Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
387/08.7TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: QUESTÃO PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DO PROCESSO PENAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 7º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: I - Em matéria de devolução de questões prejudiciais para processo não penal, o legislador optou por um regime de discricionariedade juridicamente vinculada.

II - O critério legal que vincula esse poder discricionário assenta cumulativamente nos requisitos da “necessidade” e na “conveniência “, exigindo ainda a autonomia e a anterioridade da questão prejudicial relativamente à questão prejudicada.

a) A “necessidade” reporta-se aos elementos do tipo legal de crime e pressupõe a indispensabilidade de conhecimento da questão dita prejudicial em termos tais que a questão penal não poderá sequer ser decidida sem a prévia decisão da questão prejudicial;

b) A “conveniência” deverá resultar de razões de natureza subjectiva ou processual, como seja a decisão por um tribunal de competência específica ou a utilização de uma determinada tramitação ou forma processual dificilmente compatível com a prevista para o processo penal;

c) A “autonomia” relativamente à questão prejudicada traduz-se em a questão prejudicial poder ser tratada como questão juridicamente autónoma, susceptível de constituir objecto de um processo específico;

d) A sua “anterioridade” relativamente à questão prejudicada significa que a questão prejudicial deve ser pré-existente relativamente ao evento hipoteticamente consubstanciador da responsabilidade criminal (pré-existente do ponto de vista fáctico; a natureza prévia do ponto de vista jurídico, aquilo a que a doutrina chama a antecedência lógico-jurídica, está abrangida na necessidade do conhecimento da questão prévia).

III - O prosseguimento de processo por crime de prestação de falsas declarações não pressupõe a prévia determinação da titularidade de prédio a que se reporta a justificação notarial em que os arguidos intervieram, não constituindo esta última verdadeira questão prejudicial relativamente ao processo penal. Em abstracto, até se poderia verificar uma consolidação do domínio na titularidade dos justificantes e subsistir, ainda assim, uma evidência de prestação de declarações falsas, não sendo a verificação do crime afastada pela comprovação da titularidade do direito de propriedade.

IV - Se é certo que a escritura de justificação constitui documento autêntico (art.ºs 363°, n.° 3, do Código Civil e 35°, n° 2, do Código do Notariado), fazendo prova plena dos factos atestados pelo oficial público (notário) que o lavrou com base na sua percepção, não assegura, no entanto, a veracidade das declarações prestadas perante ele.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

O Ministério Público deduziu acusação contra A..., B..., C..., D... e E... (lapso na identificação corrigido a fls. 516), todos com os demais sinais dos autos, imputando a cada um deles a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de falsificação de documento, p. p. pelo art. 256º, nº 1, al. b) e nº 3, do Código Penal. A acusação deduzida tem o seguinte teor:

“(…) indiciam os autos que:

No dia 05 de Janeiro de 2005, no extinto Segundo Cartório Notarial de Tomar, foi outorgada uma escritura pública de justificação, lavrada a fls. 53 e 54 verso do Livro 215-1 de Escrituras Diversas, em que intervieram como primeiros outorgantes os arguidos A... e sua mulher B... e como segundos outorgantes os arguidos C..., D... e E... - cf. certidão de fls. 29 a 33.

Aí, na qualidade de primeiros outorgantes, os arguidos A... e B... declaram:

- "que são, com exclusão de outrem, donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: rústico, composto de terra de pinhal, cinco mil e quarenta metros quadrados, sito no …"

- "que o citado prédio na matriz encontra-se em nome do referido titular inscrito" e "que os citados … , por volta do ano mil novecentos e oitenta venderam verbalmente o citado prédio aos ora justificantes" .

- "que eles justificantes possuem o indicado prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de Caparica, lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação e defesa, nomeadamente usufruindo dos seus rendimentos, cultivando e recolhendo os respectivos frutos, pagando os respectivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o dito prédio por usucapião, título que invocam para estabelecer o novo trato sucessivo".

Por sua vez, na qualidade de segundos outorgantes, os arguidos C..., D... e E... declararam "que confirmam as declarações que antecedem, por serem inteiramente verdadeiras".

No momento da realização desta escritura, todos os arguidos, foram expressamente advertidos pelo Notário perante quem compareceram, de que incorreriam em responsabilidade criminal se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestassem declarações falsas.

Tal advertência ficou a constar da escritura a qual foi explicada e lida em voz alta aos arguidos, presentes na qualidade de outorgantes.

Apesar de cientes da advertência feita, as declarações prestadas pelos arguidos não correspondem à verdade, o que os mesmos sabiam.

Com efeito, o prédio sito em  … a que alude a escritura de justificação supra referida, foi adquirido no dia 20.03.1963  … por escritura de compra e venda celebrada no 150 Cartório Notarial de Lisboa - cf. certidão de fls. 17 a 25.

A 28.06.1963 a aquisição do prédio foi registado a favor de  … - cf. fls. 27 e 28.

Desde a data em que adquiriram o prédio e até ao seu falecimento ocorrido, respectivamente, em 18.12.1988 e 21.10.1988,  … sempre utilizaram e fruíram do mesmo à vista e com o conhecimento de todos, nunca o tendo alienado ou, por qualquer forma, vendido a terceiros, designadamente aos arguidos A... e B... .

E, após o óbito daqueles, o mesmo prédio continuou a ser utilizado por suas filhas, as assistentes … que dele se têm servido até aos dias de hoje e cuja propriedade e posse adquiriram por sucessão, por morte dos seus pais que dele eram proprietários e possuidores.

Os arguidos A... e B... nunca poderiam ter adquirido o prédio ora em questão por venda verbal a  … nem poderiam ser seus donos e legítimos possuidores dele usufruindo sem oposição de quem quer que seja desde por volta de 1980, pelo facto de, quando faleceram em 1988, aqueles  … se serviam do prédio e o usufruíam sendo que, a partir de 1988 e até à presente data, dele se servem e o utilizam as assistentes … , suas filhas e herdeiras.

Ao declararem, nos termos supra referidos, factos que bem sabiam que não correspondiam à verdade, todos os arguidos fizeram crer ao Notário em exercício de funções no Cartório Notarial que as declarações que prestaram eram verdadeiras logrando, assim, que a escritura fosse lavrada.

E, com base nessa escritura de justificação, os arguidos A... e B... conseguiram obter o registo do prédio a seu favor vendendo­-o, posteriormente, a terceiros.

Os arguidos A... e B... agiram com o propósito concretizado de obterem para si uma vantagem a que sabiam não ter direito e que lhe permitiria obter a inscrição daquele prédio no registo predial a seu favor e de prejudicarem as suas legítimas proprietárias causando-lhes um prejuízo patrimonial correspondente ao valor do prédio que é de € 400.000,00.

Por sua vez, os arguidos C..., D... e E..., agiram com o propósito concretizado de obterem para aqueles um benefício patrimonial indevido e de causar às assistentes um prejuízo patrimonial.

Todos os arguidos sabiam que prestavam as declarações supra referidas perante um Notário no exercício das suas funções, determinando que este fizesse constar de uma escritura de justificação factos que não correspondiam à verdade.

Com a sua actuação, puseram em crise a fé pública e credibilidade de que goza uma escritura notarial.

Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Pelo exposto, cada um dos arguidos incorreu na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256°, n° 1, al. b) e n° 3 do Código Penal.

(…)

Os arguidos B... e A... requereram a abertura da instrução.

O Mmº JIC, após ter declarado aberta a instrução proferiu despacho com o seguinte teor:

(…)

1. O Ministério Público deduziu acusação submetendo a julgamento os requerentes da instrução, C..., D... e E... acusando, cada um deles, da prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.256.º n.º 1 al.b) e 3 do Código Penal, ao terem declarado perante notário público e em escritura de justificação notarial de domínio e posse, de 5 de Janeiro de 2005, que os requerentes da instrução eram legítimos proprietários do prédio rústico, composto de terra de pinhal, cinco mil e quarenta metros quadrados, sito no …. .

“(…) que o citado prédio na matriz encontra-se em nome do referido titular inscrito” e “que os citados … , por volta do ano mil novecentos e oitenta venderam verbalmente o citado prédio aos ora justificantes”.

“(…) que eles justificantes possuem o indicado prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de Caparica, lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação e defesa, nomeadamente usufruindo dos seus rendimentos, cultivando e recolhendo os respectivos frutos, pagando os respectivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o dito prédio por usucapião, título que invocam para estabelecer o novo trato sucessivo”.

O que, na opinião das assistentes (fls.64), é falso.

2. Cumpre antes do mais tecer algumas considerações sobre o objecto do processo – que é delimitado pela acusação e pelo teor dos dois requerimentos de instrução – da questão prévia que a mesma logo nos suscita, e que seguidamente iremos expor, pois que, na verdade, constitui omissão de pronúncia a ausência de posicionamento pelo tribunal em relação a questão que a lei imponha ou tudo aconselhe que tome para bem da decisão do processo.

É o caso dos autos. E a questão a conhecer enquadra-se na necessidade de suspensão da decisão a proferir por este tribunal no domínio da jurisdição penal sobre uma questão que considera prejudicial não penal (cível), nos termos regulados pelo art.7.º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da suficiência da acção penal.

Dispõe o n.º 1 daquele preceito legal que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

Por sua vez estabelece o n.º 2, que quando para conhecer da existência de um crime, for necessário julgar uma questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

A regra é a de que a questão prejudicial colocada é resolvida no processo penal e que só excepcionalmente, quando o juiz assim o entenda, é que tal questão é devolvida para sua resolução ao tribunal competente (n.º 3).

A suspensão do processo penal para efeitos de conhecimento de questão prejudicial só pode ser requerida depois da acusação ou do requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, mas pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal (art.7.º n.º 3 do CPP) – sublinhado nosso.

Verifica-se assim que a questão prejudicial é a questão jurídica concreta que, embora autónoma quanto ao seu objecto relativamente à questão principal do processo em que surge, pode por isso ser objecto próprio de um outro processo, se revela como questão condicionante do conhecimento e decisão da questão principal (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 114). A questão prejudicial funciona como pressuposto lógico substantivo da decisão da questão prejudicada.

São então características da questão prejudicial, a antecedência lógico-jurídica, a autonomia e a sua necessidade relativamente à decisão da questão principal (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., 115).

Revertendo ao caso em concreto, à acusação pública e ao teor dos requerimentos de abertura de instrução que pugnam pela veracidade das declarações prestadas, é manifesto que a prova a produzir não se basta com prova documental que nos permita de imediato (e sem necessidade de suspender o processo) emitir decisão, de pronúncia ou de não pronúncia, sobre os termos da acusação.

O que subjaz em termos mediatos neste processo é a natureza controvertida da propriedade do imóvel justificado pelos réus, no confronto com a posição das aqui assistentes, e em termos imediatos a prática por parte dos arguidos do crime de falsidade de documento de que vêm incursos.

Pelo que a questão prévia a elucidar é de natureza cível e não há indicação nos autos de que tenha sido instaurada qualquer acção declarativa com vista à declaração da propriedade sobre o referido imóvel.

3. A existência de uma acção cível prévia em que se discuta a propriedade do imóvel objecto da escritura de justificação notarial constitui fundamento suficiente para se considerar da existência de causa prejudicial cível e assim suspender este processo até que ali seja tomada decisão sobre a propriedade do imóvel em conflito?

Cremos que a resposta é positiva.

Com efeito, é necessário que a propriedade esteja definida em termos de se conhecer o seu verdadeiro proprietário, para a solução penal a dar a este caso, no caso do crime em apreço, porque a prova documental (certidões da escritura de justificação notarial de compra e venda do imóvel e das descrições registais) não é, por si, bastante, e as normas processuais do processo penal não são aptas àquela indagação.

E isto, muito embora estejam em causa (em termos imediatos) as declarações que os arguidos prestaram perante notário e que passaram por essa via a integrar um documento público - escritura de justificação, porque para aquilatar verdadeiramente dos pressupostos da incriminação – mesmo que indiciários qualificados, como é o caso – há que aquilatar do direito de propriedade do imóvel.

Vemos também que o Código Notarial, em vigor à data, no seu artigo 106.º, e, a que, no caso foi dado cumprimento, os outorgantes da escritura de justificação serão advertidos de que se prestarem ou confirmarem declarações falsas incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações. Saliente-se que a remissão é feita em relação à punição, funcionando o artigo 106 como preceito incriminador integrando o respectivo tipo legal de crime e não para a sua qualificação jurídica. Mas isso é matéria jurídica a atender posteriormente.

Por outro lado, como tem sido amplamente entendido, a justificação notarial é um expediente técnico simplificado posto pela lei à disposição dos interessados para efeito de dar real/jurídica consistência prática ao princípio do trato sucessivo (artigos 34.º e 116.º do Código do Registo Predial). Uma forma especial de titular direitos sobre imóveis, para efeito de descrição na Conservatória do Registo Predial, baseada em declarações dos próprios interessados, embora confirmadas por três declarantes. Mas não constitui um acto translativo, antes pressupondo, pelo menos no caso de invocação do instituto de aquisição por usucapião, uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com base naquela escritura.

Isto porque, citando Oliveira Ascensão (Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, pág. 43 a 46), o instituto da usucapião é que constitui fundamento primário dos direitos reais no ordenamento jurídico, porque a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, com função essencialmente declarativas, mas na usucapião.

O facto comprovado pelo registo da escritura de justificação é impugnável, nos termos gerais do art.8.º nº 1 do Código de Registo Predial, pelo que nessas circunstâncias deve ser pedido o cancelamento do registo com a impugnação do facto justificado e de todos os outros que lhe seguiram por força de qualquer outra transmissão subsequente.

Não é ainda despiciendo aludir ao facto de que a decisão a proferir neste processo, para o bem e para o mal, fará caso julgado fora dele e entre os seus intervenientes, e que as regras processuais penais não estão orientadas para a discussão de questões civis com claro reflexo ao nível do principio do indefeso, igualdade de armas e de acesso aos tribunais que decorrem dos artigos 13.º, 20.º e 32.º da Constituição da República, e artigo 6.º n.º 1 da Convenção dos Direitos do Homem, em relação a um processo justo e equitativo [(neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 1.º ed., em anotação ao art.7.º (13)]

4. Posto isto, é mister concluir que a suspensão da instância se impõe nestes autos (art.7.º n.º 3 do CPP) pelas razões aludidas, até que seja conhecida decisão final em instância cível suscitada pelas assistentes (aí autoras, atenta a sua reputada qualidade de herdeiras dos antepossuidores, contra os réus, aqui arguidos).

Nos termos do art. 7.º n.º 4 do CPP suspendo o presente processo pelo prazo de 18 meses, sendo que as assistentes deverão documentar os autos no prazo de 1 mês que instauraram a competente acção cível, sob cominação do mencionado normativo.

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos os arguidos estão acusados pelo Ministério Público da prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, nº 1, alínea b) e nº 3 do Código Penal.

2. Os factos que lhes são imputados no despacho de acusação reportam-se, em suma, às declarações que fizeram contar na escritura pública outorgada em 5 de Janeiro de 2005.

3. Conforme se pode extrair da análise de todo o processo e do despacho de acusação deduzido pelo Ministério Público, a prova dos factos imputados aos arguidos assenta não só na prova documental já carreada para os autos, mas também na prova pessoal indicada pelo Ministério Público no libelo acusatório, assente quer nas declarações a prestar pelas assistentes, quer nos depoimentos das testemunhas indicadas.

4. Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 7.° do Código de Processo Penal é legalmente admissível a devolução, do juiz criminal, a tribunal de outra natureza o conhecimento da questão não penal, prejudicial em relação à questão criminal a resolver.

5. No caso vertente, atentando nos factos que são imputados aos arguidos, entendemos que a prova dos mesmos se faz quer através da prova documental já carreada para os autos, quer através da prova pessoal a produzir, assente quer nas declarações a prestar pelas assistentes, quer nos depoimentos das testemunhas indicadas pelo Ministério Público no despacho de acusação.

6. O que se pretende demonstrar nestes autos é que os arguidos, ao contrário do que declararam, não exerceram a posse do prédio há mais de vinte anos, que não praticaram actos de fruição, conservação ou defesa, que não usufruíram dos seus rendimentos, que não o cultivaram, que não recolheram os respectivos frutos, que não pagaram os impostos devidos e que tal prédio não chegou à sua posse através de venda verbal.

7. A decisão que vier a ser proferida na acção cível a que se alude na decisão recorrida não se reveste de manifesto interesse para o preenchimento dos elementos da tipicidade objectiva e subjectiva do crime de falsificação de documento.

8. Sintomático disso mesmo é o facto de, volvidos seis anos desde a outorga da escritura ora em apreço, nem os arguidos, nem as assistentes terem instaurado a acção cível pretendida na decisão recorrida.

9. A questão que se discutirá na referida acção – se vier a ser proposta - não é, manifestamente, uma questão necessária, no sentido de a sua resolução ser essencial para o apuramento de um elemento constitutivo do crime de falsificação de documento.

10. A decisão recorrida violou o disposto no artigo 7.°, n.O s 1 a 4 do Código de Processo Penal, dado que determinou, sem fundamento fáctico, nem jurídico, a suspensão do presente processo, a fim de se decidir uma acção cível que ainda nem sequer foi instaurada (e que volvidos seis anos desde a outorga da escritura pública de que se cuida nos autos ninguém entendeu ser necessária), cujo resultado (definição do direito de propriedade do prédio em questão) não é essencial para se decidir se os arguidos praticaram o crime que lhes é imputado.

11. Nessa conformidade, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.

            Os assistentes interpuseram também recurso subscrevendo integralmente a motivação e conclusões apresentadas pelo M.P., demonstrando terem intentado acção declarativa de condenação contra A... e mulher, B... e …, Ldª, em pedem que sejam declaradas únicas donas e legítimas proprietárias do prédio a que se reporta a escritura de justificação, condenando-se os RR. a reconhecerem esse facto, pedindo ainda que seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação e cancelados os registos e inscrições posteriores.

            O M.P. respondeu nos termos constantes de fls. 617 e ss., renovando o alegado no recurso por si interposto.

            Este último recurso, admitido em primeira instância, foi rejeitado por extemporâneo em sede de exame preliminar neste Tribunal da Relação.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância e pronunciando-se pelo provimento dos recursos.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Aferindo-se o âmbito dos recursos pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, a única questão a decidir no caso vertente é a de saber se o prosseguimento dos presentes autos de processo crime por prestação de falsas declarações pressupõe a decisão de questão prejudicial, consistente na determinação da titularidade do prédio a que se reporta a justificação notarial em que os arguidos intervieram.

                                                           *          *          *         

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Como é sabido, vigora no ordenamento jurídico português o princípio da suficiência do processo penal, assente no pressuposto da essencialidade da imposição de apertados limites à possibilidade de suspensão do processo penal para decisão de questões susceptíveis de autónoma apreciação judicial, de modo a preservar outros dois princípios essenciais que com ele coexistem, a saber, os da concentração processual e da continuidade do processo penal [1], bem como o princípio constitucional da realização do julgamento penal no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (parte final do nº 2 do art. 32º da C.R.P.).

Ciente de que a ampla aceitação da suspensão com vista à autónoma decisão de questões conexas mas autónomas, a admitir-se, acabaria por se traduzir num obstáculo de peso ao normal andamento do processo penal, o legislador, sob a epígrafe «suficiência do processo penal», consagrou no art. 7º do Código de Processo Penal o seguinte:

1 - O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

            2 - Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

3 - A suspensão pode ser requerida, após a acusação ou o requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, ou ser ordenada oficiosamente pelo tribunal. A suspensão não pode, porém, prejudicar a realização de diligências urgentes de prova.

4 - O tribunal marca o prazo da suspensão, que pode ser prorrogado até um ano se a demora na decisão não for imputável ao assistente ou ao arguido. O Ministério Público pode sempre intervir no processo não penal para promover o seu rápido andamento e informar o tribunal penal. Esgotado o prazo sem que a questão prejudicial tenha sido resolvida, ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão é decidida no processo penal.

            Os termos da formulação legal revelam que em matéria de questões prejudiciais em processo penal o legislador optou por um regime de discricionariedade vinculada. É esse o sentido da norma do nº 2 do art. 7º, quando dispõe que “(…) pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”. Ou seja, tendencialmente, todas as questões suscitadas que interessem à decisão da causa deverão ser resolvidas no processo penal (nº 1). Contudo, se a verificação da existência de um crime exigir o julgamento de questão não penal (por exemplo, questão de natureza civil cuja verificação seja essencial ao preenchimento do tipo legal de crime)[2] e se essa questão não puder ser convenientemente resolvida no processo penal (por exemplo, pela necessidade de observar um formalismo dificilmente compaginável com o andamento do processo penal), o tribunal poderá (a título excepcional) suspender o processo penal para que a questão seja decidida no foro próprio (nº 2); e ainda assim, se a questão prejudicial não tiver sido resolvida no prazo assinalado para o efeito ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão será decidida no processo penal (nº 4).

            Discricionariedade vinculada, dissemos, porque de todo o modo, ainda que a lei conceda ao julgador uma razoável margem de manobra («pode o tribunal suspender»), aponta um critério legal que vincula esse poder discricionário, cumulativamente assente na “necessidade” e na “conveniência”:

            - A “necessidade” reporta-se aos elementos do tipo legal de crime (“Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário …”) e pressupõe a indispensabilidade de conhecimento da questão dita prejudicial em termos tais que a questão penal não poderá sequer ser decidida sem a prévia decisão da questão prejudicial[3];

            - A “conveniência” deverá resultar de razões de natureza subjectiva ou processual, como seja a decisão por um tribunal de competência específica ou a utilização de uma determinada tramitação ou forma processual dificilmente compatível com a prevista para o processo penal.

            Para além destes pressupostos, expressamente previstos no art. 7º, nº 2, do CPP, a devolução de questão prejudicial para tribunal não penal exige ainda a sua autonomia, e a sua anterioridade relativamente à questão prejudicada, isto é, a questão prejudicial deve poder ser tratada como questão juridicamente autónoma, susceptível de constituir objecto de um processo específico e deve ser pré-existente relativamente ao evento hipoteticamente consubstanciador da responsabilidade criminal (pré-existente do ponto de vista fáctico; a natureza prévia do ponto de vista jurídico, aquilo a que a doutrina chama a antecedência lógico-jurídica, está abrangida na necessidade do conhecimento da questão prévia). Tratando-se de facto contemporâneo ou posterior desse evento, mas com relevo para a possibilidade de responsabilização criminal ou de prossecução processual, deverá ser decidido no processo penal.

            Vejamos então, à luz do enquadramento exposto, os contornos do caso vertente:

A questão que o tribunal a quo relegou para conhecimento em acção cível a intentar para o efeito foi, tanto quanto resulta do despacho recorrido, a da determinação da propriedade do bem imóvel a que se reporta a justificação notarial em que os arguidos prestaram declarações, elegendo assim como questão prejudicial a da titularidade daquele direito. Contudo, as premissas em que assenta o referido despacho não são correctas, como se verá:

Desde logo, a verificação do crime de prestação de falsas declarações não pressupõe a prévia determinação da propriedade do imóvel. Em abstracto, até se poderia verificar uma consolidação do domínio na titularidade dos justificantes e subsistir, ainda assim, uma evidência de prestação de declarações falsas, não sendo a verificação do crime afastada pela comprovação da titularidade do direito de propriedade. Se é certo que a escritura de justificação constitui documento autêntico (art. 363º, nº 3, do Código Civil e 35º, nº 2, do Código do Notariado), fazendo prova plena dos factos atestados pelo oficial público (notário) que o lavrou com base na sua percepção, não assegura, no entanto, a veracidade das declarações prestadas perante ele. A força probatória plena do documento em questão restringe-se àquilo que foi percepcionado pelo notário, ou seja, aos factos por ele verificados e às declarações perante ele prestadas, não já à veracidade do conteúdo dessas declarações.

Por outro lado, o despacho recorrido parece denotar alguma confusão relativamente à natureza e finalidade da acção a propor. Na verdade, a fls. 524 lê-se que “O facto comprovado pelo registo da escritura de justificação é impugnável, nos termos gerais do art. 8º, nº 1, do Código de Registo Predial, pelo que nessas circunstâncias deve ser pedido o cancelamento do registo com a impugnação do facto justificado e de todos os outros que lhe seguiram por força de qualquer transmissão subsequente”. Pode ler-se, no entanto, no primeiro parágrafo de fls. 523, o seguinte: “Pelo que a questão prévia a elucidar é de natureza cível e não há indicação nos autos de que tenha sido instaurada qualquer acção declarativa com vista à declaração da propriedade sobre o referido imóvel”. Dir-se-ia, pois, que se entendeu dever ser intentada acção declarativa visando o reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos assistentes. Contudo, a inscrição predial fundada em escritura de justificação notarial pode ser impugnada a todo o tempo pelo titular com registo anterior do direito de propriedade através de acção de impugnação da escritura de justificação. Essa acção tem natureza de acção de declaração negativa e nela os respectivos autores nem sequer terão que provar o seu direito de propriedade (ainda que estejam obrigados a pedir o cancelamento da inscrição a favor dos réus para obter a finalidade útil visada pela acção). É o que resulta do Acórdão do STJ nº 1/2008 (uniformização de jurisprudência), publicado no D.R. nº 63, de 31/03/2008, que fixou a seguinte jurisprudência: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial” [4].

Recaindo sobre o justificante o ónus de alegar e provar a titularidade do direito impugnado e não tendo os ora assistentes que demonstrar o seu direito, mas apenas que negar a existência do direito invocado pelos arguidos, subsistiria uma larga probabilidade de a questão da propriedade nem sequer ser discutida. Bastaria que os réus na acção a propor não a contestassem ou, contestando-a, não lograssem a prova do direito que justificaram, o que implicaria em qualquer dos casos o cancelamento do registo do prédio a seu favor, finalidade visada pela acção de impugnação de justificação e que não se vê que possa revestir qualquer utilidade para a decisão da questão penal.

De resto, nem mesmo o facto de o prédio ter sido entretanto vendido a terceiros contende com a adequação dessa acção, já que se tiverem sido invocados na justificação notarial factos que na verdade não se verificaram, a invocação da usucapião será ineficaz por inexistência de modo legítimo de adquirir em abstracto o direito real, ou melhor dizendo, por inexistência de facto aquisitivo. Consequentemente, será inexistente o direito justificado e ulteriormente registado com base nessa justificação, donde se segue que se o verdadeiro titular impugnar o facto justificado e requerer o cancelamento do registo, o terceiro adquirente nem sequer beneficiará da tutela decorrente do art. 291º do Código Civil, que abrange apenas os casos de nulidade e de anulabilidade, não já os de inexistência.

É caso para dizer que o despacho recorrido de alguma forma inverte as prioridades impostas pelo caso. Isto é, quando muito a decisão a proferir no processo criminal poderá interessar ao julgamento da acção cível.

Ou seja, para os efeitos que agora relevam a questão oficiosamente suscitada no despacho recorrido não exige decisão prévia relativamente à apreciação da relevância criminal da actuação dos arguidos, não contende com a respectiva responsabilidade penal e logo, não tem natureza prejudicial relativamente ao processo criminal, pelo que este processo não deverá ser suspenso para decisão daquela questão.

                                                           *          *          *

            III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido.

Sem tributação.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)

Maria Pilar de Oliveira


[1] - Para maior desenvolvimento, cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, págs. 163/183.
[2] - Tratando-se de questão prejudicial de natureza penal deverá ser decidida no processo em que se suscita a prejudicialidade, salvo se já tiver sido objecto de processo autónomo que se encontre ainda em curso ou se daí resultar inadmissível violação do princípio do juiz natural, com afrontamento do nº 9 do art. 32º da C.R.P..
[3] - Segundo Costa Pimenta, in “Código de Processo Penal Anotado”, 2ª Ed., anot. ao art. 7º, o âmbito do critério da necessidade, delimitado pelos elementos constitutivos da infracção, abrange as causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, ficando de fora todas as circunstâncias comuns ou modificativas, agravantes ou atenuantes, gerais ou especiais, relativamente às quais vigora o princípio da suficiência absoluta.
[4] - Veja-se, no entanto, em sentido diverso, o voto de vencido lavrado pelo Exmº Senhor Juiz Conselheiro Salvador da Costa.