Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5868/19.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 10/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 64, 257 CSC
Sumário: Numa sociedade por quotas com apenas dois sócios ( autor e réu), constitui justa causa de destituição do gerente ( réu), por violação do dever de lealdade para com a sociedade ( art.257 nº4, 5 e 6 CSC), o facto de este ter inviabilizado a concretização dos projectos de financiamento, que já estavam aprovados, ao recusar-se a assinar os documentos finais, necessários para a formalização dos mesmos, depois de os ter acordado e assinado os documentos necessários para as respectivas candidaturas, invocando, como justificação para tal, a sua intenção em sair da empresa.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

C (…), residente (…), intentou a presente ação especial de destituição de titulares de órgãos sociais contra L (…), residente (…) , pedindo que se determine a destituição do requerido do cargo de gerente da sociedade comercial por quotas S (…), Lda.

Alegou para tanto, em síntese útil, que autor e réu são os únicos sócios e gerentes da sociedade S (…), Lda., obrigando-se esta com a assinatura de um dos gerentes, e que desde há alguns meses que o réu, que se pretende desvincular da empresa e vender a sua quota na sociedade, vem descurando a gestão da sociedade e a negligenciar os seus deveres de gerência.

Invocou, mais concretamente, que o réu, para além de ter proposto a venda da sua quota a funcionários da empresa, se passou a ausentar da empresa por longos períodos, pagou no mês de julho os salários dos funcionários depois de estes já terem sido pagos pelo autor, deixando a sociedade com saldo inferior a € 1000,00, obrigando o autor a pedir a devolução das quantias indevidamente pagas, fez pagamentos a fornecedores e a trabalhadores quando tal matéria é da competência do autor, e a partir de 24 de setembro passado deixou de ir à empresa.

Mais invocou que o réu se recusou a formalizar garantias financeiras necessárias para que a sociedade beneficiasse de financiamentos, destinados à aquisição de equipamento e à criação de quatro postos de trabalho, no âmbito do Quadro Portugal 2020 na ordem dos € 130.000,00, financiamentos estes há muito solicitados e fundamentais para a atividade da sociedade. Com essa recusa, que inviabilizou os financiamentos, colocou a sociedade em problemas, nomeadamente perante o fornecedor do equipamento, comprometendo a sua credibilidade, e irá obrigar a sociedade a recorrer à banca, com o inerente acréscimo de custos. Acrescentou que a empresa pretende candidatar-se a um concurso público que a Universidade de (...) irá abrir em breve, para o que necessitará de um conjunto de documentação pessoal dos gerentes e das respetivas assinaturas, sendo expectável que o réu, à semelhança do que anteriormente fez, se recuse a facultar documentação ou a assinar contratos.

Considerando o risco de a sociedade ser impedida de concorrer ao concurso público a que se pretendia candidatar, e de perder definitivamente os projetos desenvolvidos durante os últimos dois anos, bem como outros concursos ou ajustes diretos que pudessem surgir, pediu ainda que, a título antecipatório, com caráter urgente e dispensa da respetiva audição, se decidisse a imediata suspensão do réu das funções de gerente, sendo a final decretada a sua destituição.

*

Dispensada a audição prévia do réu, e realizadas as diligências necessárias, foi determinada a sua imediata suspensão, a título cautelar, das respetivas funções de gerente.

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Regularmente citado, o réu deduziu contestação, na qual pugnou pela improcedência do pedido, tendo para o efeito refutado a versão dos factos apresentada pelo autor, e sustentado que foi antes este quem sempre negligenciou os seus deveres enquanto sócio e gerente, recusando-se a capitalizar a empresa e rejeitando todas as propostas do réu para reduzir custos e colmatar a débil situação da empresa. Acrescentou que se recusou, conjuntamente com a sua mulher, a assinar os documentos relativos ao financiamento por prudência e contenção, já que entendia que a empresa não tinha condição para cumprir com o serviço da dívida, e que foi alvo de ameaças físicas e verbais, sendo essa a razão pela qual deixou de ir à empresa, continuando, não obstante, a velar pelos negócios até à sua suspensão.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 130 a 140, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julgo procedente a presente ação e, consequentemente, determino a destituição do réu do cargo de gerente da sociedade S (…), Lda.  

Condeno o réu no pagamento das custas do processo (art. 527.º do Código de Processo Civil).”.

Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso o réu L (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo – (cf. despacho de fl.s 194), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz 3 ao julgar procedente a ação especial de destituição de gerente.

2. A douta sentença recorrida não poderá manter-se no que toca à condenação por ela decretada do Réu, ora Recorrente, no domínio da sua ação, por violação dos deveres de gerência.

3. Desde logo, porque a mesma padece de um claro erro de julgamento – art.º 607/3 CPC – na interpretação dos factos e respetiva subsunção dos mesmos à descrição abstrata dos normativos jurídicos, ficando, com isso, afetada e viciada a decisão proferida pela douta sentença.

4. Efetivamente, o Tribunal a quo imputou ao recorrente a violação de um dever de gerência – dever de lealdade -, não obstante fê-lo com base num comportamento que o recorrente adotou enquanto atuava na qualidade de sócio, e não na qualidade de gerente. Ora, somos, portanto, de concluir estar em causa um erro na aplicação do art.º 64º CSC, porquanto o mesmo apenas se aplica nos casos em que o gerente/administrador atue precisamente nessa qualidade.

5. Logo, a não assinatura dos contratos de financiamento e o seu consequente aval configura um ato pessoal e não um ato de gerência.

6. Mais se acrescenta que a instância inicial seguiu, acriticamente, o entendimento do Recorrido, tendo o silogismo judiciário sido construído com base numa única premissa: que os contratos de financiamento que o recorrente se recusou a assinar eram, de facto, benéficos para a empresa e para a consequente prossecução do plano de negócios.

7. Contudo, através da factualidade dada como provada, os dados recolhidos não nos permitem concluir pela indispensabilidade daquele financiamento. Assim, pura e simplesmente não sabemos se o mesmo era benéfico para a empresa – basta lembrarmo-nos que a mesma já estava endividada, tendo o recorrente alertado várias vezes para essa situação – nem sequer sabemos se existia, efetivamente, um plano de negócios. Certo é, apenas, que o financiamento serviria para pagar maquinaria adquirida imprudentemente pelo recorrido.

8. Do exposto, cremos que, salvo o merecido respeito, toda a argumentação do Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão “cai por terra” e peca por falta de prova.

9. O recorrente revelou-se, desde sempre, um “gestor criterioso e ordenado”, cumprindo os seus deveres enquanto sócio e enquanto gerente. Veja-se, por exemplo, que foi o recorrente quem suportou a totalidade do capital social (5.000,00 €); bem como foi ele quem, em finais de 2018, capitalizou a empresa em 7.152,66 € e avalizou responsabilidades no montante de 200.000,00 €, por força do endividamento que a empresa já vinha apresentado em relação a fornecedores,

10. Ainda em função daquele endividamento, atente-se que foi o recorrente quem propôs um plano de redução de custos, que passaria inclusive pela redução da remuneração de gerente, plano que não foi bem aceite pelo recorrido. Aqui se denota o temor pela perda dos benefícios pessoais e prebendas alcavalas que desde a constituição da S (…), Lda. tem usufruído de forma ilícita, em prejuízo da performance financeira da empresa e da sua manutenção futura – olhemos, a título de exemplo, para os gastos da empresa com carros que são utilizados pelas suas filhas –.

11. Pelo contrário, o recorrente, ao mostrar-se disposto a reduzir a sua remuneração, evidencia um sentido de compromisso e de lealdade ímpar para com a sociedade, pelo que não compreendemos a decisão tirada na douta sentença.

12. Foi face àquela indiferença e despreocupação do recorrido com o futuro da empresa – tanto que nunca a capitalizou – que surge a proposta de venda da sua participação social. O recorrente não se revia naquele modelo empresarial e, apesar de toda a afeição que nutre pela sociedade, não queria fazer parte do problema, apresentando-se, assim, como solução. Tal, demonstra a correção e transparência do recorrente durante toda esta contenda.

13. Ainda assim, retenha-se, em agosto de 2019, e apesar de todas as quezílias e de não receber a sua remuneração desde julho, o recorrente interrompeu as suas férias para negociar e estabelecer um acordo de pagamento prestacional com a (…), uma vez que esta quis operar a resolução de um contrato de manutenção, tendo a mesma advertido por carta para o acionamento de uma dívida em Tribunal cujo montante ascendia a 6.385,83 €. Após as negociações, o recorrente conseguiu fixar a dívida no valor de 2.903,04 €. Ora, custa-nos a compreender como é que tal não foi devidamente tido em conta pelo Tribunal a quo.

14. E se, face ao exposto, já pudemos inferir pela inexistência da violação do dever de lealdade que, erroneamente, foi imputado ao Réu, ora recorrente, pelo Tribunal a quo, então, muito menos poderemos falar em justa causa de destituição.

15. Ora, “é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções 6”.

16. Deste modo, a justa causa de destituição analisa-se em dois pressupostos: por um lado, é necessário que o facto praticado pelo recorrente seja ilícito e, por outro, culposo. Estaremos, desde logo, perante uma ilicitude quando haja a violação grave dos deveres de gerência, quer sejam gerais, específicos ou estatutários. Contudo, essa violação de deveres imputável ao destituído terá ainda de ser censurável, seja a título culposo ou negligente.

17. Assim, como já vimos, não houve qualquer violação dos deveres de gerência, não se

compreendendo a decisão do Tribunal a quo em considerar que as recusas da assinatura dos contratos de financiamento constituem uma violação do dever de lealdade,

18. Porquanto, em primeiro lugar, tal implica a assunção, na sua esfera patrimonial, de novas responsabilidades financeiras, numa altura em que já se encontrava fora da gerência e não se revia no projeto societário, por força da gestão displicente do recorrido,

19. E, em segundo lugar, porque o recorrente vivia uma situação particularmente complicada, estando a sua mulher desempregada e tendo um filho menor a seu cargo, além de que, estava sem receber a sua remuneração de gerente. Ora, perante tal situação, cremos que o bom senso e a proteção do interesse familiar devem imperar sobre qualquer interesse social, não podendo ser sequer exigível ao recorrente a assunção de tamanho sacrifício.

20. Em sentido similar, vejamos o Ac. TRC 30/11/2010, que seguimos de perto: “Pode-se pois concluir que o autor foi destituído sem justa causa: como é que exercer o seu direito de voto num sentido diverso ao da maioria (…) e recusar, sem que a tal estivesse obrigado, prestar aval (acto pessoal como diz o autor), pode ser considerado uma violação grave do exercício de deveres (…) ou revelar incapacidade para o exercício normal das suas funções?”.

21. Sem embargo do que foi dito, note-se que não basta que o facto seja ilícito para que possamos falar em justa causa de destituição, pois é também necessário que o facto praticado seja culposo.

6 “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Coord. Doutor Jorge Coutinho de Abreu, Vol. IV, 1ª edição, Almedina, maio,

2012, pág. 119

22. Nesse sentido, é a própria douta sentença que considerou que a conduta do recorrente não foi “especialmente culposa” (negrito nosso), fazendo, assim, tábua rasa deste pressuposto ao não se concluir, in casu, pela violação censurável de deveres por parte do recorrente.

23. Não estão, portanto, verificados os pressupostos para a existência de justa causa de destituição – ilicitude e culpa –, pelo que estamos em crer que também aqui houve uma incorreta aplicação dos normativos jurídicos ao caso concreto.

Nestes termos e nos melhores de direito, V. Excias revogando a douta sentença tirada da primeira Instância e concedendo provimento ao recurso apresentado, com a consequente absolvição do recorrente do pedido, farão a tão curial JUSTIÇA!

Contra-alegando, o autor pugna pela manutenção da decisão recorrida, estribando-se nos fundamentos nesta vertidos.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam os pressupostos para a destituição do réu do cargo de gerente da sociedade identificada nos autos.

 

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida:

1. Em 19.07.2007, autor e réu constituíram a sociedade comercial por quotas que adotou o nome de S (…), Lda., com NIPC: (…) e sede (…)em (...) .

2. A sociedade tem o capital social de € 5.000,00 que corresponde à soma de duas quotas iguais de € 2.500,00 cada uma pertencente a cada um dos sócios.

3. E por objeto social a prestação de serviços na área das artes gráficas, design gráfico, comércio e importação e exportação de material e equipamento informático software, hardware, e assistência técnica, produção de conteúdos áudio visuais, multimédia, publicidade, digitalização e web.

4. A gerência cabe aos dois sócios, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um dos gerentes.

5. Paulatinamente, a sociedade ganhou destaque no circuito comercial como empresa credível e de referência em (...) e zona Centro.

6. A sociedade conta com uma carteira de clientes que abrange privados e instituições públicas.

7. Além dos dois gerentes, que são remunerados, tem ao serviço três funcionários com contrato de trabalho a tempo inteiro.

8. Enquanto gerente, o réu tinha como funções, entre outras, sobretudo a partir de finais de 2018, as de visitar clientes, angariar outros e efetuar cobranças junto dos mesmos.

9. O autor trabalha a par com os funcionários, orientando e conduzindo a produção diária: orçamentação, faturação, pagamentos, recebimentos, encomenda a fornecedores, no armazém que é sede da empresa.

10. Durante anos, os sócios e gerentes concertaram pacificamente a gestão da sociedade, onerando-se com avais pessoais na banca.

11. O autor para efeitos de financiamento, apresentou como garantia real um bem próprio de sua mulher, na ordem dos € 84.425,00.

12. Desde há uns meses que a relação entre sócios tem vindo a deteriorar-se por incompatibilidades nas decisões respeitantes à vida da empresa.

13. No dia 27.03.2019 teve lugar uma discussão entre os sócios da sociedade, no decurso da qual o réu propôs ao autor a venda da sua quota pelo valor de € 50.000,00 acrescido de um conjunto de exigências e manifestou a intenção de mudar de vida com vista num novo projeto.

14. Proposta essa, que o autor recusou e contrapôs adquirir a quota pelo seu valor nominal de € 2.500,00, que também não foi aceite.

15. O autor chamou os funcionários da empresa ao seu gabinete, para presenciarem esta discussão.

16. Desde então, a sã convivência entre ambos terminou e em meados de setembro cortaram definitivamente relações.

17. O réu propôs também a venda da sua quota aos funcionários.

18. A partir dessa data, o réu passou a ausentar-se da empresa com mais frequência.

19. Em 01.07.2019, por decisão unilateral, sem qualquer concertação de gerência, o réu pagou os salários do mês de junho de todos os funcionários através da conta bancária da empresa.

20. Estes salários já haviam sido pagos pelo autor, como vinha sendo habitual desde 27.03.2019, pelo que a empresa ficou com um saldo inferior a € 1.000,00 para fazer face a despesas correntes e o autor pediu a reposição dos valores.

21. Em agosto, período de férias do réu, sem comunicar ao sócio, efetuou pagamentos a fornecedores, bem como o subsídio de férias dos trabalhadores.

22. A partir do dia 24 de setembro o réu não mais regressou à empresa.

23. A empresa tem desenvolvido projetos no âmbito dos Fundos Europeus, nomeadamente, ao último Quadro Comunitário Portugal 2020 (Centro 2020), sempre aprovados.

24. Projetos de financiamento que permitem a entrada de capital que de outro modo só alcançaria através de financiamento direto na banca, em condições mais onerosas e com taxas de juros mais elevadas.

25. Os últimos projetos no âmbito do Quadro Portugal 2020-SI2E, concretamente, de apoio a aquisição de equipamento e à criação de 4 postos de trabalho foram aprovados em 08.04.2019 após um percurso de dois anos, com recurso a garantias junto da G (…) e C (…).

26. Estes projetos previam um financiamento de cerca de € 130.000,00, com 30% a fundo perdido, e condições de garantias com períodos de carência.

27. Para finalizar a operação dos projetos e de acordo com os termos de aceitação das candidaturas que ambos os sócios assinaram, restava formalizar os contratos com a assinatura das cartas de aprovação junto da G (…) e C (…).

28. Em 25.09.2019, o réu recusou-se a assinar as cartas que permitiriam aquele financiamento no âmbito dos projetos aprovados.

29. No seguimento desta tomada de posição, em 27.09.2019, o gestor comercial ao balcão da C (…), pediu a presença do requerido no sentido resolver a questão.

30. O réu recusou-se a assinar e justificou que pretendia vender a quota e sair da empresa.

31. Estes projetos eram necessários para a concretização do plano de negócios delineado nos últimos anos em termos económico-financeiros.

32. À exceção de emails, onde manteve a intenção de vender a quota, o réu nada mais disse ao autor sobre o sucedido.

33. No dia 15 de outubro, a C (…) de (...) solicitou, mais uma vez, a assinatura presencial de ambos os sócios e gerentes e suas mulheres de modo a formalizar os contratos.

34. O réu não acedeu a tal pedido.

35. O que determinou a suspensão dos referidos projetos de financiamento.

36. Daquele financiamento, o valor de € 34.312,20 a fundo perdido encontrava-se já consignado ao pagamento de maquinaria adquirida, nomeadamente, uma fatura no valor de € 92.500,00 que integrou o dito projeto de apoio a equipamento.

37. O réu sempre esteve inteirado das condições e finalidade dos projetos, tendo assinado os termos de aceitação das respetivas candidaturas em 15.04.2019.

38. O fornecedor do equipamento recusou-se a prestar a necessária manutenção enquanto não fosse pago o valor das faturas em atraso desde setembro de 2018.

39. A maquinaria em causa passa dias inteiros a produzir e a manutenção é essencial para a continuidade da produção.

40. Este impasse junto das instituições G (…) e C (…), que outrora garantiam financiamento, retira a credibilidade de que a empresa sempre gozou.

41. Constitui prática corrente da banca, e nomeadamente na C(…) exigência da responsabilidade conjunta e solidária dos sócios e gerentes para fins de financiamento.

42. A sociedade tem responsabilidades bancárias mensais e paga de renda do armazém € 1.000,00 mensais.

43. Após a suspensão provisória do requerido do cargo de gerente, a sociedade recorreu ao crédito bancário para fazer face ao pagamento da maquinaria, tendo para o efeito firmado um contrato de locação financeira e um contrato de crédito em conta corrente com o Banco (…), S.A., em condições mais onerosas.

44. Pelo menos até finais de 2018, princípios de 2019, o réu acompanhava e orientava a produção diária da empresa, chegando mesmo a trabalhar a par com os seus funcionários, efetuando igualmente algumas encomendas.

45. O autor havia mudado o seu escritório para o 1.º andar das instalações da empresa, sendo que, a partir de finais de 2018, numa altura em que o réu passou a desempenhar funções comerciais que o levavam a trabalhar diariamente fora da empresa, angariando clientes, passou a esta mais presente na produção e a executar alguns trabalhos.

46. O réu vinha propondo ao autor, desde setembro de 2018, um plano de redução de custos, por virtude da existência de atrasos nos pagamentos a fornecedores, baseado no facto de o autor dispor de três carros, cujos pagamentos mensais no montante de € 1.500,00 são suportados pela empresa, tendo sido dois deles entregues e usados pelas suas duas filhas, pagamento de coima por condução sob o efeito do álcool no valor de € 500,00, retirada de € 1.265,94 em 6 de fevereiro de 2015, pagamentos de portagens, revisões de veículos e outras de natureza pessoal, além de uma redução do respetivo salário dos gerentes.

47. O autor recusou estas propostas, defendendo que a empresa tinha antes necessidade de contratar um vendedor.

48. O autor escreveu em mensagem que enviou ao requerido em 19 de março de 2019, reportando-se à empresa “…que se lixe! É para o buraco é para o buraco. Mas atenção não vou sozinho!”.

49. O réu tem as suas remunerações em atraso desde julho do 2019, a sua mulher encontra-se desempregada e tem um filho menor a seu cargo, motivos pelos quais criou um outro negócio para assegurar o sustento familiar.

50. Essas questões e propostas foram igualmente tratadas numa reunião de sócios mantida com a contabilista certificada da empresa, em finais de março de 2019, e por mensagens que o réu enviou ao autor em 28 de março, onde propunha o seu regresso à gerência da empresa, a tempo parcial, após a criação da nova empresa.

51. Constatando que o autor não acedia às suas propostas de redução de custos, o réu apresentou uma proposta de venda da sua posição societária em 27 de setembro de 2019, ao que o requerente sempre respondeu negativamente.

52. Até finais de março de 2019, na quase totalidade das situações, era o réu quem transferia os salários, pagava as rendas das instalações, efetuava pagamentos devidos ao Estado, contabilista, além de muitos outros.

53. Quando o réu se encontrava em gozo de férias, foi alertado pelo funcionário, R(…), que havia chegado uma carta de um escritório de advogados à empresa, a qual operava a resolução do contrato de manutenção estabelecido com a K (…), ao mesmo tempo que advertia para o acionamento da dívida em Tribunal, cujo montante ascendia a € 6.385,83.

54. O réu interrompeu as suas férias para negociar e estabelecer um acordo de pagamento prestacional com a K (…), o que logrou concretizar em 5 de setembro de 2019, tendo conseguido fixar a dívida no valor de € 2.903,04.

55. Veio, entretanto, a apurar que as faturas daquele fornecedor não tinham sido verificadas.

56. O réu capitalizou a empresa em 3 e 5 de setembro de 2018, pelo valor de € 7.152,66, e avalizou operações bancárias conjuntamente com a sua mulher no montante de € 200.000,00.

57. O réu endereçou um e-mail à Dr.ª (…) da C (…), em 17 de outubro de 2019, expondo as suas razões para não assinar os documentos do empréstimo, uma vez que entendia que a empresa não tinha condições para cumprir com o serviço de dívida, referindo que tinha solicitado ao seu sócio uma redução das despesas na empresa, mas que este não as tinha aceite.

58. Os equipamentos da marca Ricoh foram comprados e montados na empresa em março de 2019, numa altura em que o financiamento não estava aprovado.

59. O que motivou um reparo negativo, por parte do Dr. (…) da C (…), que considerou imprudente estar a empresa a adquirir equipamentos a contar com um futuro financiamento que ainda não estava aprovado.

60. O réu dirigiu ao autor, em 30 de setembro de 2019, um mail onde propunha várias soluções para o seu diferendo que não passavam pela sua saída da gerência, mas antes pela reposição de valores retirados da empresa pelo requerente, num total de € 10.860,94.

*

De entre os factos alegados, com interesse para a decisão a proferir, não se provaram os seguintes:

a) Que devido à deterioração da relação entre os sócios, em 27.03.2019 foi realizada uma assembleia geral de sócios da sociedade com a seguinte ordem de trabalhos: convivência no local de trabalho, gerência, projetos e outros.

b) Que a partir do dia 27.03.2019 o réu passou a ausentar-se da empresa por dias inteiros, quase diariamente.

c) Que depois do regresso de férias do requerente, em 19 de agosto, o réu ignorou questões atinentes à prática dos atos necessários à prossecução da sua atividade social: encomendas a cumprir, faturas a cobrar, clientes a visitar, aquisição de matérias-primas e manutenção da maquinaria.

d) Que apenas o réu realizou o capital social da sociedade, sendo que até à presente data o autor nunca lhe devolveu o valor de realização da sua quota.

e) Que o “grosso” dos clientes da S (…) eram antigos clientes pessoais do réu.

f) Que o autor apenas tratava da orçamentação, emissão de faturas e recibos e encomenda de materiais, muito raramente aparecendo na área da produção.

g) Que o autor sabia que a empresa não tinha condições para suportar o encargo mensal inerente à contratação de um vendedor.

h) Que o autor pagou os salários dos três funcionários no dia 1 de julho de 2019 depois de verificar que o réu se havia ausentado para o Banco munido das folhas com os NIB’s dos funcionários da empresa.

i) Que a compra dos equipamentos à G (…) representante da marca Ricoh, resultou de uma decisão unilateral do autor, sem conhecimento ou anuência prévia do réu, que se viu confrontado com a montagem de equipamentos na empresa, em detrimento de uma solução economicamente bastante mais barata apresentada pela K (…)

j) O réu ia sendo alvo de ameaças verbais e físicas, algumas perpetradas em frente dos funcionários da empresa, tendo deixado de lá ir a partir de 27 de setembro por recear pela sua integridade física.

k) Depois dessa data, continuou a velar pelos negócios da empresa, contactando diariamente fornecedores e clientes, até ao dia em que, por virtude da sua suspensão de funções enquanto gerente, lhe foram retirados os acessos às contas da empresa e vedada toda e qualquer informação.

Se se verificam os pressupostos para a destituição do réu do cargo de gerente da sociedade identificada nos autos.

Como resulta do relatório que antecede e se refere na sentença recorrida, como fundamento para a destituição do réu da gerência da empresa de que autor e réu são sócios, foram alegados factos que consubstanciam a violação, por parte do réu, de deveres de cuidado, assente no facto de este ter efectuado pagamentos à revelia e sem conhecimento do autor e que se ausentou da empresa, alheando-se da direcção desta.

No entanto, considerou-se que a violação deste dever não assumiu gravidade suficiente para a pretendida destituição, apenas assim se considerando que tal assumia tais contornos/consequências, no que concerne à alegada violação do dever de lealdade, nos termos que se passam a transcrever:

“No que concerne ao dever de lealdade, provou-se que a sociedade, que tem desenvolvido projetos com recurso a fundos da União Europeia, se candidatara há cerca de dois anos a financiamentos, destinados à aquisição de equipamentos e à criação de postos de trabalho, no âmbito do Quadro Portugal 2020, na ordem dos € 130.000,00, os quais permitiriam a entrada de capital em condições substancialmente mais vantajosas do que através do financiamento bancário. Depois de estas candidaturas terem sido aprovadas, e quando faltava formalizar os contratos com a assinatura de cartas de aprovação junto de instituições financeiras, réu recusou-se a assinar as cartas de que dependia a conclusão do processo de financiamento, justificando que pretendia vender a sua quota e sair da empresa.

Sendo estes projetos de financiamento necessários para a concretização do plano de negócios da sociedade, esta recusa do réu em concluir o procedimento, configura, a nosso ver, uma violação do dever de lealdade. É certo que esta recusa resulta igualmente da deterioração progressiva do seu relacionamento com o autor, e inerente perda de confiança entre os sócios, resultante de uma discordância, possivelmente legítima e razoável, quando à gestão da sociedade. No entanto, não se pode olvidar que tais projetos foram acordados entre ambos os gerentes, com mais ou menos reticências, e eram reputados necessários para a concretização de um plano de negócios delineado nos últimos anos em termos económico-financeiros nos últimos anos para a sociedade. Por isso, ao recusar-se a concluir tais projetos com a assunção das garantias pessoais necessárias para o efeito o réu deixou de prosseguir os interesses da sociedade, os quais reclamavam a conclusão do processo de financiamento, visando apenas proteger os seus interesses pessoais, quais sejam o de evitar novos compromissos pessoais em nome da sociedade, bem como de pressionar o autor a adquirir a sua quota na sociedade.

Violação que compromete, de forma irremediável, a relação de confiança que o cargo

de gerente pressupõe, por prejudicar financeiramente a sociedade e por em risco o próprio desenvolvimento da sua atividade: salienta-se, a este respeito, a necessidade da obtenção do financiamento para a prossecução do plano de negócios delineado, os problemas que o cancelamento dos projetos, em face da atitude do réu, causou com fornecedor da maquinaria, que é essencial para a laboração da sociedade, a necessidade de recorrer ao financiamento bancário, em condições mais onerosas, para fazer face ao pagamento da maquinaria, e o prejuízo que todo este circunstancialismo causou ao crédito da sociedade.

Neste cenário, entende-se que a conduta do réu, apesar de não especialmente culposa, encerra uma violação grave do dever de lealdade, por prejudicar seriamente o interesse social, que torna inexigível a manutenção da relação orgânica de gerência.

Mesmo que assim se não entenda, haverá que ter em conta que a justa causa de destituição se não esgota na violação dos deveres dos administradores ou na respetiva incapacidade, compreendendo outras situações, que podem respeitar ao administrador enquanto tal ou não.

Ora, uma das situações, referentes ao administrador, que tem sido apontada pela doutrina como constituindo fundamento de destituição por justa causa, visto tornar inexigível a manutenção da relação de administração, consiste nos desentendimentos frequentes, ainda que não culposos, que comprometam a boa marcha dos negócios sociais6. E, no caso, resulta claro que os desentendimentos entre o autor e o réu comprometem o bom andamento da atividade da sociedade, arriscando mesmo a respetiva paralisação, o que parece constituir fundamento, por si só, para afastar o réu da gerência.”.

Contra o que se insurge o recorrente, alegando que os contratos que se recusou a assinar não eram benéficos para a empresa e sempre se mostrou um “gestor criterioso”, designadamente capitalizou a empresa e avalizou responsabilidades da mesma no montante de 200.000,00 €; interrompeu as suas férias para resolver um diferendo com a Konica Minolta e a assunção dos novos contratos implicava a assunção de novas responsabilidades financeiras para si, quando já se encontrava fora da respectiva gerência e quando já tinha remunerações em atraso e a sua mulher se encontrava desempregada, pelo que que teve de procurar outras fontes de rendimento, concluindo que a sua conduta não é ilícita nem culposa, devendo, em consequência, improceder a acção.

Importa, assim, averiguar se existe justa causa para a destituição do réu como gerente, por violação do dever de lealdade.

Como decorre do disposto no artigo 257.º, n.º 1, do CSC, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre destituição de gerentes.

Exigindo-se, para tal, que se verifique a existência de “justa causa”, caso em que tal pretensão se alcança com a propositura de uma acção intentada contra a sociedade ou por um dos sócios contra o outro, consoante o previsto nos números 4 e 5, do preceito ora citado.

Uma vez que no artigo 257.º, n.º 4 do CSC, se faz depender o pedido de suspensão/destituição de gerente da existência de justa causa, importa analisar o que se entende, para os efeitos pretendidos, por “justa causa”.

Refere Coutinho de Abreu, in CSC Em Comentário, Vol. IV, pág. 119, “que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.”.

E que se consubstancia na violação de deveres legais específicos; deveres (legais gerais) de cuidado; deveres de lealdade; incapacidade para o exercício das funções; quer situações referíveis aos gerentes enquanto tais, v.g., desentendimentos frequentes entre gerentes que comprometam a boa marcha dos negócios sociais, bem como o aproveitamento em benefício próprio de oportunidades de negócio ou de bens da sociedade e a perda, intencional ou por desleixo, de condições necessárias ou convenientes para a vida da sociedade (cf. mesmo autor, in Curso de Direito Comercial, Vol. II, 5.ª Edição, a pág.s 577/8 e 581).

Destacando (pág. 120 do CSC Em Comentário) como violação do dever de lealdade a violação do dever de aproveitar as oportunidades de negócio da sociedade em benefício dela, bem como o dever de não abusarem do seu estatuto ou posição de gerentes, bem como “a perda, intencional ou por desleixo, de condições necessárias ou convenientes para a vida da sociedade” – cf. autor cit., Curso, pág. 578.

Raúl Ventura, in Sociedade por Quotas, Almedina, 1991, Vol. III, a pág. 91 e seg.s, aponta como constituindo justa causa “a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções”.

Acrescentando que “A causa é justa quando for considerada bastante para produzir esse efeito. E pode mesmo suceder que o efeito específico pretendido pela invocação da justa causa influa na apreciação desta, o mesmo facto justificando certo efeito e não outro.”

Adiantando, também, como exemplo de facto que integra a justa causa, seguindo a jurisprudência alemã. “a discórdia permanente entre os gerentes que se reflicta na boa marcha dos negócios sociais” – pág. 93 da ob. cit..

Nos dizeres de Paulo Olavo Cunha, Direito Das Sociedades Comerciais, Almedina, 2016, 6.ª Edição, a pág.s 751/2, a lei enuncia que a justa causa ocorre mediante a violação grave dos deveres do gerente, a incapacidade para o exercício normal das funções ou o exercício não autorizado de uma actividade concorrente, que compromete e desaconselha a manutenção do vínculo e, relativamente ao exercício de uma actividade concorrente, tal constitui causa de justificação ainda que se não prove o prejuízo, sendo, por isso, suficiente que a sociedade demonstre que o gestor exerce uma actividade (de administração) que recaia sobre um objecto análogo ao seu.

Defendendo, ainda, que “A violação grave deve configurar «uma situação que torne inexigível à sociedade a manutenção da pessoa em causa como gerente»”.

De colher, também, os ensinamentos de Batista Machado, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, a pág.s 193/4, que ali refere:

“O conceito de «justa causa» é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto. Será uma «justa causa» ou um «fundamento importante» qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A «justa causa» representará em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um «incumprimento»): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual.”.

Relativamente à qualificação/definição dos deveres que impendem sobre os gerentes ou administradores das sociedades, rege o disposto no artigo 64.º do CSC, de acordo com o qual, cf. seu n.º 1:

“Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses em jogo de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, clientes e credores.”.

Como acima já referimos, importa, in casu, apreciar o conteúdo dos deveres de lealdade, a fim de analisar a conduta do réu, ora recorrente e se a mesma configura ou não, a violação de tais deveres.

Como referem Ricardo Costa/Gabriela Figueiredo Dias, in CSC Em Comentário, já citado, Vol. I, pág.s 742/3, como corolário deste dever de lealdade “os administradores no exercício das suas funções, devem considerar e intentar em exclusivo o interesse da sociedade, com a correspectiva obrigação de omitirem comportamentos que visem a realização de outros interesses próprios e/ou alheios. Conduta desleal é aquela que promove ou potencia, de forma directa ou indirecta, situações de benefício ou proveito próprio dos administradores (…), em prejuízo ou sem consideração do conjunto dos interesses diversos atinentes à sociedade, neles englobando-se desde logo os interesses comuns de sócios enquanto tais, e também os de trabalhadores e (…) demais stakeholders relacionados com a sociedade”.

Acrescentando que tais deveres não se reconduzem apenas ao princípio geral da boa fé, mas que “Antes se pode configurar a já vista relação fiduciária – e a confiança especial que lhe subjaz – que se estabelece entre a sociedade e o administrador como o fundamento adequado: gera o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade, enquanto instrumento que esta é para a consecução desse fim e a correspondente satisfação do interesse social”.

Referindo, a pág.s 746/7, que um administrador “criterioso e ordenado”, perante uma “oportunidade de negócio”, “deve informar-se sobre a existência de interesse objectivo e efectivo da sociedade nela ou se a sociedade já está envolvida em negociações para a conclusão do negócio respectivo.

(…)

o dever de lealdade não admite ponderações, enquanto não está disponível para fragmentações derivadas de escolhas do administrador, entre o “interesse da sociedade” e o interesse próprio e/ou de terceiros – aqui é um dever absoluto.

(…)

o administrador “criterioso e ordenado” da sociedade é aquele que a gere para o fim correspondente à maximização do interesse social e à concordância possível com os interesses do stakeholders (particularmente, credores, trabalhadores, clientes e outros especialmente interessados …)”.

A nível jurisprudencial, têm-se seguido os mesmos critérios, como resulta, entre outros dos Acórdãos do STJ, de 30 de Maio de 2017, Processo n.º 4891/11.1TBSTS.P1.S1 (e no qual se cita, em abono do ali decidido, inúmera jurisprudência); de 30 de Setembro de 2014, Processo n.º 1195/08.0TYLSB.L1.S1 e, mais recentemente, de 26 de Fevereiro de 2019, Processo n.º 219/13.4YLSB.L2.S3, todos disponíveis no respectivo sítio do itij.

No primeiro dos Arestos ora citados, refere-se que:

“Em suma, pode dizer-se que o conceito de justa causa, para este efeito de substituição de gerente, deve ser encarado pelo prisma da protecção da confiança e com a dose de maleabilidade ou plasticidade que a lei concede na sua aplicação, perante as concretas circunstâncias de cada caso: verifica-se a justa causa para a destituição de gerente quando, dos factos provados, se retire a prática por este de actos que impossibilitem a manutenção da relação contratual de gerência, por quebrarem gravemente a relação de confiança que o exercício do inerente cargo supõe, ou que, segundo a boa-fé, tornam inexigível à sociedade o prosseguimento do seu exercício.

Existe justa causa para a destituição de gerente se não for justo exigir que a sociedade mantenha o contrato vinculante - «A “justa causa” preconizada no n.º 6 do artigo 257.º CSC pode definir-se como toda a ação praticada pelo gerente que merece a abominação generalizada dos demais associados e que, devido à reprovabilidade individual daquela sua conduta, faz desaparecer a habitual segurança e boa-fé que antes e até aí existia, deste modo tornando impraticável a prossecução desta habitual ligação funcional e, inexoravelmente, reclamada por uma fortalecida administração da sociedade»”.

Volvendo ao caso concreto, em resumo, procedeu a acção, por o ora réu ter violado os deveres de lealdade para com a empresa de que era gerente, com base no facto de este ter inviabilizado a concretização dos projectos de financiamento, que já estavam aprovados, ao recusar-se a assinar os documentos finais, necessários para a formalização dos mesmos, depois de os ter acordado e assinado os documentos necessários para as respectivas candidaturas, invocando, como justificação para tal, a sua intenção em sair da empresa.

Esta factualidade resultou provada, como resulta dos itens 23.º a 37.º.

Como destes resulta, “tais projectos eram necessários para a concretização do plano de negócios delineado nos últimos anos em termos económico-financeiros” – cf. item 31.º.

Para mais, o réu sempre esteve a par da intenção de que a empresa se financiasse por tal modo e até Setembro de 2019, sempre levou a cabo todos os actos que permitiam a viabilização ao respectivo acesso, o que deixou de fazer para fazer valer a sua intenção de sair da empresa – cf. item 30.º – e, assim, acarretou a suspensão dos referidos projectos (item 35.º), com consequências gravosas para a sociedade, como resulta dos itens 36.º e seg.s.

Daqui resulta, pois, que a atitude do réu – ao inviabilizar a possibilidade de a empresa se financiar como pretendido – lesou, de forma grave o escopo societário, pondo em causa o sucesso do giro comercial da empresa, com consequências nefastas para esta e para quem com ela se relacionava comercialmente, pondo os seus interesses à frente dos da empresa.

Não se nega que o recorrente, desconsiderando esta atitude, se esforçou pela condução dos negócios da empresa, como resulta dos itens 53.º a 55.º.

Mas essa era a sua obrigação, enquanto gerente da mesma.

E nada justifica que depois de sempre ter estado de acordo com a candidatura da sociedade aos fundos comunitários, tenha inviabilizado a sua formalização – reitera-se, já depois de aprovados os projectos apresentados – só porque entrou em rota de colisão com o outro sócio, quanto ao modo de gerir a empresa e passasse a ter a intenção de sair da mesma.

A sua primeira obrigação, o seu primeiro dever, enquanto gerente era o de salvaguardar os interesses da empresa, o que, de todo, não fez, com as consequências já descritas, assim violando, de forma grave e culposa, os seus deveres de lealdade para com a sociedade, o que inviabiliza que permaneça na respectiva gerência.

Em suma, face ao exposto, não vemos razões para alterar o decidido.

Pelo que, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, pelo recorrente.

Coimbra, 06 de Outubro de 2020.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves