Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/18.8T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
PRESCRIÇÃO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Data do Acordão: 01/22/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.703 Nº1 C9 CPC, 28, 70 LULL, 595 CC
Sumário: 1. Nem sempre a par do negócio cambiário existe uma relação fundamental, podendo destinar-se apenas ao reforço da tutela do crédito pela adjunção de novos devedores.

2. A aposição da assinatura do sócio gerente no lugar do aceite numa letra emitida para pagamento de determinadas mercadorias fornecidas à sociedade, não implica ou não significa que se tenha querido obrigar fora ou para além da relação cambiária incorporada no título, pelo que, prescrita a obrigação cambiária, pode não subsistir qualquer outra obrigação por parte do aceitante.

3. Prescrita a obrigação cambiária, e não tendo sido alegado qualquer acordo no sentido de o executado/aceitante ter assumido o pagamento da dívida fora da relação cambiária, a letra não pode valer como mero quirógrafo contra o aceitante.

Decisão Texto Integral:


 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I - RELATÓRIO

A (…)  vem, por apenso à execução que contra si é deduzida por J (…) , Lda.. M (…), S.A., deduzir oposição à execução mediante embargos de executado,

com os seguintes fundamentos que assim se sintetizam:

a letra exequenda encontra-se prescrita, não podendo valer como título executivo;

a exequente vem invocar a relação subjacente ao título executivo, alegando uma relação comercial entre si e a sociedade B (…), Lda., juntando vários documentos para prova dessa mesma relação comercial;

não sendo o embargante parte na relação subjacente, o titulo em que intervém não pode ser havido como promessa de pagamento de uma relação comercial de que não é parte;

mais impugna o montante aposto na letra.

Conclui pela sua absolvição da execução.

Recebidos os embargos, a exequente veio apresentar contestação, defendendo que a letra vale enquanto quirógrafo, alegando que a dívida peticionada foi assumida pessoalmente pelo executado/oponente na sequência do fornecimento de produtos efetuados à sociedade de que aquele era sócio gerente.

Conclui pela improcedência da oposição à execução.

Foi proferido despacho saneador que decidiu que “pese embora prescrita a obrigação cambiária, não se mostra prescrito o direito de crédito titulado na letra dada à execução, enquanto quirógrafo, improcedendo, pois a prescrição invocada”, definindo como objeto do litígio, a “Responsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda por força da aceitação da letra dada à execução enquanto quirógrafo”.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a oposição com o consequente prosseguimento da execução.


*

Não se conformando com tal decisão, o embargante dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

I. Não pode o ora Recorrente, conformar-se com a douta decisão do tribunal “a quo”, por em seu entendimento, a sentença recorrida, ao julgar improcedentes os Embargos por si interpostos, por manifesto erro de Direito, ao considerar inexistir Prescrição do título dado à execução (letra de Câmbio vencida em 2013.12.10), e admitindo o seu prosseguimento com base no valor quirográfico do título de crédito em causa e, bem assim, ao considerar estar invocada relação subjacente, nos termos da al. b) do nº 1, do art. 703º do CPC e, a final, considerar estar-se perante uma Assumpção de Crédito, nos termos do art. 595º, nº 1, al. b) do CC, por parte do ora Recorrente, pese embora o facto de a Recorrida, no Requerimento Executiva, apenas tenha alegado, e comprovado a existência de fornecimentos de bebidas feitos por si, a sociedade comercial (B (…)) de que aquele era, à data, gerente.

II. De facto, apenas em sede de Contestação aos Embargos, e em resposta à exceção de prescrição invocada, vem a Recorrida invocar a assunção da dívida da sociedade de que o ora Recorrente era gerente, por este último, invocando a presunção de tal assunção, por se encontrar na posse de tal titulo de crédito, e que o mesmo, teria anuído em tal transmissão da dívida, constituindo essa alegada anuência, a existir, a relação subjacente ao título, suscetível de obstar à prescrição (3 anos) estabelecida no art. 70º da LULL, verificada em face da interposição da acção executiva, em Janeiro de 2018.

III. Sucede que a delimitação da ação, é de responsabilidade do seu autor, o qual delimita o pedido e a causa de pedir, no respetivo Requerimento Executivo (no caso vertente) não podendo vir ampliar ou alterar a causa de pedir, em momento subsequente e, muito menos na sua Contestação aos Embargos deduzidos, no caso sub iudice, pelo ora Recorrente, o que faz ao vir invocar como relação subjacente, a assunção, por este último, da dívida da sociedade de que era gerente, e que não havia feito no Requerimento Executivo, violando desta forma, o disposto no art. 264º e 265º, nº 1, ambos do CPC, sendo certo que a relação subjacente invocada, e demonstrada, no Requerimento Executivo, é entre duas sociedades comerciais, e em momento algum intervém, a título individual o Recorrente, o que faz em contravenção ao disposto na al. c) do nº 1, do art. 703º do CPC.

IV. Ora, constata-se assim, inexistir, no caso vertente, a invocação da alegada relação subjacente ao título de crédito dado à execução, e a que foi atribuído valor quirográfico, atenta a sua abstrata prescrição, nos termos do referido art. 703º, nº 1, al. c) do CPC, a qual se consubstancia na alegada existência de um acordo de transmissão de dívida (com a assunção pelo Recorrente da dívida da sua representada) que não é alegada, e muito menos provada em sede de Requerimento Executivo, momento em que obrigatoriamente, tal deveria ter sido objeto de alegação ou prova, pelo que, como já se demonstrou, e é comumente aceite pela Jurisprudência dos Altos Tribunais – Vide Ac. Relação de Coimbra (http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/a45ba46860486f880257869004f1eb7?OpenDocument) onde se refere que “A causa de pedir da execução não é a relação abstrata e autónoma do aceite; mas, refere-se mais uma vez, a relação subjacente/causal existente entre exequente e executado(s)” e ainda que “A adição de tais novos factos (sobre a assunção da dívida dum terceiro devedor) configura – senão mesmo uma alteração da causa de pedir – uma ampliação da causa de pedir; inadmissível numa contestação a uma oposição à execução” entendimento, de resto, igualmente sufragado por Acórdão do TR Guimarães (http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/71f2baa168e166ef802580df0058ada3?OpenDocument)

V. Conclui-se assim, que mal andou o tribunal “a quo” ao considerar que se encontrava invocada a relação subjacente ao título dado à execução, e assim verificados os requisitos da al. c) do nº 1, do art. 703º do CPC, o que faz, após a invocação em sede de contestação deduzida pela Recorrida aos Embargos, onde se invoca, em momento indevido, a alegada assunção de dívida por parte do Recorrente de dívida da sociedade de que era gerente, quando deveria, ter considerado, por ausência de invocação e prova da citada relação jurídica subjacente, em momento próprio, apenas a relação cambiária incorporada na letra de câmbio subjacente à execução e, assim, deveria ter havido como prescrito o direito à ação contra o ora Recorrente, por tal letra haver sido dada à execução em 2.01.2018, em contravenção com o disposto no art. 70º, nº 1, da LULL, atento o seu valor próprio enquanto titulo de crédito, e não como elemento de valor quirográfico como o fez em sede de Despacho Saneador, julgando assim procedentes os Embargos, e assim, ordenada a absolvição do pedido na execução movida pela Recorrida ao Recorrente, como é de Direito, e cuja decisão se pretende agora ver alterada, e julgando-se procedentes os Embargos.


*

O exequente apresentou contra-alegações, invocando a intempestividade do recurso uma vez que a prescrição foi julgada no despacho saneador que, nessa parte conheceu do mérito da causa, pelo que dele cabia recurso autónomo ao abrigo do disposto no art. 644º, nº4 do CPC.

Cumpridos que foram os vistos legais ao abrigo do nº2 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.  


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Questão prévia – extemporaneidade do recurso.
2. Se a assinatura no local do sacador significa a assunção da responsabilidade de pagamento ao nível da relação subjacente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Questão prévia – extemporaneidade da apelação

Segundo o exequente/apelado, fundamentando o embargante o seu recurso na improcedência da alegada exceção de prescrição e consideração do título como mero quirógrafo, questão apreciada no despacho saneador que conheceu do mérito da causa, sendo suscetível de recurso autónomo, a presente apelação é extemporânea.

Vejamos, antes mais, os exatos termos da apreciação efetuada pelo juiz a quo no despacho/saneador, que aqui reproduziremos por os respetivos termos poderem dar azo a algumas dúvidas quanto à interpretação do seu verdadeiro sentido:

“Não obstante, o processo reúne já os elementos necessários à apreciação da excepção peremptória invocada pela embargante, relativa à prescrição da obrigação cambiária. Pelo que, por razões de economia processual, se passa, desde já, a proferir decisão sobre a referida questão, conhecendo parcialmente o mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 595.º n.º1 a) e b) do Código de Processo Civil.


*

b. 1) Da prescrição da obrigação cambiária

Invocou o embargante, na sua petição de oposição à execução, a prescrição do crédito titulado na letra dada à execução, alegando, em síntese, que decorreram mais de 3 anos sobre a data do seu vencimento.

Vejamos.

Segundo o disposto no artigo 70 n.º1 da Lei Uniforme das Letras e Livranças Cheques, todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.

Pelo que, constando como data de vencimento da letra dada à execução o dia 10.12.2013 e tendo a execução sido instaurada a 02.01.2018, é notório que decorreu o prazo prescricional previsto no referido normativo legal.

Sucede, porém, que os títulos de crédito podem constituir títulos executivos também como meros quirógrafos, valendo então como reconhecimento de uma obrigação, ainda que, nesse caso, se imponha ao exequente o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação jurídica subjacente, tudo nos termos previstos no artigo 703.º n.º1 c) do Código de Processo Civil.

Ora, no caso em apreço é precisamente isso que se verifica, sendo que a exequente expõe detalhadamente no requerimento executivo os factos que constituem o direito de crédito que pretende executar com o título dado à execução.

Pelo que, pese embora prescrita a obrigação cambiária, não se mostra prescrito o direito de crédito titulado na letra dada à execução, enquanto quirógrafo, improcedendo, pois, a prescrição invocada.


*

Não existindo outras questões em condições de ser, desde já, decididas, passa-se a proferir o despacho a que alude o artigo 596.º n.º1 do Código de Processo Civil, identificando o objecto de litígio e os temas da prova.

*

II. IDENTIFICAÇÃO DO OBJECTO DO LITÍGIO E ENUNCIAÇÃO DOS TEMAS DA PROVA

a) Objecto do litígio:

- Responsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda por força da aceitação da letra dada à execução, enquanto quirógrafo.”

Da leitura do despacho/saneador, constata-se que, independentemente da forma dúbia como se expressou, o juiz a quo ter-se-á aí limitado a afirmar que, efetivamente, a letra exequenda, enquanto título de crédito está prescrito, mas que poderá ainda prosseguir enquanto quirógrafo – uma vez que o direito de crédito titulado pela letra não se encontrará prescrita e a letra ainda poderá valer como quirógrafo.

Não se decide aí, nada mais, para além da improcedência da invocada exceção de prescrição da letra enquanto título de crédito e ainda a da eventual prescrição do crédito subjacente (o que nem sequer havia sido invocado), tanto mais que define como objeto do litígio, remetendo para momento posterior, a decisão sobre a “responsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda por força da aceitação da letra dada à execução enquanto quirógrafo”.

O despacho saneador confinou-se à apreciação da invocada exceção de prescrição, afirmando que, se é certo que a obrigação cambiária está prescrita, não se mostra prescrito o direito de crédito titulado pela letra dada à execução enquanto quirógrafo. Nada mais aí foi afirmado, sendo que o caso julgado só se forma sobre a concreta decisão que aí foi objeto de apreciação, não abrangendo quaisquer outras que, embora pudessem aí ter sido apreciadas, o não foram.

É certo que, em nosso entender, o processo disporia já dos elementos necessários a conhecer da questão que o juiz relegou para momento posterior, sem necessidade de ulterior produção de prova – consistente em determinar se o título exequendo enquanto mero quirógrafo acarretaria a responsabilidade do executado. De qualquer modo, não o fez, relegando a sua apreciação para momento posterior, vindo a apreciar tal questão unicamente em sede da sentença de que agora se recorre.

Concluindo, considera-se que o presente recurso não se limita a uma mera discordância com o decidido no despacho saneador – despacho este, que, na parte em que julgou improcedente a prescrição da letra enquanto título cambiário, sendo suscetível de recurso autónomo, transitou de facto, em julgado (art. 644º, nº1 –, incidindo sobre o teor da sentença recorrida, na parte em que, em sede de direito, considerou que a letra exequenda, enquanto quirógrafo, configura uma assunção de dívida nos termos previstos no artigo 595º, nº1, al. b), do CC.

A decisão que é objeto da presente apelação não transitou ainda em julgado, podendo ser sujeita à apreciação deste tribunal de recurso.


*

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados pelo juiz a quo e que não foram objeto de impugnação:

1. A exequente é uma sociedade dedicada à atividade de fornecimento e distribuição de bebidas e produtos alimentares.

2. O executado era, pelo menos, em 2010, sócio e gerente da sociedade comercial B (...) Lda. dedicada à atividade de comércio de bebidas e espaço de dança.

3. No exercício das respetivas atividades, a exequente, a pedido da dita sociedade, forneceu-lhe, em diversas ocasiões, produtos alimentares, nomeadamente bebidas, tendo emitido, em consequência, as faturas número 178371, 179199, 180721, 181611, 182762, 183776, 184228, 13000092, 13000086, 13000402, 13001018 e 13001628, juntas ao requerimento executivo, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

4. O valor acordado em contrapartida do referido fornecimento de produtos, depois de deduzida a quantia de € 4.214,24, referente à devolução de vasilhame, correspondia à quantia global de € 8 000,00.

5. Para pagamento desde valor, o executado emitiu a favor da exequente uma letra de câmbio no valor de € 8.000,00.

6. Na respetiva data de vencimento, o executado entregou à exequente a quantia de € 800,00 e emitiu a favor daquela nova letra de câmbio, no valor de € 7.200,00.

7. Na data de vencimento da letra de câmbio referida no artigo precedente, o executado entregou à exequente a quantia de € 800,00 e emitiu nova letra de câmbio, no valor de € 6.400,00, de que aquela ainda é portadora.

8. Nesta letra, o executado/oponente apôs, atravessadamente, na parte anterior da mesma, do lado esquerdo, a respetiva assinatura, encimada pela palavra "aceite".

9. Neste mesmo título, os legais representantes da exequente apuseram as respetivas assinaturas e o carimbo identificativo da respetiva firma com a indicação "a gerência" no lugar indicado para a assinatura do sacador.


*

1. Se a aposição da assinatura numa letra na qualidade de aceitante implica o reconhecimento de uma dívida ao nível da relação subjacente.

O juiz a quo veio a julgar improcedentes os embargos, com base na seguinte fundamentação:

“(…) revertendo, então, ao caso concreto, resulta, desde logo, da factualidade provada, que o executado/oponente se obrigou pessoalmente, através da aceitação e entrega à exequente de uma letra de câmbio no valor de € 6 400,00, a pagar à exequente essa quantia, cuja responsabilidade era originariamente de uma sociedade comercial, da qual aquele era representante legal.

Pelo que o executado/oponente assumiu, assim, a dívida de um terceiro nos termos previstos no artigo 595.º n.º1 do Código Civil, mostrando-se verificados os factos constitutivos do direito de crédito da exequente, sem que o executado/oponente os lograsse contrariar.

Insurge-se o Embargante/Apelante contra tal entendimento, com base nas seguintes ordens de razões:

- apenas em sede de contestação aos embargos e em resposta à exceção de prescrição, o exequente invoca a assunção de dívida da sociedade de que o ora recorrente era gerente – a relação subjacente invocada no requerimento executivo é a relação comercial  ocorrida entre as duas sociedades comerciais;

- a alegada existência de um acordo  de transmissão de dívida, com a assunção pelo recorrente da dívida da sua representada, não é alegada e muito menos provada no requerimento executivo.

Perante a decisão proferida em sede de despacho saneador e que transitou em julgado, temos por assente que a letra exequenda se encontra prescrita, pelo que só poderá constituir título exequendo enquanto mero quirógrafo nos termos previstos na 2ª parte da al. c) do nº1 do artigo 703º, CPC. E, tal como aí é afirmado, um título prescrito pode valer ainda como quirógrafo desde que os factos constitutivos constem do próprio documento e ou sejam alegados no título executivo e, neste caso, foram.

Contudo, a nossa concordância com o decidido na primeira instância fica-se por aí, acompanhando-se as críticas deduzidas pelo embargante à avaliação que é feita na sentença recorrida relativamente ao significado da aposição da assinatura da letra por parte do embargante na qualidade de sacado/aceitante.

Em primeiro lugar, confirma-se que, no requerimento executivo, alegando o exequente a relação fundamental – fornecimento de bebidas pela exequente à sociedade B (…), Lda., da qual o executado é sócio, juntando inclusivamente cópias das respetivas faturas –, o executado/sacado surge aí como terceiro nas relações comerciais havidas entre a aqui exequente e a sociedade de que o executado é sócio. Com efeito, relativamente ao executado, limita-se aí a alegar, o seguinte:

Para pagamento deste valor o executado emitiu a favor do exequente uma letra de câmbio, justamente no valor de 8.000 €”.

Na respetiva data de vencimento, o executado entregou à exequente a quantia de € 800,00 e emitiu a favor daquela nova letra de câmbio, no valor de € 7.200,00.

Na data de vencimento da letra de câmbio referida no artigo precedente, o executado entregou à exequente a quantia de € 800,00 e emitiu nova letra de câmbio, no valor de € 6.400,00, de que aquela ainda é portadora.

Nesta letra, o executado/oponente apôs, atravessadamente, na parte anterior da mesma, do lado esquerdo, a respetiva assinatura, encimada pela palavra "aceite".

 E, é com base, única e exclusivamente, nesta mesma factualidade – que o juiz a quo vem a dar como provada na sentença recorrida –, que aí se conclui que “o executado/oponente se obrigou pessoalmente, através da aceitação e entrega à exequente de uma letra de câmbio no valor de € 6 400,00, a pagar à exequente essa quantia, cuja responsabilidade era originariamente de uma sociedade comercial, da qual aquele era representante legal”.

E, aqui, temos de discordar frontalmente da posição assumida na sentença recorrida.

A emissão de uma letra ou livrança dá origem a uma específica relação jurídica, separada e distinta de qualquer outra já existente, sendo considerados documentos constitutivos, por se entender que o direito incorporado é distinto do direito resultante da relação subjacente[1].

Cada assinatura aposta sobre a letra, seja qual for a qualidade em que o sujeito intervém (sacador, aceitante, endossante, avalista) faz nascer contra o subscritor uma obrigação nova, substantiva e distinta de qualquer outra já existente, reconhecendo-se ao titular ativo o correspondente direito de crédito[2].

A aposição da assinatura de uma letra, no local do sacado – negócio jurídico unilateral denominado de “aceite” – acarreta a constituição da obrigação cambiária principal, obrigando-se o aceitante a pagar a letra à data do vencimento nos termos do artigo 28º da LU.

Sendo a obrigação cambiária abstrata, isto é independente da sua causa, por detrás da mesma existirá sempre uma causa próxima a que a doutrina denomina de “convenção executiva” – pacto que se destina a regular ou reforçar, através de uma letra uma obrigação já constituída (a relação fundamental) –, podendo existir, ainda, uma relação fundamental ou causa remota (compra venda, mutuo, etc.)[3].

E se, como salienta Carolina Cunha[4], este é o esquema por excelência subjacente às subscrições cambiárias – o esquema em que o negócio cambiário surge como complementar ou instrumental perante uma relação jurídica fundamental ad hoc que intercede entre as partes da convenção executiva – não é o único modelo. Há um grupo significativo de casos nos quais ao negócio cambiário não está ao serviço de uma relação jurídica diferente e separada entre os mesmos sujeitos, a qual se pretende garantir, cumprir, novar, etc., tendo por função um mero aproveitamento de utilidades inerentes ao instituto jurídico das letras e livranças. E, nalguns casos, não existe sequer, nos moldes clássicos uma relação fundamental; existe apenas uma convenção executiva que vai estabelecer de que modo e em que termos tencionam as partes aproveitar jurídico-economicamente as tais utilidades inerentes às subscrições cambiárias. Estas utilidades reportam-se, no essencial ao reforço da tutela do crédito pela adjunção de novos devedores: é o que sucede no aval e nas subscrições de favor.

Nas subscrições de favor (que podem ser o saque e o aceite), o favorecente subscreve o título para que a sua responsabilidade cambiária se adicione à (eventual) responsabilidade cambiário do favorecido, reforçando o crédito cambiário em proveito direto do titular ativo.

Não existe nestes casos qualquer relação fundamental ad hoc que envolva o subscritor de favor e que, sirva, na terminologia clássica, como “causa remota” da sua assinatura cambiária. O risco externo a que o favorecente se expõe é o de ser demandado cambiariamente pelo credor[5].

Ou seja, prescrita a obrigação cambiária incorporada na letra de câmbio, subsistirá a obrigação fundamental, se existir relação fundamental entre o portador da letra e o obrigado cambiário.

Encontrando-nos no âmbito das relações imediatas, face a uma letra apresentada à execução como título cambiário, se o executado invocar tratar-se de um aceite de favor, é ele quem tem de alegar e provar tal subscrição de favor. Contudo, invocada com sucesso a prescrição da letra, precisamente porque esta perdeu a sua força enquanto título cambiário, só podendo valer como quirógrafo, já será ao exequente que incumbirá a alegação da existência de uma relação fundamental da qual resulte a responsabilidade da pessoa contra a qual pretende instaurar a execução.

No caso em apreço, atentar-se-á em que nem sequer se pode falar numa “letra de favor” – a subscrição de favor tem a sua origem num acordo, amiúde tácito e verbal, entre favorecente e favorecido – nas relações entre o sacador/exequente e o executado/aceitante. Esta convenção de favor recolhe a causa da subscrição cambiária do favorecente (prestar uma garantia) e providencia o centro de gravidade para determinar a disciplina da relação extracartular entre ambos[6].

Na relação extracartular invocada, o exequente, sendo de facto credor da quantia aposta no título, tem como devedora a sociedade de que o executado é gerente, surgindo o executado como um terceiro relativamente às relações comerciais havidas entre as duas sociedades. Contudo, ao aceitar a letra para pagamento da quantia exequenda, comprometeu-se a assumir o respetivo pagamento. Ou seja, se a letra não se encontrasse prescrita, o executado encontrava-se obrigado ao respetivo pagamento perante o sacador/exequente, que é simultaneamente o credor da relação comercial que lhe origem ao aceite da letra, sem que o aqui executado lhe pudesse apor qualquer “convenção de favor”.

Contudo, a assinatura de uma letra no lugar do aceite, por si só, e desacompanhada de quaisquer outros factos, tem por significado e consequência que o aceitante se vincula ao pagamento da obrigação cambiária, nos termos e prazos de prescrição previstos para este tipo de obrigações. E nada mais. De tal assinatura, desacompanhada de qualquer outro facto, não se poderá extrair a assunção de uma qualquer outra responsabilidade fora do âmbito da relação cambiária.

Tem sido discutida na jurisprudência e na doutrina se o avalista (o aceitante ou qualquer outro obrigado da cadeia cambiária), pelo facto de garantir a obrigação cambiária do avalizado, garante também a obrigação do mutuário subscritor da livrança ou aceitante da letra, questão que se prende com o sentido da convenção executiva e, mais amplamente com a articulação entre a relação cartular e a relação fundamental, se a houver[7].

Assim sendo, prescrita a obrigação cambiária e não tendo sido alegado (nem provado), qualquer outro acordo no sentido de que o executado assumira o pagamento tal dívida fora da relação cambiária, não se pode afirmar que o simples facto de ter concordado em apor o seu aceite na letra, implicava alguma assunção de dívida para além da responsabilidade cambiária que lhe adviria do regime da letra[8].

Como se refere no acórdão do STJ de 30 de outubro de 1979[9], (considerações que podem ser transpostas para a vontade de aceitar uma letra em confronto com a vontade de assunção da dívida ao nível da relação fundamental), não sendo alegado nem provado qualquer facto ou circunstância atendível que, por interpretação ou conversão, possibilitasse transformar a declaração do aval em declaração de fiança – a vontade real de prestar fiança constituiu, em primeiro lugar, matéria de facto, sendo a determinação do sentido relevante da vontade negocial é já questão de direito –, não pode o tribunal, colocando-se fora da órbita do pedido e da causa de pedir e desrespeito dos princípios do contraditório, transformar a vontade real de aval em vontade fictícia de fiança.

A favor de tal posição se pronuncia Adriano Vaz Serra[10], afirmando que a presunção de um intento atual (de se obrigar cambiariamente) e de um intento eventual (de se obrigar pela via ordinária) que está na base da conversão dos negócios jurídicos, não é admissível em geral para as obrigações principais do aceitante ou do emitente, assim como não é para o aval: “para que, extinto o aval, o garante responda como fiador, é necessária a prova de que o avalista se obrigou também como fiador da obrigação subjacente à do avalizado, pois o facto da prestação do aval não importa a presunção de querer o garante obrigar-se também como fiador”.

O exequente cumpriu os requisitos para a apresentação deste título como mero quirógrafo, alegando, de facto, a relação subjacente à emissão da letra. Contudo, face à relação subjacente por si alegada e dada como provada, dela não resulta a responsabilidade do executado fora da relação cambiária, surgindo como um terceiro relativamente às relações comerciais existentes entre a exequente e a sociedade de que era sócio.

Pelo exposto, extinta a obrigação cambiária pela prescrição, não subsiste qualquer obrigação a cargo do executado/sacado. 

A Apelação é de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e revogando-se a decisão recorrida, julgam-se procedentes os presentes embargos, determinando a extinção da execução.

Custas a suportar pelo Apelado.

                                                                 Coimbra, 22 de janeiro de 2019

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral ( vencido)

Voto de vencido

Fiquei vencido, pois confirmaria a decisão recorrida.

Salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, afigura-se-me que os factos provados são ilustrativos da existência de assunção da dívida da sociedade (como entendeu a 1.ª instância, ao abrigo do art.º 595.º do CCiv.) pelo seu sócio gerente (Executado).

É que o Executado assumiu o pagamento, tendo até procedido, por isso, a dois pagamentos parciais em numerário (cumprimento), havendo um acordo subjacente de pagamento – no que os factos parecem concludentes – entre o sócio gerente da sociedade devedora e o credor, o que foi sufragado por este último.

Não se trata da mera assinatura de uma letra no lugar do aceite, desacompanhada de quaisquer outros factos, pois se alegou e provou que tal só ocorreu para pagamento da ilustrada dívida.

Assim, se temos o documento/título que vale como quirógrafo, também não falta a relação subjacente, que se subdivide, no caso, em duas relações complementares: a relação entre credor e devedor (dívida substantiva) e a relação entre sócio gerente de devedor e credor (assunção da dívida por terceiro, que se compromete a pagar).

Realmente, vem provado que foi para pagamento da quantia em dívida que o Executado emitiu (aceitou) a favor da Exequente uma letra de câmbio no valor de € 8.000,00, sucessivamente substituída, aquando do vencimento, mediante a emissão de novas letras, acompanhadas de pagamentos parciais (em numerário).

Se a letra foi emitida para pagamento de determinadas mercadorias fornecidas à sociedade, este acordo de pagamento consubstancia a relação subjacente relativamente ao respetivo aceitante, a correspondente assunção da dívida pelo sócio gerente, em conjugação com a também provada relação subjacente entre as duas sociedades (devedora e credora).

Vítor Amaral

                                                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. Nem sempre a par do negócio cambiário existe uma relação fundamental, podendo destinar-se apenas ao reforço da tutela do crédito pela adjunção de novos devedores.

2. A aposição da assinatura do sócio gerente no lugar do aceite numa letra emitida para pagamento de determinadas mercadorias fornecidas à sociedade, não implica ou não significa que se tenha querido obrigar fora ou para além da relação cambiária incorporada no título, pelo que, prescrita a obrigação cambiária, pode não subsistir qualquer outra obrigação por parte do aceitante.

 3. Prescrita a obrigação cambiária, e não tendo sido alegado qualquer acordo no sentido de o executado/aceitante ter assumido o pagamento da dívida fora da relação cambiária, a letra não pode valer como mero quirógrafo contra o aceitante.

 


[1] Alexandre Soveral Martins, “Títulos de Crédito e Valores Mobiliários”, Almedina, p. 24.
[2] Carolina Cunha, “Manual de Letras e Livranças”, 2016, Almedina, p. 27.
[3] Alexandre de Soveral Martins, p. 80, e Carolina Cunha, obra citada, p. 53. e ainda “Letras e Livranças, Paradigmas Atuas e Recompreensão de um Regime”, Coleção Teses, Almedina, p. 157.
[4] “Manual de Letras e Livranças”, p. 56-56, e “Letras e Livranças (…), p. 155 e ss. e pp. 164 e ss.
[5] Carolina Cunha, obra citada, p. 56 e 237-243.
[6] Carolina Cunha, obra citada, p.242. No caso em apreço, o executado poderia invocar com sucesso a convenção de favor se o favorecido (a sociedade de que é sócio), a ser um dos obrigados cambiários, acionasse a letra contra o executado.
[7] Manuel Januário Costa Gomes, “Assunção Fidejussória de Dívida”, Coleção Teses, Almedina, p. 82, nota 317.
[8] Como defende Rui Pinto, embora relativamente aos títulos prescritos e apresentados como mero quirógrafos, a lei se limite a exigir a “alegação dos factos constitutivos da concreta e determinada relação causal” no requerimento executivo, por razões de direito material, acrescerão outros dois requisitos: i) exequente e executado devem estar no domínio das relações imediatas, já que o putativo reconhecimento tê-lo-á sido entre sacador e beneficiário, e que ii) o negócio de valuta não pode ser solene – “A Ação executiva”, AAFDL Editora, p. 204.
[9] Acórdão relatado por António Furtado dos Santos, in BMJ nº 290, Novembro 1979, pp. 434-437.
[10] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 113, p.126, nota (3).