Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2846/18.4T8VIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO
VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE INFORMAÇÃO
Data do Acordão: 03/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 24 Nº1 E), 238 Nº1 G) CIRE
Sumário: I - A violação dos deveres de informação tida em vista pela alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º não compreende apenas a recusa de fornecimento de informações a pedido do administrador da insolvência, da assembleia de credores, da comissão de credores ou do tribunal. Ela abrange também os casos em que o devedor presta falsas informações, no exercício dos seus poderes processuais, designadamente no requerimento de apresentação à insolvência.

II – O dever imposto ao devedor, pela alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º do CIRE, de juntar com a petição em que pede a declaração de insolvência a relação de todos os bens e direitos de que seja titular é um dever de conteúdo informativo, cuja violação é susceptível de constituir causa de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra

J (…), residente em(…), n.º (…),  (...) do Concelho de  (...), apresentou-se à insolvência e no requerimento de apresentação à insolvência pediu a exoneração do passivo restante.

No requerimento de apresentação à insolvência e em declaração anexa a tal requerimento declarou que não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis.

Em 21 de Junho de 2018 foi proferida sentença a declará-lo em situação de insolvência.

Visto que, no relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE, o administrador judicial mencionou que obteve a informação de que num processo de execução instaurado contra o requerente fora penhorado ¼ de um prédio urbano destinado a habitação [prédio urbano sito em  (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 1304 da freguesia de  (...) e inscrito na matriz sob o artigo 692 da União das freguesias de  (...) e  (...)] e juntou o auto de apreensão desse bem para a massa insolvente, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo ordenou a notificação do insolvente para, querendo, se pronunciar sobre a eventual violação do devedor de informação e as consequências quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.

O requerente, notificado na pessoa do seu patrono, não disse nada.

Por decisão proferida em 11-11-2019, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Justificou a decisão dizendo:

1. Que devedor não relacionou, conforme estava obrigado, o bem que acabou por ser apreendido, tendo declarado na petição inicial, de forma expressa e sem qualquer justificação que não possuía quaisquer bens;

2. Que nos termos previstos no artigo 24.º, n.º 1, alínea e), o devedor estava obrigado a apresentar “relação de todos os bens e direitos de que [é] titular”;

3. Que estava em causa informação relevante “para simplificar a apreensão para a massa”;

4. Que a culpa devia ser apreciada pela diligência de “um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (art. 487.º, n.º 2, do Código Civil);

5. Que qualquer pessoa colocada na posição do insolvente, não podia deixar de ignorar que era proprietário, na proporção de 1/4, do bem que acabou por ser apreendido e que estava obrigado a relacioná-lo, o que levava a considerar que, ao omitir aquele direito e ao declarar que o seu património era “inexistente”, o insolvente actuou de forma dolosa, sendo certo que nada se podia valorar a seu favor já que não apresentou qualquer justificação para aquela omissão;

6. Que mesmo que se considerasse que o insolvente não actuou com dolo, era indiscutível que a sua actuação integrava, pelo menos, culpa grave, já que, tendo em conta as circunstâncias do caso, só uma pessoa especialmente descuidada e desatenta é que poderia incorrer na omissão em que incorreu o insolvente;

7. Que o pedido de exoneração do passivo restante era liminarmente indeferido quando o devedor, com dolo ou culpa grave, violava os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultem do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no decurso do processo de insolvência;

8. Que estava verificada a causa de indeferimento liminar prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 238.º.

O requerente não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho recorrido e se substituísse o mesmo por decisão a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Para o efeito alegou, em síntese:

1. Que o ponto n.º 13 da matéria de facto devia ser alterado no sentido de se fazer constar que: “o devedor apresentou-se à insolvência no dia 11 de Junho de 2018, representado por patrono oficioso”;

2. Que deviam ser aditados aos fundamentos da decisão as seguintes alegações de facto:

a) Que “o Insolvente foi notificado, sob pena de indeferimento liminar da petição inicial, a juntar aos autos a relação de credores, com indicação dos domicílios, datas de vencimento, natureza e garantias que beneficiam e eventual existência de relações especiais nos termos de artigo 49.º, para cumprimento dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a) e 27.º, n.º 1, alínea b), ambos do CIRE.”;

b) Que “o Insolvente, apresentou nova relação de credores, informando os autos que, em relação à credora S(…), o crédito encontra-se vencido desde 2015, de natureza comum, sem qualquer garantia”;

c) Que a “A Sr.ª Administradora de Insolvência deu conhecimento aos autos de que, em relação ao processo executivo, relacionado pelo Insolvente, encontrava-se penhorado, além do IRS respeitante ao ano de 2017, ¼ de um prédio urbano, descrito na Conservatório do Registo Predial de  (...) sob o n.º 1304, da freguesia de  (...), concelho de  (...) e inscrito na matriz sob o artigo 692.º da União de Freguesia de  (...) e  (...).”;

d) Que “Notificado o Insolvente para, querendo, se pronunciar sobre a, eventual violação do dever de informação e consequências quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, nada disse”;

e) Que “Em 06.11.2018, o insolvente juntou aos autos procuração a favor de mandatária.”

3. Que o tribunal violou a alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Não houve resposta ao recurso.

Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

A primeira é a de saber se devem ser introduzidas nos fundamentos da decisão as alterações de facto pretendidas pelo recorrente.

A segunda é a de saber se, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a decisão recorrida violou a alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.


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Considerando que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, iremos começar pela questão da ampliação da matéria de facto.

A ampliação da matéria de facto pressupõe:

1. Que a matéria em causa seja indispensável para a decisão da causa [parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC];

2. Que a matéria em causa constitua facto assente, resulte da prova produzida ou esteja provada por documento superveniente [n.º 1 do artigo 662.º do CPC].

Os factos que o recorrente quer ver incluídos nos fundamentos de facto da decisão correspondem a actos praticados no processo de insolvência, por ele, pelo Meritíssimo juiz do tribunal a quo, pela administradora da insolvência e pela secretaria.

 

Visto que tais factos podem ser tomados em consideração pelo juiz, ainda que não constem dos fundamentos de facto da sentença, não se aditam os mesmos aos fundamentos da decisão.


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos:

1. O crédito da sociedade S (…)S.A. está titulado por uma livrança subscrita pelo insolvente, datada de 2 de Março de 2005, com vencimento em 23 de Março de 2005, no montante de € 10.508,99.

2. O insolvente não liquidou qualquer montante relativo àquela livrança.

3. Em 18 de Janeiro de 2008 o insolvente contraiu casamento com M (…) que foi dissolvido por divórcio declarado por decisão de 18 de Julho de 2016.

4. P (…), nascido no dia 22 de Maio de 2009, está registado como filho do insolvente e de M (…).

5. No dia 10 de Janeiro de 2013, o insolvente e mulher, M (…)casados sob o regime da comunhão geral de bens (como primeiros outorgantes), M (…) (como segunda outorgante), E (…) e marido, C (…) (como terceiros outorgantes) e L (…) (como quarta outorgante), declararam perante Notário, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de partilha e doação que, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros, celebrada na mesma data, no dia 26 de Fevereiro de 2011, na freguesia de (…)(…) de (…)) faleceu A (…) no estado de viúvo de M (…), que o falecido deixou testamento, no qual deixou por conta da quota disponível ao seu neto, ora insolvente, o prédio identificado sob a verba número um, que lhe ficaram a suceder como únicos herdeiros quatro netos, por direito de representação, filhos de sua filha pré-falecida M (…), o primeiro, segunda, terceira e quarta outorgantes, e que procediam à partilha dos seguintes bens do falecido A (…): Verba um – Urbano, composto de casa de habitação com dois pavimentos, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de  (...), concelho de  (...), sob o n.º 1180, não descrito na Conservatória do Registo Predial; Verba dois – Rústico, composto de vinha e oliveiras, inscrito na matriz predial rústica da mencionada freguesia de  (...) sob o n.º 3467, não descrito na Conservatória do Registo Predial; Verba três – Rústico, composto de terra de vinha, terra de cultura com oliveiras, inscrito na matriz predial rústica da mencionada freguesia de  (...) sob o n.º 3469, descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 981; - Verba quatro – Dois quartos indivisos do rústico, composto de terra de pastagem, casa e eira, inscrito na matriz predial rústica da mencionada freguesia de  (...) sob o n.º 3466, descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 607.

6. Declararam ainda que atribuíam àqueles prédios o valor de vinte e sete mil seiscentos e setenta e cinco euros, que o insolvente e mulher tinham direito ao valor de treze mil setecentos e noventa e três euros e setenta e cinco cêntimos, que os prédios eram adjudicados ao insolvente e ex-mulher e que o quinhão das restantes outorgantes era preenchido em dinheiro, na importância de quatro mil setecentos e vinte e sete euros e oito cêntimos, para cada uma, que declararam já ter recebido.

7. De seguida o ora insolvente e a ex-mulher, na mesma escritura, declararam que doavam por conta da quota disponível a raiz daqueles prédios a seu filho, P (…), de três anos de idade, reservando para eles o direito de uso e habitação sobre todos os prédios.

8. Na sequência da celebração daquela escritura, o insolvente apresentou, nos autos de inventário n.º 260/11.1TBNLS, requerimento a referir que “no passado dia 10 de Janeiro do corrente ano, no Cartório Notarial de  (...), o cabeça de casal e as suas irmãs celebraram escritura de habilitação de herdeiros por óbito de seus avós aqui inventariados e ainda procederam à partilha extrajudicial de alguns bens imóveis (…) e porque as referidas verbas (1, 2, 3 e 26) já se encontram partilhadas, devem por tal facto as mesmas ser retiradas da relação de bens, por já não fazerem parte do acervo hereditário dos inventariados, prosseguindo os presentes autos para partilha dos demais”; juntou àquele requerimento cópia da referida escritura de partilha e doação.

9. Em 25 de Novembro de 2014, o ora insolvente e os demais interessados naqueles autos de inventário acordaram, além do mais, em adjudicar ao interessado J (…) os bens constantes das verbas 1 (prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 3467), pelo valor de €2.500,00, 2 (prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1180), pelo valor de €43.000,00, 3 (prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 607), pelo valor de €1.250,00 e 28 (prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 981), pelo valor de €300 e em fixar as tornas em cinco mil euros, as “quais serão pagas pelo interessado J(…), às interessadas (…)que não prescindem das mesmas”.

10.Por sentença proferida em 13 de Outubro de 2016, transitada em julgado em 21-11-2016, naqueles autos de inventário por óbito de M (…) e A (…), ocorridos em 04-01-1997 e 26-02-2011, respectivamente, que tiveram uma filha, falecida em 10-08-1992, no estado de casada com J (…), falecido em 23-07-2005, tendo deixado a suceder-lhe os seus filhos: J (…), M (…), , E (…) e L (…)foi homologado o mapa de partilha constante de fls. 602 a 606 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

11.Por decisão de 18 de Julho de 2016, proferida pela Conservatória do Registo Civil de(…), foi homologado o acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao filho do insolvente, nos termos do qual ficou a residir habitualmente com a mãe e o pai ficou obrigado a pagar mensalmente, a título de alimentos, a quantia de cem euros, actualizada automática e anualmente a partir de Janeiro de 2017, em função de taxa nunca inferior a dois por cento ou de acordo com o índice de inflação médio do ano anterior se superior a dois por cento, publicado pelo INE, abrangendo o índice dos preços a consumidor, acrescida ainda do pagamento de metade das despesas médicas e medicamentosas, na parte não comparticipada pelos serviços competentes, mediante a apresentação dos respectivos documentos comprovativos, sendo as despesas de educação e extracurriculares suportadas de forma equitativa pelos pais.

12.O requerente trabalha por conta de outrem, recebe o salário mensal ilíquido de € 700,00, acrescido de subsídio de alimentação.

13.O devedor apresentou-se à insolvência no dia 11 de Junho de 2018.

14.Na petição inicial de apresentação à insolvência o insolvente declarou que não tem outros rendimentos, que não tem património, tendo apresentado uma relação de bens onde consta que “não possui quaisquer bens móveis ou imóveis” e indicou os seguintes credores: 1. S (…), S.A. (crédito no valor de €17.382,61, proveniente de um crédito automóvel); 2 – “crédito referente a tornas por inventário extrajudicial por partilha de bens de herança sucessória a seus irmãos, já vencido: - M (…), no valor de 5.000,00€, E (…) no valor de 5.000,00€ e L (…), no valor de 5.000,00”.

15.No dia 7 de Novembro de 2018, a Sr.ª Administradora da Insolvência procedeu ao arrolamento de ¼ do prédio urbano, correspondente a casa de habitação, sita na Rua (…), n.º (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 1304, cuja aquisição foi registada a favor do insolvente pela apresentação 2168 de 30-09-2010, por partilha da herança aberta por óbito de J (…) e M (…)tendo sido registadas a declaração de insolvência sobre o direito à meação na comunhão conjugal dissolvida por divórcio pela apresentação 2168 de 30-09-2010.

16.Aquele direito foi penhorado em 13-07-2015, na execução instaurada pela credora S (…)S.A., para garantia da quantia exequenda de €10.574,86, pedida no processo n.º 36656/05.4YYLSB, do Tribunal da Comarca de Lisboa, Inst. Central, 1.ª Secção de Execução.

17.Além do direito referido no artigo 15.º não foi apreendido qualquer outro bem.

18.A Sr.ª administradora da Insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos junta em 4 de Setembro de 2018 ao apenso A, que não foi impugnada, cujo teor se dá por reproduzido.

19.Do assento de nascimento do insolvente não consta qualquer averbamento de que já beneficiou da exoneração do passivo restante.

20.O insolvente não tem antecedentes criminais.


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Descritos os factos, passemos à resolução da questão acima enunciada: saber se, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a decisão recorrida violou a alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

A sentença sob recurso indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE com fundamento no facto de o requerente ter declarado na petição inicial e num documento anexo a ela que não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis quando, na realidade, era titular de ¼ indiviso de um prédio urbano destinado a habitação [prédio urbano sito em  (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 1304 da freguesia de  (...) e inscrito na matriz sob o artigo 692 da União das freguesias de  (...) e  (...)].

O recorrente não põe em causa que declarou no requerimento de apresentação à insolvência e num documento anexo a ele que não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis quando, na realidade, era titular de ¼ indiviso do prédio acima mencionado.

Sustenta, no entanto, que a situação não ficava sob a alçada da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º com base na seguinte linha argumentativa:

1. Que havia elementos no processo que faziam suspeitar que a não relacionação do ¼ indiviso do prédio urbano ficou a dever-se a uma menor diligência por parte do advogado que representava o ora recorrente quando ele se apresentou à insolvência e pediu a exoneração do passivo restante;

2. Que só teve conhecimento do despacho recorrido da notificação do patrono para se pronunciar sobre a eventual violação do dever de informação;

3. Que a violação dos deveres de informação só constitui motivo de indeferimento do pedido de indeferimento quando tiver sido feita com dolo ou negligência grave e tal só se se dá quando a violação do dever de informação tiver sido levada a cabo com vista à obtenção de algum benefício para si ou em claro prejuízo para os credores, o que não sucedeu no caso;

4. Que não via em que factos é que o tribunal se baseou para concluir pela actuação dolosa ou com culpa grave;

5. Que o único bem do requerente encontrava-se penhorado à ordem de um processo de execução, que havia sido relacionado nos termos do artigo 24.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) do CIRE, e que não adiantava nada ao requerente declarar que não possuía quaisquer bens se a administradora da insolvência através de pesquisa junto da Conservatória do Registo Predial ou contactando o agente de execução alcançaria a informação em contrário;
6. Que depois de que proferida a sentença de declaração de insolvência, o insolvente entregou os alimentos a que se refere o artigo 24.º e prestou todas as informações solicitadas pela administradora da insolvência e que depois de ter constituído mandatário passou a cumprir o dever de informações a que se encontrava obrigado, prestando todas as informações/documentos relativos á sua situação económica, financeira, pessoal e profissional à administradora da insolvência.

Pelas razões a seguir expostas, o recurso é de julgar improcedente.

Em primeiro lugar não procede contra a sentença a alegação de que havia elementos no processo que faziam suspeitar que a não relacionação do ¼ indiviso do prédio urbano ficou a dever-se a uma menor diligência por parte do advogado que representava o ora recorrente quando ele se apresentou à insolvência e pediu a exoneração do passivo restante.

E não procede, desde logo, porque não há quaisquer elementos no processo que apontem no sentido de que a declaração feita no requerimento de apresentação à insolvência e no documento anexo de que o ora recorrente não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis se tenha ficado a dever a lapso ou à falta de diligência do advogado que representava o ora recorrente quando se apresentou à insolvência.

E não procede ainda porque resulta do artigo 46.º do CPC – aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE – que as afirmações de factos feitas pelo mandatário nos articulados vinculam a parte, salvo se forem rectificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente e, no caso, o ora recorrente não rectificou nem retirou a afirmação, apesar de ter sido alertado, através de notificação na pessoa do patrono, para a divergência entre o que havia sido declarado sobre a inexistência de bens e o facto de o administrador da insolvência ter feito consultar no relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE que o ora recorrente era titular de ¼ indiviso do prédio urbano acima indicado.

Contra esta conclusão não vale a alegação do ora recorrente de que só teve conhecimento da notificação ao patrono para se pronunciar sobre a informação prestada pelo administrador da insolvência quando foi notificado do despacho recorrido. Com efeito, além de não haver quaisquer elementos no processo que apontem neste sentido, a notificação do despacho apenas ao patrono do ora recorrente não enferma de qualquer irregularidade, pois, nos termos do n.º 1 do artigo 247.º, do CPC [aplicável às notificações no processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE], as notificações às partes em processo pendente são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.

Segue-se do exposto que não tem amparo nem os factos nem na lei a tentativa de o ora recorrente se dissociar da declaração feita em folha anexo ao requerimento inicial de que ele não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis.

Em segundo lugar, o recorrente sustenta a não aplicação ao caso da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º com a seguinte alegação:

1. Que a violação dos deveres de informação só constitui motivo de indeferimento do pedido de indeferimento quando tiver sido feita com dolo ou negligência grave e tal só se se dá quando a violação do dever de informação tiver sido levada a cabo vista à obtenção de algum benefício para si ou em claro prejuízo para os credores, o que não sucedeu no caso;

2. Que não via em que factos é que o tribunal se baseou para concluir pela actuação dolosa ou com culpa grave;

3. Que o único bem do requerente encontrava-se penhorado à ordem de um processo de execução, que havia sido relacionado nos termos do artigo 24.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) do CIRE, e que não adiantava nada ao requerente declarar que não possuía quaisquer bens se a administradora da insolvência através de pesquisa junto da Conservatória do Registo Predial ou contactando o agente de execução alcançaria a informação em contrário.

A alegação do recorrente suscita várias questões, concretamente:

1. Saber se o tribunal a quo tinha base de facto para afirmar a violação do dever de informação com dolo ou culpa grave;

2. Saber se a violação do dever de informação só revestirá a forma de dolo ou culpa grave quando o devedor tenha em vista a obtenção de algum benefício para si ou um claro prejuízo para os credores;

3. Saber se a violação do dever de informação deixa de ter relevância como motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo se a informação em causa era de obtenção fácil pelo administrador ou por qualquer pessoa.

A resposta a estas questões remete-nos para a interpretação da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE. É o que irá fazer-se de seguida.

Quando o insolvente for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração do pagamento dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (artigo 235.º do CIRE). É a chamada exoneração do passivo restante.

A exoneração depende de pedido do devedor nesse sentido (n.º 1 do artigo 236.º do CIRE).

Como resulta do preâmbulo da Lei n.º 53/2004 de 18 de Março, que aprovou o CIRE, o benefício vale apenas para o devedor de boa fé que incorreu em situação de insolvência. Excluem a boa fé do devedor as situações previstas no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Para o caso interessa-nos a hipótese da alínea g), que exclui da exoneração do passivo restante o devedor que, “com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código no decurso do processo de insolvência”.

Neste recurso está em questão o segmento da norma que se refere à violação dos deveres de informação que resultam para o devedor do CIRE no decurso do processo de insolvência.

Em matéria de deveres de informação, a alínea a) do artigo 83.º do CIRE contém a seguinte prescrição: “o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal”.

Importa, notar, no entanto, que a violação tida em vista pela alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º não compreende apenas a recusa de fornecimento de informações a pedido do administrador da insolvência, da assembleia de credores, da comissão de credores ou do tribunal. Ela abrange também os casos em que o devedor presta falsas informações, no exercício dos seus poderes processuais, designadamente no requerimento de apresentação à insolvência. Na verdade se a exoneração do passivo restante é um benefício que deve ser concedido ao devedor que tenha um comportamento lícito, honesto, transparente e de boa-fé [Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, página 170], “um comportamento exemplar, na fase anterior e concomitante ao pedido de declaração de insolvência” [Pré-Condições para a exoneração do passivo restante, Adelaide Menezes Leitão, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Setembro de 2011, página 66], seria contrária a esta razão de ser conceder a exoneração do passivo ao devedor que alterou conscientemente na petição inicial a verdade em relação a factos importantes.

É com este sentido que a norma tem sido interpretada em várias decisões judiciais. A título de exemplo citam-se as seguintes decisões:
1. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-09-2010, proferido no processo n.º 995/09.9TJPRT, publicado em www.dgsi.pt. Neste acórdão considerou-se que a requerente violou os seus deveres de informação por ter alegado na petição a inexistência de bens, o que não correspondia à verdade;
2. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 2-2-2014, no processo n.º 757/13.9TJLSB, publicado em www.dgsi.pt. Neste acórdão considerou-se que a requerente violou os seus deveres de informação por não ter indicado, na petição, todos os credores;
3. O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 11 de Junho de 2015, no processo n.º 3546/11.TBGMR, publicado em www.dgsi.pt. Neste acórdão considerou-se que a devedora incorreu na previsão da alínea g), do n.º 1 do artigo 238 por ter omitido na petição a doação de um imóvel a um familiar, negócio que estava a ser impugnado.

Segue-se do exposto que o dever que a alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º do CIRE impõe ao devedor de juntar com a petição em que pede a declaração de insolvência a relação de todos os bens e direitos de que seja titular é um dever de conteúdo informativo, cuja violação é susceptível de constituir causa de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante. 

Segundo os termos da alínea g) a violação dos deveres de informação constitui motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo quando a acção que a configura seja imputável ao devedor a título de dolo ou culpa grave.

Para efeitos da alínea ora em interpretação, violação dolosa do dever de informação significa violação consciente e intencional. São pressupostos desta consciência e intencionalidade o conhecimento, pelo devedor, do dever de informação e a decisão de não prestação da informação ou a decisão de prestação de uma informação que não corresponde à realidade. Com efeito, o dever de informação só é de considerar cumprido quando o devedor preste a informação com verdade, pelo que a violação de tal dever tanto se dá quando o devedor recusa expressa ou tacitamente o fornecimento de uma informação como se dá quando o devedor presta uma informação que não corresponde à realidade.

A violação será cometida com culpa grave quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido ou cumprido com verdade a obrigação de informação que recaia sobre si. Cita-se em abono desta interpretação Assunção Cristas, que escreve a este propósito o seguinte: “De acordo com os ensinamentos tradicionais da doutrina, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou negligência grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso” [Exoneração do Passivo Restante, página 171, nota 6, publicado na Revista Themis, 2005, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência”].

Já não é, no entanto, requisito da violação dolosa – e apenas em relação à violação dolosa tem sentido fazer a exigência a seguir mencionada - que o devedor tenha em vista com o não fornecimento da informação ou com o fornecimento de uma informação errada a obtenção de algum benefício para si ou o prejuízo para os credores. Com efeito, resulta do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil que não pode ser considerado pelo intérprete um sentido da lei que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e a exigência de que o devedor tenha em vista a obtenção de algum benefício ou prejuízo para o credor não tem o mais leve apoio na letra da lei.

Também não é requisito de relevância da violação do dever de informação para efeitos da alínea g) que, de tal violação, resulte um beneficio para o devedor ou um prejuízo para os credores, pois tal exigência também não tem o mais leve apoio na letra da lei. Está-se perante um caso em que a lei se basta com o desvalor da acção.  Decidiram neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 18/01/2011, no processo n.º 5984/09.0TBBRG-E e o acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 29-01-2013, no processo n.º 333/11.0TBANS, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Por fim cabe dizer que a violação do dever de informação só constituirá motivo de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante se a informação em causa for relevante para o processo. Refere-se expressamente à relevância da informação para o processo a alínea a) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRE. Como exemplo de informação relevante pode dar-se precisamente a informação relativa aos bens de do devedor, pois como bem referiu a sentença sob recurso, citando Carvalho Fernandes e João Labareda, “a lista de bens a que se refere a alínea e) releva, sobretudo parta simplificar a apreensão para a massa …” [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, página 155].

Feita a interpretação da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º com o sentido e o alcance expostos, podemos afirmar que não valem contra a sentença as alegações do recorrente.

Não vale contra a sentença a alegação de que não havia factos para o tribunal a quo afirmar que a declaração de inexistência de bens imóveis havia sido feita com dolo ou com negligência grosseira. Vejamos.

O ora recorrente sabia que tinha o dever de relacionar os bens de que era titular. E o recorrente tinha este conhecimento porque ele próprio declarou na petição inicial, por referência ao artigo 24.º do CIRE - que é a norma onde está previsto o dever de o devedor relacionar os bens de que é titular - que estava dispensado de relação de bens de que era proprietário, por não existirem, e porque apresentou, em documento anexo à petição, a declaração de que não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis. Ora, só uma pessoa consciente do dever de relacionar os bens de que era titular é que faria tais declarações.

E é de presumir que o ora recorrente sabia, quando se apresentou à insolvência e pediu a exoneração do passivo restante, que era titular de ¼ indiviso de um prédio urbano. E é de fazer tal presunção porque está provado que a aquisição de ¼ estava registada a favor do insolvente desde 30-09-2010, por partilha da herança aberta por óbito de J (…) e M (…)

Ora, se o ora recorrente sabia que tinha o dever de relacionar os bens de que dispunha, se ele sabia que era titular de ¼ indiviso de um prédio urbano e se declarou que não possuía quaisquer bens móveis ou imóveis, a ilação a retirar é a de que declarou conscientemente, contra a realidade, que não era possuidor de quaisquer bens imóveis.

Porém, ainda que a declaração se tenha ficado a dever a esquecimento de que era proprietário de ¼ indiviso de um prédio urbano – hipótese mais favorável ao ora recorrente –, então tal esquecimento é revelador de um descuido grosseiro, pois a maioria das pessoas não iria esquecer-se dessa situação.

Não vale, assim, contra a sentença a alegação de que não havia factos para afirmar a violação dolosa ou com culpa grave do dever de informação.

Como não vale a alegação de que a violação dolosa do dever de informação ou com culpa grave pressupunha que tivesse sido feita com vista a obter um benefício ou um prejuízo para os credores.

Quanto à alegação de que não se provou qualquer prejuízo para os credores pelo facto de o ora recorrente ter declarado que não possuí quaisquer bens imóveis, quando na realidade, era titular de ¼ indiviso de um prédio urbano, ela é exacta, mas irrelevante, pois, como se escreveu acima, a alínea g) actua contra o devedor ainda que a violação do dever de informação não tenha causado prejuízo aos credores.

Diga-se por fim que também não colhe a alegação de que, depois de que proferida a sentença de declaração de insolvência, o insolvente entregou os alimentos a que se refere o artigo 24.º e prestou todas as informações solicitadas pela administradora da insolvência e que depois de ter constituído mandatário passou a cumprir o dever de informações a que se encontrava obrigado, prestando todas as informações/documentos relativos á sua situação económica, financeira, pessoal e profissional à administradora da insolvência.

E a alegação não colhe porque o comportamento do ora recorrente posterior à declaração de insolvência é irrelevante para a resposta à questão de saber se a declaração que ele fez na petição inicial e no documento anexo a ela de que não possuía quaisquer bens móveis e imóveis, quando na realidade, era titular de um bem imóvel, configura uma violação do dever de informação para efeitos da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Por todo o exposto conclui-se que a sentença, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, não violou a alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Visto o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido no recurso, caberia ao mesmo suportar as custas do recurso. Considerando, no entanto, que o mesmo beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo não se condena o mesmo no pagamento das custas.

Coimbra, 30 de Março de 2020

Emídio Santos ( Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias