Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84/14.4TBACB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
ÓNUS DOS CREDORES RECLAMANTES
CRÉDITOS SUBORDINADOS
ENCERRAMENTO
PROCESSO
PODERES DO JUIZ
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – 2ª SEC. COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-A, NºS 1, 1ª PARTE, E 2, 17º-C, Nº 1, 17º-D, NºS 3 E 4, 17º-F, Nº 5, 17º-G, 47º, 48º, CORPO, 2ª PARTE, E 177º, Nº 1 DO CIRE; 334º C.CIVIL.
Sumário: a) É o credor reclamante que está vinculado ao ónus de provar o facto constitutivo – e, se for esse também o caso, transmissivo - do crédito reclamado, mas não os factos que importam a sua subordinação, cuja prova, por se resolverem em factos modificativos do crédito alegado – e, portanto, numa excepção peremptória - onera a parte a quem aproveita essa subordinação.
b) Entende-se por administrador de facto a pessoa que age, directa ou indirectamente, de forma autónoma – não subordinada - como administrador de direito – mas sem possuir essa qualidade funcional.

c) Os requisitos da subordinação de créditos assente numa relação especial com o devedor são cumulativos: o crédito deve ser detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor, no contexto dessa vinculação especial, nos dois anos anteriores ao da proposição da acção de insolvência.

d) O momento que releva para qualificação como subordinado do crédito é o da sua constituição e não o momento da sua cessão, dado que o novo credor adquire o crédito com as exactas qualidades que ele patenteava no momento da transmissão.

e) A competência para a declaração do encerramento do processo especial de recuperação, cabe ao juiz da insolvência, sendo da competência do administrador judicial provisório apenas a declaração do encerramento do processo negocial.

f) A violação, pelo juiz da insolvência da competência funcional do administrador judicial provisório dá lugar a uma simples nulidade processual, inominada ou secundária – e não a uma nulidade da sentença – que, se não for tempestivamente arguida, se sana.

g) O processo negocial deve também ter-se por encerrado quando a declaração da impossibilidade da aprovação do plano de recuperação proceda de uma minoria de bloqueio, i.e., proceda de credores com os votos suficientes para impedir a obtenção de um qualquer dos quóruns exigidos para a aprovação daquele plano.

h) Quando o juiz da insolvência computa, para achar uma certa maioria de votos, os créditos de um determinado credor, deve presumir-se que ao ponderar, nesse cálculo, esses créditos, considerou que aquele credor era titular dos direitos de voto correspondentes.

i) O oferecimento, no procedimento da reclamação de créditos, da prova documental, obedece às regras gerais, pelo que se esta prova não for produzida logo com o requerimento da reclamação não fica irremediavelmente precludida a faculdade do seu oferecimento em momento posterior, sem prejuízo da eventual sujeição do credor reclamante a pena processual de multa.

j) Se a notificação da cessão do crédito proceder do cedente, a denuntiatio consistirá numa pura e simples comunicação de um facto jurídico – a transferência daquele direito a um sujeito terceiro - pelo que, ao contrário do que sucede – segundo certo entendimento do problema - quando a notificação seja promovida pelo cessionário, quanto realizada pelo cedente, a comunicação não tem que ser acompanhada de elementos que constituam provas seguras da cessão – v.g., do chamando documento da cessão ou do próprio contrato que gerou a cessão do direito.

l) A notificação da cessão ao devedor feita pelo cedente, vale, além do mais, como indicação, por parte do último, para realizar a prestação ao cessionário, que se deve manter em caso de falta, invalidade ou ineficácia de cessão, dado que contém igualmente um consentimento de cumprimento liberatório ao cessionário no caso de ele vir a ser, ou vir a ser mais tarde, um terceiro.

m) Age com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o devedor que impugna, com fundamento na sua inexistência, um crédito detido por quem, na petição inicial do procedimento de recuperação, indicou como seu credor e com o qual se propôs encetar negociações com vista à sua revitalização.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

B..., SA, promoveu, na Secção de Comércio de Alcobaça, da Comarca de Leiria - por requerimento apresentado por via electrónica no dia 22 de Setembro de 2014 - processo especial de revitalização com a finalidade de estabelecer negociações com os seus credores e concluir, com estes, um acordo conducente à sua revitalização.

O requerente indicou, na relação dos credores, o Fundo de R..., como detentor de um crédito subordinado vencido, no valor de € 41.350.931,56, Fundo que havia proposto, por requerimento apresentado por via electrónica no dia 5 de Setembro de 2014, contra a requerente, acção especial de insolvência, pedindo se declarasse se declarasse a insolvência da última.

Por despacho de 2 de Outubro de 2014, O Sr. Juiz de Direito nomeou – sob indicação da devedora - o Dr. ... como administrador judicial provisório.

O Fundo de Capital de Risco A... reclamou, por requerimento de 20 de Novembro de 2014, o reconhecimento de um crédito no valor global de € 42.866.643,12, correspondendo € 32.249.328,91 a créditos garantidos e € 617.314,21 a créditos comuns.

Fundamentou a reclamação no facto de ter adquirido tais créditos, por cessão, no dia 20 de Junho de 2014, à C... – com quem a devedora celebrou, nos dias 10 de Setembro de 2008 e 1 de Agosto de 2007 um contrato de abertura de crédito e um contrato de mútuo com hipoteca – no dia 20 de Junho de 2014 à P ... SA, cessionária do Banco P... – com quem a devedora celebrou no dia 27 de Março de 2009 um contrato de mútuo com a hipoteca, – e, no dia 21 de Junho de 2014, ao Banco E..., SA – com quem a devedora celebrou no dia 27 de Junho de 2007 um contrato de mútuo com hipoteca e mandato e nos dias 11 de Junho de 2008, 5 de Maio de 2010 e 23 de Abril de 2012 três contratos de financiamento com hipoteca, no dia 8 de Junho de 2011, 15 contratos de locação financeira imobiliária garantidos por hipoteca, e no dia 17 de Maio de 2011, 19 contratos de locação financeira mobiliária não garantidos por hipoteca, tendo ainda celebrado, no dia 4 de Maio de 2007, com B..., SA, substituída, por último, pelo Banco M..., um contrato de locação financeira imobiliária de imóvel a construir, e no dia 20 de Agosto de 2007, 19 contratos de locação financeira imobiliária,

 Na lista provisória de créditos, apresentada no dia 12 de Novembro de 2014, o Sr. Administrador reconheceu o crédito do Fundo A..., como subordinado, do Banco B..., SA como garantido, da Massa Insolvente do H..., SA como subordinado, do Banco M..., SA em parte como comum e em parte como crédito sob condição, e de C... como garantido, nos valores de € 42.866.643,12, € 2.325.031,59, € 510.768,91, € 2.008,91 e 9.492.842,99 e € 405.000,00, respectivamente.

A devedora, B..., SA, impugnou a lista provisória de créditos, no tocante ao crédito reclamado pelo Fundo A..., pedindo a sua expurgação ou, caso assim se não entendesse, a manutenção da sua classificação como subordinado.

Alegou, como fundamento da impugnação, que o Fundo A... se arrogava a qualidade de seu credor sustentado em escrituras de cessão de créditos, mas que a eficácia do negócio se encontrava dependente da verificação cumulativa de duas condições – a celebração entre as respectivas partes de todos e cada dos contratos anexos à escritura; a subscrição de unidade de participação no Fundo no montante global mínimo de € 300.000.000,00 - que nunca foi, cabal e formalmente, notificada da referida cessão, que lhe não é oponível sem que lhe seja formalmente notificado, além do acto de cessão, o cumprimento das condições suspensivas e toda a documentação de suporte que constitua prova de tal verificação, que deveria ter sido junto logo com a reclamação de créditos, e que desconhece se foram celebrados aqueles contratos e se houve aquela subscrição, pelo que o crédito não existirá, sequer, na esfera do Fundo ou, caso assim se não entenda, deverá o crédito deste ser classificado como subordinado.

O impugnante instruiu a impugnação com uma carta, dirigida ao administrador judicial provisório, datada de 30 de Outubro de 2014, no qual alega afirma, designadamente que a O..., SA, gestora do Fundo de R... – com quem celebrou em 4 de Abril de 2013 um Head of Terms – Acquisition of majority stake in B… SGPS and Shareholders Agreement - passou a ser administradora de facto da revitalizanda.

O Fundo de Capital Risco A..., por requerimento apresentado por via electrónica no dia 20 de Novembro de 2014, impugnou igualmente, a lista provisória de créditos, no tocante à classificação dos seus créditos como subordinados, pedindo que fossem qualificados, tal como foram reclamados - € 42.249.328,91 como créditos garantidos e € 617.314,21 como comuns.

Alegou, como fundamento da impugnação, designadamente, que nem o administrador nem a devedora indicam um único caso concreto, em que terá existido uma actuação sua enquanto administrador de facto, nem identificados quaisquer casos em que tenham sido dadas instruções ou ordens vinculativas acatadas pela devedora, que não tem que o ónus de provar que os factos que integram a previsão do artº 48 a), e do artº 49 do CIRE não se verificam no caso concreto, que a O... nunca interferiu na administração da devedora e que os seus créditos emergem de contratos de financiamento celebrados pela devedora com instituições bancárias, muito antes de a O... ter entabulado negociações com vista à aquisição de uma participação na sociedade-mãe da devedora, sendo alheios à putativa relação especial que pudesse ter sido estabelecida entre aquela e O...

O Fundo A... – por requerimento apresentado por via electrónica no dia 1 de Dezembro de 2014 – pediu a junção de cópia integral da sua reclamação de créditos e dos documentos anexos, dos boletins de subscrição de unidades de participação, das escrituras de cessão de créditos celebradas no dia 26 de Junho de 2014 com o Banco C..., com o Banco P... e a C..., das declarações emitidas pelo Banco M..., pela P ... SA, pelo M..., em 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 2014, reconhecendo a existência e a eficácia da cessão de créditos a seu favor, e das notificações da cessão de créditos enviadas à devedora revitalizanda, pela P ... SA, pelo M... e pelo Banco E..., SA nos dias 30 de Junho, 2 e 10 de Julho de 2014, respectivamente.

Por requerimento de 28 de Novembro de 2014, o Fundo A..., o Banco B..., o Banco M... e a Massa Insolvente do H..., e por requerimento de 10 de Dezembro do mesmo ano, C..., solicitaram ao Sr. Administrador Judicial Provisório, que procedesse ao encerramento do processo, por não ser possível alcançar qualquer acordo.

Face ao silêncio do Sr. Administrador, aqueles mesmos credores – com excepção de C... - por requerimento, apresentado por via electrónica no dia 16 de Dezembro de 2014, requereram ao Sr. Juiz de Direito que ao abrigo do disposto no artº 17º-G do CIRE, ordenasse o imediato encerramento do processo especial de revitalização.

O Sr. Juiz de Direito proferiu, no dia 17 de Dezembro de 2014, esta decisão, notificada às partes no dia 18 de Dezembro de 2014:

(…) Relativamente à questão submetida a apreciação deste Tribunal (encerramento imediato do processo), importa apenas tomar posição quanto à impugnação apresentada pela Requerente “B..., S.A.” quanto aos credores Fundo de Capital de Risco A... e Massa Insolvente do H..., S.A. (…).

- Do crédito do Fundo de Capital de Risco A...

Desde logo, não podemos deixar de assinalar que a reclamante “B..., S.A.” em sede de requerimento inicial reconheceu o Fundo de Capital de Risco A... como credor, vindo agora, em sede de impugnação alegar que não deverá sequer ser reconhecido como credor.

Tal posição processual não deixa de nos reconduzir à figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Por seu turno, tendo em conta a forma como foi relacionado pela devedora tal crédito, a posição assumida pelo Sr. Administrador ao integrar o crédito na lista provisória, conjugados com os documentos juntos pelo credor Fundo A... (designadamente escrituras de cessão de créditos), entendemos ser possível sustentar a existência dos respetivos créditos, não tendo os factos alegados pela devedora “B..., S.A.” em sede de impugnação tornado duvidosa a convicção assente nos mesmos.

Por conseguinte, deve manter-se o crédito em apreço nos termos em que foi reconhecido na lista apresentada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório.

Quanto à natureza garantida ou subordinada do crédito em questão, em face dos elementos constantes dos autos, designadamente a documentação junta pelo Fundo de Capital de Risco A..., existe toda a probabilidade de tal crédito não assumir natureza subordinada.

Termos em que se decide pela improcedência da impugnação apresentada.

- Do crédito Massa Insolvente do H..., S.A.

Relativamente a este crédito invoca o impugnante resultar claro da análise dos exercícios contabilísticos da revitalizanda não ser este o valor do crédito, mas antes ser apenas de € 336.890,16.

Porém, da documentação junta pela devedora se retira com clareza que o crédito ascenda apenas ao valor de € 336.890,16, como invoca.

Para além dos exercícios contabilísticos da revitalizanda, não foi apresentada qualquer outra documentação que sustente tal posição.

À impugnante incumbe o ónus da prova.

Como tal, o Tribunal apenas se poderá ater à lista provisória apresentada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório.

Consequentemente, também quanto a este crédito, julga-se improcedente a impugnação apresentada.

II – Do encerramento do processo.

Nos termos do disposto no artigo 17.ºG, n.º1, do CIRE, “caso o devedor ou a maioria dos credores prevista no n.º3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo (…), o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível, por meio electrónicos e publicá-lo no Portal Citius”.

No caso em apreciação, os credores requerentes (Fundo A..., Banco B..., Banco M..., Massa Insolvente do H... e C...) reúnem créditos que correspondem a mais de 2/3 da totalidade dos créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório na lista apresentada.

No caso em apreço está assim verificada a maioria a que alude o artigo 17.ºF, n.º3, do CIRE.

Em face do exposto, deve considerar-se legalmente encerrado o processo negocial, mercê do disposto no artigo 17.º-G/1 do CIRE.

O final do processo de negociações, que nestes termos se verifica, conduz inexoravelmente ao encerramento do processo especial de revitalização.

Ora, como é evidente, estas circunstâncias tornam inútil a apreciação das restantes impugnações apresentadas.

Decisão.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:

1.         Não tomar conhecimento, por inutilidade, das demais impugnações apresentadas.

2.         Declarar encerrado o processo de revitalização, sem aprovação de plano de recuperação.

3.         Nos termos do disposto no art. 17º-G nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com as devidas adaptações, aplicável ex vi art. 17º-I nº5, ordenar a notificação do Sr. Administrador para, em 10 dias, e após ouvir os devedores e os credores, vir emitir o seu parecer sobre se a devedora se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a respectiva declaração (…).

É, justamente, esta decisão que a devedora – por requerimento apresentado por via electrónica no dia 2 de Janeiro de 2015 - impugna através do recurso ordinário de apelação – no qual pede a revogação da decisão de “não tomar conhecimento, por inutilidade, da totalidade das impugnações à Lista Provisória de Créditos, da decisão que determinou a improcedência da Impugnação apresentada pela Recorrente e substituindo-a por outra que determine a sua procedência, da decisão que determinou “declarar encerrado o processo de revitalização, sem aprovação de plano de recuperação; e nos termos do disposto no art. 17º-G nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com as devidas adaptações, aplicável ex vi art. 17º-I nº5, ordenar a notificação do Sr. Administrador para, em 10 dias, e após ouvir os devedores e os credores, vir emitir o seu parecer sobre se a devedora se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a respetiva declaração” tendo rematado a sua alegação – decerto no convencimento de que concluir muito é concluir bem - com esta constelação de conclusões:

...

Apenas os credores Fundo de Capital de Risco A... e Massa Insolvente do H..., SA, responderam ao recurso.

O primeiro, depois de observar, entre outras coisas, que em momento algum o recorrente colocou em causa o segmento decisório que concluiu pela natureza não subordinada dos créditos do Fundo recorrido, razão pela qual esta questão se encontra excluída do objecto do presente recurso, tendo a decisão proferida a esse respeito transitado em julgado e de salientar a impossibilidade legal do processo especial de revitalização, por a recorrente não se encontrar numa situação de insolvência eminente e muito menos numa situação económica difícil, encontrando-se, isso sim, numa situação de insolvência actual, pelo que, qualquer que venha a ser a decisão proferida no recurso, o sentido da decisão recorrida não poderá ser alterado, ou que redunda na inutilidade da presente instância recursória – concluiu pela improcedência do recurso; o segundo, depois de obtemperar, nomeadamente, que apenas o Fundo A... teria legitimidade para arguir a nulidade da sentença na parte em que se não pronunciou sobre a natureza do crédito daquele, concluiu, igualmente pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação, tanto expressa como tacitamente (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do nCPC).

É, portanto, claro que o recurso ordinário não pode incidir sobre matéria sobre a qual se formou caso julgado.

A decisão impugnada no recurso estatuiu sobre uma multiplicidade de objectos, entre os quais se conta o problema do carácter subordinado do crédito do apelado, Fundo Aquarius, tendo concluído que quanto à natureza garantida ou subordinada do crédito em questão, em face dos elementos constantes dos autos, designadamente a documentação junta pelo Fundo de Capital de Risco A..., existe toda a probabilidade de tal crédito não assumir natureza subordinada.

Segundo o apelado, Fundo A..., a sentença, neste segmento decisório, passou em julgado, já que, no seu ver, em momento algum do recurso, o recorrente o colocou em causa.

E, realmente, lidas e relidas a alegação do recorrente e as conclusões com que era suposto condensá-las, constata-se que se são pródigas na indicação das razões pelas quais a improcedência da impugnação que deduziu contra o reconhecimento do crédito do Fundo A... – que, na sua essência, gravitam em torno da alegada ineficácia do negócio da cessão de créditos, resultante da falta de prova da verificação das condições suspensivas que lhe foram apostas – não se lê nelas qualquer fundamento ou razão pelas quais esse mesmo crédito, caso se deva ter por reconhecido ou verificado, se deve ter por subordinado. Constatação que, de um aspecto, é, decerto, coerente com a estratégia processual da apelante: se o crédito, pura e simplesmente, não existe – embora, em bom rigor, como nota o apelado Fundo A..., o problema não seja de existência do crédito mas de titularidade, pelo último desse mesmo crédito – não faz sentido discutir o seu carácter subordinado, dado que a subordinação supõe, em boa lógica, a existência do crédito – e, de outro, assenta no convencimento de que o ónus da prova dos factos de que se extrai a não subordinação desse mesmo crédito vincula o reclamante - o Fundo A...

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; os créditos comuns, que são, nitidamente, a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4, a) a c), do CIRE).

A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE). Do que decorre que, caso sejam garantidos, perdem a preferência de pagamento.

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

Consideram-se subordinados, entre, outros, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionados com o devedor, desde que essa relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE).

Como pessoas especialmente relacionadas com o devedor pessoa colectiva são havidas, designadamente, os administradores de direito ou de facto, do devedor, e os que o tenham sido nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência ou do processo especial de revitalização (artº 49 nº 2 c) do CIRE).

A categoria dos créditos subordinados abrange, pois, em particular, os créditos de que sejam titulares pessoas especialmente relacionadas com o devedor – seja ele pessoa singular ou colectiva[1]. A solução é justificada – pelo legislador, ele mesmo – por não se afigurar desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas a sujeição dos seus créditos ao regime da subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, face aos credores, e pelo combate a uma fonte de frustração da finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo (…) para praticar actos prejudiciais aos credores (…) pois presume-se a má fé das pessoas especialmente relacionadas com o devedor que hajam participado ou tenham retirado proveito de actos deste, ainda que a relação especial não existisse à data do acto (ponto 25 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 16 de Março, que aprovou o CIRE). O pensamento fundamental subjacente a esta solução constitui o dado da experiência, segundo o qual à ligação estreita entre um credor e o devedor está geralmente associado, não apenas o conhecimento da situação patrimonial e financeira do último, mas sobretudo o risco exponencial de que o devedor, por força da influência dominante daquele credor, resultante de qualquer situação de domínio, adopte, na condução dos seus negócios, condutas lesivas para os credores com quem não tenha um vínculo daquela espécie.

De forma deliberadamente simplificadora, por administrador de facto entende-se a pessoa que age, directa ou indirectamente, de forma autónoma – não subordinada - como administrador de direito – mas sem possuir essa qualidade funcional[2]. Portanto, face a este enunciado, para que, com um grau razoável de segurança, se possa dizer que se está perante um administrador de facto, é indispensável a verificação de uma pluralidade de requisitos.

Desde logo, o exercício positivo, real e efectivo, de funções de gestão similares ou equiparáveis às dos administradores de direito[3]. Depois, não é suficiente um qualquer exercício de funções idênticas às que, estatutariamente, cabem aos administradores formalmente instituídos: é exigível que esse exercício revista um grau determinado de intensidade, qualitativo e quantitativo. Não basta, pois, para que haja administração de facto, a mera actividade de supervisão ou de controlo, devendo reclamar-se que aquela actividade traduza em actos típicos de gestão empresarial e de alta direcção[4]. O que traz implicada a autonomia decisória, característica dos administradores de iure, ou dito de outro modo, a ausência de subordinação do administrador de facto. Do ponto de vista quantitativo - embora isto não seja incontroverso – não parece ser de exigir uma actividade continuada ou reiterada de administração, sendo suficiente a prática de actos que, pelo seu significado ou relevo económicos, sejam decisivos para a condução dos negócios sociais e para os destinos da sociedade.

Por último, reclama-se que a actuação do administrador de facto seja conhecida e consentida dos sócios e dos administradores de direito da sociedade.

O conceito de administrador de facto – e abstraindo do seu carácter poliédrico[5] e da impossibilidade de um fundo de investimento, que é um simples património autónomo[6], poder assumir essa qualidade – exige, decerto, a prova do exercício, sem uma qualquer qualidade jurídica legitimadora, de uma real e autêntica actividade de administração, o desempenho de funções de gestão e de condução dos negócios sociais, igual àquela que está estatutariamente atribuída aos administradores de direito. E como, mesmo nesse caso, a sociedade comercial continua a dispor de administradores de direito é indispensável a prova de que os actos de gestão aparentemente da autoria destes, devem afinal, imputar-se, materialmente, a um terceiro, por não terem sido praticados, de forma autónoma e livre, mas num contexto de subordinação ou de infra-ordenação, em acatamento da autoridade fáctica desse terceiro – o administrador de facto.

Pois bem: não vem especificado, na alegação e nas conclusões, qualquer fundamento ordenado para demonstrar a inexactidão da decisão impugnada, no segmento em que concluiu pelo carácter não subordinado do crédito alegado pelo apelado, Fundo A..., ou, mais exactamente, pela probabilidade da sua não subordinação. Como são as conclusões que delimitam, objectivamente o âmbito do recurso, quanto ao problema da subordinação do crédito daquele apelado, a decisão deve realmente, ter-se, por transitada em julgado, pelo que a questão da subordinação desse crédito não constitui, realmente, objecto admissível do recurso. Em aberto permanece apenas, portanto, o problema da existência desse crédito – ou, para ser mais exacto – da titularidade pelo apelado Fundo A..., desse mesmo crédito.

Maneira que quanto ao problema da delimitação do âmbito objectivo do recurso há que dar razão ao apelado, Fundo A...: a questão da não subordinação do seu crédito considera-se, por falta de impugnação do apelante, res judicata, não constituindo, por isso, objecto admissível do recurso.

 Obiter dicta, deve observar-se que mesmo que o problema da subordinação do crédito do apelado constituísse objecto admissível do recurso, a solução exacta – em face da prova documental produzida disponibilizada pelo caderno do recurso – seria a sua qualificação como não subordinado, não interessando, para o caso, a sua qualificação como comum ou privilegiado.

Consabidamente, o nosso direito probatório material orienta-se, no tocante à distribuição do ónus da prova, pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas – de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si – e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil). O Código Civil ao fixar o princípio geral da matéria do ónus da prova apelou, portanto, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor, requerente ou reclamante.

Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessam à existência actual do direito alegado, mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

De maneira que se, num processo insolvencial, um credor se propõe, através da reclamação, fazer verificar ou reconhecer um direito de crédito assente, por exemplo, num qualquer contrato com eficácia constitutiva ou meramente transmissiva de um crédito, a aplicação daquele princípio impõe ao primeiro o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação – a celebração do contrato entre as partes e a inclusão da prestação exigida entre os efeitos do contrato a cargo do devedor. É, portanto, o credor reclamante que está vinculado ao ónus de provar o facto constitutivo – e, se for esse também o caso, transmissivo - do crédito reclamado. Ónus a que continuará vinculado se o reclamado – ou outro credor - alegar o carácter condicional do crédito, em termos de não estar verificada a condição suspensiva: o encargo da prova da verificação desta condição pesa ainda sobre o credor reclamante (artº 343 nº 3, 1ª parte, do Código Civil)[7].

Se, porém, reclamado um crédito, o devedor – ou qualquer outro credor – opõe ao reclamante que se trata de um crédito subordinado, então é ao devedor ou a esse credor que cumpre fazer a prova dos factos de que se extrai essa subordinação, dado que se trata, nitidamente, de factos que modificam o conteúdo do crédito e importam a extinção, no contexto do processo de insolvência, da garantia que, eventualmente, o assegure (artº 342 nº 2 do Código Civil). Realmente os factos de que se extrai a subordinação do crédito, não são subsumíveis à previsão da norma que constitui o direito do credor reclamante; trata-se, antes de factos que se subsumem à previsão da norma relativa à subordinação, que provocam uma alteração, deveras significativa, do conteúdo do direito de crédito alegado, afectando seriamente a consistência quer do crédito quer da garantia que eventualmente o assegure, sendo por, isso, factos modificativos desse crédito e extintivos da garantia que o acompanha. Numa palavra: os factos que impõem a subordinação do crédito, resolvem-se numa excepção peremptória, dado que a parte que alega essa subordinação opõe ao objecto definido pelo credor reclamante um outro objecto cuja procedência obsta à produção dos efeitos pretendidos por essa parte: a do reconhecimento do seu crédito tal como o reclamou, portanto, como comum ou como garantido, conforme o caso (artº 576 nºs 1 e 3 do nCPC). A prova dos factos de que extrai o carácter subordinado do crédito compete, por isso, indubitavelmente, à parte a quem a subordinação do crédito interessa (artº 342 nº 2 do nCPC).

 Ora, a causa de subordinação do crédito alegada – como, de resto, todas as referidas ao devedor pessoa colectiva – coloca, além de delicados problemas de direito – desde, logo, saber se tratando-se de uma presunção legal, ela é absoluta ou relativa[8] - complexos problemas de facto, exigindo a alegação e a demonstração de todo um conjunto de factos materiais – todos os necessários para se concluir, com o grau de segurança necessária, que, realmente o Fundo A... – ou mais exactamente a sociedade gestora – foi, no período relevante, administrador de facto da devedora. E quanto ao grau de prova exigível, não é suficiente uma mera justificação, no sentido de que a situação de administração de facto alegada é provável ou verosímil; é, antes necessária, uma prova stricto sensu, ou seja, a convicção segura do tribunal sobre a realidade daquela situação.

Tanto quanto o processo do recurso documenta, a decisão do administrador judicial de subordinar o crédito do Fundo A... – como resulta do requerimento que produziu no dia 12 de Novembro de 2014 - assentou nestas provas: no Head of Terms concluído no dia 4 de Abril de 2013 entre B... e a O... – na qualidade de entidade gestora do Fundo de Restruturação E..., no qual se convencionaram os princípios gerais a observar e os pressupostos para a aquisição, pela segunda, de 51% das participações representativas do capital social da B... e a aquisição de créditos bancários de que eram sujeitos passivos sociedades, directa ou indirectamente, integradas no Grupo B..., com a finalidade última de proceder à restruturação financeira desse grupo; a carta, datada de 30 de Outubro de 2014, subscrita por mandatário da devedora, na qual se aquela alega que, a O... – através, designadamente, do Fundo A... – foi administrador de facto do B..., já que no período que medeia entre a celebração do Acordo e a data da apresentação da Revitalizanda a PER, esta deixou de ser plena e efectivamente administrada pelos seus administradores de direito, antes subordinando essa gestão às obrigações fixadas pela O... que atingiam o múnus de qualquer empresa, e que, se viu privada de restruturar os seus créditos, e escancarou o acesso às suas contas bancárias e facultou toda a documentação e informação materialmente relevantes para um diagnóstico da sua situação, legal, fiscal, financeira, comercial, técnica e ambiental; a comunicação, por correio electrónico de 4 de Novembro de 2014, do director financeiro da devedora, Dr. ..., na qual se lê que durante os dois anos foram facultadas todas as informações de gestão solicitadas pelo Fundo/O..., permitindo a esta entidade saber tudo o que se passava no Grupo B... e exercer um grau de acompanhamento que, influenciou, decisivamente, as mais relevantes medidas de gestão levadas a cabo no período considerado. Claramente, o curso dos acontecimentos teria sido outro sem a participação e intervenção da O...; a B... coarctou, por completo o desempenho da gestão e a eventual procura de alternativas, conduzindo à situação actual.

Abstraindo do Head of Terms[9] - que, considerado isoladamente, é inteiramente asséptico para inculcar a actuação do Fundo A... como administrador de facto da apelante – a decisão de subordinar o crédito daquele assentou em simples alegações de um dos principais interessados nessa subordinação – a devedora. E numa alegação puramente genérica já que não se especifica, com o grau de concretização exigível, os actos de administração ou de gestão que, devidamente apreciados, permitissem concluir – de harmonia com os pressupostos supra alinhavados – que entre a apelante o Fundo A... se estabeleceu realmente, uma relação de administração fáctica.

Em qualquer caso com a decisão do administrador de subordinar os créditos foi, notoriamente, inculcada pela devedora, a esta competia a prova dos factos concretos em que se resolve a causa de subordinação invocada: a administração de facto. Na falta dela, há que proferir uma decisão desfavorável à devedora, parte onerada com a prova (artº 346, in fine, do Código Civil, e 414 do nCPC).

Mas vamos que este conjunto de considerações de devam ter por incorrectas. Ainda assim, a conclusão pela subordinação dos apontados créditos se deveria ter por inexacta.

A leitura conjugada dos preceitos reguladores da causa de subordinação dos créditos que se discute mostra que os pressupostos dessa qualificação são os seguintes: a detenção do crédito por pessoa especialmente relacionada com o devedor ou por pessoa a quem tenham sido transmitidos; a sua aquisição nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE).

Desde que só releva, para a qualificação, o relacionamento especial entre o credor e o devedor nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, então os créditos devem ter sido adquiridos no arco temporal a que a lei associa – por presunção, absoluta ou meramente relativa, conforme o entendimento que se tiver por preferível – a suspeita de que o crédito foi adquirido com o uso da superioridade informativa e com o propósito de lesar outros credores.

Mal vale a perder uma palavra para acentuar que estes dois requisitos não são de verificação alternativa, sendo antes, patentemente, cumulativos: o crédito deve ser detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor, no contexto dessa vinculação especial, nos dois anos anteriores ao da proposição da acção de insolvência[10].

Pergunta-se: os créditos alegados pelo Fundo A... foram adquiridos nos dois anos anteriores ao do início do processo especial de recuperação – 2 de Outubro de 2014, data em que foi apresentada a petição inicial do processo correspondente – portanto, entre 2 de Outubro de 2012 e 2 de Outubro de 2014?

O exame do exponencial mole de instrumentos que documentam as cessões mostra que os créditos reclamados pelo Fundo A... se devem ter todos por adquiridos pelo respectivo credor – cedente - em data anterior a 2 de Outubro de 2012.

Sendo isto exacto, então a conclusão a tirar é de a que não verifica um dos requisitos da qualificação como subordinados dos créditos reclamados pelo apelado, Fundo A...: a aquisição do crédito nos dois anos anteriores à da proposição da acção de especial de recuperação. E, como esse requisito é de verificação cumulativa, é de todo inútil, na espécie sujeita, proceder à deveras complexa averiguação, do outro dos requisitos dessa qualificação – a vinculação especial entre o apelado, Fundo A..., e a devedora.

Aliás – e como melhor se detalhará – a cessão de créditos resolve-se simplesmente na substituição do credor originário por terceiro, mantendo-se inalterados todos os demais elementos da relação obrigacional. Não há, pois, qualquer substituição da obrigação originária por uma nova obrigação; a obrigação é exactamente a mesma, verificando-se apenas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo.

Deste regime decorre que se através da cessão se transmitir um crédito subordinado, o novo credor adquire um crédito sujeito a subordinação, ainda que o adquirente não deva ter-se, por qualquer causa, como pessoa especialmente relacionada com o devedor; mas se o crédito transmitido não estiver sujeito a subordinação, então o novo credor recebe um crédito não subordinado, ainda que se trate de pessoa especialmente vinculada com o devedor.

Quer dizer: o que releva para qualificação como subordinado do crédito é o momento da constituição do crédito e não o momento da cessão, dado que o novo credor adquire o crédito com as exactas qualidades que ele patenteava no momento da transmissão. Sendo isto exacto, segue-se que a discussão relevante não é a de saber se o cessionário é uma pessoa especialmente relacionada com o devedor mas se o cedente o era. A previsão, na norma reguladora da subordinação, relativa à transmissão do crédito, destina-se, simplesmente, a evitar a fraude à lei, i.e., a impedir que através da transferência do crédito, se obvie à qualificação deste como subordinado, previsão que, no tocante à cessão de créditos, dado que deixa inteiramente intocado, quanto ao seu conteúdo, o crédito transmitido, é de todo desnecessária (artº 48 a) do CIRE).

 Assim, no caso do recurso, é desinteressante discutir se o apelado, Fundo A..., simples cessionário é ou não pessoa especialmente relacionada com o devedor – mas sim se os credores cedentes o eram. O facto de, eventualmente, o cessionário do crédito ser pessoa especialmente relacionada como devedor, não transforma o crédito em subordinado se antes o não era, assim como o facto de o cessionário não ter qualquer relação com o devedor, não transmuta o crédito em não subordinado, se antes o era.

O apelado sustenta, na sua alegação, que por a recorrente não se encontrar numa situação de insolvência eminente e muito menos numa situação económica difícil, encontrando-se, isso sim, numa situação de insolvência actual, a decisão do recurso não alterará o sentido da decisão recorrida, o que – no seu ver - redunda na inutilidade da presente instância recursória.

O PER é facultado ao devedor que se encontre em situação económica difícil – definida como a situação em que o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito – ou de insolvência eminente – conceito que a lei não define, mas que pode ser entendido como a probabilidade séria da impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, num futuro próximo, das suas obrigações vincendas[11] (artºs 1 nº 1, 17-A nº 1 e 17-B do CIRE).

 Como logo decorre da nomenclatura utilizada pelo legislador – processo de revitalização – este assenta na lógica da exclusão do seu âmbito de aplicação do devedor insolvente, estando apenas aberto a devedores desvitalizados.

O processo especial de revitalização tem, realmente, como destinatários os devedores que comprovadamente se encontrem em situação económica difícil ou de insolvência meramente eminente, embora seja suficiente, na lógica da lei, para o que o processo se inicie é suficiente, uma simples declaração escrita assinada pelo devedor e, pelo menos, por um dos seus credores, em que manifesta a vontade de encetar negociações conducentes à revitalização (artº 17-A, nºs 1, 1ª parte, e 2, e 17-C nº 1 do CIRE).

Segundo o apelado, Fundo A..., sendo o estado da devedora, de insolvência actual, a instância de recurso é inútil. O argumento não é probante.

Em primeiro lugar, cumpre notar que a questão do estado de insolvência actual da recorrente não constitui objecto admissível do recurso. Esta Relação está vinculada à impugnação do recorrente e essa vinculação não tem, compreensivelmente, por objecto a questão do estado de solvência ou de insolvência actual da apelante, questão que, de todo, não foi decidida pela sentença impugnada, que, aliás, determinou o prosseguimento da instância – apesar do encerramento do processo – para se resolver, justamente, o problema do estado de solvência ou insolvência da devedora. É verdade que a improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão recorrida, pode resultar da modificação, por esta Relação do fundamento dessa mesma decisão, o que é possível sempre que essa decisão comportar vários fundamentos. Mas essa possibilidade só deve admitir-se se o tribunal ad quem puder conhecer do fundamento que justifica a confirmação da decisão recorrida o que – pelas razões indicadas – não é o caso, no tocante ao estado actual de insolvência da devedora. Realmente, o conhecimento pelo tribunal ad quem de um fundamento que permite confirmar a decisão é admissível quando ele tiver sido alegado pela parte no tribunal recorrido – mas só desde que se verifique uma das condições seguintes: se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer desse fundamento por o considerar prejudicado pela solução dada à causa, o tribunal ad quem, se entender que o recurso procede, pode apreciar esse fundamento (artº 665 nº 2 do nCPC); se o tribunal recorrido tiver apreciado vários fundamentos invocados pela parte e, apesar de ter considerado alguns improcedentes, tiver julgado a acção procedente, a parte recorrida pode pedir que o tribunal ad quem, no caso de considerar procedente o recurso interposto pela parte vencida, apreciar o fundamento em que sucumbiu na instância recorrida (artº 636 nº 1 do nCPC). Na espécie do recurso, não se verifica nenhuma destas condições.

O recurso, como qualquer outo acto de processo está, naturalmente, sujeito a um princípio da utilidade, o que justifica que, sempre que se torne supervenientemente inútil – i.e., quando a finalidade para cuja obtenção se mostrava ordenado se mostra alcançada por outro meio – a instância correspondente se extinga (artº 277 e) do nCPC). Todavia, no caso, a procedência do recurso continuará a ser útil para a apelante, dado que a eventual revogação da decisão impugnada importaria a caducidade ou inutilização de tudo o que, depois, dela foi praticado no processo, maxime, a eventual declaração de insolvência da recorrente – e o regresso do processo à fase negocial.

Maneira que as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) A sentença impugnada se encontra ferida com o valor negativo da nulidade substancial;

b) A declaração de encerramento do processo especial de revitalização – PER – constitui competência do administrador judicial provisório ou, antes, do juiz da insolvência;

c) O apelado Fundo A... é titular do crédito reclamado;

d) Está reunida a maioria de credores necessária para o encerramento antecipado do PER.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, ainda que leve, das causas de nulidade substancial da decisão judicial, à determinação da competência para a declaração de encerramento do PER, das condições de eficácia da cessão de créditos no tocante ao devedor e das maiorias exigíveis para a aprovação, ou para a oposição a essa aprovação, do plano de recuperação.

3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada.

Como é, aliás, extraordinariamente comum, a recorrente assaca à decisão impugnada o vício da nulidade substancial. Valor negativo que, no seu ver, radica em três causas precisas e distintas: a omissão de pronúncia; a ambiguidade geradora de ininteligibilidade; a contradição intrínseca.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[12]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 615 nº 1 d), 1ª parte, do nCPC).

Note-se, porém, que não existe uma omissão de pronúncia – mas um error in iudicando – se o tribunal não aprecia uma dada questão como o argumento, por exemplo, de que ela não é útil ou não releva para a decisão da causa: aquela omissão pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento – e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão[13].

Segundo a impugnante, a omissão de pronúncia decorreria, no caso, da circunstância de a decisão contestada se ter abstido de decidir sobre a impugnação da lista provisória de créditos deduzida pelo Fundo A... relativa à qualificação, pelo administrador judicial provisório, do seu crédito como subordinado.

Esta alegação da recorrente não é exacta, como também não o é a afirmação de que a decisão impugnada decidiu não tomar conhecimento, por, inutilidade, da totalidade das impugnações da lista provisória de créditos.

Realmente, a dado passo da sentença podem ler-se estas palavras: quanto à natureza garantida ou subordinada do crédito em questão em face dos elementos constantes dos autos, designadamente a documentação junta pelo Fundo Capital de Risco A..., existe toda a probabilidade de tal crédito não assumir natureza subordinada.

É, portanto, claro que a decisão recorrida apreciou a impugnação deduzida pelo Fundo A... contra a qualificação do seu crédito como subordinado, concluindo – para o caso não interessa se bem, se mal – pela probabilidade da não subordinação desse mesmo crédito.

Não pode, assim, em boa verdade, dizer-se que a sentença não conheceu do objecto da reclamação produzida pelo apelado Fundo A... contra a subordinação, por decisão do administrador judicial provisório, do seu crédito. Sentença que, aliás, não declarou não tomar conhecimento da totalidade das impugnações da lista de provisória de créditos – tendo antes decidido não tomar conhecimento das demais impugnações apresentadas. E, em face do seu texto, por demais impugnações, entende-se todas as impugnações diversas deduzidas pelo apelante, pelo apelado Fundo A... e pela Massa Insolvente do H..., SA, que foram objecto de apreciação.

De resto, quanto a este objecto da impugnação, é clara a falta de legitimidade ad recursum da apelante.

Dado que a decisão admite recurso ordinário, a sua nulidade pode constituir um dos fundamentos desse recurso: o recurso interposto pode mesmo ter como único fundamento essa nulidade (artº 615 nº 4 do nCPC). Mas isso não altera as regras da legitimidade para recorrer: esta legitimidade é reconhecida à parte que pode recorrer da decisão nos termos gerais, pelo que se não for possível reconhecer a essa parte qualquer legitimidade formal ou material, não lhe é facultada a invocação da nulidade da decisão. A parte vencedora pode, porém, alegar, a título subsidiário, a nulidade da decisão recorrida, solicitando a apreciação dessa nulidade na hipótese de o recurso interposto pela parte vencida proceder (artº 636 nº 2 do nCPC).

 Ora, no caso, a parte eventualmente prejudicada com a omissão de pronúncia no tocante à reclamação deduzida pelo Fundo A... contra a qualificação do seu crédito como subordinado, seria somente esta mesma parte, já que, em face da omissão, não veria apreciada a sua reclamação, com a consequente manutenção daquela qualificação. Sendo isto exacto, então só o Fundo A... disporia da legitimidade para impugnar, nessa parte, ainda que a título subsidiário, a sentença com fundamento naquela mesma nulidade substancial.

 A nulidade da sentença pode também decorrer de obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível (artº 615 nº 1, c), 2ª parte, do nCPC). A obscuridade traduz-se numa dificuldade de percepção do sentido da expressão ou da frase: a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; a ambiguidade resolve-se na possibilidade de atribuir vários sentidos a uma expressão ou frase: a sentença é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes[14]. No primeiro caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no segundo, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos – embora, em última análise, a ambiguidade seja uma forma especial de obscuridade, dado que se dado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz.

Como quer que seja, a obscuridade ou a ambiguidade só produzem nulidade se forem causa de ininteligibilidade da decisão – sendo certo, em boa lógica, que se a sentença é obscura é porque contém algum passo cujo sentido seja ininteligível.

De harmonia com a alegação da apelante, a ambiguidade da sentença decorreria, de um aspecto, da circunstância de não existir, na parte dispositiva, quanto a impugnação que deduziu contra a lista provisória de créditos, uma só menção.

Isto é exacto. Realmente, a sentença apelada, depois de julgar improcedente a reclamação deduzida pela apelante contra a lista provisória de créditos – designadamente com fundamento no abuso, pela apelante, de direito, na modalidade de venire contra factum proprium – não declarou, na parte decisória ou dispositiva, essa improcedência. Mas essa irregularidade não é causa de nulidade da sentença, muito menos com fundamento na sua ininteligibilidade decorrente de uma qualquer ambiguidade.

A nulidade da decisão está submetida a um regime marcadamente singular, de que se salientam estas especialidades: o caracter taxativo das causas de nulidade; a sua subtracção ao regime geral das nulidades processuais[15].

Do ponto de vista formai, a sentença comporta os elementos seguintes: relatório – no qual identifica as partes e o objecto do litígio e enuncia as questões que deve apreciar – fundamentos – nos quais deve discriminar os factos que considera provados e não provados, e indicar, interpretar e aplicar as correspondentes normas jurídicas – e decisão. A sentença deve terminar com a parte decisória ou dispositiva, na qual se contém a decisão de condenação ou de absolvição (artºs 607 nº 3 do nCPC).

A sentença impugnada não obedece inteiramente a este modelo, designadamente no que toca ao conclusuum, dado que – abstraindo da inexplicável ausência de especificação dos factos julgados provados ou não provados - na parte decisória ou dispositiva não contém a indicação da improcedência ou de procedência das reclamações deduzidas a cuja apreciação procedeu.

 Simplesmente, esta irregularidade não é causa de nulidade da sentença – por não integrar qualquer causa típica de invalidade desse acto decisório, nem a tornar ambígua: apesar da apontada omissão, nenhum passo dela se presta a interpretações diferentes, dado que é clara e unívoca quanto à questão da improcedência da reclamação deduzida pela recorrente contra a lista provisória de créditos.

Todavia, no ver da apelante, a ininteligibilidade da sentença impugnada, provocada pela sua ambiguidade, decorreria de uma outra causa: a de ter decidido a impugnação que dirigiu contra a relação provisória de créditos, com base na (mera) possibilidade de tal crédito existir. Esta alegação não é exacta. Por três razões, de resto.

A primeira é esta: como linear e patentemente decorre dos fundamentos da sentença impugnada, a improcedência da reclamação deduzida pela apelante contra a lista provisória de créditos assentou, desde logo, neste fundamento – aliás, também conspícuo: o abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Depois, o único objecto que aquela sentença decidiu, expressamente, em termos de probabilidade, foi, não a existência do crédito do apelado Fundo A... – que entendeu ser possível sustentar - mas o seu carácter não subordinado. Por último, a decisão, segundo um critério de probabilidade, tanto da existência do crédito como da sua qualificação como não subordinado, caso se deve ter por inadmissível, não se resolve num error in procedendo – como é caracteristicamente aquele que está na base da nulidade substancial da sentença, por ininteligibilidade da decisão, causada por uma qualquer ambiguidade - mas num error in iudicando, por erro na escolha do critério legal de decisão aplicável.

Seja como for, tem-se, por seguro, no caso, que a sentença não contém sequer qualquer ambiguidade e, muito menos, um vício de falta de clareza, que torne a decisão nela contida ininteligível. Aquele acto decisório é claro, unívoco e tem unidade de sentido: em face dele é claro, cristalino, indubitável, irrecusável, indesmentível, a improcedência da apontada reclamação, e bem assim, as razões – não interessando, para o caso, a sua correcção - dessa improcedência.

Prevenindo a exactidão destas considerações, a apelante logo acode com esta alegação: nesse caso, a sentença é nula por oposição entre os seus fundamentos e a decisão.

A decisão é igualmente nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão (artº 615 nº 1 c), 1ª parte, do CPC)[16]. Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial. A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.

Não são claras as razões pelas quais a apelante acha que se verifica uma lívida colisão entre os fundamentos e a parte decisória ou dispositiva da sentença impugnada.

A ratio decidendi dessa sentença – de que decorre a decisão de declarar encerrado o processo especial de revitalização - bem pode condensar-se nesta proposição: em face da improcedência da impugnação deduzida pela apelante contra a lista provisória de créditos, está reunida uma maioria de credores que concluiu pela impossibilidade de obter qualquer acordo; ergo, deve considerar-se o processo legalmente encerrado.

Ora, desde que a sentença assentou em que, uma maioria, legalmente exigível, de credores concluíra pela impossibilidade de obtenção de uma decisão contratualizada ou negociada e, em estrita coerência, declarou o encerramento do processo, não pode dizer-se, que a construção da sentença é viciosa, que tenha incorrido em qualquer vício lógico, por os fundamentos nela invocados conduzirem, logicamente, não àquela decisão de encerramento do processo – mas a uma decisão oposta.

É claro que a sentença pode ter-se equivocado quer quanto a improcedência da impugnação deduzida pela apelante contra a lista provisória de créditos, quer quanto à reunião, no caso, da maioria dos credores exigível para encerrar, antecipadamente, o processo. Mas um tal erro é, por definição, um error in iudicando, e não um error in procedendo, decorrente da nulidade substancial, por colisão lógica, intrínseca e irremovível, entre os fundamentos e a decisão.

A sentença não se encontra, pois, ferida, com o vício da nulidade substancial que a recorrente lhe assaca.

De resto – e obiter dicta – a arguição da nulidade da decisão, não toma, no caso, em devida e boa conta, o regime em que julga esta Relação. No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artº 665 do nCPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso.

Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 636 nº 2 do nCPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum – como sucede na espécie sujeita - é que a arguição deste vício seja, à mingua de outro melhor, apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 130 do nCPC)[17].

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

Em absoluto remate: pelo lado da nulidade substancial da sentença, é patente a falta de bondade do recurso.

3.3. Competência para a declaração de encerramento do processo especial de revitalização.

Um outro fundamento de impugnação, também ele puramente formal, respeita à competência para a declaração de encerramento do processo. Segundo a recorrente, aquela declaração inscreve-se na competência doo administrador judicial provisório e não do juiz da insolvência.

Consabidamente, o CIRE suprimiu a dicotomia recuperação/falência em que assentava o direito anterior e construiu o processo de insolvência como um processo de liquidação: o único instrumento a que podia assinalar-se uma finalidade de recuperação da empresa insolvente era o representado pelo plano de insolvência (artºs 1 nº 1 e 195 nº 2 b). Maneira que a recuperação foi reduzida a simples condição de finalidade possível do processo de insolvência: nitidamente – numa visão notoriamente liberal – privilegiou-se os interesses de ordem económicos dos credores, com prevalência de mecanismos próprios de regulação de mercado – subalternizando interesses públicos tão eminentes como os da expansão da economia e a estabilidade de emprego.

Todavia, uma das obrigações a que o Estado Português se vinculou no quadro do programa de auxílio ou assistência financeira que concluiu com Banco Central Europeu (BCE), O Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Europeia (CE) foi a de alterar o Código de Insolvência, a fim de facilitar o resgate efectivo de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis.

É neste contexto que é instituído - através da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que modificou, pela sexta vez o CIRE - o processo especial de revitalização (PER).

De forma deliberadamente simplificadora pode, sem erro, dizer-se que o PER é um processo pré-insolvencial que tem por vantagem mais proeminente a possibilidade de o devedor – qualquer devedor e não apenas o devedor que seja uma empresa – obter um acordo de recuperação, sem que seja declarado insolvente. A particularidade relevante do PER é a probabilidade da homologação do plano de recuperação, desde que aprovado por uma maioria qualificada, o tornar vinculativo para todos os credores, mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 6 do CIRE)[18]. Ao plano de recuperação são aplicáveis, por extensão de regime, com as necessárias adaptações, no tocante tanto às maiorias exigíveis para a sua aprovação como aos fundamentos da recusa da sua homologação, as regras dispostas na lei para o plano de insolvência (artºs 212 nº 1, 215 e 216, ex-vi artº 17-F, nºs 3 e 5, do CIRE).

Por força dessa extensão de regime, exige-se, para a aprovação do plano de recuperação, a participação de credores que representem pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, e mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 3, in fine, do CIRE).

Adjectivamente – e sem qualquer preocupação de exaustão – bem pode dizer-se que o PER se caracteriza por um núcleo particularmente relevante do processo – as negociações entre o devedor e os credores – lhe ser exterior (artºs 17-D nºs 1, 5 a 9 do CIRE).

Outra das principais marcas do procedimento é a repartição das funções pelo administrador judicial provisório e pelo juiz da insolvência. Essa distribuição de funções entre estes órgãos da insolvência é realizada grosso modo, da seguinte forma: o administrador judicial provisório é o órgão ao qual incumbe a condução do processo negocial; o juiz da insolvência, sem prejuízo da sua competência de fiscalização da actividade do administrador, torna-se o juiz dos incidentes desse processo, maxime, da reclamação e verificação dos créditos, da homologação do plano de recuperação aprovado ou da recusa dessa homologação e da declaração de insolvência do devedor (artºs 17-D nºs 3 e 4, 17-F nº 5, nº 3 e 17-G do CIRE). O processo especial de recuperação é, portanto, em larga medida, um processo desjudicializado – mas desjudicialização, que não é sinónimo de privatização - significa apenas a atribuição de funções a órgãos não jurisdicionais, pelo que o processo especial de revitalização não deixa de ser um processo jurisdicional, embora o juiz não seja o factótum da recuperação ou da insolvência, com a sua omnipresença em cada momento do processo – mas, mais limitadamente, o fiel quanto à garantia de legitimidade e correcção da actividade desenvolvida no contexto do PER.

Essa desjudicialização do PER e a consequente repartição de funções entre o juiz da insolvência e o administrador judicial provisório não pode, como é evidente, contrariar a reserva de jurisdição que cabe aos tribunais (artº 202 nº 2 da Constituição da República Portuguesa). Porém, o âmbito desta reserva não se pode referir à formulação de todo e qualquer juízo – mesmo jurídico, como a avaliação de uma prova documental – mas apenas a tomada de decisões destinadas a resolver conflitos de interesses (artº 202, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Sendo isto assim, então essa reserva não é violada pelo regime instituído pelo PER, não só porque o administrador judicial provisório não tem competência para dirimir qualquer conflito de interesses entre as partes ou entre elas e terceiros, mas também porque, qualquer conflito decorrente da actividade do administrador deve ser decidido pelo juiz da insolvência.

A pluralidade dos órgãos da insolvência traz, necessariamente, implicada uma repartição da competência funcional e, portanto, a probabilidade da violação, por um órgão da insolvência, da competência reservada a outro.

A consequência da violação da competência funcional por órgãos da insolvência é naturalmente distinta consoante essa infracção respeite a acto da competência do juiz da insolvência ou a acto da competência do administrador. Se o juiz da insolvência praticar acto que se encerra na competência funcional do administrador, a violação dá lugar a uma nulidade processual, dado que se resolve na prática por aquele juiz de um acto que a lei não admite (artº 195 nº 1 do nCPC, ex-vi artº 17 do CIRE). Essa nulidade, que aliás, é sanável mediante a prática do acto pelo órgão competente: o administrador (artº 198 do nCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Se o administrador praticar um acto que se inscreve na competência funcional do juiz da insolvência, maxime quando releve do exercício da função jurisdicional, a consequência não pode, naturalmente, deixar de ser mais severa: a inexistência formal, por ter sido praticado a non judice[19].

O processo negocial pode ser encerrado, designadamente no caso de uma certa maioria dos credores concluir antecipadamente pela impossibilidade da conclusão de qualquer acordo, competindo ao administrador judicial provisório comunicar esse facto ao processo e publicitá-lo no Portal Citius (artº 17-G nº 1 do CIRE). Trata-se, portanto, nitidamente, de uma competência do administrador.

Todavia, essa competência – como a letra da lei claramente inculca – tem por objecto apenas o encerramento do processo negocial e não o encerramento do processo especial de recuperação. Realmente, uma e outra coisa não são exactamente sinónimos e ex-littera, a competência do administrador restringe-se à declaração do encerramento do processo negocial. A letra da lei tem, realmente, um valor próprio que não pode ser ignorado pelo intérprete e que impõe dois limites: um decorre das presunções de o legislador consagrou as soluções mais acertadas e de que soube exprimir em termos adequados (artº 9 nº 3 do Código Civil); o outro limite é representado pela proibição da consideração pelo intérprete de um significado que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que expresso com imperfeição (artº 9 nº 2 do Código Civil). O significado que não encontre na letra da lei uma correspondência mínima está par além do seu significado possível: uma conclusão que não for compatível como a letra da lei não pode ser considerada interpretação.

E a letra da lei é clara e terminante em referir-se ao encerramento do processo negocial (artº 17-G nº 1 e epígrafe que o encabeça). E é inteiramente compreensível que a declaração do encerramento caiba ao administrador dado ser este o dominus dessa fase do procedimento a que o juiz, por o processo negocial não decorrer perante ele, é de todo estranho.

E o encerramento do processo negocial não implica, como corolário que não possa ser recusado, a extinção do processo especial, dado que este deve prosseguir para se decidir se o devedor se encontra ou não em estado de insolvência. E só depois de decidido este problema é que realmente o processo especial de revitalização de extingue, no segundo caso com a consequente cessação de todos os seus efeitos[20]; no primeiro, com a sentença que declare o estado de insolvência do devedor (artº 17-G nºs 2 e 3). E só nesse momento é que se verifica, realmente, o termo do processo especial de revitalização (artº 17-G, nº 6, 1ª parte, do CIRE). E quanto à competência para esse encerramento, essa cabe – por se tratar de matéria jurisdicional - ao juiz da insolvência[21]. Entendimento diverso importaria uma desarmonia, sem razão material bastante, entre o processo – comum – de insolvência em que a declaração de encerramento do processo é, indubitavelmente, da competência do juiz – e o processo especial de revitalização (artº 212 nº 2 do CIRE). Depois, seria realmente deveras singular, para não dizer absurdo, a prática de todo um conjunto de actos e de decisões materialmente jurisdicionais – maxime sobre o facto capital do estado de solvência ou de insolvência do devedor – num processo ou numa instância já extinta – encerrada, segundo a terminologia legal - por declaração de um órgão não jurisdicional.

Mas vamos que estas considerações não são exactas e que a competência para declarar o encerramento do processo pertence, realmente, ao administrador. Nesta hipótese, ao decidir declarar esse encerramento a sentença impugnada cometeu realmente uma nulidade – dado que praticou um acto que a lei não admite (artº 195 nº 1 do nCPC).

Trata-se, porém, não de uma nulidade da sentença – mas de uma nulidade inominada ou secundária, sujeita, portanto, ao princípio orientador da essencialidade: a nulidade não se verifica se a prática do acto não influir na decisão da causa (artº 195 nº 1 do nCPC). E tratando-se de uma nulidade inominada ou secundária, ela deveria ter sido arguida, no tribunal a quo, no prazo – peremptório - geral de 10 dias, contado da notificação da sentença impugnada (artºs 149 nº 1 e 199 nº 1 do nCPC). No caso, a apelante teve – necessariamente – conhecimento da comissão da nulidade acusada com a notificação da decisão impugnada. Como, porém, só a invocou na alegação do seu recurso – oferecida no quinquagésimo dia posterior àquela notificação, certo é que já o fez depois da extinção, por caducidade, do direito de arguir (artº 139 nºs 1 e 3 do nCPC). A apontada nulidade – a ter-se verificado – deveria por isso ter-se por sanada.

De resto, não se referindo essa nulidade à ofensa do princípio da igualdade ou do contraditório nem à aquisição processual de factos nem à admissibilidade de meios probatórios, ela não constitui sequer objecto admissível do recurso. Efectivamente se não é admissível recurso da decisão proferida sobre essas nulidades, a fortiori, também não parece que deva sê-lo a arguição, ex-novo, directamente no tribunal ad quem (artº 630 nº 2 do nCPC).

Por este lado, o recurso também não dispõe de bom fundamento.

3.4. Maioria de credores exigível para o encerramento antecipado do processo.

Relativamente aos créditos que atribuem o direito a voto, a regra no tocante à determinação do número de votos obtêm-se pela conversão dos euros em votos: um voto por cada euro ou fracção (artº 73 nº 1 do CIRE).

A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

Exigem-se, portanto, para a aprovação do plano de insolvência três quóruns: um quórum constitutivo – a presença ou a representação de credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito a voto; e dois quóruns deliberativos, de verificação simultânea: em primeiro lugar impõe-se que a proposta do plano recolha o voto favorável de mais de dois terços dos votos emitidos; em segundo lugar, exige-se que aquela proposta recolha o voto favorável de mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados. Esta última exigência foi introduzida no Código pelo Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, que explica, no preâmbulo, que tal requisito foi introduzido por forma a evitar que os credores subordinados possam, sem o acordo dos restantes credores, fazer aprovar um plano de insolvência. O objectivo é, nitidamente, o de garantir que ainda que o direito de voto assista aos credores subordinados, estes não possam, sozinhos, fazer aprovar um plano de insolvência que, decerto, os beneficia face ao regime supletivo do CIRE, afectando os demais credores[22].

Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção[23] e, portanto, um verdadeiro contrato, nada impedindo, portanto, que inclua um ou mais terceiros – como no caso em que um terceiro assume uma obrigação perante uma das partes - ou que os credores concluam através dele um contrato a favor de terceiro (artº 443 nº 1 do Código Civil). A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de um simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias, no caso dos credores privilegiados[24] – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.

Como já se observou, a particularidade relevante do PER é a probabilidade de, as negociações entre o devedor e os seus credores, culminarem na aprovação de plano de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor (artº 17-F nº 1 do CIRE). Plano que se considera aprovado desde que reúna a maioria dos votos indicada na lei para a aprovação do plano de insolvência, sendo o quórum deliberativo calculado com base na lista de créditos ainda que provisória, dado que ao juiz é lícito computar os créditos objecto de impugnação, se considerar que há probabilidade séria do seu reconhecimento (artº 17-F nº 3 do CIRE).

Têm, portanto, direito de voto, os credores cujos créditos que, constando da lista provisória não tenham sido impugnados – que, por ausência dessa impugnação transitam, automaticamente, para a lista definitiva - e, bem assim, os credores cujos créditos constem daquela lista, mas que foram impugnados, desde que os seus créditos tenham sido computados para efeitos de votação.

Pode, todavia, suceder que, no decurso do processo negocial, uma maioria de credores – aparentemente, a exigida para a aprovação do plano de recuperação - conclua que não é possível obter qualquer decisão negociada ou contratualizada com o devedor, caso em que o processo negocial se encerra (artº 17-G nº 1 do CIRE).

Note-se, todavia, que – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que a maioria exigível dos credores que declararam a impossibilidade de uma decisão contratualizada se preenche, tanto no caso de essa declaração proceder de credores representativos de mais de dois terços dos créditos, como no caso de provir de credores que sejam titulares de mais de metade dos créditos não subordinados[25].

Esta solução é, claramente ditada por um princípio de utilidade ou de economia: para quê prosseguir nas negociações se uma das partes ou número relevante delas – os credores – declaram, peremptóriamente, que não concluirão qualquer acordo?

Mas sendo essa razão material que ilumina a solução legal, então há que ter por exacta a proposta doutrinária de harmonia com a qual o processo negocial se deve também ter por encerrado quando a declaração da impossibilidade da aprovação do plano de recuperação proceda de uma minoria de bloqueio, i.e., proceda de credores com os votos suficientes para impedir a obtenção de um qualquer dos quóruns exigidos para a aprovação daquele plano[26], como sucederá, decerto no caso de aquela declaração proceder de credores titulares de pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, já que, nessa conjuntura, nunca será possível reunir o quórum de mais de dois terços dos votos exigidos para a aprovação do plano.

Se o que dita a solução da lei, no caso previsto, é evitar o prosseguimento do processo negocial em pura perda, deve, realmente, concluir-se que a dimensão pragmática da lei vai para além da sua dimensão semântica. Justifica-se, por isso, uma interpretação extensiva – portanto, praeter litteram – dado que o espírito da norma é mais amplo que o seu significado literal.

No caso, a sentença apelada concluiu que os credores que requereram o encerramento antecipado do processo – Fundo A..., Banco B..., Banco M..., Massa Insolvente do H... - representavam mas de dois terços dos créditos reconhecidos, pelo que estava reunida a maioria exigível para a antecipação daquele encerramento.

Realmente, considerando o universo dos créditos reclamados - € 73.536.751,45 – e que os credores Fundo A..., Banco B..., Banco M..., Massa Insolvente do H... e são titulares de créditos no valor de € 42.866.643,12, € 2.325.031,59, € 2.009,91 e € 9.492.842,99 e € 510.768,91, respectivamente, está realmente reunida a maioria exigível para a antecipação daquele encerramento.

Simplesmente, o crédito do Banco M... foi, em parte substancial - € 9.492.842,99 -, reconhecido como condicional.

No contexto do CPEREF discutia-se a razoabilidade do reconhecimento do direito de voto aos credores cujos créditos não sofressem qualquer afectação ou compressão pelas medidas de recuperação sujeitas a deliberação. Vincava-se, a esse propósito, que a atribuição do direito de voto redundava na atribuição de um especial privilégio ao credor que justamente menos carecia da tutela que o direito de voto disponibiliza, permitindo-lhe obstar à recuperação do devedor mesmo quando o seu crédito em nada era afectado por ela.

Sensível ao argumento, o CIRE é agora terminante na exclusão do direito de voto aos credores cujos créditos não sejam modificados pelo plano (artº 212 nº 2, a)). E dada a sua ratio, a exclusão do direito de voto deve ocorrer não apenas nos casos de total indemnidade do crédito, mas igualmente nas hipóteses em que a sua afectação pela parte dispositiva do plano é irrelevante ou desprezável. Doutro modo, reconhecer-se-ia ao credor o direito de voto, mesmo nos casos de afectação mínima, irrelevante, do seu crédito, ordenada justamente para lhe garantir o direito de votar o plano.

Problema de solução duvidosa é o de saber se aos credores cujos créditos não sejam modificados pelo segmento dispositivo do plano de recuperação deve ou não reconhecer-se o direito de voto. A dúvida resulta do facto de a norma reguladora das maiorias e do quórum deliberativo exigíveis para a aprovação do plano de recuperação se limitar a remeter para o nº 1 do artº 212 do CIRE, omitindo qualquer referência ao nº 2 do mesmo preceito, na qual se contém a apontada exclusão do direito de voto.

Em face disso, alguma doutrina conclui que o quórum deliberativo é calculado sobre a totalidade dos créditos constantes da lista definitiva - ou se esta ainda não existir, dos créditos não impugnados, acrescidos daqueles que, apesar de o terem sido, tenha sido atribuído direito de voto – não havendo, por isso, lugar à aplicação do nº 2 do artº 212[27]. Outra, porém, sustenta que as limitações do direito de voto são de aplicar ao PER, dado que, não obstante a remissão operada ser apenas para o nº do artº 212, o que são considerados créditos com direito a voto, está explicitado nos nºs 2 a 4 do citado preceito[28].

Sem prejuízo da unção devida a quem advogue posição diversa, a razão está do lado do último dos entendimentos expostos.

O quórum deliberativo exigível para a aprovação do plano de recuperação é calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista definitiva de créditos, sem prejuízo de o juiz computar os créditos impugnados, se considerar que há probabilidade séria do seu reconhecimento (artº 17-F nº 3 do CIRE). Todavia, do facto de o quórum deliberativo ter por base os créditos relacionados pelo administrador provisório, não implica, como corolário que não possa ser recusado, que todos os credores constantes da lista de créditos tenham direito de voto.

A lei é terminante em mandar aplicar, à decisão de homologação do plano de recuperação ou de recusa da homologação, com algumas ressalvas, as regras dispostas para aprovação do plano de insolvência no título IX do CIRE (artº 17-F nº 3, in fine, deste mesmo Código). Por força dessa extensão de regime, exige-se, para a aprovação do plano de recuperação, a participação de credores que representem pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, e mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 3, in fine, do CIRE).

Esta previsão supõe, logicamente, que se saiba que créditos é que dispõem de direito de voto. E essa determinação é dada pelo nº 2 do artº 212 do CIRE, que assim delimita, negativamente, aquela previsão.

De resto, a ratio que levou o legislador a impedir, no tocante ao plano de insolvência, o voto do credor cujo crédito não é afectado por esse mesmo plano vale, por inteiro, para o plano de recuperação: desde que plano deixa incólume ou indemne o seu crédito, a esse credor não deve ser concedida a tutela do direito de voto.

A conclusão a tirar é, portanto, a de que os credores cujos créditos não sejam afectados pela parte dispositiva do plano de recuperação não dispõem de direito de voto[29].

Por razões que se explicam por si, ao credor titular de créditos condicionais, devem ser atribuídos os direitos de voto proporcionais à probabilidade da verificação da condição (artº 73 nº 4, in fine, do CIRE). Que a formulação deste juízo de prognose, por assentar num critério de probabilidade é extraordinariamente espinhoso, é coisa que se explica por si. Dificuldade que sobe de tom na ausência de uma proposta de plano, portanto, sem se saber qual a exacta medida em que os créditos condicionais serão afectados por ele. Neste contexto, a atribuição de direitos de voto ao credor condicional redundará, as mais das vezes, num juízo puramente discricionário, senão mesmo arbitrário.

Mas esta discussão deve, no caso, ter-se por inteiramente prejudicada. E por várias razões.

Diz a apelante: o Banco M... não é titular de quaisquer direitos de voto, no tocante à parte do seu crédito reconhecido como condicional, dado que o Tribunal não ponderou nem fixou – como devia - tais direitos de voto.

Esta alegação não é inteiramente exacta.

Além do julgamento expresso, há o julgamento implícito: a decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Quando o juiz da insolvência computa para, achar uma certa maioria de votos, os créditos de um determinado credor, deve presumir-se que, ao ponderar, naquele cálculo, esses créditos, considerou que aquele credor era titular dos direitos de voto correspondentes. Pouco importa que o juiz se não tenha pronunciado expressamente sobre a titularidade dos direitos de voto: desde que os considerou para calcular aquela maioria, há-de partir-se do pressuposto de que, antes se certificou que aqueles créditos atribuam ao respectivo credor os direitos de voto correspondentes.

Nestas condições, a decisão impugnada – que foi clara na indicação do carácter condicional de parte substancial do crédito do Banco M... e no seu cômputo para achar a maioria reclamada para o encerramento prematuro do processo - deve ser entendida no sentido que esse credor dispunha, mesmo no tocante aos créditos condicionais, dos direitos de voto correspondentes.

Ora desta decisão nem sequer cabe recurso (artº 73 nº 4 do CIRE). Maneira que a sentença impugnada, na parte em que atribuiu, ao menos tácita ou implicitamente, ao Banco M... direitos de voto mesmo no tocante à parte em que os seus créditos são condicionais, não é impugnável e, por isso, não constitui objecto admissível do recurso.

Depois, a lei é clara em excluir, como causa de invalidade das deliberações dos credores, a comprovação ulterior de que aos credores competia efectivamente um número de votos diferente daquele que lhes foi conferido (artº 73 nº 6 do CIRE). Regra que, aplicada, mutatis mutandis, à declaração dos credores da impossibilidade de obtenção de uma decisão contratualizada de recuperação e ao cálculo da maioria exigível para o encerramento antecipado do processo negocial, dá este resultado: ainda que devesse assentar em que no cômputo daquela maioria foi reconhecido a um desses credores – no caso, o Banco M... - um número votos diferentes do que lhe competia, ainda assim, haveria que concluir pela verificação do quórum legalmente exigível. Realmente, se uma deliberação de aprovação do plano de recuperação – ou de recusa dessa aprovação - não seria inválida apesar de se reconhecer que a um credor competia, realmente, um número de sufrágios diferente do que lhe foi conferido, então, por aplicação de uma simples regra de lógica, então também deve ter-se por reunida a maioria exigível para a oposição ao prosseguimento do negocial, para a qual concorreu um credor a quem, afinal, competia um número de votos diferente daquele que lhe foi atribuído.

Em qualquer caso, mesmo aceitando-se a recusa da atribuição aos crédito do Banco M... dos direitos de votos correspondentes à parte condicional do seu crédito, ainda assim estariam reunidas quer a maioria legalmente exigível para a declaração do encerramento do processo negocial, quer a minoria de bloqueio suficiente para obstar à reunião daquela maioria.

Mas isto só é assim caso se deva reconhecer o apelado Fundo A... como titular do crédito que reclamou.

Problema que nos remete para a questão da eficácia da cessão de créditos alegada como facto aquisitivo desse mesmo crédito e que constitui um dos nódulos essenciais de discordância da apelante relativamente à decisão impugnada.

3.5. Eficácia da cessão de créditos.

Sem uma preocupação de especial rigor, mas sem erro, bem pode dizer-se que a cessão de créditos é uma forma de transmissão – no todo em parte – do direito de crédito, em resultado de um acordo entre o credor e um terceiro.

Deste enunciado decorre, linearmente, que são três os requisitos da cessão: um acordo entre o credor e o terceiro; consubstanciado num facto transmissivo; a transmissibilidade do crédito. A cessão exige o acordo do credor e do terceiro – mas não do devedor. O que se compreende dado que, exceptuados os casos de não cedibilidade do crédito, para o devedor a cessão é, por regra, indiferente.

Exige-se, portanto, como primeiro requisito, a existência de um negócio com eficácia transmissiva do crédito, ou, noutra terminologia, uma fonte da cessão (artº 578 nº 1 do Código Civil). Mas desse negócio apenas são parte o cedente o cessionário: o que essencialmente caracteriza a cessão é a transmissão do crédito, sem necessidade de consentimento do devedor. Dá-se, por ela, uma transmissão subjectiva da relação – causal – de um sujeito para outro, sem que a relação originária sofra a mínima alteração.

Negócio - que pode consistir, por exemplo, num contrato de compra e venda - e pelo qual a cessão se orienta, tanto no tocante à forma como ao conteúdo (artºs 874 e 879 do Código Civil). Assim cessão, por venda, de um crédito sujeito a escritura pública ou equivalente deve ser feita, também, por essa forma. Identicamente, a cessão de créditos hipotecários exige a escritura pública, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis (artº 578 nº 2 do Código Civil). Neste caso, a cessão está também sujeita a registo (artº 2 nº 1, i) do Código de Registo Predial).

A cessão exige, pois, sempre uma fonte ou uma causa - fonte ou causa que, em princípio, é um contrato. A cessão não constitui, no nosso direito, uma forma de transmissão abstracta do crédito: é um negócio causal – embora de causa variável, na medida em que o seu regime está ortodoxamente ligado à causa – à fonte – que domina a cessão do crédito. A cessão será, por isso, inválida se não existir, pura e simplesmente, um negócio transmissivo ou se este negócio for inválido: invalidade do negócio determinará a invalidade da cessão, como é típico dos negócios causais (artºs 289 a 291 do Código Civil).

A cessão, como qualquer outro negócio jurídico pode ser submetida a uma condição, seja ela suspensiva ou resolutiva (artº 270 do Código Civil).

A condição seja ela suspensiva ou resolutiva, releva, inteiramente, da autonomia privada das partes e, como tal, deve ser respeitada (artºs 270, 405 nº e 406 nº 1 do Código Civil).

A pendência da condição cessa com a verificação ou não verificação; a certeza de que a condição se não verificará equivale à não verificação (artº 275 do Código Civil).

Verificada a condição os seus efeitos retrotraem-se, em princípio, à data da conclusão do negócio a que foi aposta. Portanto, sendo resolutiva, aquele negócio tem-se como não celebrado; sendo suspensiva, opera o início da produção dos efeitos do negócio (artºs 276 e 277 do Código Civil).

Desde o momento da celebração do negócio condicionado e até à altura em que se verifique a condição – ou que haja a certeza de que não se verificará – esta está pendente. A pendência da condição é, assim, o período que medeia entre a celebração do negócio e a verificação ou não da condição.

Durante esse tempo, no caso de condição resolutiva, os efeitos negociais produzem-se plenamente. Todavia, a verdade é que a situação jurídica condicionada é, por definição, uma situação instável, e, consequentemente, uma fonte de conflito de direitos: o titular do direito condicionado é, de algum modo, um titular precário.

A condição opera, naturalmente, uma distribuição de riscos, dado que da sua pendência ou da sua verificação podem ocorrer danos para os intervenientes no negócio. Trata-se, porém, de um risco assumido, por decorrer, por inteiro, da actuação da autonomia privada, que, como tal deve ser suportado, com resignação, pela parte prejudicada.

Pendente condicione, a boa fé desempenha um papel extraordinariamente importante. Assim, se a condição for impedida por aquele que prejudica, tem-se por verificada; se também contra a boa fé, for provocada por aquele a quem beneficia, a condição considera-se não verificada (artºs 272 e 275 nº 2 do Código Civil). Numa palavra: nenhuma das partes pode, contra a boa fé, impedir ou provocar condições.

A boa fé deve, neste contexto, ser entendida em sentido objectivo e, portanto, como a necessidade de, em cada situação jurídica, observar os vectores fundamentais da ordem jurídica[30]. Desta manifestação de boa fé objectiva decorre a exigência da observância, designadamente, do princípio da confiança: na pendência da condição, as partes não devem actuar contra o que, de harmonia com as suas opções negociais, ou pela ordem natural das coisas, iria, em princípio ocorrer, em termos que provocaram a crença ou a expectativa legítimas da contraparte. Deste modo, é de todo contrária a boa fé qualquer actuação das partes que incida sobre o iter formativo da condição desde que, por exemplo, se venha a interferir na sua ocorrência ou não ocorrência, em termos que contrariem a confiança fundada da outra parte.

Se à cessão for aposta uma condição suspensiva, a consequência, do ponto de vista da transmissão do crédito, é só uma: a de que o cessionário não adquirirá o crédito logo no momento da celebração do negócio, mas apenas – se – e no momento em que se verificar a condição; até lá, o cedente permanece como titular do crédito, e, portanto, como credor. Caso seja sujeita a uma condição resolutiva, o cessionário adquire o crédito no momento da celebração do contrato, mas perde-o se a condição se verificar. Abstraindo das regras relativas à protecção do cedente e do cessionário na pendência da condição, é evidente que a cessão condicional de créditos coloca delicadas questões de regime no tocante ao devedor. Pode, realmente perguntar-se se o devedor – que tiver sido notificado da cessão realizada sob condição suspensiva – pode, na pendência da cessão cumprir a sua obrigação. Não faz sentido que realize a prestação ao cessionário, dado que este ainda não adquiriu a qualidade de seu credor, nem sabe se alguma vez a adquirirá. Como também se pode questionar se o cedente pode aceitar o cumprimento, uma vez que tal aceitação pode traduzir-se na infracção dos deveres de boa fé a que está vinculado durante a pendência da condição (artº 272 do Código Civil).

Em qualquer caso, a situação do devedor é de clara desprotecção, uma vez que se se subordina a eficácia do negócio de disposição do direito realizado na pendência da condição, à eficácia do negócio condicional, parece que a verificação da condição suspensiva tornaria ineficaz e, portanto, não liberatório, o pagamento feito ao cedente (artº 274 do Código Civil). Pareceria, assim, ser de admitir que, na pendência da condição suspensiva, mesmo conhecendo a cessão, o devedor possa realizar o cumprimento, com eficácia liberatória ao cedente, por ser a solução que melhor se conjuga com o princípio da protecção do devedor na cessão de créditos, uma vez que, não carecendo esta do seu consentimento, não o pode, porém, colocar em pior situação do que aquela que se encontrava antes da realização da cessão[31]. As regras relativas à pendência da condição não podem, pois, redundar em prejuízo do devedor, não merecendo tutela a posição do cessionário, uma vez que a este sempre seria possível concluir a cessão sem a condição – caso em que adquiriria imediatamente o crédito: tendo optado pela cessão condicionada, concluiu um negócio de risco, devendo ser ele a assumir as desvantagens dessa opção, que passam pela faculdade de o devedor antecipar o pagamento.

Isto é, decerto, exacto, no caso de a denuntiatio da cessão proceder do cessionário. Se, porém, a notificação da cessão tiver sido promovida pelo cedente, outra deve ser a solução, dado que – como melhor se detalhará – aquela notificação tem ínsita uma autorização de cumprimento ao cessionário - e um consentimento de cumprimento liberatório ao cessionário mesmo na eventualidade de a cessão não existir, não ser eficaz, ser nula ou vir a ser anulada.

Concluído o negócio que serve de base ou adquirida eficácia por esse negócio, dá-se, naturalmente, a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, com todas as faculdades que lhe sejam inerentes. Todavia, no tocante ao devedor, a cessão só produz efeitos se lhe for comunicada e a partir do momento dessa comunicação, ou desde que a aceite (artº 583 nº 1 do Código Civil).

A notificação – denuntiatio – tando pode ser judicial como extrajudicial, e tal como a aceitação, não está sujeita a forma especial, podendo, por isso, perfeitamente, a aceitação ser meramente tácita, desde que se deduza de facta concludentiam (artºs 217 e 219 do Código Civil). Tratando-se de declarações receptícias, tanto a notificação como a aceitação só adquirem eficácia quando chegarem ao poder do destinatário ou dele sejam conhecidas, considerando-se também eficazes se só por culpa do destinatário não foram oportunamente recebidas (artº 224 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Da lei resulta, portanto, um mínimo denominador: para que a cessão produza efeitos perante o devedor, este tem que ter dela notícia. Conhecimento que pode ocorrer porque ele próprio a aceitou – expressa ou tacitamente – ou porque dele foi notificado, ou simplesmente, porque dela teve conhecimento. A eficácia da cessão face ao devedor não se produz, pois, em virtude da notificação ou da aceitação – mas por virtude do conhecimento[32].

Não oferece dúvida que a notificação do devedor tanto pode ser promovida pelo cedente como pelo cessionário. E não é, de todo, juridicamente asséptico que a notificação proceda do primitivo credor ou do credor actual.

Se a notificação da cessão proceder do cedente, a denuntiatio consistirá numa pura e simples comunicação de um facto jurídico – a transferência daquele direito a um sujeito. Ao contrário do que sucede quando a notificação seja promovida pelo cessionário, quanto realizada pelo cedente, a comunicação não tem que ser acompanhada de elementos que constituam provas seguras da cessão – v.g., do chamando documento da cessão ou do próprio contrato que gerou a cessão do direito - atendendo ao interesse do devedor cedido em não correr o risco de pagar a terceiro e ter, depois, de cumprir uma segunda vez. A jurisprudência vai até mais longe, concluindo que mesmo o cessionário, tal como cedente, não está obrigado a fazer a acompanhar a notificação da cessão de quaisquer elementos de prova da cessão, maxime, do contrato de cessão[33].

A nossa lei não vincula, ao menos expressamente, o devedor cedido a qualquer ónus de averiguação da legitimidade de quem se apresente como seu novo credor.

Alguma doutrina é do parecer que o devedor não está adstrito a qualquer preocupação de saber se o credor cedeu o crédito e a quem, pelo que a sua eventual negligência não o prejudica, havendo uma presunção de que desconhecia a cessão; se pagar ao cedente depois de ter ocorrido a cessão, não pagará com efeito liberatório. No entanto, ele fica protegido, dado que o novo credor está obrigado a tolerar essa prestação sempre que o devedor ignore a cessão. Inversamente, se o cessionário comunicou a cessão ao devedor, este fica tendo conhecimento dela, pelo que, se cumprir ao cedente, baseando-se, por exemplo, na dúvida sobre a validade da cessão que lhe foi comunicada, actua por seu próprio risco[34].

Outra, porém, é da opinião de que existe um duplo ónus, a cargo do devedor: o ónus de verificação da existência da cessão; o ónus de verificação da sua validade[35]. À luz deste entendimento, não é suficiente a verificação de que ocorreu a cessão a favor de quem se apresenta como cessionário; é ainda necessário aferir da validade da cessão, uma vez que uma cessão nula ou, por qualquer causa, ineficaz, não tem a virtualidade de alterar o destinatário da prestação nem impõe nem consente que o devedor pague ao pretenso cessionário. Relativamente ao devedor, a notificação assume, realmente, a função de lhe dar a conhecer a cessão e uma tal função não pode ser assegurada por uma comunicação que dê notícia indemonstrada, inidónea a ilidir a presunção da titularidade do crédito a favor do credor originário.

Mas esta conclusão só deve ter-se por exacta quando a comunicação da cessão procede do cessionário. Se, porém, a notificação tiver sido promovida pelo cedente, não há qualquer motivo para o cedido duvidar da existência e da eficácia do negócio, uma vez que é o próprio credor, directamente interessado no cumprimento que assinala a modificação da relação[36]. Efectivamente, se a notificação da cessão ao devedor proceder do cedente, a denuntiatio vale, além do mais, como indicação, por parte daquele, para realizar a prestação ao cessionário, que se deve manter em caso de falta, invalidade ou ineficácia de cessão (artº 770 a) do Código Civil)[37].

Em boa verdade, a notificação da cessão pelo cedente contém, necessariamente, uma autorização de cumprimento ao cessionário, na eventualidade de a cessão não existir, não ser eficaz, ser nula ou vir a ser anulada. Para além de comunicar ao cedido a transferência do direito de crédito, a notificação contém igualmente um consentimento de cumprimento liberatório ao cessionário no caso de ele, vir a ser, ou vir a ser mais tarde, um terceiro. Maneira que, quando o devedor é informado da cessão pelo cedente, a comunicação tem por conteúdo também a informação de que aquele fica autorizado a cumprir face ao terceiro, se o negócio base não se tiver realizado, for ineficaz, nulo ou se, por força da verificação de uma condição resolutiva ou da anulação, vier a ser retroactivamente destruído[38].

E estas considerações permitem responder a uma questão deveras espinhosa: a consequência jurídica de notificação ao devedor de uma cessão que não se verificou ou que se encontra ferida, por qualquer causa, com o vício da ineficácia. Uma primeira resposta passaria pela afectação da notificação pela inexistência ou pela invalidade da cessão, caso em que o devedor não ficaria liberado se realizasse a prestação ao pretenso cessionário, solução que, porém, seria extraordinariamente violenta para o devedor, em face do princípio da ineficácia do cumprimento ao credor aparente (artº 770 f) do Código Civil). Contudo se a notificação da cessão ao devedor proceder do cedente, a denuntiatio deve valer como indicação, por parte daquele, para realizar a prestação ao cessionário, que se mantem mesmo em caso de falta de cessão (artº 770 a) do Código Civil)[39]. Portanto, o devedor que cumpriu perante o cessionário depois de ter sido notificado pelo cedente deve, pois, estando de boa fé, ficar definitivamente desonerado. Não seria, realmente, razoável que, em virtude da inexistência, da não produção do efeito translativo – ineficácia em sentido estrito e nulidade – ou destruição retroactiva dos efeitos produzidos pelo negócio fonte da cessão – anulabilidade – o cumprimento perante o cessionário ficasse sem efeito liberatório e o devedor vinculado a cumprir de novo ao cedente: os riscos da inexistência, da ineficácia e da invalidade do negócio base da cessão – a que o devedor é inteiramente estranho – não devem recair sobre ele, dado que não teve qualquer intervenção na cessão.

Mas se ao cumprimento, ao cessionário, pelo devedor, neste contexto, se deve reconhecer um efeito liberatório, em contrapartida, deve, nesses mesmos condicionalismos, ter-se por ilícita qualquer recusa em cumprir face ao cessionário ou mais limitadamente, qualquer oposição à tutela que o cessionário reclame para o crédito cedido, por exemplo, através do processo de insolvência ou da reclamação, no processo especial de revitalização promovido pelo devedor, desse mesmo crédito.

Na espécie do recurso, a apelante não discute – nem, realmente, tem motivo para discutir - a existência dos créditos na titularidade dos cedentes, mas apenas a eficácia, relativamente, a si, da sua aquisição pelo Fundo A...

Mas a irrecusável verdade é que não deve oferecer dúvida séria aquisição, por cessão – rectior, por contrato de compra e venda - pelo apelado, em 20 e 21 de Junho de 2014, através da entidade que o gere – O..., SA, - à C..., à P ... SA e ao Banco E..., SA dos créditos detidos por estes sobre a apelante. Também não deve duvidar-se que à cessão foi aposta uma pluralidade de verdadeiras condições suspensivas – a subscrição de unidades de participação do cessionário no valor mínimo de € 300.000.000,00 e a celebração de outros contratos de cessão com o Banco C..., a C..., SA e o Banco P... - competindo ao cessionário a constatação da sua verificação e a comunicação essa verificação aos cedentes, que, por sua vez, assumiram a incumbência de proceder a notificação ao cedido.

Ambas as condições suspensivas apostas aos contratos de cessão foram inteiramente preenchidas, tendo o cessionário comunicado aos cedentes, essa verificação. Cedentes – A C..., A P ... SA, e o Banco E..., SA, que, por sua vez, nos dias 30 de Junho, 3 e 10 de Julho, comunicaram à apelante das respectivas cessões. Note-se que os cedentes não comunicaram à apelante uma cessão condicional e, portanto, ineficaz – mas uma cessão perfeita, concluída: no momento da comunicação da cessação, a condição suspensiva que lhe foi aposta já se tinha verificado e, portanto, o negócio subjacente – a compra e venda - já tinha produzido o efeito transmissivo do crédito que lhe é conatural.

Em face deste conjunto de factos é meramente consequencial quer a eficácia do negócio transmissivo – por verificação das condições a que foi subordinado - quer da cessão no tocante à apelante, cedida. Aliás, desde que a notificação da cessão foi feita pelos cedentes – de harmonia com a doutrina exposta que se tem por exacta - aqueles não estavam vinculados a fazê-la acompanhar de quaisquer elementos de prova, designadamente da verificação das condições suspensivas apostas ao negócio transmissivo, dado que a apelada – atenta a qualidade do notificante – não tinha - ou não deveria ter - qualquer razão fundada para duvidar da existência e da eficácia do negócio, pelo que o acto de cumprimento que, eventualmente, realizasse ao cessionário era inteiramente liberatório. E como as apontadas notificações das cessões, por procederem do cedente, valem como indicação, por parte daqueles, para a apelante realizar a prestação ao cessionário, autorização que mantem mesmo em caso de falta, invalidade ou ineficácia da cessão - pelo que o eventual pagamento ao cessionário se teria sempre por liberatório – as reservas da apelante à existência do crédito – melhor se diria à titularidade dele pelo Fundo A... – não são sérias.

Maneira que, vistas as coisas mais de perto, a única prova a que apelado Fundo A... estava, verdadeiramente, vinculado a produzir no contexto da reclamação de créditos era a da notificação, pelos cedentes, da cessão. Realmente, desde que a notificação não procedeu do cessionário, a única condição da sua eficácia no tocante à apelante era a nuda denuntiatio da cessão, não parecendo que ao devedor, depois de notificado da cessão pelo cedente, assista o direito – ou esteja vinculado ao ónus - de exigir, ao cessionário, a prova da verificação da existência da cessão ou da sua validade ou eficácia.

Mesmo descontando a eventual incorrecção destas considerações, a exacto é, em todo o caso, que o apelado, Fundo A..., produziu prova quer da eficácia do contrato transmissivo – por verificação da condição nele convencionada – que da eficácia, no tocante à apelante, da cessão.

A apelante obtempera, porém, que essa prova – documental – não foi junta, como deveria, logo com a reclamação em o apelado, Fundo A..., que pediu a verificação e a graduação do seu crédito - o que é exacto.

Mas esta objecção não resiste a um exame, ainda que leve, das regras de proposição da prova documental, no contexto do PER, na causa incidental da reclamação de créditos.

De forma intencionalmente redutora, pode dizer-se que a reclamação, verificação e graduação de créditos obedece, no PER, aos seguintes trâmites: o credor da insolvência reclamante deve - no prazo de 20 dias, contado da publicação no Portal Citius do despacho de nomeação do administrador provisório - apresentar um requerimento dirigido àquele administrador em que invoca o seu crédito e alega, designadamente, a sua natureza como comum, subordinado, privilegiado ou garantido (artº 17-D nº 2 e 128 nºs 1 e 2 a) e c) do CIRE). Com o requerimento devem ser juntos os documentos comprovativos dos factos alegados pelo credor reclamante (artº 128 nº 1, in fine, do CIRE). Vale, portanto, no processo de insolvência, uma regra absolutamente homótropa à da lei adjectiva geral (artº 423 nº 1 do nCPC).

Decorre deste regime que o juiz não tem, assim, em princípio, acesso aos requerimentos de reclamação, nem aos documentos juntos pelo credor reclamante, já que o administrador não é obrigado a juntá-lo aos autos nem a apresentá-los ao juiz, o que – convenha-se – não facilita muito a sua compreensão dos litígios eventualmente subjacentes à reclamação.

Esgotado o prazo da reclamação, o administrador deve, nos 5 dias subsequentes, apresentar, na secretaria judicial, a lista provisória dos créditos reconhecidos – com indicação, designadamente da identidade de cada credor, da natureza e valor, capital e juros, do crédito, e das garantias, pessoais ou reais, ou dos privilégios - e não reconhecidos (artºs 17-D nºs 2, in fine, e 3, e 129 nºs 1 e 2 do CIRE).

Esta lista está sujeita a impugnação que deve ser deduzida, por qualquer interessado, por requerimento dirigido ao juiz, no prazo de 5 dias úteis contado da sua publicação no Portal Citius, contestação que pode fundamentar-se na indevida inclusão ou exclusão dos créditos, ou na incorrecção do seu valor ou da sua qualificação; o juiz dispõe de igual prazo para decidir as impugnações apresentadas (artºs 17-D nº 3 130 nº 1 do CIRE). Por qualquer interessado entende-se naturalmente também qualquer credor: qualquer credor pode contestar qualquer crédito que possa concorrer com o crédito que ele reclama. E como o concurso se baseia na oponibilidade recíproca das várias causas de preferência dos credores reclamantes, antes da respectiva graduação, nenhuma dessas causas pode ser considerada indiscutível. Deste modo, qualquer credor reclamante pode impugnar as garantias invocadas por qualquer outro credor.

Na falta de impugnações, a lista provisória créditos converte-se em definitiva (artºs 17-D, nº 4 e 130 nº 3 do CIRE). Deste regime decorre que a falta de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência produz um efeito cominatório pleno[40], pois que eles ficam imediatamente reconhecidos, limitando-se o juiz a converter em definitiva a lista provisória. E se os créditos devem ser reconhecidos por falta de impugnação, nada mais importa averiguar, pelo que o tribunal deve proferir sentença homologatória que conheça da sua existência e os gradue pela ordem que lhes competir.

A cominação não opera, portanto, apenas relativamente aos factos – mas quanto aos factos e ao direito: na falta de impugnação de crédito reconhecido pelo administrador, o crédito considera-se definitivamente reconhecido. Se, realmente, o administrador reconheceu o crédito reclamado e nenhum credor, tendo sido colocado em condições de o fazer, compareceu a exercer o seu direito de contradição ou impugnação, a ordem jurídica interpreta, legitimamente a atitude do credor como sinal inequívoco de que nada tem a opor à pretensão do credor reclamante e ao reconhecimento, pelo administrador do respectivo crédito.

Portanto, o credor reclamante deve oferecer, com a reclamação, na qual alega o seu crédito e pede o seu reconhecimento e a sua graduação, a prova documental pertinente. Mas se a não oferecer nesse momento, nem por isso, fica irremediavelmente precludida a faculdade de a produzir em momento ulterior. Valem, portanto, no processo de insolvência, quanto à produção da prova documental, as regras gerais (artºs 423 nºs 1 e 2 do nCPC, ex-vi artº 17 do CIRE). De modo que o credor que não tiver oferecido a prova documental logo com a petição da reclamação ou da impugnação, pode ainda apresentá-la até ao momento em que ela ainda puder ser atendida pelo tribunal, portanto, até ao proferimento da decisão das impugnações deduzidas, sem prejuízo do apresentante ficar incurso em pena processual de multa, a menos que demonstre que a não pode produzir com a reclamação ou com a impugnação conforme o caso. Tal como está construído, o PER exige uma decisão célere; convém, porém, que a além de pronta a decisão seja justa e fundada no direito.

Um dos motivos que calou fundo no ânimo do decisor da 1ª instância para julgar improcedente a impugnação deduzida pela apelante contra o crédito alegado pelo Fundo A..., consistiu no facto de o recorrente ter indicado, na petição inicial do procedimento, aquele Fundo como seu credor – o que é verdade, embora a benefício da exactidão se deva dizer que crédito foi indicado, com as qualidades de vencido – mas de subordinado.

 Segundo a decisão impugnada, desde que o apelante em sede de requerimento inicial reconheceu o Fundo A... como credor, ao vir agora, em sede de impugnação, alegar que não deveria sequer ser reconhecido, actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

E nas pródigas conclusões com que a apelante rematou a sua alegação, não se alinha um único argumento destinado a inculcar a inexactidão daquele fundamento de improcedência da impugnação.

Em primeiro lugar, a indicação de um credor cessionário na relação com que o devedor deve instruir a petição inicial do PER, vale como aceitação tácita da cessão e da sua validade e eficácia. Realmente, aquela indicação constitui um facto concludente da aceitação de uma coisa e outra, dado que o devedor convencido ou seguro da inexistência, da invalidade ou da ineficácia da cessão de créditos, ou, na hipótese mais benigna, com dúvidas fundadas sobre qualquer daquelas circunstâncias, não arrola o cessionário como seu credor nem se propõe estabelecer com ele negociações.

Depois, a verdade é que o devedor que, depois de arrolar o cessionário como seu credor, impugna o crédito alegado por este com fundamento na sua inexistência, por falta ou ineficácia da cessão, actua, realmente, em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

O abuso do direito – que é de conhecimento oficioso[41] - deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[42].

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento – e o afinamento ético do Direito moderno - é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, é reconduzido ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório[43], embora não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[44] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[45]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[46]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[47]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.

 Assim, por exemplo, uma pessoa que manifeste, por qualquer modo, a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas que acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[48].

Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[49]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[50].

O venire contra factum proprium é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão.

Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.

Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.

Note-se que a aplicação destes pressupostos, após a sua enumeração e verificação no caso concreto, não é automática: antes devem ser objecto de uma ponderação global, in concreto, para se aferir se existe uma exigência ético-jurídica de impedir a conduta contraditória, designadamente por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante e – o que é mais – por a situação conflituar, exasperadamente, com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo.

O principal efeito do venire é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.

Pergunta-se: um devedor que na petição inicial do processo especial de recuperação arrola como seu credor um cessionário e que, depois, confrontado com a reclamação desse credor, impugna o crédito com fundamento na sua inexistência, assente na falta ou ineficácia da cessão, age contra facta propria, e, portanto, em abuso do direito?

A resposta deve ser afirmativa. Realmente, um credor normal, colocado na posição do apelado, Fundo A..., podia objectivamente confiar que, tendo sido indicado, pelo devedor, como seu credor, aquele não impugnaria, depois, o seu crédito, com fundamento na sua inexistência.

O devedor que, neste contexto, cria, naquele credor, por força da sua indicação, uma tal convicção mas depois, age como se fosse ele realmente o não fosse, age contra facta propria e, por conseguinte, de forma abusiva. Havendo abuso, a inibição do exercício, contra o apelado, Fundo A..., do direito de impugnar o crédito reclamado por este é meramente consequencial. O abuso resolve-se excepção peremptória que impede ou extingue o direito actuado abusivamente – no caso o direito de impugnar a reclamação - e, constitui, por isso, causa fundada de improcedência dessa mesma reclamação.

O crédito do Fundo A..., deve, pois, ser reconhecido. E o valor desse crédito, adicionado dos demais credores que também pediram a cessação antecipada do processo negocial, permite reunir a maioria exigível – ou a minoria de bloqueio – para o encerramento prematuro do processo.

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente.

Síntese conclusiva:

a) É o credor reclamante que está vinculado ao ónus de provar o facto constitutivo – e, se for esse também o caso, transmissivo - do crédito reclamado, mas não os factos que importam a sua subordinação, cuja prova, por se resolverem em factos modificativos do crédito alegado – e, portanto, numa excepção peremptória - onera a parte a quem aproveita essa subordinação;

b) Entende-se por administrador de facto a pessoa que age, directa ou indirectamente, de forma autónoma – não subordinada - como administrador de direito – mas sem possuir essa qualidade funcional;

c) Os requisitos da subordinação de créditos assente numa relação especial com o devedor são cumulativos: o crédito deve ser detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor, no contexto dessa vinculação especial, nos dois anos anteriores ao da proposição da acção de insolvência;

d) O momento que releva para qualificação como subordinado do crédito é o da sua constituição e não o momento da sua cessão, dado que o novo credor adquire o crédito com as exactas qualidades que ele patenteava no momento da transmissão;

e) A competência para a declaração do encerramento do processo especial de recuperação, cabe ao juiz da insolvência, sendo da competência do administrador judicial provisório apenas a declaração do encerramento do processo negocial;

f) A violação, pelo juiz da insolvência da competência funcional do administrador judicial provisório dá lugar a uma simples nulidade processual, inominada ou secundária – e não a uma nulidade da sentença – que, se não for tempestivamente arguida, se sana;

g) O processo negocial deve também ter-se por encerrado quando a declaração da impossibilidade da aprovação do plano de recuperação proceda de uma minoria de bloqueio, i.e., proceda de credores com os votos suficientes para impedir a obtenção de um qualquer dos quóruns exigidos para a aprovação daquele plano;

h) Quando o juiz da insolvência computa para, achar uma certa maioria de votos, os créditos de um determinado credor, deve presumir-se que, ao ponderar, naquele cálculo, esses créditos, considerou que aquele credor era titular dos direitos de voto correspondentes;

i) O oferecimento, no procedimento da reclamação de créditos, da prova documental, obedece às regras gerais, pelo que, se esta prova não for produzida logo com o requerimento da reclamação, não fica irremediavelmente precludida a faculdade do seu oferecimento em momento posterior, sem prejuízo da eventual sujeição do credor reclamante a pena processual de multa;

j) Se a notificação da cessão do crédito proceder do cedente, a denuntiatio consistirá numa pura e simples comunicação de um facto jurídico – a transferência daquele direito a um sujeito terceiro - pelo que, ao contrário do que sucede – segundo certo entendimento do problema - quando a notificação seja promovida pelo cessionário, quanto realizada pelo cedente, a comunicação não tem que ser acompanhada de elementos que constituam provas seguras da cessão – v.g., do chamando documento da cessão ou do próprio contrato que gerou a cessão do direito;

l) A notificação da cessão ao devedor feita pelo cedente, vale, além do mais, como indicação, por parte do último, para realizar a prestação ao cessionário, que se deve manter em caso de falta, invalidade ou ineficácia de cessão, dado que contém igualmente um consentimento de cumprimento liberatório ao cessionário no caso de ele vir a ser, ou vir a ser mais tarde, um terceiro;

m) Age com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o devedor que impugna, com fundamento na sua inexistência, um crédito detido por quem, na petição inicial do procedimento de recuperação, indicou como seu credor e com o qual se propôs encetar negociações com vista à sua revitalização.

As custas do recurso serão satisfeitas, por força da sua sucumbência, pela apelante (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo apelante.

                                                                                              15.04.21

                                                                       Henrique Antunes (Relator)

                                                                       Isabel Silva

                                                                       Alexandre Reis

                                                          


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[1] De harmonia com a doutrina que se tem por exacta, a enumeração dos casos de relacionamento especial com o devedor deve ter-se por taxativa. Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código Insolvência e de Recuperação de Empresas Anotado, Quid Uris, Lisboa, 2008, pág. 232, nota 2 e os Acs. da RC de 10.07.13 e da RP de RP de 19.11.13,www.dgsi.pt; contra Luís M. T. Meneses Leitão, Direito da Insolvência, 4ª edição, Almedina Coimbra, 2012, pág. 215.
[2] Ac. da RG de 23.02.10, www.dgsi.pt., José Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades, (Estrutura e Organização Jurídicas de Empresas Plurisocietárias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 79, Ricardo Costa, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 646 e ss., e Pedro Alexandre Azevedo do Nascimento, A Responsabilidade dos Gerentes e Administradores de Facto no CIRE, Dissertação de Mestrado, UCP, Porto 2012, disponível em repositório.ucp.pt:10400.14/9727, págs. 7 a 14.
[3] Ricardo Costa, “Responsabilidade civil societária dos administradores de facto, in, IDET/Almedina, Coimbra, 2006 pág. 29.
[4] Ricardo Costa, Responsabilidade Civil, cit., pág. 29.
[5] É realmente, comum o distinguo entre administradores de facto aparentes, administradores de facto ocultos sobre outro título e administradores de facto na sombra (shadow directors): Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 99 e 100.
[6] Artº 4 nº 2 do Regime Jurídico dos do Organismos de Investimento Colectivo (OIC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 63-A/2013, de 10 de Maio.
[7] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pág. 207.
[8] No sentido de que se trata de presunção iuris et de iure, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 234, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 112, e Maria do Rosário Epifânio, Manuel do Direito da Insolvência, 3ª edição, 2011, pág. 211; contra Luís M. Martins, A. Raposo Subtil, et al, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Vida Económica, Lisboa, 2006, pág. 138. Admite-se, contudo, o perigo de fazer pagar o justo pelo pecador, como nota Gonçalo Andrade e Castro, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os créditos, in Direito e Justiça, vol. XIX, II, 2005, pág. 271.

[9] Que é um simples acordo pré-contratual intermédio, i.e., um acordo não contratual, preparatório da celebração de um contrato, tendo apenas por efeito a criação de deveres pré-contratuais de iniciar ou de prosseguir nas negociações. Cfr. E. Santos Júnior Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, Conceito, Fontes, Formação, 2ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 113, E. Santos Júnior, “Acordos intermédios: entre o início e o termo das negociações para a celebração de um contrato, ROA, 57 (1997), págs. 565 a 604, Luís Menezes Leitão, Negociações e Responsabilidade Pré-Contratual nos Contratos Comerciais Internacionais, ROA, 60, (2000), págs. 47 a 51, Calvão da Silva, Negociação e Formação do Contrato, “Estudos de Direito Civil e Processo Civil, (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1999, pág. 29 e José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Mercantis, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 95.
[10] Assim já a decisão singular do Relator de 16.07.14, www.dgsi.pt. Assim, também, para o caso paralelo da presunção de má fé do terceiro para a resolução em benefício da massa de actos praticados ou omitidos por pessoa especialmente relacionada com o insolvente (artº 120 nº 4 do CIRE).
[11] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 20.
[12] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22, e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[13] Ac. da RP de 13.02.95, CJ, 95, II, pág. 242.
[14] Ac. da RC de 07.06.94, BMJ nº 438, pág. 569.
[15] Ac. do STJ de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.
[16] Acs. da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 633, do STJ de 21.10.88, BMJ nº 380, pág. 444 e de 30.05.89, BMJ nº 387, pág. 456 e da RC de 21.01.92, CJ, I, pág. 86.
[17] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. pág. 472.
[18] Por razões que decorrem dos princípios de aplicação da lei no tempo – designadamente do princípio tempus regit actum – ao caso do recurso não são aplicáveis as alterações introduzidas no CIRE – designadamente no artº 17-F - pelo artº 4 do Decreto-Lei nº 26/2015, de 6 de Fevereiro (artº 12 nºs 1 e 2 do Código Civil).
[19] Assim, para o lugar paralelo, da violação pelos órgãos da execução singular – o juiz da execução e o agente da execução – da respectiva competência funcional, Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, pág. 81.
[20] Embora a lei seja, de todo, omissa, quanto à necessidade da declaração de encerramento e quanto à entidade competente para o fazer. Cfr., Alexandre Soveral Martins, “O PER (Processo Especial de Revitalização)”, in Ab INSTANTIA – RIC, AB, Ano 1, nº 1, 2013, Almedina, Coimbra, pág. 37 e ss.
[21] Em sentido diferente – assente na proposição, ainda que formulada em termos dubitativos – de que parece que a lei pretendeu equipar o encerramento do processo negocial ao encerramento do próprio per, Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER, O processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 158; no sentido do texto, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 491.
[22] Notar-se-á, todavia, que a articulação entre os dois quóruns deliberativos, por referência ao quórum constitutivo, suscita algumas dificuldades interpretativas. Uma proposta de solução consiste em determinar qual o número de votos emitidos, favoráveis e desfavoráveis, que correspondem a créditos não subordinados e, depois, confirmar se, desse número total, mais de metade correspondem a votos favoráveis. Realmente interessa que a maioria que aprova o plano respeite não só a vontade maioria dos votos emitidos na assembleia de credores - mas também a vontade da maioria dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, ou, ao contrário, que a vontade agravada da maioria – créditos subordinados e não subordinados – não prevaleça face à vontade dos credores titulares de metade dos créditos não subordinados que merecem especial tutela.
[23] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “A natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[24] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[25] Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Iuris, Lisboa, 2013, págs. 179 e 180.
[26] Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER, cit., págs. 162 e 163, e Alexandre Soveral Martins, Um Curso, cit., pág. 491, nota 79.
[27] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Órgãos da insolvência, Quid Iuris, Lisboa, 2009, pág. 110.
[28] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, 2ª edição, Almedina , Coimbra, 2012, págs. 62 e 63.
[29] Acs. da RL de 23.01.14, e desta Relação de 01.04.14 – relatado pelo mesmo juiz que neste processo exerce a função de relator - www.dgsi.pt.
[30] António Menezes Cordeiro - Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 518 e 519, e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 1984, págs. 837 e 838 - para quem há aqui uma manifestação da regra mãe do tu quoque, baseada na própria boa fé. No sentido de que a boa fé tem aqui um alcance ético semelhante ao referido no artº 227 do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, 1987, Coimbra, pág. 252.
[31] Menezes Leitão, Cessão de Créditos, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 476 e 477.
[32] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 310, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 725.
[33] Acs. da RL de 24.04.08 e 18.11.08, www.dgsi.pt.
[34] Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, tradução espanhola, Madrid, 1958, pág. 462.
[35] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, II., cit. pág. 299, Vincenzo Panuccio, La Cessioni dei Creditti, Enciclopedia del Diritto, IV, Milano, 1960, pág. 875, Bianca, Diritto Civile, 4, l´Obbligazione, Milano, 1997, pág. 605.
[36] Vicenzo Panuccio, Cessioni del Crediti, cit., pág. 875.
[37] Menezes Leitão, Cessão de Créditos, cit., pág. 363.
[38] Pestana de Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência, Coimbra Editora, 2007, págs. 438 e 439.
[39] Menezes Leitão, Cessão de Créditos, cit., pág. 363.
[40] Ac. do STJ de 20.05.10, www.dgsi.pt.
[41] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157, e VII, III, pág. 124.
[42] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, cit., págs. 247 e 248.
[43] A proibição era já conhecida antes do actual Código Civil. Cfr. Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73 e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[44] Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420.
[45] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, cit., § 28.
[46] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, cit., pág. 742 e 745 e Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, págs. 9, 101, 169 e 227 e Acs. do STJ de 22.11.94, BMJ nº 441, pág. 305, de 04.10.79, BMJ nº 290, pág. 352, de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454, de 03.10.91, BMJ nº 410, pág. 776, da RC de 03.12.91, CJ, V, pág. 79, da RL de 17.06.86, CJ, IV, 143 e da RC de 11.05.89, CJ 89, III, pág. 192 e de 18.11.93, CJ, V, pág. 219.
[47] Acs. da RP de 19.12.96, CJ, V, pág. 226, da RL de 29.11.94, CJ, V, pág. 50, da RP de 18.11.93, CJ, V, pág. 219, da RC de 3.12.91, CJ, V, pág. 79, e da RP de 15.05.90, CJ, III, pág. 194.
[48] Acs RP de 29.09.97, CJ, V, pág. 200 e do STJ de 3.05.90, BMJ nº 397, pág. 454. Para uma definição doutrinária de abuso de direito, cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 43.
[49] Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium)” no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 294 e 295.
[50] Trata-se, aliás, de um domínio em que a invocação do venire é feita de forma intensiva. Cfr., v.g., Acs. da RE de 11.11.93, da RC de 16.01.90, da RL de 26.11.87, RP de 11.05.89 e de 29.9.97, CJ, V, pág. 283, I, pág. 87, V, pág. 128, III, pág. 192 e IV, 200, respectivamente. A solução não é inteiramente isenta de reparos. É que tratando-se de nulidade típica, esta além de arguível por qualquer das partes é de ofício cognoscível pelo tribunal (artº 289 do Código Civil). Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., vol. II, pág. 754 e Acs. da RL de 18.03.93 e de 02.02.95, CJ, II, pág. 111, e I, pág. 115, respectivamente.