Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
709/19.5T9GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º, 55.º E 56.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - Embora com resultados de sinal oposto, as decisões de suspender a execução de uma pena de prisão e a de revogar esta mesma suspensão são conexas e partem dos mesmos pressupostos.

II - Face ao conteúdo dos artigos 55.º e 56.º do Código Penal é aceite, de modo generalizado e pacífico, que a revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.

III - Mesmo em caso de cometimento de novo crime no decurso do período da suspensão, o tribunal deve ponderar a possibilidade de manutenção da ressocialização em liberdade, esgotando os meios legais de intervenção penal fora da prisão como garantia das finalidades da punição, se as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão puderem ser ainda alcançadas

IV - Este critério e/ou juízo de prognose aplicável às situações da prática de um novo crime pelo condenado durante o período de suspensão da execução da pena, é extensível e deve ser aplicado, por maioria de razão, à situação de incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado.

Decisão Texto Integral:
Relator: Luis Teixeira
1.º Adjunto: Vasques Osório
2.º Adjunta: Maria José Guerra

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1. Por sentença proferida no processo principal e transitada em julgado no dia 11 de Setembro de 2020, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Dec-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 6 meses, com regime de prova e plano de reinserção social, que passasse pela sujeição ao acompanhamento da DGRSP e obediência às orientações dessa entidade sobre a necessidade de controle de comportamentos aditivos.

2. Por despacho judicial de 12.5.2022 foi revogada a suspensão da execução da pena ao arguido.

3. Desta decisão recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

b) O Tribunal a quo decidiu revogar a suspensão de tal pena porquanto "resultou patente da audição presencial do condenado a que houve lugar que o mesmo não assume de todo manifesto incumprimento e falta de cooperação com a DGRSP em que incorreu, que tal incumprimento lhe é plenamente imputável e é culposo, que o condenado não assume qualquer culpa própria ou responsabilidade pelo sucedido e antes culpabiliza e exterioriza a culpa para o sr. Técnico da DGRSP que o acompanha, tendo referido que já por várias vezes pediu a sua substituição, tudo sempre numa postura de total e absoluta arrogância e sobranceria que demonstrou de forma patente durante toda a sua audição presencial neste Tribunal".

d) Após concluir pela não aplicação das várias possibilidades previstas nas alíneas a) a d), do artigo 55.º, do Código Penal, o Tribunal a quo conclui automaticamente pela revogação da cena suspensa, "ao abrigo do subsequente artigo 56º, nº 1, al. a), e nº 2, do mesmo Cód. Penal".

e) O Tribunal a quo assenta a sua fundamentação na não aplicação do leque de possibilidades permitidas pelas várias alíneas do artigo 55º, do Código Penal, mas não fundamenta a revogação da pena suspensa, ao abrigo da alínea a), do nº 1 e nº 2, de artigo 56º, do Código Penal: limita-se a concluir, por exclusão de partes.

g) O arguido não cometeu nem foi condenando pela prática de qualquer crime, ou seja, desde a condenação em processo sumaríssimo, no âmbito dos presentes autos, o arguido não voltou a delinquir.

i) A finalidade da suspensão da execução da pena de prisão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes.

j) Finalidade que in casu tem vindo a ser atingida, na medida em que o arguido não cometeu nem foi condenado pela prática de novos crimes.

k) O arguido encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente; vejamos:

I) Trabalha na empresa C..., Lda (em 139º no ranking das empresas portuguesas com maior faturação), onde começou com um contrato a termo certo, convertido em contrato de trabalho sem termo, face ao seu profissionalismo, assiduidade e pontualidade.

m) Trabalho que prestas por turnos, aos sábados, domingos e feriados,

n) Numa linha de montagem com enorme desgaste físico e também psicológico, mas a única forma de sobreviver e sustentar o seu agregado familiar.

o) O arguido vive com a sua companheira e o filho desta;

p) Filho este que, mesmo não o sendo biologicamente, trata como seu (leva à escola, à catequese, ao futebol e a passear).

q) Vivem em casa arrendada, de forma remediada e honesta.

r) A condenação em processo sumaríssimo, no âmbito dos presentes autos, numa pena de prisão suspensa na execução teve o condão de fazer o arguido interiorizar e se consciencializar da importância de ganhar a vida de urna forma honesta e legal, abstendo-se da venda de produtos estupefacientes para se governar.

u) O arguido não abandonou o cumprimento do plano de reinserção social;

v) o arguido não deixou de comparecer e ser acompanhado pelo SIDAC - CRi, tendo comparecido às consultas e respeitado a medicação;

w) O arguido não reincidiu: nem acompanhou com pessoas conotadas com consume de produtos estupefacientes; aliás,

x) Nada consta nos OPC locais relativamente ao arguido, mantendo este uma conduta adequada;

y) O arguido não deixou de comparecer às entrevistas com o Técnico de reinserção social;

z) Aliás, foi uma dessas entrevistas que deu origem à elaboração do 2.º relatório periódico por parte da DGRSP, o qual desencadeou a audição do arguido - nos termos e para os efeitos dos nºs 1 e 2, do artigo 495.°, do Código de Processo Penal.

aa) O arguido não se tornou toxicodependente, isto é, não é adito a estupefacientes.

ee) Importa distinguir comportamentos aditivos (visados na sentença) de consumos esporádicos;

ff) Na primeira situação de anormalidade relatada pelos serviços da reinserção social, o Tribunal a quo não advertiu solenemente; não exigiu garantias de cumprimento das obrigações: não impôs novos deveres ou regras de conduta; não introduziu exigências acrescidas; não decidiu prorrogar o período da suspensão; optou simplesmente por impor ao arguido a privação da liberdade por um período de 2 anos e 6 meses.

gg) Qualquer uma das alíneas do artigo 55.º, do Código Penal, revela-se, in casu, suficiente e adequada às finalidades da punição.

hh) A situação concreta, isto é, o comportamento do arguido não merece tamanha censura: a privação da liberdade e o cumprimento de pena de prisão efetiva;

pp) Em suma, face aos dados de que dispomos, afigura-se-nos que o arguido não frustrou o essencial das finalidades que conduziram à suspensão da execução da prisão da sentença condenatória dos presentes e cujas necessidades de prevenção geral atingiram as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

qq) O DESPACHO ora recorrido violou, assim, as disposições dos artigos 40º, 55º e 56º do Código Penal. 374º, nº 2 e 97.º, n.º 5, ambos do Código de Possesso Penal.

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4. Respondeu o Ministério Público, dizendo:

6º- A decisão “sub judice” fez correcta aplicação dos artºs 55º e 56º, ambos do CPenal;

7º- Razão porque não deve ser alterada a decisão ora posta em crise;

5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

“4. Em apoio à sua divergência para com o sentenciado, diz o recorrente que, o Tribunal a quo, ao afastar, por exclusão de partes, o leque de possibilidades permitidas pelas várias alíneas do art. 55.º do Código Penal, não fundamentou a revogação da execução da pena suspensa, aplicando-a de forma automática…

5. Fá-lo, a nosso ver, com fundamento, pois, embora se admita a existência de manifesto incumprimento e falta de cooperação com a DGRSP por parte do arguido, que lhe é plenamente imputável e culposo e apesar de reconhecermos o labor argumentativo empreendido pelo Tribunal a quo, ao enfatizar a postura de total e absoluta arrogância e sobranceria que o arguido demonstrou de forma patente durante toda a sua audição presencial, mesmo assim cremos que, no caso concreto, será ainda possível dar-lhe uma última oportunidade …

41. É, pois, nosso entendimento que o presente recurso deve obter provimento, determinando-se a prorrogação por mais um (1) ano do período de suspensão de execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado.

6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II

Tem o despacho recorrido o seguinte teor:

 “Mediante sentença proferida nestes autos e transitada em julgado no dia 11 de Setembro de 2020, foi AA condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 6 meses, com regime de prova e plano de reinserção social, que passasse pela sujeição ao acompanhamento da DGRSP e obediência às orientações dessa entidade sobre a necessidade de controle de comportamentos aditivos.

Para o efeito, foi elaborado e homologado judicialmente o respectivo plano de reinserção social conforme consta de fls. 140 a 143 (ref. n.º 1690704) e que aqui se dá por pressuposto, com os objectivos essenciais específicos de o condenado aumentar o nível de consciencialização e assumir as responsabilidade pelo seu comportamento, interiorizando a ilicitude do mesmo, assim como manter diariamente níveis adequados de convivência e integração social nos diferentes espaços de interacção em que se insere e manter-se abstinente do consumo de substâncias psicoactivas.

Sucede que a DGRSP veio informar no passado dia 23 de Fevereiro de 2022, a fls. 173 a 175 (ref. n.º 1911362), designadamente que o condenado teve consultas no dia 4 de Agosto, 20 de Setembro e 18 de Novembro, com resultado positivo a canabinóides, nos testes de despistagem. Também teve consulta no dia 10 de Fevereiro, mas não apresentou a declaração do teste de despistagem, dizendo que não a tinha efectuado. Ficou de comparecer dia 14 nas instalações da equipa da DGRSP para apresentar o teste de despistagem, o que não veio a acontecer até àquele momento. Tentaram contactar por diversas vezes o condenado via telefone, mas nunca atendeu, nem devolveu a chamada. Em contacto com o CRI, houve a informação de que o teste de despistagem deu “positivo” a cocaína e canabinóides no dia 10 de Fevereiro.

Mais informou que o condenado se continuava a mostrar pouco receptivo à intervenção dos serviços da DGRSP, sendo necessário efectuar inúmeros contactos telefónicos para comparecer às entrevistas presenciais na equipa. E também quando, por vezes, está agendada a entrevista, o condenado não comparece, tendo que se reagendar nova data.

Como tal, perante tais informações, foi o condenado em causa ouvido presencialmente neste Tribunal, na presença do Sr. Técnico da DGRSP encarregado do respectivo acompanhamento …

Após tal audição, o Ministério Público pronunciou-se conforme consta da respectiva promoção de fls. 204 (ref. n.º 29300798), no sentido de ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada …

Cumpre decidir.

Com interesse a este respeito, estabelece antes do mais o artigo 55º do Cód. Penal o seguinte:

Por seu turno, o subsequente artigo 56º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do mesmo Cód. Penal, determina por seu turno o que se segue:

Em regra, é de entender que em casos como este o tribunal deverá dar prevalência às soluções constantes do supra citado artigo 55º do Cód. Penal, e apenas no caso de se entender que tais soluções são inadequadas ou insuficientes é que deverá determinar como estabelecido no subsequente artigo 56º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do mesmo Código.

Neste caso concreto, na referida diligência de audição presencial do condenado a que houve lugar neste Tribunal, o sr. Técnico da DGRSP encarregado de acompanhar o condenado confirmou e reiterou tudo o que constava informado por escrito e que já referimos supra.

Por sua vez, o condenado afirmou no essencial que trabalha por turnos e com horários diversificados de dia ou de noite, não colaborando por isso o Sr. Técnico da DGRSP consigo porque não atende a tais horários. Mais disse que tem uma filha da sua companheira com 9 anos de idade e que o próprio acompanha na escola e nas respectivas actividades. E mais disse que faltou “1 ou 2 vezes” às convocatórias da DGRSP porque uma vez teve de acompanhar o pai ao hospital de ... e outra vez teve de fazer horas extra de turno no trabalho.

Por seu turno, e ainda assim, o condenado confessou que fuma ocasionalmente “CBD”, como sendo um tipo de marijuana ou cannabis que não contém “THC” e que por isso será legal e se vende em “freeshops” (ou seja, confessa o consumo de canabinóides), e disse ainda que já experimentou várias vezes cocaína, embora supostamente a última vez tivesse sido tanto “há 2 ou 3 anos” atrás, como teria sido “há 6 anos” atrás.

Em resposta, disse o Sr. Técnico da DGRSP que marca as entrevistas com reduzida antecedência, de forma a ter em conta o trabalho por turnos incertos do condenado, que o condenado não retribui as chamadas que não atende nem responde aos emails que lhe são enviados para o endereço que forneceu, nem responde às cartas registadas que lhe são enviadas, e que em suma o condenado ainda não interiorizou as obrigações que lhe decorrem do plano de reinserção social que lhe foi elaborado.

Ora, num caso como este, poderíamos ponderar as soluções que decorrem do supra citado artigo 55º do Cód. Penal, mas tal sempre teria de ter como pressuposto de que houvesse perspectivas reais e sérias de que o condenado, embora em incumprimento (manifesto) do plano de reinserção social que lhe foi fixado, reuniria ainda condições de corrigir o seu comportamento e atalhar caminho, podendo assim fazer sentido que neste momento apenas se lhe efectuasse uma solene advertência, ou se lhe aceitasse a garantia de que doravante passaria a cumprir o que lhe foi determinado, ou lhe serem impostos deveres ou regras de conduta acrescidos que facilitassem e propiciassem o cumprimento dos restantes, e/ou que se lhe prorrogasse o período de suspensão nesse sentido.

No entanto, entendemos que estas condições não se encontram aqui de todo reunidas. Com efeito, quanto a nós resultou patente da audição presencial do condenado a que houve lugar que o mesmo não assume de todo o manifesto incumprimento e falta de cooperação com a DGRSP em que incorreu, que tal incumprimento lhe é plenamente imputável e é culposo, que o condenado não assume qualquer culpa própria ou responsabilidade pelo sucedido e antes culpabiliza e exterioriza a culpa para o sr. Técnico da DGRSP que o acompanha, tendo referido que já por várias vezes pediu a sua substituição, tudo sempre numa postura de total e absoluta arrogância e sobranceria que demonstrou de forma patente durante toda a sua audição presencial neste Tribunal.

Como tal, entendemos que nenhuma das soluções contidas no artigo 55º do Cód. Penal seria adequada ou suficiente neste caso concreto, e por isso, ao abrigo do subsequente artigo 56º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do mesmo Cód. Penal, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão que foi aplicada nos presentes autos ao condenado AA, com o consequente cumprimento efectivo de tal pena”.

III

Apreciando:

1. A questão suscitada consiste em apurar se se verificam (ou não) os pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão ao arguido.

Nos termos do artigo 50º do Código Penal,

Dispõe, por sua vez, o artigo 56º do mesmo diploma:

Nos termos desta disposição, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão pode ter por fundamento a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social e/ou a prática de um novo crime pelo qual o agente venha a ser condenado.

E dispõe ainda o artigo 55º do Código Penal:

2. Face ao teor destas duas disposições, é comummente aceite, de modo generalizado e pacífico que a revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição, pelo condenado, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.

Entre muitos outros, v. ac. do TRG de 19.1.2009, proferido no processo nº 2555/08.1, onde se decidiu:

I – A revogação da suspensão da execução da pena de prisão por violação de deveres impostos só pode ser decretada se tiver havido infracção grosseira ou repetida dos deveres de conduta ou regras impostas ou do plano individual de readaptação social.

II – Há uma violação grosseira quando o arguido tem uma actuação indesculpável, em que o cidadão comum não incorre, não merecendo ser tolerada.

Neste sentido v. ainda ac. da mesma RG de 4.5.2009, proferido no processo nº 2625/05.9PBBRG-A.G1 e ac. do TRP de 9.12.2004, proferido no processo nº 0414646, tendo-se decidido, neste último, o seguinte:

I - Dos artigos 55 e 56, n.1 al. a) do Cód. Penal, ressalta clara a ideia de que qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres ou regras de conduta impostas na sentença, pressupõe a culpa no não cumprimento da obrigação, sendo que tal culpa deve ser grosseira, para justificar a revogação[1].

Podemos afirmar que a decisão de suspender a execução de uma pena de prisão e a decisão de revogar esta mesma suspensão, estão entre si conexas, partem dos mesmos pressupostos, embora, no final, com resultados diferentes e de sinal oposto.

Quando está em causa a prática de um novo crime pelo condenado durante o período da suspensão da execução da pena (v. artigo 56º, nº 1, b), do Código Penal), a doutrina e jurisprudência vêm entendendo que “o acento tónico passou a estar colocado, não no cometimento de crime doloso durante o período de duração da suspensão e correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento de um crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da punição.” Cfr. Odete Oliveira, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, II, CEJ, 1998, p. 105.

Por sua vez, mesmo a condenação por crime cometido no período de suspensão da execução da pena de prisão não ditará, por si só, a imediata revogação da pena de substituição, sendo antes o juízo sobre a possibilidade de ainda se alcançarem, em liberdade, as finalidades da punição, que ditará a opção entre o regime do art.° 55º ou do art.º 56.º do Código Penal. E tem vindo a ser considerado que, em princípio, “só a condenação em pena efectiva de prisão é reveladora de que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão não puderam ser alcançadas” [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal, pág. 236; e o acórdão desta Relação de Coimbra de 29-06-2016, proferido no proc. nº 44/13.2GCCVL.C1 (relator Vasques Osório), onde se decide: “É imprescindível para a revogação da pena de suspensão a constatação de que o condenado, ao cometer o novo crime, invalidou definitivamente a prognose favorável que fundou a aplicação da pena de substituição ou seja, invalidou a expectativa de, através da suspensão, se manter afastado da delinquência”.   

Entende-se, pois, mesmo nos casos em que o condenado tiver a execução da pena suspensa e se cometer novo crime no decurso do período da suspensão, o tribunal deve ponderar a possibilidade de manutenção da ressocialização em liberdade, esgotando os meios legais de intervenção penal fora da prisão como garantia das finalidades da punição.

É este o exato sentido ou o ponto de diferenciação que deve ditar a manutenção ou a revogação da suspensão da execução da pena perante a prática pelo agente de um novo crime durante o período da dita suspensão: se as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão podem ou não ser ainda alcançadas. Em caso afirmativo, será de manter a suspensão. Em caso negativo, deverá a suspensão ser revogada.

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Este critério e/ou juízo de prognose aplicável às situações da prática de um novo crime pelo condenado durante o período de suspensão da execução da pena, é extensível e deve ser aplicado, em nosso entender - por maioria de razão -, à situação de incumprimento de qualquer dever ou condição, pelo condenado.

3. Postos estes considerandos, vejamos a concreta situação objeto da decisão recorrida.

Compulsado o ter dos autos, verifica-se que o arguido incorreu em manifesto incumprimento do plano de reinserção social elaborado, homologado e judicialmente imposto como condição para a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado.

Relembramos que o arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

O plano de reinserção social integra, entre outros, os objectivos essenciais específicos de o condenado aumentar o nível de consciencialização e assumir as responsabilidade pelo seu comportamento, interiorizando a ilicitude do mesmo, assim como manter diariamente níveis adequados de convivência e integração social nos diferentes espaços de interacção em que se insere e manter-se abstinente do consumo de substâncias psicoactivas.

Quanto ao incumprimento do plano pelo arguido, diz-se na decisão recorrida:

a DGRSP veio informar no passado dia 23 de Fevereiro de 2022, a fls. 173 a 175 (ref. n.º 1911362), designadamente que o condenado teve consultas no dia 4 de Agosto, 20 de Setembro e 18 de Novembro, com resultado positivo a canabinóides, nos testes de despistagem. Também teve consulta no dia 10 de Fevereiro, mas não apresentou a declaração do teste de despistagem, dizendo que não a tinha efectuado. Ficou de comparecer dia 14 nas instalações da equipa da DGRSP para apresentar o teste de despistagem, o que não veio a acontecer até àquele momento. Tentaram contactar por diversas vezes o condenado via telefone, mas nunca atendeu, nem devolveu a chamada. Em contacto com o CRI, houve a informação de que o teste de despistagem deu “positivo” a cocaína e canabinóides no dia 10 de Fevereiro.

Mais informou que o condenado se continuava a mostrar pouco receptivo à intervenção dos serviços da DGRSP, sendo necessário efectuar inúmeros contactos telefónicos para comparecer às entrevistas presenciais na equipa. E também quando, por vezes, está agendada a entrevista, o condenado não comparece, tendo que se reagendar nova data”.

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Face a estas informações, foi o condenado ouvido presencialmente em Tribunal na presença do Sr. Técnico da DGRSP encarregado do respectivo acompanhamento, nos termos e para os efeitos do estabelecido no artigo 495º, n.º 2, do Cód. de Proc. Penal.

Após a audição, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos ao condenado e por sua vez o arguido pronunciou-se opondo-se ao promovido pelo Ministério Público, pugnando por outra solução.

O incumprimento do plano pelo condenado não é posto em causa pelo condenado, que o confirma durante a sua audição, embora dando as suas e várias explicações para o sucedido, o mesmo acontecendo pelo Técnico da DGRSP encarregado de acompanhar o condenado que confirmou e reiterou tudo o que já constava informado por escrito.

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Na apreciação da questão, afirma o julgador a quo:

Em regra, é de entender que em casos como este o tribunal deverá dar prevalência às soluções constantes do supra citado artigo 55º do Cód. Penal, e apenas no caso de se entender que tais soluções são inadequadas ou insuficientes é que deverá determinar como estabelecido no subsequente artigo 56º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do mesmo Código.

(…)

Ora, num caso como este, poderíamos ponderar as soluções que decorrem do supra citado artigo 55º do Cód. Penal, mas tal sempre teria de ter como pressuposto de que houvesse perspectivas reais e sérias de que o condenado, embora em incumprimento (manifesto) do plano de reinserção social que lhe foi fixado, reuniria ainda condições de corrigir o seu comportamento e atalhar caminho, podendo assim fazer sentido que neste momento apenas se lhe efectuasse uma solene advertência, ou se lhe aceitasse a garantia de que doravante passaria a cumprir o que lhe foi determinado, ou lhe serem impostos deveres ou regras de conduta acrescidos que facilitassem e propiciassem o cumprimento dos restantes, e/ou que se lhe prorrogasse o período de suspensão nesse sentido.

No entanto, entendemos que estas condições não se encontram aqui de todo reunidas. Com efeito, quanto a nós resultou patente da audição presencial do condenado a que houve lugar que o mesmo não assume de todo o manifesto incumprimento e falta de cooperação com a DGRSP em que incorreu, que tal incumprimento lhe é plenamente imputável e é culposo, que o condenado não assume qualquer culpa própria ou responsabilidade pelo sucedido e antes culpabiliza e exterioriza a culpa para o sr. Técnico da DGRSP que o acompanha, tendo referido que já por várias vezes pediu a sua substituição, tudo sempre numa postura de total e absoluta arrogância e sobranceria que demonstrou de forma patente durante toda a sua audição presencial neste Tribunal”.

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Parece-nos que esta rigorosa posição do julgador tem algum défice de análise e ponderação sobre a gravidade do incumprimento do recorrente, nomeadamente sobre a inadequação da manutenção da suspensão para, através dela, serem ainda alcançadas as finalidades da punição. Ou seja, parece-nos que o tribunal não ponderou devidamente a possibilidade de manutenção da ressocialização em liberdade, esgotando os meios legais de intervenção penal fora do cumprimento efetivo da prisão, como garantia das finalidades da punição.

É inequívoco que o recorrente manifestou falta de colaboração com a DGRSP, continuando a ter, confessadamente, hábitos aditivos, pelo que é de concluir que o mesmo não interiorizou ainda devidamente as injunções que lhe foram impostas como pressuposto da pena condicional que lhe foi aplicada.

Seguindo-se o raciocínio do parecer do Ministério Público nesta instância, com o qual se concorda, apesar de o arguido não ter assumido culpa própria no apurado incumprimento, estamos em crer que a verificada violação se deverá mais à falta de comprometimento com o plano que foi elaborado (que teve a sua adesão apenas parcial, já que o arguido não se conforma, ao que parece, com o controlo dos comportamentos aditivos de que tem sido alvo), do que propriamente a uma atitude rebelde e desobediente da sua parte.

Mais dizendo:

A sua postura em tribunal não poderá deixar de ser compreendida também pela tensão do momento, que sempre existirá quando alguém é “chamado à razão”, sendo certo que o comportamento inadequado do arguido em tribunal, ainda que possa constituir, em abstrato, um mau prognóstico para o futuro, mesmo assim não deverá ser erigido, a nosso ver, como critério único de aferição, alheado do percurso atual de vida do arguido e da realidade sociofamiliar e profissional em que o mesmo se insere.

Volvidos cerca 5/6 anos da prática dos facos que motivaram a condenação, o arguido encontra-se agora inserido social, familiar e profissionalmente, em total oposição à realidade que vivenciava anteriormente, não tendo voltado a delinquir, nem é referenciado atualmente em termos policiais, sinal inequívoco que a condenação de que foi alvo constituiu, na verdade, uma advertência eficaz”.

Pelo que, ponderando o incumprimento efetivo do recorrente mas ponderando a sua inserção social, familiar e profissional, em completa oposição à realidade do momento da prática dos factos que determinou a sua condenação, entendemos que as finalidades da punição e onde se inclui a ressocialização, podem ainda ser atingidas em liberdade, através da suspensão da execução da pena.

Este incumprimento, ainda que culposo, não atinge a dimensão de grosseiramente culposo que determine, de imediato, a revogação da suspensão da execução da pena. Como começou por se referir na decisão recorrida, “Em regra, é de entender que em casos como este o tribunal deverá dar prevalência às soluções constantes do supra citado artigo 55º do Cód. Penal. E teria sido essa a decisão mais assertiva, afigurando-se a revogação demasiado violenta e de completa intolerância face à gravidade do incumprimento.

Como se decide no ac. desta Relação de Coimbra de 13-09-2017, proc. nº 254/15.8PCCBR-B.C1 (relator Vasques Osório), “A revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ter lugar quando seja a única e última forma de conseguir alcançar as finalidades da pena sendo, portanto, cláusula de ultima ratio”. Mais se acrescentando neste aresto: “O atraso e a falta de comparência [às convocatórias da DGRSP], não justificada pelo recorrente, conjuntamente considerados, traduzem um comportamento culposo mas, o grau de culpa não atinge, em nosso entender, uma intensidade tal que imponha concluir que comprometeu irremediavelmente o juízo de prognose favorável e a aposta na reinserção em liberdade do recorrente, que estão na base do decretamento da pena de substituição”.

Entende-se, assim, que deve ser dada uma última oportunidade ao recorrente, acreditando-se que é ainda possível o mesmo arrepiar caminho, fazendo pois sentido aplicar uma das soluções contidas no artigo 55.º do Código Penal, como aliás propõe o Ministério Público no seu parecer – v. ponto nº 5 do mesmo (parecer).

*

Esta solução remete-nos agora para a medida mais adequada daquelas contidas naquele preceito - artigo 55º, do Código Penal.

Quanto à medida da alínea a), em fazer-se uma solene advertência, entendemos que de algum modo a audição do condenado pelo tribunal na presença do técnico de reinserção social e toda a dinâmica das questões/esclarecimentos solicitados pelo Sr. Juiz e respetivas respostas do recorrente a que se seguiram algumas advertências sobre a sua conduta versus incumprimento, já desempenhou essas funções, o que resulta do teor dessa mesma audição que o recorrente transcreve no seu recurso. Em todo o caso, sempre se afiguraria, a mera advertência, só por si, insuficiente para atingir os fins pretendidos.

Também não se afigura adequado e/ou necessário exigir outras garantias ou impor novos deveres - v. alíneas b) e c) – pois o que se pretende é essencialmente que o recorrente cumpra o plano de reinserção social já elaborado pela DGRSP. Pelo que a medida mais adequada e que vai de encontro aos fins pretendidos com a suspensão da execução da pena é prorrogar o período desta, de modo a que, por esta via, ainda se atinjam os objetivos traçados no plano da DGRSP, nomeadamente afastar o recorrente dos comportamentos aditivos e consolidar a sua inserção familiar, social e profissional.

Nos termos da respetiva alínea d), do artigo 55º, do Código Penal, o período da suspensão pode ser prorrogado até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50º.

Sendo o período inicial de 2 anos e 6 meses, afigura-se adequada a prorrogação pelo período de mais um ano e três meses.

V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se julgar procedente o recurso do recorrente AA e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida (de revogação da suspensão da suspensão da execução da pena), prorrogando-se, outrossim, ao abrigo do artigo 55º, alínea d), do Código Penal, o período de suspensão da execução da pena de prisão por mais um ano e três meses.

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Sem custas.

Coimbra, 22.3.2023.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

           





[1] Sublinhado nosso.