transcrever-se:

«(…)T1 – De saúde, estava F..., portanto, a filha do casal nessa assembleia e nós, ao assinar as atas, portanto, ela estava como acionista.

MRda – Portanto, já não estava a mãe?

T1 – Não, a B... só esteve talvez uma vez, uma vez ou duas, eu não posso prec…,sei que foi perto disso, …

MRda – Depois passou a ir a F...?

T1 – E eu questionei a F... e ela disse-me que tinha sido uma oferta de casamento, as ações.(…)»;

A testemunha H....., ROC da Empresa E...l S.A., melhor identificado na acta de 07 de Março de 2012, ouvido no dia 07/03/2012, 15:01:17 a 15:25:51, total 00:24:34, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital.

Do seu depoimento resulta e passa a transcrever-se:

«(…)T14 – O que eu sei é que na, até uma determinada altura, até 2003, na Assembleia de 2003, porque as ações são ao portador, até 2003 a dona B... apare…, figurou como titular das ações, portanto, na Assembleia da aprovação das contas de 2002 e depois em 2003, em outubro, a part…, já figurou como titular a, a filha de ambos, a F....

(…)

MRda – E nessa Assembleia o senhor doutor esteve?

T14 – Estive presente.

(…)

T14 – Em em outubro de 2003, já figurou como titular a F....

MRda – E ela compareceu?

T14 – E ela compareceu.

MRda – Pronto. Portanto, sabe, portanto, em outubro, o senhor refere outubro de 2003, soube do casamente que tinha havido da, da, da F...?

T14 – Sim, soube nessa altura, nessa altura.

(…)»;

Todas estas testemunhas mereceram a credibilidade do douto Tribunal recorrido, depuseram com objectividade e isenção.

5ª - Dos documentos existentes

Temos junto aos autos:

- acta n.º42, junta ao requerimento de 28 de Fevereiro de 2012 onde consta que esteve presente na Assembleia Geral de Outubro de 2003 como acionista a filha do ex casal Apelante e Apelada;

- as actas da assembleia geral da E... S.A. e documentos anexos tais como listas de presenças desde 2004 até à presente data (fls. 378 a 399);

- a informação da Sociedade de fls. 377;

- a declaração da filha do Apelante e Apelada relativamente ao recebimento das acções por doação de seus pais fls. 400;

- a declaração da filha do Apelante e Apelada relativamente ao cumprimento das obrigações fiscais no que toca à transmissão das acções e cópia do cheque entregue à sociedade para pagamento da nova entrada para aumento de capital, de fls. 460 e 461;

- a declaração do presidente da mesa da Assembleia Geral da E... S.A. relativamente à participação da accionista F... nas assembleias gerais e ao cumprimentos das obrigações fiscais no que diz respeito à transmissão das acções dos interessados para a sua filha, fls. 462;

- a declaração do Senhor Presidente do Conselho de Administração da E... S.A., relativamente ao cumprimento das obrigações fiscais no que diz respeito à transmissão das acções dos interessados para a sua filha fls. 463;

- a declaração da interessada B... quanto ao cumprimento de obrigações fiscais na transmissão das acções da E... S.A., fls. 465;

- declaração e contrato, datado de 29 de Novembro de 2004, relativo à transmissão das acções detidas pela filha dos interessados para um terceiro, L... , fls. 467 a 472.

6ª - Da conjugação dos depoimentos das testemunhas com a análise da prova testemunhal, o Tribunal analisou criticamente o depoimento das testemunhas e decidiu eliminar da relação de bens a verba n.º 85 (acções)

7ª - Aliás nem se diga como pretende o Apelante na 2ª conclusão que o douto Tribunal recorrido pudesse ter optado por remeter tal questão para os meios comuns nos termos do disposto no artigo 1350º n.º1 do C.P.C.;

Porque no caso concreto, não houve insuficiência de provas nem redução das garantias das partes.

8ª - Também no tocante à verba n.º 4 à mesma matéria foi ouvida a testemunha I...., melhor identificada na acta de 23 de Janeiro de 2012, ouvida no dia 23/01/2012, 14:34:25 a 14:48:47, total 00:14:21, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital, que mereceu a credibilidade do douto Tribunal, depôs com isenção e objectividade.

O seu depoimento mereceu a credibilidade do douto Tribunal.

9ª - Existia abundante prova documental nomeadamente doc. n.º1, que consiste na certidão da acta de audiência de julgamento de 12 de Maio de 2005;

Cópia de cheque de 2006/02/17, pago a 22/02/2006,

10ª - A Apelada beneficia da prescrição presuntiva de cumprimento prevista nos artigos 312º e seguintes e 317º do C.C..

11ª - Bem como é o próprio Cabeça de Casal, ora Apelante, que no seu requerimento de 09-05-2011 junta ainda dois documentos que demonstram precisamente o verificado cumprimento, são eles:

Carta que a ora signatária remete ao mesmo em 07-07-2010, doc. n.º1 e reembolso feito pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça ao Cabeça de Casal em 23/07/2005, doc. n.º2.

Ora, não faria sentido nenhum, a não ter ocorrido o pagamento, o cabeça de Casal só agora em inventário vir exigir o recebimento.

Pelo que a douta sentença recorrida ao ter decidido como decidiu, eliminar da relação de bens a dita verba n.º4, fê-lo porque os concretos meios probatórios, quer prova documental quer testemunhal, impunham essa decisão.

12ª - Pelo que a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo nem quanto à decisão da matéria de facto,

13ª - Nem violou qualquer normativo legal, nomeadamente o artigo 342º do C.C. nem o artigo 414º do C.P.C..

14ª - Devendo a douta sentença recorrida ser confirmada na integra, com as legais consequências.

(…)

Dispensados os vistos cumpre decidir

II – Fundamentação

A) Elementos de facto

Elementos com relevo para a apreciação do recurso:
A) Requerido inventário – por apenso ao processo em que foi decretado o divórcio – foi o aqui requerente/apelante nomeado o cabeça-de-casal, tendo o mesmo junto relação de bens de que se passa a transcrever o seguinte trecho:
“..(…)
Verba n.º4
 - Quantia de € 1.855,00 proveniente de indemnização judicial paga pela agência de viagens “J... ” ao ex-casal, acrescido de valor das custas do tribunal – verba na posse da interessada B...
  (…)
Verba n.º 85
 - Acções da sociedade denominada E..., SA, NIPC (...), sociedade anónima, com sede na (...) Viseu, com o capital social de € 175.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Viseu sob o n.º (...)
(…)”

B) Relação de bens que foi objecto de reclamação, em que, entre outras coisas, se sustentou o seguinte:

“ (…)

4.º A quantia de € 1.855,00 relacionada na verba n.º 4 não pertencia na sua totalidade ao ex-casal, sendo que cabia a cada um 25%, uma vez que para além do cabeça de casal e da requerida, existiam mais dois autores, a saber, F..., na altura solteira e G..., na altura solteiro.

5.º Da quantia efectivamente paga de € 1.854,66 e não € 1.855, serviu para pagar honorários à advogada no montante de € 800,00 + Iva a 21% e despesas no montante de € 462 + Iva a 21%.

6.º Foi restituída às partes/autores no processo, incluindo cabeça de casal, a quantia de € 568,88, sendo que à ora requerida coube a quantia de € 227,54, conforme fotocópia de cheque que se junta e ao cabeça de casal a quantia de € 228,85.

7.º Pelo que ao cabeça de casal apenas lhe cabia a quantia de € 228,85, quantia que lhe foi paga em Fevereiro de 2006.

8.º Há pois uma inexactidão da descrição e montante relacionado.

(…)

27.º As acções relacionadas sob a verba n.º 85 não existem, sendo que os títulos de acções que o ex-casal outrora deteve, na referida empresa, foram oferecidas à filha do ex-casal F... na data em que a mesma casou, em Setembro de 2003.

28.º Pelo que não só não há títulos de acções a partilhar entre o ex-casal, como também o ora requerido não está na posse de quaisquer acções nem é accionista na referida empresa.

C) Reclamação esta que mereceu o seguinte despacho:

“(…)

 - A verba n.º 4 relativa a dinheiro proveniente de indemnização declarada em acção judicial.

Alega a interessada B... que o dinheiro não pertencia na totalidade aos interessados, já que existiam outros dois beneficiários e ainda que o montante da indemnização, após a dedução das despesas com honorários, foi distribuído entre todos.

O que se provou é que a acção foi proposta pelos quatro autores, entre as quais as partes no presente inventário. A acção terminou por transacção, sendo que a segunda ré se obrigou a pagar aos quatro autores a quantia de € 1.855,00. Provou-se, porém, que a quantia recebida, depois de deduzido o montante relativo a despesas e honorários com a mandatária, foi distribuído por todos os autores. O cabeça de casal também recebeu a sua parte através de cheque que lhe foi entregue por intermédio de um cunhado. O cheque foi levantado, embora tardiamente.

Deverá portanto ser eliminada a verba n.º 4.

(…)

 - As acções da sociedade E...S.A. constantes da verba n.º 85.

A interessada B... alega que tais acções foram doadas à filha do casal.

A E...SA é uma sociedade comercial anónima. As participações sociais são tituladas através de acções. As acções podem ser nominativas ou ao portador. As acções em causa são ao portador. As acções ao portador circulam livremente pelo que nem a sociedade, nem os demais accionistas sabem em cada momento quem são os titulares das participações sociais. Os sócios ficam a conhecer quem são os actuais sócios quando ocorrem as Assembleias gerais na medida em que a legitimidade para participar na assembleia depende da qualidade de sócio, que tem que ser demonstrada através da exibição dos títulos que incorporam as acções respectivas.

Ora, o que se prova é que a na primeira Assembleia Geral que teve lugar em 2003 ainda participou a interessada B... na qualidade de accionista. Todavia, na segunda Assembleia Geral que teve lugar em 2003 já foi a filha do casal, F..., que participou na qualidade de accionista e não da de representante de qualquer accionista. Que as acções advieram à sua posse por doação dos pais, também não há dúvidas pois isso foi afirmado pelo próprio cabeça de casal à testemunha C.... A filha F..., por se considerar titular das acções, vendeu-as posteriormente a outro sócio da E...,SA.

Assim, entendemos que a verba n.º 85 deve ser eliminada.

(…)”

D) Seguiram os autos a sua marcha normal, tendo sido elaborado o mapa da partilha e proferida a sentença que o homologou.


*

B – Discussão

A divergência recursiva, como resulta das conclusões do apelante/requerente, diz respeito à decisão, de 22/01/2013, sobre a reclamação da requerida/apelada contra a relação de bens, mais exactamente, diz respeito à parte em que na mesma, deferindo-se a reclamação da requerida/apelada, se manda eliminar da relação de bens as verbas n.º 4 e n.º 85[1]; com a consequente repercussão recursiva sobre a sentença homologatória da partilha, de 10/12/2013, na medida em que, se, como o requerente/apelante pretende, deixarem de ser eliminadas tais verbas, não terão sido partilhados todos os bens pertencentes ao acervo comum do ex-casal.
Questão – decisão sobre reclamações apresentadas contra a relação de bens – em que a regra é a decisão no inventário, isto é, em princípio, o inventário é o lugar próprio para se resolverem todas as questões de direito e de facto de que depende a partilha e só por excepção os interessados são remetidos para os meios comuns.
E, para decidir as reclamações, pode o juiz manda proceder à produção de prova (documental ou de qualquer outra natureza) que for necessária e só no caso de estar perante “questões de facto” que exijam larga alegação, instrução, indagação e transcendência, que exijam prova demorada e vasta, deixa de as resolver no inventário e remete a solução e os interessados para os meios comuns.
Ou seja:
No processo de inventário devem resolver-se todas as questões de facto de que dependa a definição dos bens a partilhar, contanto que elas possam ser resolvidas em face da instrução sumária compatível com a índole do processo (e aqui possam e devam obter solução adequada); as outras, as que exigem uma instrução mais larga, ficam para os meios comuns.
O que quer dizer que as questões de facto que possam ser resolvidas pelo juiz sem necessidade duma articulação detalhada, produção de prova, discussão e julgamento rigorosos, são decididas no processo de inventário; as questões de facto que só possam ser decididas através dos trâmites do processo comum, ficam para os meios comuns.
Empregam-se expressões como “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente” (cfr. art. 1336./2 e 1350.º/1 do VCPC) ou como “apreciação sumária das provas produzidas” (art. 1350.º/3 do VCPC), para significar a simplicidade da prova a produzir, a facilidade da decisão subsequente, a singeleza da questão a apreciar, contrapondo-se assim à de questão de larga indagação a que poria termo decisão fundamentada em provas minuciosas, complicadas e exaustivas.
Enfim, há a preocupação de solucionar no inventário todas as questões que se suscitem, de generalizar a produção de prova, mas também a preocupação decorrente da limitação que resulta de esta poder produzir-se sumariamente, devendo relegar-se os interessados para fora do inventário quando de todo se afigure impossível assegurar-lhes aqui amplos meios de defesa dos seus pontos de vista.
É justamente, este último, o caso da decisão definitiva a proferir sobre a reclamação da requerida a requerer a exclusão da verba n.º 85, ou seja, da decisão definitiva sobre a questão do relacionamento ou não das acções ao portador da E..., SA; decisão/questão esta que exige larga alegação, instrução e indagação que não se compadecem da ligeireza e “facilitação” alegatórias próprias do incidente de reclamação dum inventário.
O que claramente se percebe, explicando-se um pouco o que está ou pode estar em causa quando no processo se fala das “acções” da E....

E começar-se-á por dizer que o vocábulo “acção” é, no direito societário, um conceito polissémico; tanto é usado com o sentido de fracção do capital social, como com o sentido de participação social – de situação jurídica do sócio[2], como com o sentido de objecto de representação da participação social – isto é, é a participação social depois de representada, o documento (em papel ou por registos em conta) onde se incorpora a situação jurídica do sócio – o status de sócio.

Sendo com o 3.º sentido – representação da participação social – que o termo/conceito “acção” é aqui, na questão dos autos, fundamentalmente usado.

Assim:

Quando se celebrou o contrato de sociedade (por quotas) da E..., em 1984, a requerida B... adquiriu a qualidade de sócia da mesma, passando, aquando da transformação da E...em sociedade anónima, a sua participação social, entendida como situação jurídica do sócio, a desdobrar-se em acções (271.º do CSC); tendo a sociedade o dever de emitir, no prazo máximo de 6 meses (304.º/3 CSC e 95.º CVM), os títulos definitivos – a representação da participação social – entregando-os ao primeiro titular (a B...).

Vale isto para afirmar que a requerida B..., ao outorgar o contrato de sociedade (e ao realizar a sua entrada) e a escritura de transformação da mesma, adquiriu a qualidade de sócia da sociedade anónima, o mesmo é dizer, de accionista; que a requerida B... ingressou na qualidade de accionista (com o sentido de participação social) da E..., ficando, em face de tal posição jurídica de accionista, com o direito de exigir a emissão dos títulos correspondentes às acções subscritas[3].

Temos pois que a requerida B... ficou com o direito a que fossem criadas e lhes fossem entregues (304.º/3 do CSC) ou registadas em conta as respectivas acções[4]; ficando a emissão das acções – enquanto forma de representação – concluída com a entrega das acções[5].

Aspectos estes em que a alegação factual das partes/interessados é bastante lacunosa (como é típico do incidente de inventário em que nos encontramos), podendo dizer-se que se sabe, todavia, que as acções terão sido criadas e entregues, tendo a sociedade cumprido a disposição estatutária[6] que estabelece a modalidade de representação – ao portador – e tendo escolhido como forma de representação, na ausência de qualquer disposição estatutária, a forma titulada[7].

Temos pois que as acções da E..., não tendo sido depositadas (nem em sistema centralizado nem em intermediário financeiro) se apresentam como valores mobiliários vivos; podendo circular no plano físico.

Acções que, como valores mobiliários que são – assim expressamente consideradas no art. 1.º quer do actual CVM quer do anterior CMVM – representam num documento uma situação jurídica homogénea (a complexa situação jurídica de sócio) e que se destinam à negociação; assim revestindo características de fungibilidade (que resulta do valor mobiliário representar situações jurídicas homogéneas), negociabilidade (que advém da vocação circulatória do valor mobiliário), incorporação (que resulta da sua função legitimadora e representativa) e de causalidade (que resulta do facto do valor mobiliário ter sempre uma causa como posição jurídica subjacente) [8]

Não sendo despiciendo aqui lembrar que as acções são títulos programados para “circular em massa”, pelo que não pode surpreender que a lei da circulação privilegie a segurança do tráfico jurídico em detrimento da certeza do direito[9].

É pois com tal enfoque – perante valores mobiliários puros, sujeitos à aplicação do regime dos valores mobiliários – que as virtualidades das posições processuais de requerente e requerida têm que ser pensadas, alegadas e perspectivadas.

Desde logo, as acções ao portador são sempre livremente transmissíveis.[10]

E o que é que se transmite quando se transmitem acções tituladas?

Transmite-se – no plano subjacente, onde se situa o facto substantivo capaz de fazer operar a transmissão – a titularidade das acções; e entrega-se – no plano representativo onde se insere o facto formal/cartular capaz de transferir para outra pessoa o título de legitimação – o título em papel.

Na base e origem do circuito/transmissão, há um acordo de transmissão, geralmente designado pela expressão de contrato de negociação que constitui a justa causa tradicionis e tem precisamente por objecto a transmissão da propriedade do título segundo normas análogas às da transferência das coisas móveis e, com ela, da titularidade do direito nele incorporado.

Diz-se no art. 101.º/1 CVM – como é regra geral dos títulos ao portador – que as acções ao portador tituladas circulam através da traditio

Porém, a traditio não produz qualquer efeito substantivo na sucessão do direito incorporado, apenas legitimando o transmissário para exercer os direitos inerentes e para dispor do título pela lei da circulação.

A transmissão da titularidade das acções ocorre com o negócio subjacente, de acordo com as regras de direito civil (art. 408.º do CC), produzindo efeitos entre as partes, mas a sua oponibilidade à sociedade e a legitimação para efeitos de exercício dos direitos inerentes fica dependente da lei da circulação, in casu, da entrega das acções.

Podem pois surgir aqui – nas acções tituladas ao portador – conflitos entre a titularidade e a legitimação.

Se tiver sido celebrado negócio jurídico com efeitos translativos da titularidade das acções, o adquirente de tais acções não poderá exercer os direitos inerentes enquanto não tiver as acções em seu poder (ou registadas no depositário em seu nome), mas o transmitente, apesar de já não ser titular, continuará legitimado para exercer esses direitos.

Por outro lado, sem ter sido celebrado qualquer negócio jurídico com efeitos translativos da titularidade das acções, podem as acções/títulos ter circulado através da traditio (v. g., podem até ter sido furtadas ou “achadas”) e o transmissário/portador, apesar de não ser o titular da participação social, está legitimado a exercer os direitos inerentes e para dispor do título pela lei da circulação (poderá, designadamente, dar ou vender as mesmas acções/títulos e entregá-las a um terceiro, que ficará assim legitimado para exercer os direitos inerentes).

Surge, então, o conflito que os autos exprimem a propósito da participação social (ou não) da requerida B... na E...; participação accionista que a mesma reconhece ter sido da sua titularidade até Setembro de 2003 (e de que estava legitimada pela posse dos títulos), sendo a partir de tal data (e até 9/03/2005[11]) que toda a questão se coloca.

Surge, então, o conflito entre os primeiros adquirentes (do que o requerente também se arroga, uma vez que casou em comunhão de adquiridos com a requerida B... em 02/09/1973 e a sociedade se constitui em 1984) e os segundos e legitimados transmissários (a filha do casal, F..., e a partir de Novembro de 2004 – cfr. declaração de transmissão de fls. 469/70 - o L...).

E é justamente aqui – revertendo directamente à hipótese dos autos – que a invocada doação (enquanto negócio apto a transmitir a propriedade das acções e a titularidade dos direitos nelas incorporados) da participação accionista, em Setembro de 2003, para a filha F... tem toda a relevância.

Não contendo nem o CVM nem o CSC[12] quaisquer preceitos sobre o regime substantivo da transmissão de valores mobiliários, o regime substantivo de tal transmissão (de valores mobiliários) terá de ser encontrado no C. Civil e no C. Comercial, não podendo deixar de aplicar-se o princípio consensualista, consignado no art. 408.º/1 CC (salvo as excepções previstas na lei), da transferência da titularidade por força do contrato.

Ou seja, tendo efectivamente ocorrido a invocada doação, o acordo/negócio de transmissão das acções teria eficácia real se feito por escrito, isto é, a constituição ou transferência dos direitos reais sobre coisa determinada (no caso, as então 6.000 acções tituladas ao portador) dar-se-ia, em tal hipótese, por mero efeito do contrato; não tendo sido a doação feita por escrito – como reconhecidamente é o caso – a transmissão da propriedade das acções dependia e deve ser acompanhada da tradição/entrega da coisa doada (art. 947.º/2 CC), isto é, da entrega dos títulos ao portador.

Assim sendo, se tiver efectivamente ocorrido a invocada doação, uma vez que os títulos foram entregues à filha F..., esta terá adquirido a propriedade das 6.000 acções (e a titularidade dos direitos incorporados), pelo que estaria substantivamente legitimada para o posterior negócio de transmissão ao L..., uma vez que os pais (os aqui requerente e requeridos) tinham deixados se ser donos das mesmas; sendo, em consequência, a aquisição do L... uma aquisição a domino.

Por outro lado, se não tiver efectivamente ocorrido a invocada doação, a filha F..., não obstante os títulos terem-lhe sido entregues, não teria adquirido a propriedade das 6.000 acções, pelo que não estaria substantivamente legitimada para um posterior negócio de transmissão, sendo, em consequência, a aquisição do L... uma aquisição a non domino; sem prejuízo de, claro está – tendo sido praticados factos formais (entrega dos títulos) aptos a transferir a legitimação quer da F... quer do L... para o exercício dos direitos inerentes – eles, enquanto portadores das acções, beneficiarem duma presunção de existência e titularidade do direito, ou seja, só alegando-se e provando-se a falta ou os vícios do negócio subjacente de transmissão dos títulos/acções para a filha F... e que o L... adquiriu as acções de má fé – isto é, que conhecia os vícios da situação subjacente entre a filha F... e os pais e que assim a falta de legitimidade substantiva desta F... lhe é oponível (cfr. art. 58.º/1 CVM) – a pretensão do requerente/apelante poderá ter sucesso.

Enfim, sintetizando:

Acaba por ser o apelante/requerente que tem que demonstrar a falta ou os vícios/invalidades do negócio subjacente, como relação fundamental da circulação de acções, susceptíveis de afectar a posição do portador das acções (da filha F... e do L...); assim como, naturalmente, a má fé do portador L....

A situação jurídica resultante da transmissão de acções – para mais, no caso “valores mobiliários puros” – é segundo a lei da circulação tendencialmente abstracta[13]; e “o terceiro só sofrerá influência dos negócios subjacentes em que não participou ou das vicissitudes da posição jurídica do seu antecessor, nos casos em que esteja de má-fé, não havendo por isso confiança a tutelar.[14]

Concretizando:

No momento estático em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (9/03/2005) – e em que estes recebem a meação no património comum (art. 1689.º/1 do C. Civil) – já as acções/títulos da E...tinham circulado para o poder do portador L..., pelo este beneficia de uma presunção de existência e titularidade do direito, sendo o apelante/requerente, pretendendo opor a falta ou vícios/invalidades dos negócios subjacentes à transmissão de tais acções até ao L..., que cabe fazer a alegação e prova da falta ou invalidade de tais transmissões.

Tal alegação e prova não foi nem está minimamente feita pelo que, evidentemente, a participação accionista na E...não pode ser incluída na relação de bens (como fazendo parte do património comum no momento estático-9/03/2005-em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges).
Todavia – é o nosso ponto de divergência com a decisão a quo, quanto às acções na E...– tal decisão de “exclusão de bens”, em face da complexidade da questão, da larga alegação e transcendência, que exige prova demorada e vasta, não pode assim e aqui ficar definitivamente resolvida.
Como cuidamos que resulta à saciedade da exposição antes feita – foi esse o nosso objectivo – a definição da validade ou não dos negócios subjacentes à transmissão da propriedade das acções não pode ser resolvida a partir das breves alegações constantes das alíneas A) e B) dos elementos de facto deste acórdão; a definição da validade ou não de tais negócios coloca questões de facto e de direito cuja resolução não prescinde duma articulação detalhada, duma produção de prova minuciosa e duma discussão e julgamento rigorosos.
O presente incidente de inventário não assegura às partes/interessados, na questão em apreço, amplos meios de defesa dos seus pontos de vista[15].
Independentemente de se saber/dizer/apurar o que aqui se provou ou não sobre a doação das acções à filha F..., o que ressalta é que tudo foi dito e alegado de modo muito ligeiro e incompatível com uma decisão definitiva sobre a questão.
E só havendo uma prova segura sobre tal doação a questão poderia ficar aqui definitivamente decidida (em termos de fazer caso julgado material entre as partes); o que, com o devido respeito, não é o caso.
A testemunha C... alude, é certo, a tal doação, mas fá-lo globalmente de modo hesitante e algo insuficiente; parece, por vezes (assim como as outras testemunhas que aludiram ao assunto), que está a fazer uma inversão (compreensível) no seu raciocínio de facto e que se limita a retirar a ilação de que houve doação porque a filha se apresentou na Assembleia Geral da E...de Março de 2004 como portadora das acções (quando o que se pretende saber é o que real e efectivamente aconteceu ou não, em termos subjacentes, entre os pais e a filha).
Ademais, nenhuma prova relevante a favor da doação foi produzida; nada acrescentado a circunstância das acções terem circulado para a posse da filha F... e para a posse do L...[16].
Por outro lado – a instalar a dúvida sobre a doação (do doador apelante/requerente) – ocorrem circunstâncias como o não cumprimento das obrigações declarativas fiscais[17], a inexistência duma qualquer declaração unilateral de doação[18], a quase imediata venda da participação accionista ao L... (ao arrepio das razões invocadas como tendo presidido à doação das acções à filha F...) e o facto da requerida/apelada B... continuar no Conselho de Administração da E...(como quando, fora de toda a dúvida, era accionista com um 1/5 do seu capital social).

E se a prova positiva da doação é/foi insuficiente, outrotanto deve ser dito sobre a prova negativa da mesma ou, mais exactamente, sobre a prova da falta ou dos vícios/invalidades dos negócios subjacentes e da má fé do portador L...; aliás, como já se deixou a entender, o apelante/requerente não perspectivou e alegou sequer a questão de tal modo.

E, salvo o devido respeito, terá que ser deste modo, no meio comum próprio e competente, contra todos os interlocutores/interessados (das relações jurídicas controvertidas), que o aqui apelante /requerente terá que colocar a questão, tendo em vista lograr demonstrar que a participação accionista na E...fazia parte do património comum quando, em 09/03/2005, cessaram as relações patrimoniais com a requerida/apelada B....
Concluindo pois – entendendo ser insuficiente a prova da doação à filha, prova positiva que, todavia, não é/será sequer necessária, mas também e acima de tudo entendendo que este incidente não é o meio próprio para decidir a questão e para formar o caso julgado material que há-de ficar a vincular as partes – procede parcialmente o recurso interposto da decisão, de 22/01/2013, respeitante à eliminação da relação de bens da verba n.º 85; isto é, mantém-se a eliminação/exclusão da relação de bens, porém, provisoriamente, “com ressalva do direito às acções competentes, nos termos previstos no n.º 2 do art. 1336.º”.

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Bem mais simples é a questão respeitante à verba n.º 4:

Está documentalmente provado – não se discute – que a M.... SA se obrigou a pagar aos 4 AA. da acção (identificada nos autos – fls. 33) € 1.855,00; e também não é colocado em causa o oportuno pagamento de tal verba à mandatária dos 4 AA.; razão pela qual, em face do regime regra da conjunção (cfr. 513.º do C. Civil), se considera à partida como património comum (sendo requerente e requerida 2 dos 4 referidos AA.) metade da verba recebida pela mandatária, isto é, € 927,50[19].

E nada foi provado no sentido de infirmar a referida regra da conjunção; segundo a qual a cada um dos credores compete apenas, mesmo nas relações externas, uma fracção do crédito comum.

Assim como não foi feita prova suficiente, a nosso ver, da “partilha parcial” dos € 927,50 de requerente e requerida.

A testemunha I..., é certo, confirmou oralmente a versão da requerida, da “distribuição” e “partilha” da quantia indemnizatória recebida da M... SA, porém, não trouxe consigo – sendo funcionária da mandatária da tal acção – nem foi junto pela requerida qualquer documento das despesas e honorários com a mandatária e ou da emissão e/ou recebimento dum qualquer cheque da “parte” e por parte do aqui requerente cabeça de casal.

Por conseguinte, tais € 927,50 continuam a ter a potencialidade de fazer parte e entrar no património comum[20]; outra coisa, diversa, é saber onde os mesmos se encontram (em poder da interessada B... ou ainda em poder da mandatária) e as “contas” que hajam que ser prestadas e liquidadas à mandatária.

Em relação a tal questão, do que se provou, apenas € 227,54 (cheque de fls. 88) de tal referido montante de € 927,50 estão fora de toda e qualquer dúvida em poder da interessada B..., pelo que apenas este montante deve ser relacionado; quanto à parte restante, será/constituirá ou não, conforme o saldo das contas com a mandatária, um crédito ou não de ambos sobre a mandatária (art. 1161.º/c) do C. Civil).
Concluindo pois, procede parcialmente o recurso interposto da decisão, de 22/01/2013, respeitante à eliminação da relação de bens da verba n.º 4; isto é, mantém-se o relacionamento, mas apenas pelo montante de € 227,54, com a consequente repercussão recursiva sobre a sentença homologatória da partilha, de 10/12/2013, na medida em que deve ser elaborado/rectificado o mapa por forma a que partilhe também tal verba n.º 4.


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III – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, quanto à decisão de 22/01/2013, confirma-se, mas apenas provisoriamente (cfr. 1350.º/3 do VCPC, “com ressalva do direito às acções competentes, nos termos previstos no n.º 2 do art. 1336.º”), a eliminação da relação de bens da verba n.º 85; e revoga-se a eliminação da relação de bens verba n.º 4, que se substitui por decisão a “relacionar” sob a verba n.º 4 a quantia de € 227,54 (verba na posse da interessada B...); anulando-se, em consequência, a sentença homologatória da partilha, de 10/12/2013, ordenando-se que, após elaboração/rectificação do mapa por forma a que partilhe também tal verba n.º 4 (e demais tramitação julgada atinente), se profira nova sentença homologatória da partilha.

Custas, nesta instância, em partes iguais.


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Coimbra, 03/06/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Daí que, quanto aos elementos relevantes para a compreensão e decisão do recurso, nos tenhamos limitado a extractar o que foi alegado e decido sobre tais verbas n.º 4 e n.º 85.

[2] De posição jurídica do sócio para com a sociedade, posição que integra um complexo de direitos e obrigações de diversa natureza; que representa uma situação jurídica complexa.

[3] Processo de representação das acções que se inicia com o negócio de subscrição das acções; negócio este que, tendo os 5 sócios procedido à transformação da E...perdeu autonomia e se confundiu com a própria transformação sociedade.

[4] Direito este inderrogável pelos estatutos, dado que a circulabilidade das acções é uma característica essencial das sociedades anónimas.

[5] Que pressupõe um contrato de entrega – implicitamente contido no negócio de subscrição – porque a documentação da participação faz com que sejam aplicáveis normas diferentes quanto à circulação; estando a emissão das acções sujeita a registo junto da sociedade emitente (actualmente, art. 43.º/1 da CVM).
[6] Mais exactamente, a alteração parcial do contrato registada em 17/10/2000, segundo o qual a modalidade de representação – até ali nominativa – passou ao portador.

[7] Ou seja, não se estando perante um daqueles casos em que a lei – actualmente, art. 99.º/2, CVM – impõe uma determinada forma de organização, a sociedade terá entregue títulos, em papel, representativos das respectivas participações sociais (uma vez que a lei não impunha o seu depósito).
[8] Cfr. Paulo Câmara, Direitos dos Valores Mobiliários, pág. 10.
[9] Como refere João Labareda – in “das acções”, pag. 228 – “a transmissibilidade das acções é essencial à satisfação da função social típica que a sociedade anónima e as acções satisfazem”; porquanto, na perspectiva do accionista, a acção, muito mais do uma participação societária, é um título de investimento pronto a ser transformado em numerário se o titular o pretender”.

[10] Nas sociedades anónimas, há situações em que podem ser estabelecidas limitações à transmissão (328.º/1 e 2 CSC); não é, porém, o caso das acções ao portador.
[11] Data em que, na ausência da data separação de facto na sentença de divórcio, os efeitos deste, quanto às relações patrimoniais, se retrotraem (cfr- 1789.º/1 do C. C.)
[12] Cuja subsecção sobre as formas de transmissão das acções foi revogada pelo CVM.

[13] Estabelece a lei da circulação das acções um regime com um elevado grau de abstracção quanto à sua transmissão e tendo sido praticados os factos formais aptos a transferir a legitimação para o exercício dos direitos inerentes – com a entrega dos títulos – beneficia o portador das mesmas de uma presunção de existência e titularidade do direito.
[14] Claúdia Pereira de Almeida, in “relevância da causa”, pag. 139.
[15] O confronto entre o que vimos de dizer e o raciocínio constante da conclusão 1.ª do apelante é disto – do presente incidente não assegurar os amplos meios de defesa – elucidativo; diz-se na conclusão 1.ª que é ao interessado reclamante que compete a prova da não existência dos bens, porém, em face da referida presunção de existência e titularidade do direito, pode/deve dizer-se que tal prova está feita, sendo depois ao cabeça de casal, numa “excepção à excepção”, que compete alegar e provar a falta ou invalidade dos negócios subjacentes às transmissões. Enfim – é patente – complexidade a mais para o modo de alegar e decidir num incidente de inventário.
[16] Tal circulação é o próprio pressuposto da questão e da discussão e não um elemento que ajude na sua solução.
[17] Mais exactamente, o art. 138.º/1 do CIRS que impõe a obrigação de declarar a transmissão à administração fiscal; até para que, à época e agora (em que já não há a isenção para a detenção há mais de 1 ano), a administração fiscal possa depois fiscalizar a declaração das mais valias.

[18] Como a, junta a fls. 469/70, que a F... fez em relação ao L...; Declaração unilateral que não é o negócio de doação (nem se confunde com ele) e que apenas visa provar a verificação dum dos efeitos do negócio; declaração normalmente usada, como a de fls. 468/79, e na qual o alienante declara ter disposto (no caso, “vendido”) daquelas acções a favor do adquirente, mas em que não tem de especificar de que tipo de negócio deriva aquela transferência de titularidade.
[19] Embora a transacção, na acção, seja de 12/05/2005, o litígio vinha pelo menos (ano do processo) do ano de 2001, pelo que existe presunção de comunicabilidade.

[20] Sobre esta questão, diz a apelada, na conclusão 10.ª, algo – que “beneficia da prescrição presuntiva de cumprimento prevista nos artigos 312º e seguintes e 317º do C.C. – que não conseguimos sequer compreender. Em 1.º lugar, uma contra alegação recursiva não é o momento próprio (em função do princípio da eventualidade) para se invocar uma prescrição, seja ela qual for; em 2.º lugar, prescrição presuntiva do art. 317.º do C. Civil porquê? Não percebemos; nem a apelada presta serviços de advocacia, nem sequer uma quantia indemnizatória recebida por um mandatário em representação dos mandantes entra no art. 317.º do C. Civil (o que está no art. 317.º é o crédito pelos serviços do mandatário, o que pode ser alvo da invocação da prescrição presuntiva são os montantes que a apelada diz terem sido descontados à quantia indemnizatória, ou seja, o art. 317.º poderá ser usado, quando muito, para visar exactamente o contrário do aqui pretendido).