Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1325/16.9T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO
PENHORA DOS MESMOS BENS
EXECUÇÃO FISCAL
VENDA DE CASA DE HABITAÇÃO
Data do Acordão: 04/08/2019
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 794º, Nº 1 DO NCPC; LEI N° 13/2016, DE 23 DE MAIO. ARTºS 219º, Nº 5 E 244º, Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO.
Sumário: I – Dispõe o nº 1 do artº 794º do NCPC, o seguinte:
“Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.”.

II - O nº 5 do artº 219.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário dispõe: “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º ”

Por sua vez, o nº 2 do artº 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário preceitua: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar...

III – A administração tributária não pode vender o imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar no âmbito de uma execução por si instaurada, mas já pode ser paga pelo produto da venda desse imóvel no concurso com outros credores do mesmo devedor, dado que a limitação legal criada apenas se aplica no âmbito da execução instaurada para satisfação de créditos fiscais. Daqui decorre que a administração fiscal pode apresentar-se a reclamar créditos de impostos no âmbito de processos de execução comum, na hipótese de a casa de morada de família ter sido primeiramente penhorada numa execução comum, mesmo que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar (como acontece quando o imposto devido é IMI ou IMT) e ainda que arrecade a totalidade do produto da venda.

IV - Não se verifica o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando, citados os credores comuns (isto é, não fiscais) do devedor na sequência da penhora de imóvel abrangido pela sua garantia, estes se apresentem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, por ser este o processo em que a penhora é mais antiga. O regime instituído pela Lei n.º 13/2016 não pode implicar nem isentar os credores comuns do concurso da fazenda nacional (o que, aliás, teria como consequência um injustificado favorecimento dos particulares em detrimento do Estado), nem isentar esta fazenda do concurso dos credores comuns.

Decisão Texto Integral:



O recurso é o próprio, foi recebido no modo de subida correcto e no efeito devido (despacho de 15/02/2019).
Uma vez que, ponderada a questão suscitada no presente recurso, se afigura ser simples a respectiva resolução, passa-se a proferir decisão sumária (Art.º 656º, 652º n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC).
I - A) – Na acção executiva para pagamento de quantia certa, que, com base em escritura de mútuo com hipoteca, o “BANCO C..., S.A.” (doravante B...), instaurou contra L... e C..., tendo sido sustada a execução em relação ao bem penhorado sob a verba nº 2, em virtude da existência  de  penhora anterior efectuada em execução fiscal, a Mma. Juiz do Juízo de Execução de Alcobaça relegou o Exequente, quanto à venda desse bem, para o âmbito dessa execução fiscal, sendo que nesta a administração fiscal não procede à venda, nos termos da Lei n° 13/2016, de 23 de Maio, em virtude do imóvel penhorado se destinar à habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar.


B) - Inconformada com tal decisão, dela veio apelar o Exequente, que, a findar a respectiva alegação recursiva, ofereceu as seguinte conclusão:
«No caso de a Administração Tributária decidir não proceder à venda, em execução fiscal, de imóvel penhorado na mesma, em virtude de o mesmo se destinar à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, nos termos da Lei n° 13/2016, de 23 de Maio, o credor comum que viu sustada execução própria, em virtude da existência da penhora anterior sobre o mesmo imóvel, efectuada pela Administração Tributária, tem o direito de requerer o prosseguimento da execução sustada, com a venda do imóvel nessa mesma execução.
Neste termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, prosseguindo os seus termos a execução na qual foi proferido o despacho recorrido, com a venda do imóvel penhorado (...)”.
II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho3, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a  outra que  antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer  tal  classificação  o que          meramente       são     invocações,      “considerações,         argumentos,          motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”4  e que o Tribunal,   embora

3 Código este que é o aplicável, uma vez que a decisão recorrida foi proferida já na sua vigência.

4 Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.


possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está   obrigado a apreciar.
Assim, a questão a resolver resume-se a saber se o Exequente tem o direito a ver proceder à venda, na execução sustada, do bem anteriormente penhorado na execução fiscal no caso de a Administração Tributária decidir não proceder à venda nessa execução, em virtude de o imóvel em causa se destinar à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, nos termos da Lei n° 13/2016, de 23 de Maio.
III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.
B) – O mesmo bem pode ser penhorado em duas ou mais execuções, dispondo, para esse caso, o nº 1 do artº 794º do NCPC, o seguinte:
Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.”.
A Lei nº 13/2016, de 23/55, veio alterar o Código de Procedimento e de Processo Tributário e a Lei Geral Tributária.
Assim, de acordo com as alterações introduzidas por essa Lei importa atentar:
O nº 5 do artº 219.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário dispõe: “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º ”
Por sua vez, o nº 2 do artº 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário preceitua: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”.
Atentemos nas seguintes reflexões de J. H.Delgado de Carvalho sobre a interpretação e as repercussões da Lei nº 13/20166:

5  DIÁRIO DA REPÚBLICA N.º 99/2016, SÉRIE I DE 2016-05-23.
6 Em “AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N.o 13/2016, DE 23/5, NO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO E NA LEI GERAL TRIBUTÁRIA E AS SUAS REPERCUSSÕES         NO         CONCURSO         DE         CREDORES”,        consultável                                   em


«[…] Se bem percebemos o sentido do texto da Lei n.º 13/2016, a possibilidade de a administração tributária exercer as garantias reais ou os graus de preferência pelo pagamento depende de um único critério: a natureza da garantia ou preferência pelo pagamento invocada pela administração fiscal para  a satisfação do seu crédito. Ou seja, o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente só opera quando a garantia real (em sentido impróprio) invocada pela administração fiscal for a prevista no art. 822.º, n.º 1, do CCiv. Note-se que foi essa conclusão a que chegamos quando da discussão sobre a natureza da medida de proteção da casa de morada de família implementada através da Lei n.º 13/2016 (cf. supra n.ºs 3 e 4 do ponto IV). Só esta interpretação, de resto, é compatível com a inoponibilidade aos demais credores da proibição da venda nas execuções instauradas por iniciativa do Estado. Com efeito, as restrições à realização da venda não são oponíveis aos  credores comuns do devedor, como é o credor hipotecário. O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente apenas vale nas execuções instauradas para cobrança de créditos fiscais, ou seja, aquele impedimento funciona sempre que a venda da casa de morada de família se destine a satisfazer créditos de natureza fiscal.
3. Uma vez expostas estas proposições, importa retirar a seguinte conclusão: a administração tributária não pode vender o imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar no âmbito de uma execução por si instaurada, mas já pode ser paga pelo produto da venda desse imóvel no concurso com outros credores do mesmo devedor, dado que a limitação legal criada apenas se aplica no âmbito da execução instaurada para satisfação de créditos fiscais. Daqui decorre que a administração fiscal pode apresentar-se a reclamar créditos de impostos no âmbito de processos de execução comum, na hipótese de a casa de morada de família ter sido primeiramente  penhorada numa execução comum, mesmo que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar  (como  acontece  quando  o  imposto  devido  é  IMI  ou  IMT)  e  ainda    que

https://drive.google.com/file/d/0B_2uiKt1Gu35SFZOM1hHSWFxZTQ/view, com “link”  no endereço https://drive.google.com/file/d/0B_2uiKt1Gu35SFZOM1hHSWFxZTQ/view (Bolg do IPPC).


arrecade a totalidade do produto da venda. Note-se que, em tal caso, a casa de morada de família não é objeto de venda para satisfação de um crédito de natureza fiscal, nem a garantia invocada pela administração fiscal é a penhora. No concurso com os demais credores do devedor, a administração fiscal faz valer os privilégios creditórios, gerais ou especiais, que por lei lhe são reconhecidos. (...)
Uma vez que é de admitir que a administração fiscal se possa apresentar a reclamar créditos para fazer valer os privilégios creditórios de que beneficia quando em concurso com os credores comuns do devedor, então há que entender que é indiferente o processo de execução no qual se realiza o concurso de credores. Dito de outra forma, não funcionando a proibição da venda quando esta seja realizada para satisfazer conjuntamente créditos fiscais e créditos não fiscais, a fase de concurso de credores tanto pode ser aberta no âmbito da execução fiscal como no âmbito da execução comum. Tudo depende do processo em que a penhora seja mais antiga. Em suma, não se verifica o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando, citados os credores comuns (isto é, não fiscais) do devedor na sequência da penhora de imóvel abrangido pela sua garantia, estes se apresentem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, por ser este o processo em que a penhora é mais antiga. O regime instituído pela Lei n.º 13/2016 não pode implicar nem isentar os credores comuns do concurso da fazenda nacional (o que, aliás, teria como consequência um injustificado favorecimento dos particulares em detrimento do Estado), nem isentar esta fazenda do concurso dos credores comuns. […]».
Portanto, segundo o entendimento que se acaba de se expor não há óbice a que o credor que viu a penhora sustada na execução comum em virtude da existência de penhora mais antiga efectuada em execução fiscal vá a esta promover a venda do imóvel penhorado.
Em conformidade com o exposto, esta Relação de Coimbra, em decisão proferida em 24/10/2017 (Apelação nº 249/13.6TBSPS-A.C1)7, relatada pela Exma. Srª Desembargadora  Sílvia  Pires,  que  é  2ª  Adjunta  no  Colectivo  em  que  o     ora

7 Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.


signatário é Relator, entendeu-se o seguinte quanto às repercussões das alterações introduzidas pela citada Lei nº 13/2016:
«[…] foi introduzida a impossibilidade, após a entrada em vigor da referida Lei - aplicável a todos os processos de execução fiscal pendentes -, de nos processos de execução fiscal, serem vendidos mediante impulso da Autoridade Tributária os imóveis destinados exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
Esta impossibilidade de venda do imóvel penhorado que seja habitação própria e permanente do executado não foi estendida aos demais credores, pelo que à partida não se afigura razoável que se impeça um credor comum com uma penhora sobre aquele bem que foi reclamar o seu crédito numa execução fiscal de promover a sua venda para ver satisfeito o seu crédito.
No caso em apreço a execução movida pelo Exequente foi sustada para este ir reclamar o seu crédito ao processo de execução fiscal em virtude de penhora anterior à sua sobre o mesmo bem.
A aparente desarmonia do regime em causa criada pelo n.º 2 do art.º 244º do CPPT só resulta da interpretação deste preceito que, forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das acções executivas cíveis. Mantendo-se a penhora anterior efectuada na execução fiscal não há dúvida que é aí que o agora Exequente terá que reclamar o seu crédito e direito a vê-lo pago pelo produto da venda do bem penhorado.
A solução para a questão há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2 que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar , a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias. Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito 244º, n.º 2, do CPPT   –   aos   casos   em   que   a   Administração   Fiscal   seja   o   único  credor


interveniente no processo.
A interpretação que entendemos ser a adequada é a única que respeita o estatuto do exequente que se apresenta como reclamante na execução prioritária por ter sido forçado, em razão de pendência de uma execução com penhora anterior sobre o mesmo bem, a exercer os seus direitos nessa outra execução [...].
(...)
Quanto a estes credores escreveu Anselmo de Castro, posição que adoptamos como a correcta[...]:
E nela necessariamente hão-de dispor dos direitos que lhes caberia na sua própria execução, designadamente o de promover o andamento dos termos do processo, quando necessário, o de serem pagos pelo seu crédito na extinção da execução por pagamento voluntário e o de prosseguir com a execução em caso de desistência do exequente, estejam ou não graduados os créditos, etc., até porque, de contrário, a razão de economia processual impeditiva do exercício dos seus direitos na própria execução se frustraria. [...]
A execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada atenta a sua prevalência sobre as posteriores art.º 822º    do
C. Civil e o disposto no art.º 794º n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior [...].
Assim, entendemos, na interpretação que fazemos do art.º 244º, n.º 2, do CPPT, que o Exequente não se encontra impedido de exercer o direito a ver satisfeito o seu crédito através da penhora do bem imóvel que se encontra penhorado na execução fiscal, podendo promover a venda do mesmo […]».
Concordando, plenamente, com o entendimento “supra” exposto, já se vê que o mesmo leva a que se tenha como acertada a decisão ora sob recurso, e, consequentemente, à improcedência da apelação.
IV - Em face de tudo o exposto decide-se julgar a Apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).


Coimbra, 8/4/2019
O Relator, Luiz José Falcão de Magalhães