Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/12.1GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
Data do Acordão: 04/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153.º E 155.º, DO CP
Sumário: O crime de ameaça agravada ou qualificada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 do C. Penal tem natureza pública.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 
I. RELATÓRIO


No processo nº 222/12.1GCVIS.C1 – que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu – o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, das arguidas A... e B..., imputando à primeira, a prática, em autoria material e concurso real, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal e de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) do mesmo código e à segunda, a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

A assistente C... deduziu acusação particular contra a arguida A..., imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º do C. Penal.

Ainda antes de o Ministério Público se ter pronunciado sobre a dedução da acusação particular, a assistente C... e as arguidas A... e B..., a fls. 179, declararam desistir das respectivas queixas e não se oporem a tais desistências.

A Digna Magistrada do Ministério Público, por despacho de fls. 180 a 181 verso, homologou as desistências das queixas, relativamente aos acusados crimes de ofensa à integridade física simples [acusação pública] e difamação [acusação particular], determinando o arquivamento dos autos quanto a tais crimes, e não homologou a desistência da queixa relativamente ao acusado crime de ameaça [acusação pública], determinando o prosseguimento dos autos para julgamento do mesmo.

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Distribuídos os autos ao 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, a Mma. Juíza proferiu o seguinte despacho:
“ (…).
Registe e Autue como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
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 O Tribunal é absolutamente competente.
O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo.
Não há nulidades insanáveis e não foram arguidas quaisquer outras.
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Compulsados os autos verifica-se que a ofendida C... e a ofendida/arguida B..., a fls. 179, declararam desistir das respectivas queixas apresentadas, sendo que as arguidas declararam não se opor a tais desistências.
Por despacho proferido a fls. 180 e 181 foram homologadas as desistências de queixa relativamente aos crimes de ofensa à integridade física simples e de difamação, tendo sido ordenado o prosseguimento dos autos relativamente ao crime de ameaça agravada, por se ter entendido tratar-se de um crime de natureza pública.
Permitimo-nos discordar desta posição.
Com efeito, no que concerne ao crime de ameaça agravada imputado à arguida A..., entendemos que o mesmo reveste a natureza semi-pública uma vez é nosso parecer que o artigo 155º do Código Penal constitui em relação ao crime de ameaça contido no artigo 153º do Código Penal uma mera agravação da moldura penal do tipo base ali previsto e não um tipo qualificado. E, a ser assim, entendemos ser admissível e relevante a desistência de queixa apresentada.
Neste sentido vide o artigo escrito por Pedro Daniel dos Anjos Frias, publicado na Revista "Julgar", Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Janeiro-Abril de 2010 e também Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, pág. 556-560, na sua edição mais recente.
Nestes termos, atenta a qualidade dos intervenientes, a disponibilidade do direito e a natureza semi-pública do crime em questão (crimes de ameaça agravada – artigos 143º n.º 1 e 153º n.º 1 e 155º n.º 1 a) do Código Penal) e ao abrigo do disposto nos artigos 113º, 116º n.º 2, 143º n.º 2 e 153º n.º 2 do Código Penal e 48º, 49º e 51º todos do Código de Processo Penal, julgo válida e homologo a desistência de queixa e, consequentemente, julgo extinto o procedimento criminal em causa nos autos.
Sem custas.
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Notifique, sendo no que diz respeito ao Ministério Público o Magistrado titular do inquérito.
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Oportunamente, proceda ao arquivamento dos autos.
(…)”.

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            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            Ao contrário do que sucedia antes da alteração legislativa de 2007, o crime de ameaça agravado é agora de natureza pública.
Foi publicado em 20 de Março de 2013 um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7/2013 de fixação de Jurisprudência, no sentido de que o crime de ameaça da prática de qualquer um dos crimes previstos no nº 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do nº 1 do artº 155º do mesmo diploma legal.
Assim, sendo este um crime de natureza pública a desistência de queixa apresentada nos autos é irrelevante quanto a ele e portanto inoperante.
Face à sua ineficácia, a desistência de queixa, não podia ter sido homologada pela Mma Juiz e em consequência ter-se declarado extinto o procedimento criminal contra a arguida por este crime.
                Decidindo da forma como decidiu, a Mma Juiz "a quo" fez incorrecta interpretação da Lei, violando o disposto nos artº 48º do Código de Processo Penal, nos artº 116º, artº 153º e artº 155º, nº 1, a) do Código Penal.
Pelo exposto, deve o despacho recorrido, no referido segmento, ser revogado, substituindo-se por outro que, julgando ineficaz a desistência de queixa apresentada, determine o recebimento da acusação e que os autos prossigam os seus termos, com a realização da audiência de julgamento atinente a tal factualidade.
Assim, farão Vossas Excelências a Costumada Justiça!
            (…)”.

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            Não houve resposta ao recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo aos fundamentos da motivação do Ministério Público, afirmando a clara natureza pública do crime em questão, e concluiu pelo provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
 
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada recorrente, a única questão a decidir é a de saber qual a natureza, pública ou semi-pública, do crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) do C. Penal.

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            Da a natureza, pública ou semi-pública, do crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) do C. Penal

            1. Na redacção original do C. Penal o crime de ameaças [assim era, então, designado na respectiva epígrafe] encontrava-se previsto no art. 155º.
No nº 1 tínhamos a ameaça simplesQuem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou com multa até 100 dias
No nº 2, a ameaça agravada ou qualificadaNo caso de se tratar de ameaça com a prática de um crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.
E no nº 3, a natureza semi-pública da ameaça, em qualquer das suas modalidades – O procedimento criminal depende de queixa.

Com a Revisão de 1995 [operada pelo Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março] o crime passou a estar previsto no art. 153º do C. Penal e a denominar-se ameaça. O tipo foi restringido à ameaça com a prática de determinados crimes [contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor] não bastando agora a ameaça com a prática de qualquer crime, mas manteve-se a ameaça simples (nº 1) e a ameaça agravada ou qualificada (nº 2), sofrendo as duas um ligeiro agravamento da moldura penal no que respeita à pena de multa, e mantendo-se a natureza semi-pública de ambas (nº 3).

Com a Revisão de 2007 [operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro] o crime de ameaça permaneceu no art. 153º do C. Penal, cuja redacção passou a ser a seguinte:
1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 – O procedimento criminal depende de queixa

Assim, no actual art. 153º encontra-se previsto o crime de ameaça simples, que manteve a natureza semi-pública. E nele deixou de estar prevista a ameaça agravada ou qualificada, que agora vamos encontrar no art. 155º do C. Penal que, sob a epígrafe, «Agravação», dispõe: 
1 – Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º.
2 – As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.   

Significará isto que a ameaça agravada ou qualificada, prevista no art. 155º do C. Penal – conjuntamente com a coacção agravada ou qualificada – passou a constituir um crime distinto e tendo deixado de comungar a natureza semi-pública? Cremos que sim.

2. Desde a versão originária do C. Penal e até à Revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça, simples e qualificada, sempre teve natureza de crime semi-público, e o crime de coacção, simples ou agravada, sempre teve, tendencialmente, natureza de crime público [tendencialmente porque, com a Revisão de 1995, o crime passou a ter natureza semi-pública quando o facto tivesse lugar entre pessoas ligadas pelo casamento, certos graus de parentesco, pela adopção ou por união de facto].
Certamente que o legislador de 2007 não ignorava a natureza dos crimes, ambos tutelares do mesmo bem jurídico, a liberdade de decisão e de acção – embora, bem entendido, sejam estruturalmente distintos e assumam diferentes graus de gravidade –, como também não ignorava que a técnica legislativa sempre seguida no C. Penal para definir a natureza dos crimes, sempre que há um crime simples e um crime qualificado ou agravado, tem sido, a) quando crime, simples e qualificado, se encontram descritos no mesmo artigo, colocar a menção «O procedimento criminal depende de queixa» logo a seguir à definição do crime base, do crime simples, e antes da definição do crime agravado ou qualificado, assim definindo a natureza semi-pública do primeiro e a natureza pública do segundo [como acontece com o abuso de confiança ou com a burla relativa a seguros, entre outros], b) quando o crime simples e o crime qualificado são descritos em artigos diferentes, só no preceito que define o crime base consta a referida menção, assim definindo a natureza semi-pública deste e a natureza publica do crime agravado [como acontece com a ofensa à integridade física, com o furto, com a burla, entre outros].

Por isso, a opção legislativa de ter feito constar do art. 153º do C. Penal, na redacção em vigor, o crime de ameaça simples, a quem manteve a natureza de crime semi-público, e de ter transportado o crime de ameaça agravado ou qualificado, para um outro preceito, o art. 155º do mesmo código, do qual não consta a menção «O procedimento criminal depende de queixa», juntando-o, para mais, a um crime, o de coacção agravada ou qualificada que, como dissemos, sempre teve, fosse na forma simples, fosse na forma agravada, a natureza, salvo a excepção referida, de crime público, tem o inequívoco sentido de ter sido intenção do legislador atribuir ao crime de ameaça agravada ou qualificada a natureza de crime público.
Neste sentido tem sido, aliás, com estas ou com outras mais esclarecidas razões, o entendimento seguramente maioritário das Relações (cfr. entre outros, Acs. da Relação de Coimbra de 26 de Junho de 2013, proc. nº 207/10.2GAPMS.C1, de 10 de Julho de 2013, proc. nº 187/11.7GBLSA.C1 e de 10 de Dezembro de 2013, proc. nº 183/09.4GFVIS.C1, da Relação de Lisboa de 13 de Outubro de 2010, proc. nº 36/09.6PBSRQ.L1, da Relação do Porto de 27 de Abril de 2011, proc. nº 53/09.6BGVNF.P1, da Relação de Évora de 15 de Maio de 2012, proc. nº 16/11.1GAMAC.E1 e da Relação de Guimarães de 15 de Novembro de 2010, proc. nº 343/09.8GBGMR.G1, todos in, www.dgsi.pt).  

É claro que não ignoramos as actuais dificuldades de harmonização entre a ameaça simples e a ameaça agravada ou qualificada e que levam, por exemplo, Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, pág. 557 a 560) a considerar que a actual alínea a) do nº 1 do art. 155º do C. Penal não tem praticamente campo de aplicação por as condutas a ela subsumíveis se traduzirem, simultaneamente, numa ameaça simples, o que torna a ameaça, ‘quanto à gravidade do crime objecto da ameaça’ portanto, a prevista na citada alínea a), um crime semi-público, enquanto a ameaça agravada em função das circunstâncias previstas nas alíneas b) a d) do nº 1 do art. 155º do C. Penal tem a natureza de crime público. Porém, não é isenta de crítica a afirmação de que a ameaça, ‘quanto à gravidade do crime objecto da ameaça’ é sempre crime semi-público.

Em todo o caso, o nosso mais Alto Tribunal, pelo Acórdão nº 7/2013 (DR, I, nº 56, de 20 de Março de 2013), fixou a seguinte jurisprudência:
A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal.

Resta assim concluir que o crime de ameaça agravada ou qualificada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 do C. Penal tem natureza pública.

3. A natureza pública do crime em questão determina a irrelevância da desistência da queixa apresentada pela respectiva ofendida que por isso, não poderia ter sido homologada como foi, nem declarado extinto o procedimento criminal.

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Impõe-se pois, com a procedência do recurso, a revogação do despacho recorrido.

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            III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que, não existindo qualquer outra razão impeditiva, receba a acusação pública na parte relativa ao crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) do C. Penal, e determine o prosseguimento dos autos.

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            Recurso sem tributação.
 
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Coimbra, 2 de Abril de 2014


 (Heitor Vasques Osório – Relator)

 (Fernando Chaves)