Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2347/08.9TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: REGIME DE BENS
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
BENS COMUNS
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1288, 1317, 1722, 1724 CC
Sumário: I - Apesar da diversidade das situações enumeradas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, em todos os casos apontados a situação de facto fundamental geradora do direito próprio do cônjuge está constituída antes do casamento e não é fruto do esforço conjunto do casal.

II - O grau de colaboração, cooperação ou esforço de ambos os cônjuges na aquisição do direito também é critério adjuvante para decidir quando estamos perante um «direito próprio anterior», para efeitos do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil.

III - A inscrição do Autor numa cooperativa de habitação, cujos estatutos previam a realização posterior de um sorteio para atribuição das casas aos contemplados, altura em que seria também celebrado um contrato-promessa de compra e venda da casa, a vender apenas quando estivesse pago o seu custo, não converte a casa efectivamente adquirida mais tarde em bem próprio do cônjuge cooperante, «por virtude de direito próprio anterior», nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil, se o sorteio ocorre já na constância do casamento, assim como o pagamento da quase totalidade do seu preço através de empréstimo bancário contraído por ambos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrente (Autor    A (…) ,

Recorrida (Ré ) ……..M (…)


*

I. Relatório.       

a) O Autor instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter sentença que lhe reconheça ser proprietário exclusivo da casa de habitação onde residiu durante o casamento com a Ré, por se tratar de bem próprio seu e não um bem comum do casal que outrora foi formado por si e pela Ré.

Pediu que a Ré fosse condenada a reconhecer isto mesmo e, na sequência deste pedido impetrou, ainda, que o tribunal ordenasse o cancelamento do registo predial na parte em que consta ser a Ré também proprietária da casa, passando o bem a estar registado apenas como sendo exclusivamente do Autor.

Solicitou ainda a supressão do nome da Ré no contrato celebrado com a A..., agência n.º ..., de ..., resultante do empréstimo .../ ..., contraído para aquisição do imóvel.

Baseia estas pretensões no facto desta casa ter sido adquirida no âmbito da adesão do Autor a uma cooperativa de habitação, cujo fim era o de construir habitações para os seus cooperantes, adesão essa anterior ao casamento do Autor com a Ré.

Bem como no facto de todas as contribuições pagas a essa cooperativa, destinadas à compra da habitação, terem sido feitas com dinheiro seu.

Sustenta, ainda, que o registo predial enferma de nulidade na parte relativa ao registo da aquisição em nome da Ré devido ao facto de não ter existido título bastante para o efeito.

Alega, por fim, que sempre se verificariam os requisitos do enriquecimento sem causa por parte da Ré, à custa do Autor, já que esta obteve uma vantagem de carácter patrimonial, sem causa justificativa.

b) A Ré contestou alegando que a casa de habitação é bem comum do casal, facto que o Autor até reconheceu quando ambos colocaram tal bem na relação de bens comuns do casal que instruiu o pedido de divórcio.

Diz que casaram em Abril de 1987 e que compraram a casa em questão passados quatro anos, em Abril de 1991, com dinheiro do casal, sendo também certo que as prestações relativas ao empréstimo contraído para a aquisição foram pagas com dinheiro do casal, pois trabalhavam ambos.

Concluiu pela improcedência da acção e pela condenação do Autor como litigante de má fé.

c) O Autor respondeu para reafirmar que os pagamentos feitos para a aquisição da casa foram sempre feitos apenas por si, desde a data em que se constituiu associado da cooperativa.

Contestou também o pedido da sua condenação como litigante de má fé.

d) O processo prosseguiu e no despacho saneador a Ré foi absolvida da instância no que respeita ao pedido de exclusão do nome da Ré do contrato de mútuo celebrado com a A..., com fundamento no facto de se tratar de um caso de litisconsórcio necessário e não se encontrar na acção a entidade bancária.

Após audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a acção improcedente.

O tribunal considerou que a casa de habitação era um bem comum do casal, essencialmente porque o direito à aquisição da casa resultou de um sorteio efectuado no âmbito das relações com a cooperativa, que ocorreu já na constância do matrimónio, existindo antes disso no património do Autor, tão-só, uma mera expectativa de aquisição.

e) O Autor recorreu quanto à matéria de facto e relativamente à solução jurídica a que chegou o tribunal de 1.ª instância.

Quanto à matéria de facto, impugna as respostas dadas aos únicos dois quesitos formulados, cujo teor é o seguinte:

1.º - Por ser associado da «B ...», ao autor foi atribuído o direito à aquisição da fracção identificada em B) dos factos assentes, em momento anterior ao casamento com a Ré?

2.º - Tendo liquidado as correspondentes prestações mensais, desde 8 de Maio de 1985, que permitiram que beneficiasse do sorteio que lhe atribuiu o direito à habitação da fracção?

O primeiro quesito mereceu a resposta de «não provado» e o segundo foi respondido desta forma: «Provado apenas que o autor liquidou isoladamente as quotas de sócio e poupança desde a inscrição como sócio até à data do casamento, pagamento este que permitiu que beneficiasse do sorteio».

Baseia a impugnação nos depoimentos das testemunhas, cujos extractos transcreveu.

Sustenta que se inscreveu como cooperante na cooperativa e fez diversos pagamentos, com dinheiro seu, antes de estar casado, situação esta que foi condição necessária para que, mais tarde, já casado, é certo, pudesse beneficiar, como beneficiou do sorteio e posterior compra da casa.

Quanto à parte jurídica sustenta que a casa de habitação foi adquirida com dinheiro próprio do Autor e com dinheiro que pediu emprestado a familiares seus, sem qualquer intervenção da Ré, pelo que, nos termos da al. c) do artigo 1723.º do Código Civil, a casa é bem próprio, seu.

c) O objecto do recurso consiste no seguinte:

Em primeiro lugar, na apreciação da resposta dada aos dois quesitos.

Seguidamente, verificar-se-á se o imóvel é bem próprio do Autor ou bem comum do casal, o que passa por analisar as seguintes subquestões:

1- Primeiro: saber se o Autor adquiriu antes do casamento um direito que mais tarde se limitou a exercitar e, por via desse exercício, adquiriu a casa ou se só adquiriu o direito a fazer sua a casa após ter casado.

2 – Segundo: apurar se a casa foi adquirida apenas com dinheiro próprio do Autor e relevância de tal facto.

II. Fundamentação.

a) Começando pela impugnação da matéria de facto.

(…)

b) A matéria provada é, por conseguinte, esta:

1. Autor e Ré casaram em 5 de Abril de 1987, segundo o regime da comunhão de adquiridos, casamento dissolvido por divórcio, por mútuo consentimento, decretado na Conservatória de Registo Civil de Condeixa-a-Nova, em 13 de Outubro de 2006, tendo ambos renunciado ao prazo de recurso nesse mesmo dia.

2. Ao requerimento de divórcio anexaram uma «Relação de bens comuns a partilhar», sendo a verba n.º 1 e única do activo constituída por «Fracção autónoma designada pela letra AF, correspondente ao sétimo andar, letra A, destinado a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em ..., na ...- ..., Lote n.º ..., da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... da dita freguesia; e a verba única do passivo um «débito à A...- Agência ..., de ..., no montante de €18 565,63 (dezoito mil quinhentos e sessenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos).

3. Por escritura pública de compra e venda, outorgada a 23 de Abril de 1991, a Cooperativa B..., cooperativa de responsabilidade ilimitada, com sede em ..., ..., ..., (que passará a ser designada apenas por « ...») representada por procurador, declarou vender ao segundo outorgante o aqui Autor, aí identificado como sendo casado com a aqui Ré, no regime de comunhão de adquiridos, pelo preço de cinco milhões e novecentos mil escudos, já recebidos, a fracção autónoma acima identificada, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., da freguesia de ..., nela se achando registado o título constitutivo da propriedade horizontal mediante registo «F-1» e ali registado a favor da vendedora pelo registo «G-1».

4. Pelo segundo outorgante, ora Autor, foi dito aceitar este contrato, nos termos exarados, e que a fracção autónoma adquirida se destinava a sua habitação, tendo recorrido ao crédito na A... para a sua aquisição.

5. Por escritura pública de mútuo com hipoteca, outorgada a 23 de Abril de 1991, na qual figuram como mutuários Autor e Ré, estes declararam constituir-se devedores à A...da quantia de cinco milhões trezentos e dez mil escudos, que por esta instituição lhes foi emprestada para aquisição de casa própria permanente adiante hipotecada e «que se obrigam a pagar-lhe no prazo de vinte e cinco anos…», «amortizado em trezentas prestações mensais progressivas, a primeira das quais se vencerá no dia vinte e três do mês seguinte ao da realização deste contrato», sendo todos os pagamentos «efectuados através de débitos em conta de depósitos à ordem, nesta instituição, número 171569000 da filial de ..., em nome dos mutuários».

6. Para garantia deste empréstimo, respectivos juros e despesas, os devedores constituíram hipoteca sobre a fracção autónoma em causa, tendo sido feito registo provisório «G-1», de 28 de Fevereiro, a favor do autor (provisório).

7. O imóvel encontra-se definitivamente inscrito a favor do ora Autor e da Ré, pelo registo «G-Ap. 26, de 28 de Fevereiro de 1991».

8. De acordo com os estatutos da ..., a admissão dos cooperadores seria feita mediante proposta dirigida à direcção, assinada pelo candidato ou a seu rogo, e por dois cooperadores proponentes, e deveriam constar, além dos respectivos elementos de identificação, os do seu agregado familiar, bem como o rendimento desse agregado.

9. Por outro lado, na primeira atribuição, as habitações seriam cedidas aos membros pelo valor correspondente ao seu custo total, o qual corresponderia à soma das seguintes parcelas: a) custo do terreno e infra-estruturas; b) custo dos estudos e projectos; c) custo da construção e dos equipamentos complementares quando integrados nas edificações; d) encargos administrativos com a execução da obra; e) encargos financeiros com a execução da obra, quando sejam de considerar; f) montante das licenças e taxas até à entrega do fogo em condições de ser habitado (n.º 1); os membros deveriam ainda efectuar as comparticipações fixadas pela assembleia geral que se destinavam à constituição da reserva para construção (n.º 2).

10. Além disso, constava do art. 64.º dos estatutos: «os cooperadores têm acesso à propriedade individual dos fogos que lhes sejam atribuídos após a integral amortização do seu valor de custo total à Cooperativa determinado nos termos do artigo 55º destes estatutos».

11. Por seu turno, o preceito subsequente dispunha, que a B... celebraria com os cooperadores adquirentes um contrato-promessa de compra e venda aquando da atribuição da casa, donde deveria, pelo menos constar: a) o preço pelo qual o fogo será adquirido, correspondente ao seu valor de custo total, e a sua forma de amortização, em prestações mensais a fixar pela Cooperativa; b) a obrigação do cooperador pagar os juros e demais encargos...; c) a obrigação de a cooperativa outorgar com o cooperador a escritura definitiva de venda, após a integral amortização do fogo.

12. O autor é o associado n.º 01709 da referida « ...», datando a sua inscrição de 10 de Abril de 1985.

13. Data de 10 de Abril de 1985 a ficha individual de inquérito apresentada junto da cooperativa com indicação da composição do agregado familiar, aí se mencionando, além do ora autor, «(…)», na qualidade de esposa, e (…)como filha (primeira mulher e filha do primeiro casamento do autor).

14. Por sorteio ocorrido em assembleia geral n.º 45, no dia 06 de Outubro de 1989, relativo à distribuição dos fogos que compunham o lote ..., coube ao ora Autor a fracção em causa, o «sétimo A».

15. O Autor tem liquidado as correspondentes prestações mensais desde 8 de Maio de 1985.

c) Passando à análise da questão jurídica objecto do recurso, que consiste em saber se o imóvel é bem próprio do Autor ou bem comum do casal, o que passa por analisar, como se disse, as duas apontadas subquestões:

Em primeiro lugar, cumpre identificar a norma ou normas que disciplinam esta matéria e isolar o critério ou critérios que permitirão decidir se uma certa situação factual que levou à aquisição de um bem gera um direito próprio de um dos cônjuges ou um direito integrado na comunhão conjugal.

A matéria encontra-se prevista na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil, onde se declara que são bens próprios dos cônjuges «Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior».

O n.º 2 deste artigo dispõe:

«2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:

a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;

b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;

c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;

d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento».

Estas situações estão conectadas ao regime da comunhão de bens, cumprindo, por isso, ter presente os fins perseguidos pelo legislador com tal regime.

Nas palavras do Prof. Pereira Coelho, «O casamento implica uma comunhão de vida entre os cônjuges e, por isso, uma comunhão de interesses patrimoniais que exige regime particular, mal se concebendo que as relações patrimoniais derivadas do casamento ficassem sujeitas ao regime geral das relações jurídicas obrigacionais ou reais» ([1])

Daí que se justifique que, sendo o casamento uma comunhão de vida, a regra seja a de que tal comunhão também se estende à comunhão nos bens que sejam adquiridos na constância do matrimónio com a colaboração, a cooperação, e o esforço de ambos os cônjuges.

A interpretação das normas, como esta agora em análise, há-de seguir este rumo de orientação porque é a linha que a lei adoptou.

O oposto a esta regra da comunhão, isto é, a aquisição de bens próprios durante um casamento sujeito a um regime de comunhão, é excepção e terá de se fundamentar em razões ou motivos com valor substantivo suficiente para neutralizar as razões que justificam a regra.

Veja-se, como exemplo da força da comunhão, o disposto na al. a) do artigo 1724.º do Código Civil, onde se dispõe que faz parte da comunhão «O produto do trabalho dos cônjuges», o que significa que pode dar-se o caso de um cônjuge auferir rendimentos do seu trabalho e o outro não, quer porque, por exemplo, este último está desempregado, não quer trabalhar ou faz o trabalho doméstico, mas, seja como for, os rendimentos do trabalho são comuns.

É a regra do casamento sob um regime de comunhão de bens a funcionar: sendo o casamento uma comunhão de vida, a comunhão tende a estender-se a todos os bens adquiridos na constância do matrimónio.

Daí que as mencionadas alíneas do n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, devam ser interpretadas à luz deste princípio, pois a unidade do ordenamento jurídico reclama a coerência entre as diversas leis pelo que, pressupõe-se que aquelas que vigoram cumprem esta regra.

Nas mencionadas quatro alíneas o legislador dá-nos exemplos de casos por ele valorados em que os bens, apesar de serem adquiridos na constância do casamento, são próprios de um dos cônjuges.

Estamos perante situações que preenchem o conceito de direito próprio anterior justificador, para o legislador, na natureza própria em vez de comum, cumprindo, por isso, verificar que propriedades estes exemplos têm em comum, de forma a chegar ao conteúdo que define o conceito «direito próprio anterior».

Na al. a) alude-se a bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele, como é o caso, por exemplo, da herança indivisa atribuída antes do casamento, mas partilhada depois dele.

Nas palavras dos Profs. Pires de Lima/Antunes Varela, «Trata-se, aliás, de solução que rigorosamente se coaduna com a retroactividade da partilha, prescrita no artigo 2119.º» ([2]).

Alude-se nesta alínea à existência de direitos que uma vez exercidos conduzem à aquisição de bens fazendo retroagir os efeitos da aquisição a um momento temporal pretérito.

O que significa, então, que se trata de direitos totalmente gerados e formados antes do casamento, mas que, por qualquer razão particular, apenas se exercem já durante o casamento.

A al. b) refere-se a bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento.

Neste caso, muito embora o direito só complete o seu ciclo de formação na constância do casamento, cumpre ter em atenção que, por força do disposto nos artigos 1288.º e 1317.º, al. c) ambos do Código Civil, os efeitos dos actos de posse que conduzem à aquisição da propriedade por usucapião retroagem à data do início da posse, portanto, a uma época em que não existia ainda casamento.

Sendo assim, produzindo-se os efeitos numa altura em que não existia casamento, é lógico, por isso, que estes efeitos sejam excluídos do património comum, que nesse tempo não existia ([3]).

A al. c) trata dos bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade.

Nestes casos, o direito de propriedade sobre a coisa fica sujeito a condição suspensiva, mas, se chegar a concretizar-se, os seus efeitos também retroagem, como dispõe o artigo 276.º do Código Civil, à data da conclusão do negócio.

Também aqui os efeitos do negócio se estendem a um momento temporal em que não existia casamento, pelo que, tais efeitos não devem integrar o património comum ([4]), que nessa data não existia.

É clara a razão que leva o legislador a considerar tais bens como próprios.

Na al. d) prevêem-se os casos em que o bem é adquirido no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.

Cumpre distinguir aqui entre o momento em que se constituiu o quadro factual que vai originar o direito de preferência e o momento do nascimento deste.

Com efeito, seguindo as palavras de Agostinho Cardoso Guedes, «O direito de preferência nasce em momento posterior à constituição da relação de preferência, apenas no momento em que se verificam um conjunto de pressupostos previstos na lei ou no pacto, sendo condicionado apenas no sentido em que o seu nascimento não é certo e imediato, mas apenas eventual e futuro, não existindo sequer uma expectativa jurídica nesse sentido.

O que se passa é que o direito assim constituído não é um direito de crédito, mas sim um direito potestativo constitutivo de um direito de crédito» ([5]).

Por exemplo: numa situação de contrato de arrendamento, só na altura em que o senhorio decidiu alienar a outrem o local arrendado, em certas condições, é que se constitui um direito de preferência para o seu inquilino ([6]).

Voltando à al. c) do n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil.

Alude-se aqui:

À existência de um direito de preferência que se exerce; e

À situação que o suporta como já existente à data do casamento.

Nada se diz sobre se o direito de preferência se formou antes ou depois do casamento, apenas se exige que a situação factual, quer seja juridicamente qualificável como pacto de preferência, compropriedade, arrendamento para o exercício de comércio ou indústria ([7]), em que ele se funda, esteja formada antes do casamento.

Procurando descortinar uma ratio legis presente em todos os exemplos acabados de mencionar, constata-se:

Nos casos das alíneas b) e c) – posse e da reserva de propriedade – estamos perante situações em que os direitos se vão formando por etapas, progressivamente, ocorrendo na constância do casamento o último acto, mas os efeitos retroagem, por força da lei, à data do primeiro acto.

No caso da alínea a) – direitos sobre patrimónios ilíquidos –, os direitos estão formados antes do casamento, mas só são materializados em bens concretos depois do casamento.

No caso da alínea d) – direito de preferência –, a situação base factual e jurídica de onde emerge mais tarde o direito já existe antes do casamento, mas o direito, consoante os casos, pode ter nascido antes ou durante o casamento (pense-se no caso do senhorio ter alienado antes do casamento do inquilino o local arrendado e de este exercer o direito depois de ter casado ou no caso em que o inquilino é exclusivo titular do contrato de arrendamento e a venda ocorre durante o casamento).

Parece resultar destes exemplos, que, apesar da diversidade das situações enumeradas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, em todos os casos apontados a situação de facto fundamental geradora do direito próprio do cônjuge está constituída antes do casamento e não é fruto do esforço conjunto do casal.

Com efeito, nos casos da posse e da reserva de propriedade é a lei que dá relevo fundamental ao início do processo fazendo regredir os efeitos a esta data.

No caso dos direitos sobre patrimónios ilíquidos o acto determinante ocorreu antes do casamento, só o exercício ocorre durante o casamento.

 No caso do direito de preferência a situação base, factual e jurídica, de onde emerge mais tarde o direito, já existe antes do casamento, podendo o direito nascer, porém, durante o casamento.

E durante o casamento apenas ocorre um facto, também estranho ao labor do casal, que é a alienação da coisa por parte do obrigado a dar preferência.

Ou seja, o esforço conjunto do casal na aquisição do direito de preferência é nulo, podendo já não ser assim quando se trata de o exercer, caso seja necessário investir meios financeiros comuns.

Afigura-se, por conseguinte, ser este exemplo relativo ao direito de preferência um modelo útil para verificar quando estaremos perante um «direito próprio anterior», para efeitos do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil.

Repetindo, neste caso, verificamos que o esforço conjunto do casal na aquisição do direito é nulo ou desprezível.

O que nos leva a considerar, dada a coerência valorativa do ordenamento jurídico, que as demais situações tidas em vista pelo legislador serão semelhantes a esta.

Isto é, o grau de colaboração, cooperação ou esforço de ambos os cônjuges na aquisição do direito é critério para decidir quando estamos perante um «direito próprio anterior», para efeitos do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil.


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Vejamos agora o caso concreto.

Antes do casamento, existia esta situação:

O Autor inscreveu-se como cooperante da Cooperativa B..., em 10 de Abril de 1985, e pagou até ao casamento com a Ré, durante dois anos, as prestações mensais.

Depois do casamento ocorreram os seguintes factos:

- Autor e Ré mantiveram-se casados um com o outro de 5 de Abril de 1987 até Outubro de 2006.

- O Autor após o casamento continuou a pagar as prestações mensais correspondentes.

Cumpre referir, porém, que após o casamento todas as prestações pagas à cooperativa o foram com dinheiro comum do casal, na medida em que, pelo casamento, os rendimentos do trabalho se tornaram comuns.

É o que prescreve a al. a) do artigo 1724.º do Código Civil, sendo certo que não há qualquer prova de ter sido utilizado dinheiro próprio do Autor no pagamento das prestações liquidadas após o casamento (cf. al. c) do artigo 1723.º do Código Civil, onde se dispõe que são próprios os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges).

A questão inicialmente colocada, no sentido de apurar se a casa foi adquirida apenas com dinheiro próprio do Autor e a relevância de tal facto, não tem importância, já que não se fez tal prova, sendo certo que o dinheiro auferido por qualquer deles como rendimento do seu trabalho, era bem comum.

- O sorteio em Outubro de 1989, mais de dois anos volvidos sobre o casamento de ambos, que concedeu ao Autor o direito estatutário de beneficiar de um contrato-promessa no qual a cooperativa se devia obrigar a vender-lhe a casa, desde que, nos termos do artigo 64.º dos estatutos, estivesse pago o respectivo custo.

- Contraíram ambos um empréstimo de cinco milhões, trezentos e dez mil escudos, em 23 de Abril de 1991, para aquisição da casa, a pagar no prazo de 25 anos através de 300 prestações mensais.

- A casa foi comprada nesta mesma data com utilização do dinheiro do empréstimo, tendo sido vendida ao Autor por cinco milhões e novecentos mil escudos.


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Passando à valoração destes factos em termos jurídicos.

Antes do casamento.

Entre Abril de 1985 e Maio de 1987 (data do casamento), verificamos que o Autor se inscreveu na cooperativa de habitação e pagou as quotas mensais, o que fez, portanto, durante cerca de dois anos.

Qual o relevo jurídico destes factos na aquisição da casa em Abril de 1991?

Nos termos dos estatutos da cooperativa de habitação, esta celebraria «B…com os cooperadores adquirentes um contrato-promessa de compra e venda aquando da atribuição da casa…» donde deveria constar, entre outras especificações, «a obrigação de a cooperativa outorgar com o cooperador a escritura definitiva de venda, após a integral amortização do fogo».

Constava também dos estatutos, do seu art. 64.º, o seguinte: «os cooperadores têm acesso à propriedade individual dos fogos que lhes sejam atribuídos após a integral amortização do seu valor de custo total à Cooperativa determinado nos termos do artigo 55º destes estatutos».

Verifica-se, pois, que após a atribuição da casa ao Autor, este tinha o direito estatutário de beneficiar de um contrato-promessa, no qual a cooperativa se obrigava, mais tarde, a vender-lhe a casa, desde que, nos termos do artigo 64.º dos estatutos, estivesse pago o respectivo custo.

Esta situação de facto, tendo em conta os estatutos, investia o Autor numa situação favorável quanto à possibilidade de mais tarde vir a adquirir uma habitação por intermédio da cooperativa.

Mas é seguro que não lhe deu, nessa altura, o direito a adquirir a habitação.

Com efeito, os direitos estatutários que disciplinavam as relações entre a cooperativa e o Autor previam a hipótese da cooperativa vir a celebrar um contrato-promessa no futuro, mas só no caso de vir a ser atribuída ao Autor, por sorteio, uma habitação.

Isto mostra que a simples inscrição na cooperativa não gerava na esfera jurídica do cooperante um direito subjectivo exercitável perante a cooperativa no sentido de a obrigar a vender-lhe uma casa.

Aliás, só após o pagamento do custo à cooperativa é que esta, face aos estatutos, se obrigava a vender a casa já atribuída ao cooperante.

Vê-se, assim, que o Autor quando se inscreveu não adquiriu um direito a adquirir mais tarde uma casa.

A inscrição deu, sim, origem a um processo que, verificados todos os restantes requisitos e cumpridos os respectivos deveres, lhe permitia adquirir a propriedade da casa.

Por conseguinte, concorda-se com, a sentença, quando diz que «a mera qualidade de cooperante não originou qualquer direito sobre bens, apenas a expectativa de, por sorteio, e passo o pleonasmo, adquirir o direito à aquisição de fracção».

Nas palavras do Prof. Mota Pinto, por expectativa jurídica entende-se «…a situação activa, juridicamente tutelada, correspondente a um estádio dum processo complexo de formação sucessiva de um direito. É uma situação em que se verifica a possibilidade, juridicamente tutelada, de aquisição futura de um direito, estando já parcialmente verificada a situação jurídica (o facto jurídico) complexa, constitutiva desse direito» ([8]).

Verifica-se, efectivamente, que antes do sorteio o Autor não tinha na sua esfera jurídica qualquer direito exercitável contra a cooperativa quanto à aquisição da propriedade da habitação.

Nem estava numa situação de facto acabada, semelhante à do titular duma situação jurídica susceptível de desembocar num direito de preferência, isto é, não estava numa posição factual completamente finalizada quanto a si próprio, dependendo apenas de factos posteriores praticados por terceiros, como, no caso, a venda do bem objecto do direito de preferência.

O único direito que o Autor tinha antes do casamento, de natureza contratual e conferido pelos estatutos, era o de poder participar num futuro sorteio, se viesse a realizar-se.

Afigura-se, por conseguinte, que estamos neste caso distantes de qualquer uma das situações paradigmáticas de «aquisição por virtude de direito próprio anterior» mencionadas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil.

Depois do casamento.

Verifica-se que os passos fundamentais do processo de aquisição da habitação ocorreram todos já durante o casamento.

Desde logo o sorteio através do qual o Autor ingressou na posição jurídica que lhe atribuiu a expectativa de adquirir uma casa já concretamente identificada.

E diz-se «expectativa» porque, segundo os estatutos, o Autor após o sorteio, adquiriu apenas o direito a celebrar com a cooperativa um contrato-promessa de compra e venda daquela fracção habitacional já identificada.

Por conseguinte, o direito a adquirir a fracção perante a cooperativa, face aos estatutos, só surgia com a celebração do contrato-promessa.

Até esse momento apenas se poderia falar, por isso, em expectativa jurídica no que respeita à aquisição da casa.

Desta forma, se antes do casamento e mesmo após o mesmo o Autor só teve, até ao sorteio, uma expectativa, então tem de se concluir que antes do casamento não existiu um direito que directamente lhe tivesse dado acesso à aquisição da casa.

Nem tão-pouco, repete-se, ocorreu uma situação como a que tem lugar na hipótese do direito de preferência, em que a situação factual no que respeita à actividade do titular do direito está concluída quanto a ele.

Vemos, portanto, que durante o casamento ocorrem estes factos:

(a) O sorteio que deu direito à celebração do contrato-promessa (quanto ao qual não há notícia de ter sido celebrado);

(b) O pagamento contínuo das prestações mensais entre Maio de 1987 e em 23 de Abril de 1991;

(c) A celebração por ambos os cônjuges do empréstimo de cinco milhões, trezentos e dez mil escudos destinado à aquisição da casa;

(d) O contrato de compra e venda da casa.

Verifica-se, pois, que o grau de colaboração, cooperação ou esforço de ambos os cônjuges na aquisição da casa é muito mais elevado do que aquele que foi desenvolvido antes do casamento apenas pelo Autor.

Em resumo:

(a)Antes do casamento e mesmo após o mesmo o Autor só teve, até ao sorteio, uma expectativa, pelo que, antes do casamento não existiu um direito que directamente lhe pudesse dar acesso à aquisição da habitação.

(b)Nem tão-pouco ocorreu uma situação como a que tem lugar na hipótese do direito de preferência, em que a situação factual no que respeita à actividade do titular do direito está concluída e este já nada tem que fazer após o casamento.

(c) O grau de colaboração, cooperação ou esforço de ambos os cônjuges na aquisição da casa é muito mais elevado do que aquele que foi desenvolvido apenas pelo Autor antes do casamento.

Face ao exposto, temos de concluir que a situação dos autos anterior ao casamento não integra uma situação que possa ser enquadrada na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil.

Daí que a casa não possa ser considerada bem próprio do Autor.

E compreende-se que assim seja.

Os bens adquiridos na constância do matrimónio resultam da colaboração, cooperação e esforço de ambos os cônjuges, pelo que, a ideia de justiça ordena que se tenham como pertencendo a ambos.

Mais, os cônjuges sabem e aceitam que quando casam, independentemente da «quantidade ou qualidade» do esforço de cada um, os bens adquiridos na constância do casamento são comuns.

Só em casos excepcionais pode deixar de ser assim.

Seja naqueles casos em que os efeitos da aquisição retroagem a uma altura em que anda não existia casamento ou então, quando aquilo que havia a fazer por parte do titular do direito está feito, salvo a manifestação de vontade de exercer o direito.

Por conseguinte, só em casos excepcionais é que se justifica o desvio à regra da comunhão nos bens.

E, neste caso, bem se vê que o esforço significativo quanto à aquisição foi comum.

A jurisprudência dos nossos tribunais superiores apoia a solução a que se chegou.

Com efeito, num caso em que o cônjuge havia celebrado um contrato-promessa antes do casamento, sem eficácia real, o Supremo Tribunal de Justiça não enquadrou os direitos resultantes desse contrato-promessa na hipótese prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 1722.º do Código Civil.

Referiu-se na fundamentação dessa decisão o seguinte: «Com efeito, nos termos daquele n.º 2 (o acórdão refere-se ao n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil) resulta que, para a situação em causa se encontrar abrangida no mesmo número, teria de comportar um direito próprio anterior do cônjuge que figure como adquirente, para este nascido em circunstâncias ou com natureza ou eficácia similares à de qualquer das hipóteses concretas previstas nesse número, cuja análise conduz ao entendimento de que o “direito próprio anterior” referido naquela alínea não pode ser senão um direito anterior sobre o próprio bem transmitido, um direito real, embora diferente do direito de propriedade, designadamente um direito real de aquisição, que origine a transmissão do direito de propriedade sobre esse mesmo bem para o cônjuge que figure como adquirente, mas sem dependência de qualquer declaração de vontade, no sentido dessa transmissão para ele, pelo transmitente ou por quem legalmente o possa substituir» ([9]).

Perante tudo o que fica dito, deve manter-se a decisão recorrida.

III. Decisão.

Face ao exposto, decide-se:

1- Considerar não escrita a matéria do quesito 1.º por constituir matéria de direito, bem como o segmento «…que permitiram que beneficiasse do sorteio que lhe atribuiu o direito à habitação da fracção» que figura no quesito 2.º.

2- Julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.

3 - Custas pelo Autor.


*

Alberto Ruço ( Relator )

Judite Pires

Carlos Gil

[1] Curso de Direito de Família, pág. 433/434, Coimbra/1981.
[2] Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 423, 2.ª edição.
[3] Cf. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, Vol. I, pág. 513, 2.ª Edição, Coimbra Editora /2001.
[4] («Consideram-se em terceiro lugar (na al.c)) como adquiridos por virtude de direito próprio anterior os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade por qualquer dos cônjuges… O artigo 1722.º faz retroagir os efeitos da aquisição, para o efeito da qualificação dos bens, à data da celebração do contrato» -  Profs. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 423, 2.ª edição.

[5] Exercício do Direito de Preferência, pág. 341, Porto/2006.

[6] Nos termos do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil (reposto pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro - Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) - «O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos».
[7] Profs. Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit. pág. 423.

[8] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 180.

[9] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2005, C.J. (S.T.J.) ano XIII, II, pág. 73. Este acórdão manteve a solução a que tinha chegado o TRP no acórdão de 11-10-2004, C.J., ano XXIX, tomo  IV, pág. 188.