Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/07.9 GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CO-AUTORIA
SILÊNCIO
ARGUIDO
IN DUBIO PRO REO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 32º DA CRP, 26º,50º,203º,204º DO CP, 61º, 127º, 343º,345º, 412º E 428º DO CPP
Sumário: 1 Tendo o arguido o direito ao silencio, necessariamente, é-lhe inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados, dever que a existir poderia inibi-lo ou limitá-lo na estruturação da sua defesa.

2 Não podendo o arguido ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do seu interesse a invocação de um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo.

3. Não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a chamada dúvida razoável, uma dúvida para a qual possam ser dadas razões objectivas e concretas.

4.O agente pode também dominar o facto, e a realização típica mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder.

5.O agente pode, ainda, dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica.

6.Só pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.

6.Não deve ser suspensa a execução da pena de prisão quando o agente, através da conduta concreta em apreciação, demonstrou claramente a sua insensibilidade perante as condenações anteriores e sua persistência em opções desvaliosas em termos de comportamentos ilícitos penais.

Decisão Texto Integral: 37

I – Relatório.
1.1. Conjuntamente com outros dois demais arguidos, O, já mais identificados nos autos, foi submetido a julgamento porquanto indiciado, segundo oportuna acusação deduzida pelo Ministério Público, da prática de factualidade consubstanciadora, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.ºs 1 alínea a) e 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alíneas a) e d), todos do Código Penal.
Findo o contraditório, e ao demais por ora irrelevante, proferiu-se Acórdão determinando condenar tal arguido enquanto agente do ilícito assacado, na pena de quatro anos de prisão.
1.2. Porque se não revê no teor do assim sentenciado, interpôs o mesmo arguido recurso, extraindo da motivação apresentada a seguinte síntese de conclusões:
1.2.1. Os pontos 6, 13 e 20 tidos como provados na “Fundamentação” do acórdão recorrido mostram-se incorrectamente julgados.
1.2.2. Isto porquanto no que concerne, o Tribunal a quo baseou – diga-se que indevida e exclusivamente –, toda a sua convicção nas declarações prestadas no decurso da audiência, pelo co-arguido AM
1.2.3. Co-arguido este que, alegadamente, estava ressacado (provavelmente sob o efeito da droga), horas depois de praticar um crime.
1.2.4. E cujas distintas versões (aquando do 1.º interrogatório judicial, nos termos do artigo 141.º, do Código de Processo Penal, e em audiência de julgamento) e contradições destituem de qualquer credibilidade o respectivo depoimento.
1.2.5. Tais circunstâncias conjugadas com o princípio do in dúbio pro reo determinariam também, e ao menos, a excrescência de uma dúvida razoável, sempre ajustável, que apenas poderia redundar em benefício da posição processual do recorrente, conduzindo à sua absolvição.
1.2.6. Mesmo concedendo que a formação da convicção do Tribunal a quo se poderia ater nessa parca prova, sempre dela sobressaem divergências manifestas quanto à sequência e contexto em que o furto teria ocorrido, pois que em ambos os depoimentos prestados, o co-arguido AM assumiu a iniciativa dos factos, o desempenho e móbil para os mesmos, como se realçou ao longo da motivação ofertada.
1.2.7. A co-autoria tem como pressuposto uma repartição de funções da qual possa decorrer, por parte de cada um dos agentes envolvidos, um domínio funcional do facto, isto é, de acordo com o contributo que presta, o sujeito, pelo papel que tem, pela função que desempenha dentro do plano, detém um domínio funcional do facto.
1.2.8. Ora, in casu, o co-arguido AM foi peremptório em afirmar não ter existido qualquer acordo prévio entre si próprio e os demais.
1.2.9. O que, quando muito, apenas possibilitaria a condenação do recorrente enquanto cúmplice no cometimento do crime.
1.2.10. A produção da prova apenas permitiria que se tivesse dado como provado que:
- Os arguidos O e M recusaram entrar no stand para furtar um veículo.
- Foi iniciativa exclusiva do arguido AM o furto do veiculo em causa.
- Não foi previamente gizado entre os arguidos qualquer plano de furto, pois que o arguido AM por várias vezes interrogado sobre essa iniciativa assumiu a sua autoria.
- O arguido AM entrou sozinho no stand sem qualquer ajuda.
- Os arguidos O e M ficaram no mesmo sítio de onde o arguido se retirou, não se aproximaram do stand.
- Não se provou que os arguidos M e O estivessem posicionados de molde a ver o arguido AM dentro do stand.
- O arguido AM chamou os arguidos O e M quando já tinha retirado o veículo automóvel do recinto do stand e já se encontrava na via pública.
1.2.11. A subsistir a condenação do recorrente, deverá ela ser pela prática de um crime de furto de uso do veículo, previsto no artigo 208.º, do Código Penal, isto atentando-se em que o propósito que o moveu foi tão somente o de o utilizar enquanto meio de transporte e nunca de o fazer seu em exclusivo.
1.2.12. Manter a condenação do recorrente em quatro anos de prisão efectiva redundará num retrocesso na sua reintegração social, bem como numa “pena acessória” de índole familiar para o seu filho de um ano de idade que crescerá durante tal período sem a presença do progenitor.
1.2.13. Os objectos furtados foram recuperados.
1.2.14. A factualidade em análise remonta a um período anterior à estabilização da vida social, profissional e familiar do recorrente.
1.2.15. Tudo conjugado, impõe-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
1.2.16. Decidindo pela forma em que o fez, o acórdão recorrido questionou o disposto nos artigos 26.º; 27.º; 28.º; 29.º; 50.º e 208.º, todos do Código Penal.
Terminou pedindo que no provimento da impugnação:
- Seja eximido de qualquer responsabilidade penal, atenta a errónea apreciação da prova produzida e o princípio do in dúbio pro reo.
- Caso assim se não entenda, independentemente da forma de participação nos factos (como cúmplice ou co-autor), bem como da respectiva tipificação (furtum rei ou furtum usus), se determine a suspensão da execução da pena aplicada.
1.3. Notificado, respondeu o Ministério Público, sufragando o improvimento da impugnação.
1.4. Admitida, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico improvimento.
Deu-se acatamento ao estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se não estarmos perante situação em que se imponha decidir sumariamente; não existirem provas a renovar, e, deverem os autos prosseguir seus termos.
Como assim, determinou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como submissão á presente conferência.
Urge então ponderar e decidir.
*
II – Fundamentação de facto.
2.1. Relativamente ao ora recorrente, considerou o Acórdão recorrido como provado que:
I –
Na noite de 2 para 3 de Janeiro de 2007, a hora não concretamente apurada, mas antes das 2 horas do dia 3 de Janeiro, em …. Águeda, os arguidos combinaram entre si dirigirem-se a uma localidade não concretamente apurada, com a finalidade que também em concreto se não logrou apurar.
Para o efeito, deslocaram-se os três num veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de marca Ford, …. com a matrícula espanhola ….DMH, conduzido pelo arguido O.
Quando chegaram a Mortágua, próximo da Escola EB 2/3, …, a bomba injectora do citado veículo de matrícula….DMH avariou.
Por tal motivo, os arguidos empurraram tal veículo cerca de 200 metros, imobilizando-o nas traseiras da referida escola, … sendo que o mesmo havia sido subtraído em Espanha em circunstâncias não apuradas.
Tendo ficado sem veículo para se deslocarem, o arguido AMl propôs introduzir-se no stand “A..”, localizado a cerca de quinhentos metros do local onde deixaram o referido Ford Transit, com a finalidade de daí retirar um veículo automóvel, o que fez com conhecimento dos demais arguidos e assentimento destes.
Aí chegados, enquanto os arguidos M e O permaneciam no exterior das referidas instalações com a finalidade de vigiar se aparecia alguém, designadamente a GNR e que, nesse caso, dariam sinal ao arguido AM, este dirigiu-se ao interior do mencionado stand.
Para o efeito, o arguido AM dirigiu-se à rede que vedava completamente a entrada para o recinto do mencionado stand, constituída em arame, com cerca de um metro e setenta de altura em todo o perímetro, e cortou-a, por aí entrando no interior do recinto do stand.
Já no interior do recinto do stand, o arguido AM abriu a porta do quarto de banho que se encontrava fechada com o trinco e do seu interior retirou dois auto-rádios, no valor cada um de € 70,00, que levou com ele.
Após, deslocou-se a um contentor, tipo arca frigorífica, que se encontrava no recinto do stand, o qual se encontrava destrancado, e do seu interior retirou uma chave de fendas com cabo vermelho e um raspador de tinta.
De seguida deslocou-se à porta do escritório do mencionado stand e, com os objecto referidos, forçou a fechadura da referida porta, rebentando-a, assim a logrando abrir, e por aí entrou no interior do escritório.
Após, o arguido AM pegou nas chaves da ignição do veículo automóvel de matrícula 72-34.., marca Peugeot, …. , que se encontrava no recinto, em frente a portão de entrada para o referido stand.
De seguida, colocou os dois auto-rádios no seu interior e tentou colocar o referido veículo automóvel a trabalhar.
Como não conseguiu, os arguidos O e M vieram em seu auxílio e ajudaram-no a empurrar o referido veículo automóvel para o exterior do stand, tendo dessa forma danificado o portão de entrada no mesmo, causando danos de valor não concretamente apurado mas não inferior a € 250,00.
Todavia, como mesmo assim o motor do veículo automóvel 72-34-.. não pegava com o acordo dos arguidos O e M, o arguido AM dirigiu-se de novo ao interior da instalações do stand e do interior da casa de banho retirou uma bateria, no valor de € 40,00, do contentor uns cabos de ligação, no valor de € 50,00 e do escritório um carregador de baterias, no valor de € 100,00.
Após, de comum acordo, em conjugação de esforços, os arguidos ligaram o carregador de baterias à bateria do veículo 72-34-.. e, como assim não conseguiram colocá-lo a trabalhar, engataram os cabos de bateria, fazendo uma ligação directa da bateria do veículo…DMH à do veículo 72-34-.. tendo logrado desta forma que o motor do mesmo funcionasse.
De seguida deslocaram-se no veículo 72-34-.. para a zona de Águeda, assim fazendo seus o veículo e demais objectos acima referidos.
O veículo automóvel 72-34-.. tinha o valor de, pelo menos, € 6.000,00.
O arguido AM conduziu o citado veículo automóvel desde Mortágua até …, em … Águeda.
Com a conduta acima descrita, os arguidos causaram na porta de entrada do escritório danos na quantia de € 250,00, na rede danos na quantia de € 50,00 e no portão de entrada para o stand danos na quantia de € 250,00.
Os arguidos actuaram em conjugação de esforços e de intentos, fazendo seus os objectos e veículo que retiraram do interior do stand “A”, apesar de saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que ao actuarem da forma descrita, bem como ao entrarem no interior do referido stand, o faziam no desconhecimento e contra a vontade dos seus legítimos donos.
Agiram de forma livre, voluntária e conscientemente em todas as circunstâncias descritas, certos de que as suas relatadas actuações eram proibidas e punidas por lei penal.
(…)
II –
O arguido O foi condenado, para além do mais:
a) No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º ../93.4 TBAND, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Anadia, por acórdão transitado em julgado no dia 29…..1993, como co-autor material de quatro crimes de furto qualificado previstos e punidos pelos artigos 296.º e 297.º, n.º 2, alíneas c), d) e h) do Código Penal, bem como de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 260.º do Código Penal, praticado em Abril de 1992 e, em cúmulo jurídico, na pena de quatro anos e seis meses de prisão.
b) No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º …/97.0 GAOLH, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, por acórdão transitado em julgado no dia 28…1999, como autor material de um crime de furto qualificado tentado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1; 204.º, n.º 2, alínea e); 202.º, alínea d); 22.º; 23.º e 73.º, todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, praticado em Abril de 1997.
c) No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º ../98, do Tribunal de Circulo de Anadia, por acórdão transitado em julgado no dia 16….2000, como autor material de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência aos artigos 75.º; 76.º; 203.º e 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, na pena de sete meses de prisão, praticado em 20.05.1996.
d) No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º …/1999 (antigo 45/1998) do Tribunal de Circulo da Figueira da Foz, por acórdão transitado em julgado, como autor material de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), conjugado com os artigos 204.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea f), do Código Penal, na pena de seis anos de prisão, praticado em 14.10.1996.
O arguido O esteve detido ininterruptamente em cumprimento de prisão efectiva, para além do mais, desde 16.04.1992 a 11.12.1995 e desde 10.04.1997 até 07.06.2006, data em que lhe foi concedida liberdade condicional no âmbito do Processo Gracioso de Concessão de Liberdade Condicional ../97.0 TXEVR, do TEP de Coimbra.
O arguido O mostrou-se insensível à advertência ínsita nessas condenações, continuando a revelar uma propensão para a prática de crimes graves, designadamente crimes de furto qualificado.
(…)
O arguido O, quando saiu em liberdade condicional em 7/6/2006, integrou o agregado familiar constituído pela progenitora e um irmão, residentes na morada que lhe foi fixada.
Desde que saiu em liberdade condicional não exerceu qualquer actividade profissional estável e regular.
Pese embora em Abril de 2007, tenha obtido um trabalho, através do Centro de Emprego, numa empresa ligada à construção civil em …. Oliveira do Bairro, local onde trabalhou durante alguns meses, acabou por abandonar tal actividade num período em que se debatia com forte instabilidade por recaída no consumo de drogas.
Foi encaminhado para tratamento e teve consultas de apoio e orientação, efectuadas pelo Centro de Atendimento à Toxicodependência de Aveiro, tendo sido sujeito a internamento para desintoxicação em Agosto de 2007, mas concluída a desintoxicação não deu continuidade ao acompanhamento terapêutico.
Entretanto, veio a estabelecer um relacionamento afectivo com MF residente em … Anadia, onde passou a permanecer, por vezes, durante a semana e regressando ao agregado da mãe ao fim-de-semana.
Tal relacionamento afectivo, foi assumido ainda durante a gravidez do filho, tendo o arguido passado a apoiar a companheira, manifestando sentir-se bem naquele meio, onde não é conhecida a sua situação jurídico-penal e o ambiente mais facilitador para controlar o consumo de drogas.
Integra agregado constituído pela companheira, três filhos menores desta, o arguido e o filho de ambos, nascido em Julho de 2008.
O agregado habita casa, propriedade da companheira, com boas condições de habitabilidade.
A subsistência do agregado assentava inicialmente no apoio da família de origem da companheira e no benefício da prestação do Rendimento Social de Inserção atribuído à mesma.
Posteriormente, foram ambos integrados em curso de formação profissional que frequentam em Anadia.
Em Novembro de 2008, o arguido integrou um curso de jardinagem e floricultura, com duração até Dezembro de 2009 e a companheira um curso de gestão familiar.
Na actualidade, o agregado tem receitas económicas de valores provenientes da bolsa de formação, no montante de € 407,00 cada, e também subsídio de alimentação (€ 4,00/dia).
O arguido O possui como habilitações literárias o 7.º ano.
(…)
2.2. Já no que concerne a factos não provados, precisou a mesma peça recorrida enquanto tais:
- Que o veículo de matrícula Espanhola tivesse sido subtraído pelo arguido O
- Que logo que ficaram sem o veículo de matrícula espanhola os três arguidos tenham expressamente acordado ir ao Stand “Ar”.
2.3. Por fim, é do teor seguinte a motivação probatória inserta nesse aresto:
A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados alicerçou-se na análise crítica de toda a prova produzida na audiência de julgamento, em conjugação com a prova documental e pericial já constante dos autos e as regras da experiência comum.
No que respeita à subtracção do veículo automóvel e demais objectos existentes no interior do Stand “A”, ao modo como foi feita a introdução no referido espaço e às circunstâncias em que os factos se desenrolaram desde esse momento até aquele em que o veículo furtado veio a imobilizar-se em …, Águeda, valorou o Tribunal as declarações do arguido AM, o qual, de um modo espontâneo, confessou na íntegra tal factualidade, desde logo, ter subtraído tal veículo nas circunstâncias descritas na acusação e também os objectos que, de acordo com esta, se encontravam no interior desse mesmo Stand, confirmando ainda ter-se deslocado desde …, Águeda até Mortágua, juntamente com os demais arguidos, e a convite do O. para irem até um bar, no veículo de matrícula espanhola, que se encontrava na posse deste ultimo há mais de um mês.
Concretizou ainda o arguido que devido ao facto de ao chegarem a Mortágua tal veículo ter avariado e porque ele próprio queria regressar a casa o mais rápido possível, a fim de poder consumir produtos estupefacientes, atento o estado de ressaca em que já se encontrava, decidiu, sem mais, apoderar-se do veículo em apreço, tendo-se, para o feito, introduzido no interior do recinto das instalações do mencionado Stand, nos exactos termos descritos na acusação.
A respeito do destino dos auto-rádios que retirou do quarto de banho, admitiu poder vir a trocá-los por produtos estupefacientes, quer para ele, quer para o O, ambos consumidores à data.
Sobre o papel assumido pelos demais arguidos, referiu que enquanto ele se introduziu no estabelecimento, aqueles ficaram do lado de fora do Stand, junto a um restaurante, vindo em seu auxilio quando necessitou de empurrar o veículo para o exterior do Stand.
Apercebendo-se o tribunal, ao longo das declarações do arguido, que da parte do mesmo existiu a preocupação em esclarecer a verdade dos factos, sem, contudo, querer prejudicar os demais co-arguidos, desde logo no que respeita ao seu grau de participação nos factos, foi-lhe perguntado, expressamente, se estes não haviam ficado no exterior com o objectivo de vigiar se aparecia alguém, designadamente a autoridade policial, caso em que lhe dariam sinal, ao que respondeu que embora não lhes tivesse pedido nada, nem soubesse o que lhes ia na cabeça, estava convencido que eles o faziam, tendo, por isso, actuado nesse pressuposto.
A instâncias, esclareceu ainda que os demais arguidos vieram ainda em seu auxílio quando foi necessário empurrar o veículo para fora do Stand, o que não lograria sozinho, ajudando-o ainda a colocar o motor daquele em funcionamento, após o que todos se ausentaram do local no mesmo.
De salientar que tais declarações do arguido estão em conformidade com o auto de reconstituição de fls. 133 a 148, diligência em que interveio e levada a efeito em sede de inquérito com observância do formalismo legal, onde descreveu o modo como os factos se desenrolaram, designadamente, nos momentos em que intervêm os demais arguidos, sendo que, aquando da leitura, ao abrigo do disposto do artigo 357.º, alínea b), do Código de Processo Penal, das declarações por si prestadas em sede de 1.º interrogatório, perante a JIC, onde apresentou urna versão diferente dos factos, foi por si esclarecido que as mesmas não corresponderam à verdade dos factos, tendo-se ficado a dever à circunstância de aquando da sua prestação se encontrar bastante nervoso e a ressacar, sendo que, ao aperceber-se do seu teor, logo pretendeu esclarecer toda a verdade dos factos ao longo do inquérito.
Com efeito, lidas tais declarações em sede de audiência de julgamento, dificilmente se poderia conceber, à luz das regras da experiência comum, que as mesmas pudessem corresponder à realidade dos factos, só compreensíveis à luz de uma tentativa de proteger os demais arguidos, desde logo o arguido O, à data em liberdade condicional.
A corroborar as declarações do arguido AM prestadas em sede de audiência, temos ainda o auto de reconstituição dos factos onde participou o co-arguido M (cfr. fls. 260 a 267), diligência igualmente feita com observância do formalismo legal, na qual indicou, conforme resulta também da reportagem fotográfica anexa, a sequência de todos os momentos que antecederam e envolveram à subtracção dos objectos em apreço.
Ora, conjugando os elementos de prova já chamados à colação, e não obstante o silêncio a que se remeteu o arguido O. no exercício de um direito que a lei lhe confere, e a ausência do arguido M à audiência de julgamento, afigura-se-nos poder concluir-se que tais arguidos não só tiveram conhecimento da actuação do arguido, como deram o seu assentimento à mesma, colaborando nos seus intentos apropriativos.
Com efeito, ao manterem-se no exterior do stand na posição em que se colocaram, ao auxiliarem o arguido A, quer a empurrar o veículo para o exterior do stand, quer a colocá-lo em funcionamento, ao aperceberem-se dos demais objectos retirados e ao abandonarem o local no mencionado veículo, praticaram actos dos quais, à luz das regras da experiência comum, pode inferir-se que actuaram em conjugação de esforços com o arguido A aderindo tacitamente à situação antijurídica em curso e de que tomaram conhecimento, tomando parte na sua execução.
E se é certo que o facto de o arguido O se ter remetido ao silêncio o não poderá prejudicar, também não poderá deixar de entender-se que o exercício de tal direito quanto aos factos ocorridos nas circunstâncias descritas o não poderá beneficiar.
Na verdade, apontando os elementos probatórios referidos no sentido de que o mencionado arguido tomou conhecimento e aderiu tacitamente a toda a actuação do arguido AM. na qual chegou a colaborar, não é pelo simples facto de o mesmo se ter remetido ao silêncio que poderá deixar de concluir-se, em face de tais elementos, no sentido apontado, ainda que não exista prova directa de índole testemunhal que aponte nesse sentido.
Quanto à matéria atinente ao propósito visado pelos arguidos com a subtracção do veículo em causa, foi adiantado pelo arguido A não ter tido intenção de se apropriar do mesmo, mas apenas de o usar para regressar até casa, após o que o abandonaria, sendo que, a instâncias do Ex.mo Procurador, acabou por admitir que se depois necessitasse dele para outros fins, designadamente, para adquirir produto estupefaciente, o continuaria a utilizar.
Ora, nesta parte, as declarações do arguido não poderão colher à luz das regras da experiência comum, apenas compreensíveis numa tentativa de minorar a gravidade da sua actuação.
Com efeito, tendo em conta as circunstâncias em que actuaram e sendo os arguidos O e A consumidores de produtos estupefacientes, não é crível, à luz das regras da experiência comum, que em relação ao veículo automóvel, com um valor substancialmente superior, o intento de todos os arguidos fosse de mera utilização (abusiva) e não de apropriação.
Intenção apropriativa que, em face do já supra adiantado, ocorreu em relação a todos os demais objectos referidos na factualidade provada e que, juntamente com o veículo, foram retirados do interior do mencionado Stand nos termos descritos na factualidade provada.
No que em especial se refere às características dos objectos furtados e respectivos valores e aos estragos resultantes da actuação dos arguidos, atendeu o tribunal às declarações da testemunha C proprietário do Stand, a qual, nessa qualidade, relatou ao tribunal as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos em apreço, o valor do veículo automóvel e dos demais objectos furtados que identificou e que confirmou ter recuperado e os estragos verificados no Stand, em consequência da actuação dos arguidos e respectiva quantia despendida com a sua reparação.
Tais declarações foram ainda conjugadas com os autos de reconhecimento, apreensão e entrega, de fls. 19 a 21, 185 a 188 e registos fotográficos de fls. 70 a 72 e 74 a 78 e, bem assim com o depoimento da testemunha H, agente da G.N.R, que na sequência de uma comunicação telefónica que dava conta que na localidade …. Águeda se encontravam três suspeitos a rondarem veículos automóveis estacionados, relatou ao tribunal as circunstâncias em que ocorreu a abordagem feita aos arguidos, confirmando ainda as diligências em que interveio.
Ainda a propósito dos estragos causados no Stand, foi valorado o depoimento da testemunha E, agente da G.N.R, a qual, tendo-se deslocado ao Stand após os factos, pode aperceber-se da extensão dos mesmos.
Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos, valorou o Tribunal o teor dos últimos C.R.C. juntos aos autos, em conjugação com o teor das certidões de decisões condenatórias juntas aos autos, atinentes aos arguidos (…) e O.
A conclusão de que as anteriores condenações sofridas pelo arguido O, por crimes da mesma natureza, não surtiram advertência bastante para que o mesmo evitasse a prática de tais factos, extraiu-a o Tribunal do facto de volvido meio ano de lhe ter sido concedida a liberdade condicional atinente à pena anteriormente aplicada, o arguido ter recaído na prática de mais um crime contra o património, e de não ter enveredado, depois da saída da prisão, pela sua integração na vida activa, mormente desempenhando uma actividade profissional regular e estável.
Por fim, no que concerne às condições pessoais de vida dos arguidos (…) O valorou o tribunal as declarações dos próprios, pois que, este último, a tal propósito, prestou declarações, em conjugação com o teor dos relatórios sociais juntos aos autos a fls. 797 a 801 e 831 a 835, elaborados pelo I.R.S., (…).
No que respeita aos factos considerados não provados, a convicção do tribunal assentou na ausência de elementos probatórios que permitissem concluir nesse sentido.
III – Fundamentação de Direito.
3.1. É consabido que o âmbito do recurso se define através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –.
O que não preclude, todavia, o conhecimento oficioso dos vícios indicados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mas tão somente quando resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, bem como das nulidades taxadas no seu n.º 3. Isto por virtude do consignado no Ac. do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória.
In casu, vendo-se as conclusões do recorrente resulta que o thema decidendum consiste em verificarmos se:
- Ocorreu uma indevida ponderação da prova produzida no decurso da audiência quando a decisão recorrida considerou como assente a factualidade inserta nos respectivos pontos 6, 13 e 20.
- Por virtude da alteração que deve introduzir-se a tal factualidade provada, irreleva criminalmente a sua actuação ou, concedendo, apenas se mostra susceptível de integrar o cometimento, em cumplicidade, de um crime de furtum usus de veículo.
- Sendo caso de subsistir a respectiva condenação (qualquer que seja a forma e o tipo de crime a considerar), se impõe a suspensão da execução da pena de prisão cominada ou a cominar.
Vejamos:
3.2. No primeiro segmento da impugnação, o recorrente insurge-se, verdadeiramente, contra o valor que a decisão recorrida concedeu às declarações prestadas em audiência pelo co-arguido AM, pois que no seu entender, o Tribunal a quo(…) baseou erradamente a sua convicção exclusivamente no depoimento…” desse co-arguido (conclusão 2.ª supra).
Porque assim, impõem-se, desde já, breves considerações genéricas acerca do valor probatório que se pode conceder, sendo o caso, a tal meio de prova.
Para tanto, acompanharemos o expendido no parecer junto pelo Ex.mo PGA, uma vez que pertinente ao efeito.
No que concerne, pode concluir-se, como António Alberto Medina de Seiça In, “O conhecimento probatório do co-arguido”, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ijuridica 42, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, pág. 160., que “ […] apesar de o CPP não contemplar expressamente o meio de prova «declarações de co-arguido», não se infere a impossibilidade da valoração probatória das declarações na parte em que se referem (ou também se referem) aos factos de outro arguido. Na verdade, a lei não só não proíbe essa valoração como indica em vários preceitos que ela deve ocorrer (cfr. art.ºs 146.º; 343.º, n.º 4)].
Por outro lado ainda, não se verifica, aqui, qualquer violação do princípio do contraditório, pois, como refere o mesmo Autor Idem, ainda pág. 160., “ […] o co-arguido, embora não possa dispor da cross examination em relação a outro arguido, tem sempre a possibilidade de, nos termos do art.º 345.º, n.º 2, (do CPP) colocar questões a outro co-arguido].”
Na mesma senda, aliás, expendeu o STJ que, v.g., no seu aresto datado de 2 de Fevereiro de 2004 Acessível no site www.dgsi.pt/jstj.nsf/., esclareceu que “ (…) A crítica feita no sentido de que não seria lícita a utilização das declarações dos arguidos como meio de prova contra os outros, não tem razão de ser em face do art.º 125.º, do CPP.” É que, “Na verdade, este artigo estabelece o princípio da admissibilidade de quaisquer provas no processo penal, estabelecendo o art.º 126.º aquelas que são proibidas, não constando deste elenco o caso das declarações dos co-arguidos. Estas são perfeitamente possíveis como meios de prova do ponto de vista da sua legalidade, como o são as declarações do assistente, das partes civis, etc… Em igual sentido, inter allia, os Acs. do STJ, de 19.12.1996, in CJS, III, pág. 214, e desta RC, de 13.03.2002, in CJ, II, págs. 45 e segs..
Ou, numa formulação mais recente, tirada do acórdão do STJ de 12 de Março de 2008 In processo 08P694, extraído do sítio aludido em 3. , no qual foi já ponderada a alteração do art.º 345.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, introduzida por intermédio da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto:
(…)
II – As declarações de co-arguido, sendo um meio de prova legal, cuja admissibilidade se inscreve no art.º 125.º do CPP, podem e devem ser valoradas no processo.
III – Questão diversa é a da credibilidade desses depoimentos, mas essa análise só em concreto, e face às circunstâncias em que os mesmos são produzidos, pode ser realizada.
IV – Por isso, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do co-arguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova, sem qualquer apoio na letra ou espírito da lei.
V – A admissibilidade como meio de prova do depoimento de co-arguido, em relação aos demais co-arguidos, não colide minimamente com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação, mostrando-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca à luta contra a criminalidade organizada.
(…)
VIII – É evidente que, tal como em relação ao depoimento da vítima, é preciso ser muito cauteloso no momento de pronunciar uma condenação baseada somente nas declarações do co-arguido, porque este pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas, tal como o anseio de obter um trato policial ou judicial favorável, o ânimo de vingança, o ódio ou ressentimento, ou o interesse em auto-exculpar-se mediante a incriminação de outro ou outros acusados.
IX – Por isso, para dissipar qualquer dessas suspeitas objectivas, é razoável que o co-arguido transmita algum dado externo que corrobore objectivamente a sua manifestação incriminatória, com o que deixará de ser uma imputação meramente verbal para se converter numa declaração objectivada e superadora de um eventual défice de credibilidade inicial. Não se trata de criar, à partida e em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do co-arguido quando este incrimine os restantes, antes de uma questão de fiabilidade.
X – A credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e á existência de uma auto-inculpação.
XI – O TC e o STJ já se pronunciaram no sentido de estar vedado ao tribunal valorar as declarações de um co-arguido, proferidas em prejuízo de outro, quando, a instâncias deste, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio (cfr., Acs. do TC n.º 524/97, de 14 de Julho, in DR II, de 27 de Novembro de 2007, e do STJ de 25 de Fevereiro de 1999, in CJSTJ, VII, tomo I, pág. 229).
XII – E é exactamente esse o sentido da alteração introduzida pelo n.º 4 do art.º 345.º do CPP quando proíbe a utilização, como meio de prova, das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro nos casos em que aquele se recusar a responder às perguntas que lhe forem feitas pelo juiz ou jurados ou pelo presidente do tribunal a instâncias do Ministério Público, do advogado do assistente ou do defensor oficioso.
XIII – Tal como quando é exercido o direito ao silêncio, as declarações incriminadoras de co-arguido continuam a valer como prova quando o incriminado está ausente.
XIV – Na verdade, tal ausência não afecta o direito ao contraditório – que, na fase de julgamento, onde pontifica a oralidade e imediação, pressupõe a possibilidade de o arguido, por intermédio do seu defensor, sugerir as perguntas necessárias para aquilatar da credibilidade do depoimento que se presta e infirmá-lo caso se mostre adequado –, pois estando presente o defensor do arguido o mesmo pode e deve exercer o contraditório sobre os meios de prova produzidos (art.ºs 63.º e 345.º, ambos do CPP).
XV – Questão distinta seria a da recusa do mesmo co-arguido a depor sobre perguntas formuladas pelo tribunal e sugeridas pelo defensor ou pelo MP.”
Ainda nesta linha, como anota Paulo Pinto de Albuquerque In Comentário do Código de Processo Penal, pág. 855, em anotação ao mencionado artigo 345.º, não há qualquer “impedimento” de o arguido depor nessa qualidade contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valorar a prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos. Acrescentado que, contudo, há duas limitações a fazer:
A primeira, a de que não pode valer como meio de prova o depoimento de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder, no exercício do direito ao silêncio (supra citados Acs do TC n.º 524/97, e do STJ, de 25.02.1999), jurisprudência que agora se mostra consagrada pela lei nova no n.º 4 do artigo 345.º, como vimos;
A segunda, que a apreciação do valor probatório do depoimento do arguido feito contra um seu co-arguido no mesmo processo ou em processo conexo deve suscitar especiais cautelas ao julgador. Assim, acrescenta-se, viola o princípio da presunção de inocência a fundamentação exclusiva da condenação na valoração do depoimento do co-arguido, o que implica a necessidade de uma corroboração probatória das declarações do co-arguido.
Considerações igualmente reclamadas pelo caso vertente, as que contendem com o interrogatório do arguido e o invocado princípio do in dúbio pro reo.
Na doutrina discute-se se o primeiro constitui um meio de prova e/ou o exercício do seu direito de defesa.
Germano Marques da Silva In Curso de Processo Penal, II, edição de 2008, pág. 197., reconhece às declarações do arguido, em qualquer das fases do processo, uma dupla natureza: de meio de prova e de meio de defesa.
Face ao Código de Processo Penal vigente (na versão original e nas suas sucessivas revisões), identificamos esta dupla natureza em diversos aspectos da regulamentação específica das declarações do arguido, nomeadamente, nas disposições relativas à confissão (e respectivos efeitos), à ordem de produção da prova, no direito ao silêncio e na inexigibilidade de dizer a verdade.
Quando a confissão era considerada como regina probationum, não era concebível que o arguido tivesse o direito ao silêncio (jus tacendi). O Código de Processo Penal vigente, entre os direitos processuais do arguido, consagra, expressamente, no artigo 61.º, n.º 1, alínea d), o de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar. Este direito ao silêncio, referido também no artigo 343.º, n.º 1, é uma expressão importante do direito de defesa, no quadro do princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
Percebe-se, com efeito, a partir do carácter complexo de que se revestem as declarações do arguido, que este goze do direito ao silêncio e que seja inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados, dever que, a existir, poderia inibir o arguido na estruturação da sua defesa.
Porém, como alertam Simas Santos e Leal Henriques In Código de Processo Penal Anotado, II volume, 2000, pág. 359, em anotação ao artigo 343.º., não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer – e de que, porventura, só ele tem conhecimento –, então poderá esse silêncio nitidamente desfavorecê-lo.
O que estes autores salientam é, afinal, a evidência de que, muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo Cfr. citado Ac do TC n.º 524/97..
De reter, também, que o princípio do in dúbio pro reo é uma emanação do princípio da presunção de inocência, surgindo como resposta ao problema da incerteza em processo penal, e impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de violação do dito princípio.
Em todo o caso, convém não olvidar que na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (ut artigo 127.º, do Código de Processo Penal), não haverá que lançar mão, limitando-a, deste princípio (do in dúbio pro reo), se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto.
Isto porquanto e com efeito, o in dúbio pro reoparte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997.

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade. Nessa tarefa, o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar». E, por isso, é que, nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da contra face (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva que é o in dúbio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador»).
A prova, o processo probatório traduz-se em verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa. Para o prosseguir, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que pode apelidar-se de razoável. A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juíz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível. Donde que não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Isto porque nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida. Assim, pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais. A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.
Na consideração exacta da tríplice ordem de considerações acabadas de fazer, centremo-nos no caso sub judice.
Na decisão recorrida, o M.mo Juiz a quo, começando por explicitar que, no que respeita à subtracção do veículo automóvel e demais objectos no interior do stand “A”, ao modo como foi feita a introdução no referido espaço e às circunstâncias em que o veículo subtraído veio a imobilizar-se em … Águeda, a convicção do Tribunal se fundou nas declarações do arguido AM, “ (…) o qual, de um modo espontâneo, confessou na integra tal factualidade…, e que, sobre o papel assumido pelos demais arguidos, referiu que “ (…) enquanto ele se introduziu no estabelecimento, aqueles ficaram do lado de fora do stand…vindo em seu auxílio quando necessitou de empurrar o veículo para o exterior do Stand.” E, tendo-lhe sido, ainda, perguntado expressamente, se os restantes arguidos não haviam ficado no exterior com o objectivo de vigiar se apareceria alguém, designadamente a autoridade policial, caso em que dariam sinal, o mesmo respondeu “ (…) que embora não lhes tivesse pedido nada, nem soubesse o que lhes ia na cabeça, estava convencido que eles o fariam, tendo, por isso, actuado nesse pressuposto.”
A convicção do tribunal no que se reporta à comparticipação criminosa dos demais arguidos não se limitou, porém, a tais declarações isoladas daquele co-arguido, pois que foram ainda corroboradas, como decorre da mencionada motivação, pelo auto de reconstituição cios factos onde participou o co-arguido M “ (…) na qual indicou, conforme resulta também da reportagem fotográfica anexa, a sequência de todos os momentos que antecederam e envolveram a subtracção dos objectos em apreço.”
Ou seja, foi a análise conjugada desse dois meios de prova que facultou ao Tribunal sindicado a conclusão segundo a qual “tais arguidos tiveram conhecimento da actuação do arguido A como deram o seu consentimento à mesma, colaborando nos seus intentos apropriativos”, designadamente, que “ (…) ao manterem-se no exterior do stand na posição em que se colocaram, ao auxiliarem o arguido A, quer a empurrar o veículo para o exterior do stand, quer a colocá-lo em funcionamento, ao aperceberem-se dos demais objectos retirados e ao abandonarem o local no mencionado veículo, praticaram actos dos quais, à luz das regras da experiência comum, pode inferir-se que actuaram em conjugação de esforços com o arguido A., aderindo tacitamente à situação antijurídica em curso e de tomarem conhecimento, tomando parte na sua execução.”
Tudo, assim, no acatamento às exigências de prova e ao valor da prova produzida pelo co-arguido (ut artigo 345.º, n.º 4, citado), bem como a um processo dedutivo que facultou que a convicção do Tribunal se baseasse em regras da lógica e da experiência comum.
Regras que o recorrente pode contraditar ao abrigo do disposto no artigo 345.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, suscitando ao Tribunal, por intermédio do seu defensor, a formulação de perguntas ao outro co-arguido, por forma a aquilatar da credibilidade do seu depoimento e poder eventualmente infirmá-lo, isto é, com respeito ao direito ao contraditório sobre tal concreto meio de prova produzido no decurso da audiência.
Acrescendo que o direito ao silêncio que utilizou se o não pôde desfavorecer, dele nada se podendo inferir sobre a respectiva culpabilidade, não menos verdade será que também o não pode favorecer. Concretizando: confrontado com o aludido auto de reconstituição e declarações do co-arguido A, e sendo correcto que o silêncio por natureza nada permitia inferir contra si, assumindo-o, permitiu que, em concreto, ao menos, não houvesse funcionado favoravelmente, uma vez que dele resultou o desconhecimento pelo Tribunal de circunstância que, a ser conhecida, poderia infirmar, e de forma favorável, a conclusão que as regras da experiência suportavam.
Quem actua como o fez o recorrente, pactua com o ilícito em curso. Esta é a regra da experiência comum.
Nela se fundamentou o Tribunal a quo que, confrontado com o silêncio do arguido, não decidiu, por causa dele, contra o mesmo. Antes foi o arguido que, coarctando ao Tribunal facto que lhe seria favorável (justificar a conduta mantida), se não viu favorecido por virtude do silêncio assumido. O que é coisa distinta.
Por fim, não colhe também o apelo ao invocado princípio do in dúbio pro reo.
Tudo pela singela razão de que, vendo-se o texto da decisão recorrida, em ponto algum se vislumbra que ao Tribunal a quo se houvesse colocado qualquer dúvida sobre a materialidade descrita e participação do arguido O na mesma, depois valorada desfavoravelmente ao recorrente (o que sim traduziria a violação desse princípio). Antes, vimos, o que se descortina, inapelávelmente, é, a propósito, uma convicção firme, alicerçada em meios legais de prova.
O que redundará, então, na manutenção do acervo factual acolhido na 1.ª instância e, logo, na improcedência do 1.º fundamento do recurso.
3.3. A segunda questão invocada pelo recorrente tinha como pressuposto prévio á sua eventual procedência (em qualquer das sub-questões que aí suscitou) a alteração á matéria de facto. Afirmámo-lo, foi essa tarefa malograda. Tanto bastaria para a preclusão de mais indagações. Em todo o caso, urge averiguar, mesmo que sumariamente, sobre se a decisão recorrida expendeu adequada (ou inadequadamente) sobre o seu enquadramento jurídico, mormente concluindo que a conduta do recorrente integra uma co-autoria, e que o ilícito cometido foi o de furtum rei, isto ao invés daquele, que nela vislumbra a mera emergência de uma cumplicidade e de um furtum usus.
3.3.1. Numa concepção restritiva do conceito de autoria só é autor quem realiza Cfr. Ac. do STJ, de 18 de Outubro de 2006, acessível no apontado site www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
, por si mesmo, a acção típica, enquanto que a simples contribuição para a produção do resultado, mediante acções distintas das típicas, não pode fundamentar a imputação da autoria. Nesta perspectiva o estabelecimento de formas especiais de participação, como a instigação e a cumplicidade, significa que a punibilidade se amplia a acções situadas fora do tipo embora que, de acordo com este, apenas se deveria penalizar quem, pessoalmente, cometeu a infracção. Os outros intervenientes, que só determinaram o autor a realizar o facto punível, ou o auxiliaram, teriam que ficar impunes se não existissem os especiais preceitos penais relativos á comparticipação.
Ao conceito restritivo de autor opõe-se o conceito extensivo, sobretudo com a finalidade de colmatar as lacunas de punibilidade que implicava a aplicação daquele primeiro conceito. O fundamento dogmático desta teoria é a ideia da equivalência de todas as condições na produção do resultado a qual serve de base á teoria da “condição sine qua non”. Nesta perspectiva, autor é todo aquele que contribuiu para causar o resultado típico sem que a sua contribuição para a produção do facto tenha que consistir numa acção típica.
Assim, também o instigador e o cúmplice seriam em si autores. Porém, o estabelecimento de especiais disposições penais para a participação indicaria que estas formas de intervenção deveriam ser tratadas de outra maneira dentro do conceito global de autor.
Constatadas tais debilidades, a doutrina passou a enunciar os pressupostos que colocam a teoria do domínio do facto como eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação e de análise do artigo 26.º e seguintes do Código Penal. Iniciada por Lobe, e impulsionada essencialmente por Roxin, tem como ponto de partida o conceito restritivo de autor com a sua vinculação ao tipo legal.
Autor é, segundo tal concepção, e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução “nas suas próprias mãos” de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica; nesta precisa acepção se pode afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva subjectiva: ele aparece, numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo.
O critério do domínio do facto deve restringir a sua validade, segundo Roxin, aos “delitos dolosos gerais” sem dúvida a esmagadora maioria dos crimes contidos na PE dos códigos penais que ele apelidou, consequentemente, delitos de domínio. “Senhor” do facto é, nestes delitos, aquele que domina a execução típica, de tal modo que a ele cabe papel director da iniciativa, interrupção, continuação e consumação da realização, dependendo estas, de forma decisiva, da sua vontade. A uma concretização desta ideia serve, de resto, o nosso próprio sistema legal, pelo menos na medida em que o artigo 26.º individualiza e distingue a autoria imediata, a autoria mediata e a co-autoria.
Correspondendo a esta trilogia de formas de autoria depara-se, na verdade, com três tipos diversos de domínio do facto: O agente pode dominar o facto desde logo na medida em que é ele próprio quem procede à realização típica, quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo (é o chamado por Roxin domínio da acção que caracteriza a autoria imediata). Mas pode também dominar o facto, e a realização típica mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder (quando possui o domínio da vontade do executante que caracteriza a autoria mediata). Como pode, ainda, dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica (possuindo o que Roxin chamou o domínio funcional do facto que constitui o signo distintivo da co-autoria).
Quando uma pluralidade de agentes comparticipa num facto – e é só nesse caso que assume relevo prático-normativo a distinção dos papéis de cada um perante a execução – nem sempre é fácil definir e autonomizar com exactidão, mesmo em consideração apenas dos chamados “delitos de domínio”, o contributo de cada um para a realização típica. Mas, como refere Figueiredo Dias nem por isso se dirá com razão tratar-se aqui de um “conceito indeterminado”, como tal imprestável para a aplicação do direito penal no momento de fundamentação da responsabilidade. O que sucede, sim, é que não deparamos aqui com um conceito fixo, definitório e apto a subsunção. Correcto é qualificá-lo, convém o próprio Roxin, como um conceito aberto, isto é, de um parâmetro regulativo, cujo conteúdo é susceptível de adaptar-se as variadíssimas situações concretas da vida a que se aplica e que só na aplicação alcança a sua medida máxima de concretização.
De acordo, ainda, com o Professor Figueiredo Dias há nesta matéria da autoria, em todo o caso, uma asserção que deve reputar-se fundamental: a de que ela é, mais que uma decorrência, verdadeiramente um elemento essencial do ilícito típico. Por isso, a unidade de sentido da autoria, por um lado, participa da natureza do ilícito pessoal, do ilícito que é “obra de uma pessoa”; por outro lado, liga-se indissoluvelmente à realização do tipo como exigência primária do princípio da legalidade.
O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Daí resulta que só pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.
Resulta daqui, e em primeiro lugar que a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamenta sempre a autoria. Este é, também, o sentido do artigo 26.º do Código Penal ao apontar aquele que realiza por si mesmo o delito.
Importa, ainda, salientar que o conceito não pode limitar-se, como pretendia a teoria objectivo formal, á realização de uma acção típica no estrito sentido literal. A interpretação dos tipos revela a descrição da acção, quando o resultado se produz pela actuação conjunta de várias pessoas, deve entender-se de um modo material que flexibilize o sentido literal. Por isso, o tipo, em certas condições, pode ser realizado também por aqueles que, pese embora não executarem uma acção típica em sentido formal, detêm o domínio do facto porque o comparticipam.
É neste sentido que releva a exigência a todos os intervenientes que comparticipem na decisão conjunta de realizar o facto, porque só desta forma podem participar no exercício do domínio do facto. Para além disso cada um deverá adicionar objectivamente uma contribuição para o facto que, pela sua importância, resulte qualificado para o resultado e caracterize, em todo o caso, mais além de uma mera acção preparatória. Sem embargo, importa referir que, atendendo á “divisão de papéis” mais apropriada ao fim proposto, ocorra na co-autoria também uma contribuição ao facto que não entre formalmente no marco da acção típica resulte suficiente para castigar por autoria. Basta que se trate de uma parte necessária da execução do plano global dentro de uma razoável “divisão de trabalho” (domínio funcional do facto).
A co-autoria consiste assim numa “divisão de trabalho”, que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante una resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une, num todo, as diferentes partes.
No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).
O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto.
Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem “actuar todos em cooperação consciente e querida”. No acordo de vontades em que fixar-se a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes.
O recorrente controverte a míngua de prova de um prévio acordo entre os agentes da subtracção para afastar a co-autoria assacada.
Malogradamente o faz, contudo, reafirmamos.
Na verdade, como se menciona na decisão recorrida, deve ter-se por assente o acordo entre os arguidos, pois, pese embora apenas o arguido AM se tenha introduzido no stand de cujo interior retirou os objectos supra mencionados, a verdade é que, conforme a factualidade provada, as circunstâncias em que todos actuaram evidenciam um acordo tácito, assente na consciência e vontade de colaboração na realização típica, qual seja, a de na sua globalidade haverem actuado convictos da ilegalidade da acção cometida, sabendo que o dono do veículo e dos demais objectos retirados não a consentia e que ela era contrária á lei penal. Por outro lado, a conduta assumida teve particular relevo tanto enquanto o recorrente também vigiava e acautelava a possibilidade de o AM ser surpreendido, quanto contribuiu a empurrar e veículo e pô-lo em marcha, afastando-se todos do local.
O que tanto basta para perfazer inequivocamente o ilícito apontado como seu co-autor.
3.3.2. Acto contínuo, reclama o recorrente que a sua conduta seja tipificada pelo artigo 208.º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que, atentas as declarações do arguido AM, seu propósito foi o de subtrair o veículo para utilização como meio de transporte e não com a finalidade última de o fazer coisa sua.
De acordo com o disciplinado pelo indicado normativo, quando confrontado com o tipo matriz de furto (artigo 203.º), distingue-se o furtum usus pela inequívoca expressão da vontade do agente de apenas utilizar a coisa e de a deixar em seguida pronta a reingressar na esfera patrimonial do lesado.
Ora, percorrendo-se a factualidade tida por assente, em ponto algum se denota que os arguidos hajam actuado com tal móbil, donde que se mostre correctamente assertivo o juízo conclusivo da 1.ª instância.
3.4. Resta, então, ponderar da verificação dos pressupostos conducentes ao decretar da suspensão da execução da pena de prisão imposta ao recorrente.
Tarefa imposta, tal como se sufragou na decisão recorrida, por virtude da redacção introduzida ao artigo 50.º, n.º 1, do Código penal, através da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro e, ainda, atento o estabelecido pelo artigo 2.º, n.º 4, do mesmo diploma substantivo.
Tal questão, uma das questões mais importantes no âmbito das penas de substituição, e com que se debateu tal decisão, centra-se no critério, ou critérios, que devem presidir à escolha entre prisão e uma pena de substituição. O que se afirma é então que, na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena – o da medida concreta da pena de prisão –, não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção. Significa o exposto que não oferece qualquer dúvida interpretar o estipulado pelo legislador (artigo 71.º do Código Penal) a partir da ideia de que um orientamento de prevenção – e esse é o da prevenção especial – deve estar na base da escolha da penal pelo tribunal; sendo igualmente um orientamento agora de prevenção geral, no seu grau mínimo – o único que pode (e deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial.
Assim, reafirma-se o princípio de que as considerações de culpa não devem ser levadas em conta no da escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente. Conforme refere Figueiredo Dias “afastada a relevância da culpa no problema da escolha da pena neste âmbito, comportam mutuamente, substituição, resta determinar como se as exigências de prevenção geral e de prevenção especial comportam mutuamente, substituição.”
É inteiramente distinta a função que umas e outras exercem neste contexto.
Prevalência decidiva, considera o mesmo Mestre, não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo todo o movimento de luta elas que justificam, em perspectiva político-criminal, contra a pena de prisão. E prevalência, anote-se, a dois níveis diferentes:
- O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração. Em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v.g., multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
Por seu turno a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Quer dizer desde que impostas, ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
Impõe-se que a comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação ás exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. Em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral hão-de funcionar como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial, podia ser aconselhável.
A aplicação de uma pena de substituição é suficiente, não só para evitar que o agente reincida, como também para realizar o limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica. Na verdade, à utilização de reacções não institucionais foi muitas vezes apontado um enfraquecimento da ideia de repressão que se alia á pena: dir-se-ia que a realização das finalidades de prevenção geral e a expressão do castigo pelo crime cometido que se pretendeu realizar através da pena entrariam, com elas, em crise. Ora, é hoje unanimemente conhecido que qualquer das formas de substituição da pena clássica de prisão não deixa de envolver a inflição de um mal que comporta um efeito mais ou menos penoso para quem o sofre, constituindo, nesse sentido, uma verdadeira pena. O que se quer assim significar é que as exigências de exteriorização física da reprovação pelo crime cometido impõem, em certos casos, ao menos por agora, se lance mão da pena de prisão.
O que assim se acentua é que o castigo e a reprovação públicas que se exprimem através das penas de substituição satisfazem, nesses sentido, as exigências de justiça que o sentimento geral da comunidade requer assegurando-se, assim, a manutenção da fidelidade do público ao direito e a sua confiança na validade daquele. Só quando a realização desta finalidade seja posta em perigo, no caso, concreto, por esta forma de exprimir a reprovação do crime – o que nenhum ordenamento jurídico se pode permitir sob pena de ver a sua própria sobrevivência ameaçada – se pode aceitar que se afaste a aplicação de uma pena de substituição.
É exactamente esse delicado equilíbrio entre os limites propostos pelos fins das penas que terá de ser resolvida a questão proposta. E, desde logo, deve-se prevenir para uma difícil conjugação entre a aplicação de uma pena de prisão com o juízo positivo sobre a suficiência da advertência contida na suspensão da execução e as exigências contidas na prevenção a nível geral.
Efectivamente, não podemos esquecer o poderoso contributo que a suspensão da execução da pena, na pluralidade de modalidades que comporta, representou, contra a aplicação de penas curtas de prisão. Em consequência da humanização do ideário penal, paralelamente ao aumento do nível económico dos países desenvolvidos, a privação de liberdade começou a ser equacionada como uma pena excessiva em muito casos. Assim, entendeu-se que a admissibilidade da suspensão de execução da pena conseguia evitar penas curtas que em lugar de ressocializarem antes favorecem a dessocialização pois que permitem o contágio do pequeno delinquente ao entrar no universo concentracionário e, simultaneamente, não possibilitam o tempo necessário para um tratamento eficaz.
Igualmente se argumentava com o facto de as penas curtas de prisão serem cominadas para os delitos menos graves para os quais bastariam penas menos traumáticas.
Pressuposto básico da aplicação de pena de substituição ao recorrente seria a existência de factos que permitam aquele juízo de prognose. Por outras palavras será necessário que o tribunal se mostrasse convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada seriam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão teria de se fundamentar em factos concretos que apontassem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
No caso concreto tal juízo de prognose está seguramente afastado pois que o mesmo, através da conduta concreta imputada nos presentes autos, demonstrou à saciedade a sua insensibilidade perante as condenações anteriores e sua persistência em opções desvaliosas em termos de comportamentos ilícitos.
Por outro lado igualmente é certo que corresponde o direito ao silêncio a uma inscrição fundamental no capítulo dos direitos que assiste ao arguido e cujo exercício nunca o poderá desfavorecer. Sem embargo, tal não obsta a que a assunção vertical e responsável de responsabilidade pelos actos praticados seja considerada uma mais valia a ser valorada nomeadamente no domínio em causa.
O que tudo se traduz assim na improcedência também da última questão oposta á decisão recorrida.
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IV – Decisão.
São termos pelos quais se nega provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UCs.
Notifique.
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Coimbra,