Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR VEÍCULO AUTOMÓVEL APREENSÃO HIPOTECA REGISTO ALIENAÇÃO TERCEIROS | ||
Data do Acordão: | 06/12/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 5, 7, 17 CRP, 291 CC, DL Nº 54/75 DE 24/2 | ||
Sumário: | 1. A possibilidade de apreensão de um veículo com fundamento na existência de uma hipoteca – tratando-se de um regime excecional face à regra geral das garantias patrimoniais – só encontra cobertura legal no caso de tal hipoteca se mostrar devidamente registada. 2. No caso de dupla alienação pelo mesmo transmitente, em que há lugar a duas cadeias de aquisições incompatíveis entre si, a proteção dada pelo art. 5º CRegP abarca o conflito entre alguém pertencente a uma cadeia e alguém pertencente à outra (e, não só, entre os adquirentes imediatos), resolvendo-se tendo em conta a prioridade do registo das aquisições imediatas do autor comum. 3. A proteção concedida ao terceiro adquirente pelo artigo 5º CRegP é imperativa – uma vez verificado os respetivos pressupostos, importa a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva. 4. Tendo um transmitente comum constituído uma hipoteca sobre um veículo e, posteriormente, logrado obter o cancelamento do registo de tal hipoteca – mediante a apresentação de documentos falsos –, transmitindo a propriedade a favor de outrem e este a um terceiro, que registaram as suas aquisições, tal hipoteca, por não constar do registo, não será oponível ao subadquirente. 5. O artigo 17ºCREgP regula todos os casos em que um subadquirente de boa-fé e a título oneroso não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade de registo a favor do transmitente, porque confiou na presunção registral e registou o seu direito antes do registo da ação impugnatória. 6. Caso o cancelamento da hipoteca venha a ser declarado nulo mediante a interposição da competente ação, a repristinação do ato indevidamente cancelado só poderá produzir efeitos ex nunc, não prejudicando, por isso, quaisquer terceiros com direitos registados antes, quer este registo seja posterior à primeira inscrição da hipoteca, quer seja anterior a ela. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO B (…), intenta o presente procedimento cautelar comum contra R (…), Lda., pedindo a apreensão do veículo automóvel de matrícula (…) e respetivos documentos e a subsequente entrega a fiel depositário, nomeando-se para o efeito a aqui Requerente. alegando, para tal e em síntese: Procedeu-se à inquirição das testemunhas indicadas pelo Requerente, com dispensa da prévia audição da Requerida, após o que foi proferida decisão a decretar a imediata apreensão do veículo, bem como a sua entrega à Requerente, através de depositário por si nomeado. Notificada de tal decisão, a Ré vêm deduzir oposição à decretada oposição, com os seguintes fundamentos: Após instrução da causa, pelo juiz a quo foi proferida sentença, a julgar improcedente a oposição, mantendo na íntegra a providencia decretada. * A) (…). B) A propriedade de uma coisa transmite-se por mero efeito do contrato de compra e venda, independentemente de o pagamento do preço ter ou não sido efetuado, razão pela qual o não pagamento do preço não acarretar venda a non domino. B) O registo na conservatória automóvel de um veículo em nome de determinada pessoa faz presumir ser essa pessoa o proprietário, presunção ilidível pela prova do contrário. C) A elisão de tal presunção impõe que se prove que o proprietário é outra pessoa, porque o contrato que fundou a inscrição como proprietário no registo é nulo, anulável ou inexistente. D) O cancelamento no registo predial de uma hipoteca com base em documentos falsos e por pessoa sem poderes de representação para tal pelo credor hipotecário, mesmo provada a falsidade dos documentos e a falta de representação, acarreta a nulidade do registo da hipoteca, não a nulidade do negócio de compra e venda com base na qual o registo de propriedade foi efetuado. E) A impugnação dos factos sujeitos a registo não pode ser efetuada sem que simultaneamente seja feito o cancelamento do registo (art. 8, nº1 do CRP), o que implicaria que o procedimento cautelar não deveria ser admitido ou, caso se admitisse, não deveria prosseguir (art. 8 nº2 do CRP). F) A nulidade do registo que cancelou/extinguiu a hipoteca tem de ser através de ação própria, nos termos do artigo 17 do CRP e com base nos fundamentos do artigo 16 do mesmo código. H) Esta nulidade, que é registral, não relativa ao contrato de compra e venda (substantiva), nos termos do artigo 17 nº 2 do CRP não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade. I) A declaração de nulidade ou anulabilidade substantiva do negócio que deu causa à inscrição no registo não prejudica os direitos adquiridos por terceiro de boa-fé, se o registo de aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade, salvo se esta ação for proposta dentro do prazo dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio, situação em que os direitos de terceiro não são reconhecidos. J) A falsidade de cancelamento de um registo de hipoteca, mesmo verificada e provada, não permite que se conclua ter havido uma venda a non domino, pois a venda pode ter sido validamente constituída, sem prejuízo de a hipoteca poder continuar adstrita ao bem, mantendo-se como hipoteca. L) O cancelamento de uma hipoteca com base em documentos falsos ou em falta de representação, apenas pode determinar a nulidade do registo da hipoteca, não da propriedade de bem registado, razão pela qual, por força do direito de sequela, todos os sucessivos adquirentes do bem, são terceiros para efeitos de registo, porque adquirem do mesmo autor (o que constituiu a hipoteca) direitos incompatíveis. M) (…) O) Numa ação em que nada aponta para que estivesse em risco sério o fim ou eficácia da providência (366 do CPC), não deveria ser tomada decisão de apreensão do veículo sem a audição da requerida e, mais grave ainda, ser decidida a sua entrega a quem não é seu proprietário, mas apenas credor hipotecário do veículo, caso o venha a demonstrar na ação principal. P) A providência cautelar não é o meio processual adequado, com fundamento em falsidade do registo, para pedir a apreensão do veículo, pois o meio processual adequado é apenas uma ação de nulidade do registo nos termos do artigo 17º do CRP. R) Assim, por força das conclusões anteriores, impõe-se que seja revogada a sentença e o veículo entregue à requerida R…, seu legítimo proprietário. * * Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes: 1. Adequação da providência de apreensão do veículo à garantia do crédito da Requerente 2. Oponibilidade da hipoteca não registada perante a Ré adquirente. 3. Se o vício do cancelamento da hipoteca afeta a posterior transmissão da propriedade a favor da Ré. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO A. Matéria de Facto São os seguintes, os factos dados como provados e que não foram objeto de impugnação por qualquer das partes, e que se reproduzem parcialmente, face à irrelevância Alguns dos quais perfeitamente conclusivos. dos restantes para a decisão das questões aqui em apreço: 1. A requerente é uma sociedade que tem por objeto o exercício, entre outras, da atividade de concessão de crédito. 2. Em 15.01.2016, no exercício dessa atividade, a requerente celebrou com V (…)(…), o Contrato de Crédito a Consumidor nº 318129. Através do referido contrato, foi pela requerente concedido ao mutuário um financiamento no valor de € 22.410 (vinte e dois mil e quatrocentos e dez euros) com vista a aquisição do veículo da marca Mini, modelo Cooper D Cx. Man., com a matrícula (…). 3. O veículo automóvel foi entregue ao mutuário. Nos termos do contrato celebrado, o mutuário ficou obrigado a proceder ao pagamento à requerente do montante correspondente ao financiamento concedido mediante a realização de 85 (oitenta e cinco) prestações mensais variáveis, 84 (oitenta e quatro) no valor inicial de € 269,95 (duzentos e sessenta e nove euros e noventa e cinco cêntimos) cada uma, acrescidas de € 1,82 (um euro e oitenta e dois cêntimos) a título de comissões de processamento e 1 (uma) última prestação no valor de € 7.470 (sete mil, quatrocentos e setenta euros), com início em 28.02.2016 e termo em 28.02.2023. 4. Para garantia do crédito da requerente, o mutuário constituiu sobre o mencionado veículo hipoteca voluntária, cujo montante total garantido ascende à quantia de € 30.912,78, acrescida da quantia de € 1.000,00 de despesas, tudo num total de € 31.912,78, hipoteca essa que foi registada. 5. O mutuário não pagou à requerente, nem na data de vencimento, nem posteriormente, nenhuma das prestações devidas no âmbito do contrato. 6. Em consequência da falta de pagamento das prestações devidas, a requerente intentou uma ação executiva, com vista a execução da hipoteca registada a seu favor e cobrança coerciva do seu crédito, a qual corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto – Juiz 5, sob o nº 7255/17.0T8PRT. 7. No âmbito das diligências de penhora levadas a cabo pelo agente de execução na ação executiva, a requerente apurou, através da pesquisa realizada ao Registo Automóvel, quanto ao veículo objeto do contrato, que já não se encontra inscrita como beneficiária da hipoteca anteriormente registada pelo mutuário sobre o veículo, nem a propriedade do veículo se encontra registada a favor do mutuário V (…) - executado nos referidos autos de execução. 8. Através de certidão emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, a requerente constatou que, em 28.06.2017, foi cancelada a hipoteca anteriormente registada, tendo sido, simultaneamente, registada a propriedade do veículo em questão a favor de J (…), (…) e que, presentemente, a propriedade do veículo se encontra registada, livre de quaisquer ónus e/ou encargos, a favor da requerida. 9. No histórico de registos, constata-se que: 10. A requerente nunca requereu a extinção da referida hipoteca (…). 11. (…) a pessoa que, alegadamente na qualidade de representante da requerente, terá aposto a respetiva assinatura no modelo próprio que serviu de base à extinção da hipoteca sobre o mencionado veículo, M (…), não exerce nem nunca exerceu funções para a requerente, não é, nem nunca foi procurador da requerente (…). 12. (…) de acordo com o instrumento de reconhecimento de assinaturas, o mesmo terá alegadamente sido realizado pela Srª Drª (…), advogada com a cédula profissional (…)e domicílio profissional (…) Lisboa. 13. Tal advogada não prestava àquela data quaisquer funções para a requerente. (…). 15. O gerente da requerida, Dr. (…), que pretendia comprar um veículo para a requerida, viu na internet um veículo que lhe agradava - o dito veículo da marca Mini, modelo Cooper D Cx. Man., com a matrícula (…). (…) 16. Em Agosto de 2017, (…) pagou o preço por transferência bancária para uma conta titulada por uma tal V (…), (…) 17. Nesse mesmo dia trouxe o veículo. Após a aquisição, porque a viatura possuía apenas um kit de chaves, o gerente da requerida dirigiu-se ao representante da marca, a BMW de Coimbra, e pediu uma segunda via. 18. O pedido foi enviado pela sucursal ao fabricante e passados alguns dias recebeu o duplicado, sem que o representante da marca pusesse alguma objeção sobre a propriedade do veículo ou sobre qualquer pedido de apreensão. 19. O sócio gerente da requerida é médico urologista e presta consultas e opera cirurgicamente em Coimbra, Aveiro, Leiria e Viseu. A razão da aquisição do veículo teve a ver com esta mobilidade, pois o outro veículo que possui é um desportivo, dispendioso em consumo e mais dificultoso em obter e manobrar estacionamento na via pública, inadequado às permanentes deslocações do gerente da requerida. 20. Após a aquisição do veículo, efetuou logo um contrato de seguro com cobertura de danos próprios. 21. Os veículos automóveis são bens de fácil deterioração e desvalorização. O mero uso dos veículos e o mero decurso do tempo implica desvalorização dos mesmos. Existe o risco de, em caso de acidente, a requerente vir a perder a sua garantia. O veículo, registado como propriedade da requerida, encontra-se sujeito a qualquer apreensão e apropriação por parte de eventuais credores daquela, sem que a requerente tenha qualquer controlo da situação. * B. O Direito 1. Adequação do procedimento cautelar pelo qual se requer a apreensão do veículo A Requerente B (…) intenta o presente procedimento cautelar pedindo a apreensão do veículo atualmente registado em nome da Requerida, alegando ser titular de um crédito – resultante de um contrato de crédito ao consumidor celebrado com V (…) – garantido por hipoteca voluntária registada a seu favor; mais alega que, quando tentou executar o seu crédito, se apercebeu de que, sem que tenha participado em tal procedimento, a hipoteca teria sido declarada extinta em simultâneo com o registo de aquisição a favor de um tal J (…), tendo posteriormente sido registada a propriedade a favor da aqui requerida, livre de ónus e encargos. A Requerente é clara na identificação do direito que com o presente procedimento pretende acautelar – um direito de crédito resultante do incumprimento do contrato de crédito ao consumo celebrado com V (…) invocando a garantia resultante da constituição de uma hipoteca a seu favor, que só não constará do registo por alguém, tendo-se feito passar por seu representante, terá logrado conseguir a extinção do respetivo registo. O Requerente não tem qualquer pretensão à titularidade do veículo, agindo aqui como mero credor titular de um direito real de garantia sobre o veículo em causa, pretendendo acautelar o seu direito a fazer-se pagar pelo produto da sua venda. O caso em apreço apresenta, contudo, a particularidade de o credor não dispor, neste momento, de qualquer hipoteca registada a seu favor – a hipoteca constituída a seu favor e levada a registo pela AP.377 de 11.02.2016 (fls. 40) foi objeto de cancelamento no registo, pela AP.376 de 08-02-2016 (fls. 25), com base na apresentação de documentação falsa. * - reconhecendo gozar a Requerida da presunção de titularidade do direito prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial, considerou que, encontrando-se provado nos autos que a sua pretensão provém de uma venda a non domino, se tem por ilidida a presunção de que o direito lhe pertence; - sendo o cancelamento da hipoteca (por ter sido levado a cabo por pessoa sem poderes de representação e sem ter sido ratificado pela Requerente) ineficaz em relação à Requerente, o negócio de aquisição pela Requerida constituindo uma venda de coisa alheia, encontrar-se-ia ferido de nulidade (art. 892º CC), pelo que relevaria aqui uma invalidade do tipo substantivo que, por sua vez, acarretaria a nulidade do próprio registo por só ter sido possível com base em documentação falsa; - ou seja, relativamente à aquisição feita pela requerida não se encontraria demonstrado o cumprimento do trato sucessivo; - o nº1 do artigo 17º, do Código de Registo Predial – que exige a prévia declaração de nulidade do registo por decisão com transito em julgado para que tal nulidade possa ser invocada em juízo –, não constituiria obstáculo à invocação da nulidade do registo, porquanto pode ser invocada como exceção com vista à destruição da presunção que deriva do registo; - a Requerida não é terceiro para efeitos de registo, porquanto não adquiriu o veículo de um autor/transmitente comum, pelo que não pode sequer invocar a qualidade de terceiro de boa-fé a que alude o artigo 17º, nº2 do CRegistoP; - existindo sobretudo nulidades de carater substantivo, consubstanciada na referida venda a non domino, a solução deveria ser encontrada através do artigo 291ºCC; - a ação que deve ser proposta e registada no prazo de três anos é a ação de anulação do cancelamento da hipoteca e o prazo de três anos conta-se desde o negócio celebrado entre o simulado adquirente e o terceiro subadquirente (e quanto a este argumento, embora a sentença o não conclua expressamente, subentende-se que se entenderia que a ação de anulação ainda estaria em tempo para ser proposta); - o nº1 do art. 17º CRP não teria aplicável porquanto as providencias cautelares não se encontram sujeitas a registo pelo atual artigo 3º nº1 do CRegistoP. Em nosso entender, a sentença recorrida e o acórdão em que se baseia assentam numa série ou sucessão de equívocos, que passamos a dilucidar: 2. A transmissão para a requerida importaria uma transmissão a non domino Antes de mais, haverá que deixar claro que, ao contrário da posição expressa na sentença recorrida, a Requerida/Apelada terá de ser considerada a verdadeira e única titular do direito de propriedade sobre o veículo em apreço, quer pela aplicação do regime registral, quer face ao direito substantivo. A questão que aqui se coloca não passa por discutir se a Requerida é, ou não, titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, mas, sim, por saber se, sendo a Requerida a proprietária do veículo, lhe é, ou não, oponível a hipoteca constituída a favor da Requerente, em 2016, pelo então proprietário V (…), hipoteca que não constava do registo à data em que a Requerida adquiriu o veículo e procedeu ao registo da aquisição a seu favor. O veículo em causa terá sido adquirido por V (…) com recurso a um financiamento bancário concedido pela Requerente (contrato de crédito ao consumo), aquisição esta devidamente levada a registo, bem como a hipoteca então constituída a favor da mutuante/Requerente. Cerca de um ano depois, é registado o cancelamento da hipoteca e, em simultâneo, a transferência da propriedade por parte do devedor/mutuário para J (…), que dois meses depois, o vendeu à aqui requerida, que procedeu ao pagamento do referido preço, registando tal aquisição. Não haverá dúvidas de que a constituição de uma hipoteca sobre um veículo por parte do mutuário não lhe retira a titularidade do mesmo, importando, tão só, a oneração do direito de propriedade. A eventual declaração de nulidade do cancelamento da hipoteca (pelo facto de ter sido requerida por quem não representava a Requerente) não poderia, nunca, acarretar a nulidade das sucessivas alienações, podendo, importando, tão só e eventualmente, a transmissão da coisa onerada com uma hipoteca. 3. Incumprimento do trato sucessivo O princípio do trato sucessivo, um dos princípios orientadores do registo predial, propõe-se refletir toda a histórica jurídica do prédio, desde a descrição até à atualidade, ou seja, desde a pessoa primeiramente inscrita como titular até quem figura, no novo ato a registar, como autor da alienação ou oneração Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, “Noções Fundamentais, Efeitos substantivos do Registo Predial”, AAFDL Editora 2017, p. 34.. Tal princípio encontra-se umbilicalmente relacionado com o princípio da obrigatoriedade do registo (artigo 2º CRegP) e com o disposto no nº1 do artigo 5º do CRegP, segundo o qual “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. Nos contratos destinados a constituir ou a transmitir direitos reais sobre coisa determinada, quer se trate de direitos reais de gozo, quer de direitos reais de garantia, o efeito final visado pelos contraentes relativamente à coisa (móvel ou imóvel), produz-se, em via de regra, por virtude do mero efeito do contrato (nº1 do artigo 408º Código Civil) Princípio da consensualidade consagrado no nº1 do artigo 408ºCC, por força do qual a constituição ou transferência dos direitos reais de coisa determinada se dá por mero efeito do contrato.. No caso em apreço, da certidão de registo emitida 29-08-2017 e dos documentos que lhe serviram de suporte (fls. 16v. a 34 do processo físico), constata-se que, encontrando-se, à data da constituição da hipoteca, registado em nome do mutuário, V (…)(por compra ao anterior proprietário registado, S (…)), foram levadas ao registo as seguintes transmissões da propriedade relativamente a tal veículo: Tendo a requerida adquirido o veículo ao J (…) (por venda verbal, forma válida de transmitir tal direito de propriedade), que, por sua vez, o adquirira a quem tinha legitimidade para tal, V (…), seu verdadeiro proprietário, e transmitindo-se a propriedade por mero efeito do contrato, a propriedade transferiu-se validamente do credor mutuário, V (…) para o J (…) e, posteriormente, deste para a R (…) aqui Requerida. Assim sendo, e ao contrário do referido na sentença recorrida, mostra-se cumprido o princípio do trato sucessivo – na cadeia das várias transmissões constantes do registo, todas as alienações são provenientes do titular inscrito. Pode assim concluir-se, que, não só, a nível substantivo – por mero efeito do contrato –, se operou a transmissão da propriedade do V (…)para o J (…) e deste para a Requerida, por lhe ter sido transmitida por quem tinha legitimidade para o fazer, como, tendo cada uma dessas transmissões sido levada a registo, são as mesmas oponíveis a terceiros. 4. Âmbito de aplicação do nº4 do artigo 5º, artigo 17º, nº2, do CRegP, e artigo 291º CC. Defende-se a Requerida com fundamento em que tendo-se certificado, antes de adquirir o veículo, que o vendedor era o proprietário registado e que inexistiam sobre o mesmo quaisquer ónus e encargos e tendo procedido ao registo da aquisição a seu favor, tem a seu favor a presunção de propriedade do art. 7º CRP, sendo que, não poderia a Requerente impugnar em juízo factos registados, sem que previamente tivesse pedido o cancelamento do registo mediante a propositura da ação de nulidade do registo, nos termos do artº 17º CRP. Vejamos, assim, se a proteção que lhe é dada pela situação registral – encontra-se inscrita a seu favor a aquisição da propriedade do veículo, sem que do registo conste a existência de qualquer ónus ou encargos – é suficiente para afastar uma hipoteca com registo anterior mas que terá sido objeto de cancelamento mediante o recurso a documentos falsos. Ou seja, haverá que aferir de que modo é que a Requerida pode confiar nessa aparência do direito que lhe foi dada pelos registos em vigor. Não podemos concordar com a subsunção que a sentença recorrida faz dos factos em causa, às normas constantes dos artigos 7º, 5º, nº4, e 17º do CRegP, e à sua conjugação com o disposto no artigo 291º do Código Civil. Não se discute que a Requerida goza da presunção da titularidade que lhe é conferida pelo artigo 7º do Código de Registo Predial – “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” – e que esta é uma presunção iuris tantum, por via de regra, ilidível. O âmbito de tal presunção é definido por Mónica Jardim pelo seguinte modo: Mas, nem sempre tal presunção será elidível mediante a prova da realidade substantiva (e é esse um dos equívocos em que incorre a sentença recorria e o Acórdão do STJ em que se baseia), como passamos a explicar. Para além do referido efeito presuntivo, o registo pode ainda ter um efeito constitutivo – é o caso da hipoteca, que antes do registo não produz nenhuns efeitos, quer entre as partes, quer relativamente a terceiros (nº2 art. 4º CRegP) Divergindo a doutrina se se trata de um mero requisito de eficácia ou de existência – cfr., a tal respeito, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, “Estudos de Direito Predial (…), p.42-43, nota 15.. Pode ter o efeito consolidativo, atribuído pelo já citado nº1 do artigo 5º, pela oponibilidade a terceiros. Se os direitos reais nascem por mero efeito do contrato, sendo geneticamente oponíveis aos terceiros em geral, a aquisição não registada não poderá ser oposta a este círculo de terceiros que que tenham registado a aquisição que fizeram ao autor comum Segundo Paulo Coutinho Ataíde, a formulação do nº1 do artigo 5º é imprópria, por não ser exato que os factos só produzam efeitos contra terceiros depois do registo. Os direitos reais quando se constituem em conformidade com as normas substantivas competentes produzem normalmente efeitos contra os terceiros em geral, apenas deixando de os produzir se os respetivos factos constitutivos não estiverem registados quando os terceiros que adquiriram a um autor comum venham a registar a sua aquisição – obra citada, p. 45.. É aqui que entra em ação a delimitação do âmbito do nº4 do artigo 5º, do artigo nº2 do 17º, do CRegistoP, bem como do artigo 291º do Código Civil, porquanto, todos eles, uma vez verificados os respetivos requisitos, poderão levar à aquisição de um direito contra a realidade substantiva Neste sentido, entre outros, J. de Seara Lopes, “Direito dos Registos e do Notariado”, Almedina 2009, p. 428, Maria Clara Sotto Mayor, “Invalidade e Registo, A proteção do terceiro adquirente de boa fé”, Coleção Teses, Almedina, p.720, Mónica Jardim, “Revisitando o artigo 291º do Código Civil”, in “Estudos de Direitos Reais e Registo Predial, Geslegal 2018, p. 358.. Diz-nos o nº4 do artigo 5º CRegP que “Terceiros para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. A conjugação do nº1 do artigo 5º – que faz depender do registo a eficácia externa contra “terceiros”, relativamente a todos os factos que a ele se encontrem sujeitos –, com a noção de registo que nos é dada pelo nº4 do citado artigo 5º, implica que, na falta de registo, quem seja parte no negócio corre o risco de, com base na situação registral anterior – em relação à qual funciona a presunção da titularidade do direito – ver constituída e registada a favor de outrem uma situação jurídica incompatível com a emergente do seu negócio e sobre ela prevalecente, na medida em que beneficia de registo prioritário (artigo 6º do CRP). Não havendo registo do facto que lhe está sujeito, os direitos incompatíveis que forem adquiridos por este terceiro ao autor comum a ambas as disposições, e em seguida registados, sobrepõem-se àquele facto não registado, nisto consistindo o efeito atributivo ou aquisitivo do registo predial, contemplado nos termos conjugados do artigo 5º, ns.1 e 4 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, obra citada, p.48.. Mónica Jardim “A segurança jurídica Gerada pela publicidade registral em Portugal e os credores que obtêm o registo de uma penhora, de um arresto ou de uma hipoteca judicial”, Boletim da FDUC, Vol. XXXIII, Coimbra 2008, pp.387-388. salienta que este efeito se produz, não só, no caso típico da dupla alienação sucessiva da mesma coisa por parte de quem é o titular inscrito, quando o segundo adquirente inscreva o negócio aquisitivo antes do primeiro, mas igualmente sempre que certo ato de aquisição não seja inscrito e um terceiro adquira e registe um direito de outra natureza, incompatível com o emergente daquele negócio não inscrito. Sendo os direitos da mesma natureza, a incompatibilidade é total e absoluta e, por isso implica a perda do direito cujo facto aquisitivo não foi registado. No caso do confronto entre um direito de propriedade (não registada) e uma hipoteca, a incompatibilidade é apenas parcial, não implicando a perda do direito de propriedade, porquanto a diversa natureza dos direitos em presença, tendo em conta a nota caraterística dos direitos reais de garantia, apenas exige que o credor hipotecário seja admitido a fazer valer a hipoteca sem que o titular do direito de propriedade lhe possa opor o seu direito. A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo Embora com algumas nuances, sem interesse para a discussão aqui em apreço, uma vez que se discute o eventual alargamento do seu âmbito a outros subadquirentes No caso em apreço, poderia ser alegado e provado que, apesar de registado a seu favor, o veículo nunca pertenceu ao referido V (…) – é este o transmitente comum aos negócios (parcialmente) incompatíveis aqui em confronto, o de hipoteca a favor da Requerente e o direito de propriedade a favor da Requerida – mas sim, a um terceiro e, aí, sim, tal seria efetivamente suficiente para afastar a presunção de propriedade conferida pelo artº 7º do CPR. Contudo, no caso em que os direitos conflituantes provêm do mesmo transmitente No caso em apreço, o facto de a Requerida ser já um subadquirente não afasta tal qualificação, ao contrário do que dá a entender a sentença recorrida: o mutuário – verdadeiro proprietário – primeiramente constitui uma hipoteca sobre o veículo e, posteriormente, vende o veículo ao J (…) ocultando a existência da hipoteca., o registo confere àquele que nele confia e regista o seu direito uma proteção suplementar: em tal caso, apesar de ao tempo da 2ª alienação, o titular inscrito já não ser o verdadeiro proprietário, tratando-se de uma venda a non domino, o legislador quis protegê-lo. Como salienta Antunes Varela RLJ Ano 118, p. 314, tal garantia já não é dada sob a forma precária de uma simples presunção, mas com a armadura normativa de um preceito imperativo como o é o artigo 5º do Código de Registo Predial. O artigo 5º (tal como o artigo 17º, nº2 CRegP e o artigo 291ºCC, como veremos mais adiante), consagra uma aquisição derivada que envolve uma exceção ao princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet. “Exceção que significa que, não obstante a aquisição ser derivada, o adquirente obtém um direito que já não pertencia ao disponente ou é mais amplo do que lhe pertencia. Portanto, em causa está uma aquisição a non domino Mónica Jardim, “Escritos de Direito Notarial e Direito Registral”, Almedina, 2017, p.276-277; ”. E, como afirma Gabriel Orfão Gonçalves “Aquisição Tabular”, 2ª ed., aafdl, Lisboa, 2007, p. 20., se o artigo 7º estabelece uma presunção, a qual é ilidível, o artigo 5º, nº1, consagra uma ficção: estabelece que, encontrando-se alguém sob certos pressupostos, vem a adquirir um direito de quem não é dominus. Alegados e provados em juízo os pressupostos do artigo 5º nº1, o pseudo-adquirente adquire verdadeiramente. Não há aqui qualquer possibilidade de ilidir esta realidade. Tendo o autor comum transmitido ou onerado o seu direito ao primeiro adquirente por mero efeito do contrato, por força do princípio da consensualidade, logicamente que o segundo ato de disposição já padece de uma ilegitimidade: o “verdadeiro” titular já o não era em virtude da disposição anterior disposição válida. É esta, e só esta, a hipótese de ilegitimidade que o regime do artigo 5º nº1 supre Mónica Jardim, “Escritos (…), p.284.. A inscrição do ato no registo não defende o adquirente contra os efeitos da destruição provocada pela nulidade ou anulação do contrato, nem contra os efeitos da destruição em cascata desencadeada pela nulidade ou anulação de qualquer contrato de alienação ou oneração anterior (artigo 289º CC). É aí que entra em ação o âmbito do artigo 291º do CC É o seguinte o teor do citado artigo 291º CC: 1. A declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa-fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. A ser aplicável ao caso em apreço, não tendo decorrido ainda os três anos desde o ato impugnável (cancelamento do registo da hipoteca), o Requerente ainda se encontrava em tempo de invocar o vício decorrente de cancelamento indevido. Contudo, no caso em apreço não nos encontramos perante uma qualquer nulidade substantiva (para além da derivada da falta de “legitimidade” do transmitente pelo facto de ter constituído anteriormente sobre o veículo um ónus parcialmente incompatível com a transmissão do direito de propriedade, irregularidade esta a suprir pela via do artigo 5º), mas sim perante uma nulidade registral. Pela aplicação pura e simples do artigo 5º, afirmaríamos que, tendo o V (…) titular inscrito no registo, constituído, primeiramente uma hipoteca a favor da aqui requerente, vindo posteriormente a transferir a propriedade a favor do J (…) e este a favor da Requerente, sem que, à data destas duas transmissões, constasse do registo a referência a qualquer hipoteca em vigor a favor da Requerente, tal hipoteca não lhe é oponível. É certo que, como já referimos, a inoponibilidade de tal hipoteca ao 2ª e 3º subadquirentes pressupõe o reconhecimento de que o transmitente comum está a transmitir mais do que aquilo que possui, mas foi precisamente essa a intenção do legislador na ponderação dos valores em causa – no confronto entre a verdade substantiva e a segurança do tráfico, o legislador deu prevalência a esta última. Antes de passarmos à análise dos efeituais efeitos da repristinação da inscrição do registo da hipoteca na sequência de uma ação de nulidade do registo de cancelamento da hipoteca, queremos deixar claro o diferente âmbito de aplicação entre a proteção dada pelo artigo 5º do CRP e a dada pelo artigo 291º do CC: No caso em apreço, encontramo-nos perante uma dupla transmissão (embora apenas parcialmente incompatível) a partir de um verdadeiro proprietário, verificando o conflito entre o sujeito de uma das cadeias de transmissões (o credor hipotecário) e um subadquirente da segunda cadeia de transmissões Já o conflito de direitos que a que se reporta o artigo 291º CC existe entre o 1º alienante, que vem a ser considerado o verdadeiro proprietário em virtude da retroatividade da declaração de nulidade e da anulação (art. 289º) e o terceiro subadquirente de boa-fé, que desconhecia o vício do negócio e atuou de boa-fé. – daí a aplicabilidade do artigo 5º CRP e o afastamento do artigo 291º CC. * O caso em apreço apresenta, contudo, uma particularidade relativamente ao âmbito do artigo 5º CRegP: apurado indiciariamente que o primeiro negócio celebrado pelo transmitente comum – constituição da hipoteca – terá sido levado ao registo pela apresentação nº 00377 (doc. 2, fls. 40), tal hipoteca só não constará do registo à data da 2ª e da 3ª transferências pelo facto de ter sido objeto de posterior cancelamento, mediante pedido formulado em nome da aqui requerente por alguém que não era de facto seu representante e com recurso a uma procuração falsificada.
O cancelamento de tal hipoteca é suscetível de integrar uma nulidade do registo, nos termos da al. a) do artigo 16º do Código de Registo Predial – registo falso ou lavrado com base em títulos falsos. E chegamos, assim, ao citado artigo 17º do CRegP, uma das normas invocadas pela Requerida a seu favor, como meio de obstar à oponibilidade perante si da hipoteca não registada à data da sua aquisição do veículo e respetivo registo: A citada norma (que consagra mais uma hipótese de aquisição tabular) regula todos os casos em que um subadquirente de boa-fé e a título oneroso não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade do registo a favor do transmitente (cujas causas se encontram previstas no artigo 16º CodRegP), isto porque confiou na presunção registral e registou o seu direito antes do registo da respetiva ação impugnatória. Os direitos adquiridos por terceiro não serão, assim prejudicados pela eventual nulidade de um registo elaborado por ex., com recurso a documentos falsos – no caso em apreço, temos um registo incompleto pelo facto de, posteriormente à constituição da hipoteca por parte do (…) (autor ou transmitente comum), devidamente levada a registo, tal registo ter sido objeto de cancelamento (indevido) com base em documentos falsos; a transmissão da propriedade operada seguidamente a favor do (…) ficou registada sem qualquer ónus e encargos, tal como a transmissão seguinte a favor da aqui requerida. Caso o Requerente venha a lograr obter o cancelamento através da ação de nulidade do cancelamento da hipoteca (ação esta que se me afigura dever ser igualmente intentada contra o mutuário), ação que se encontrará sujeita a registo, tal registo será sempre posterior ao registo da aquisição da propriedade a favor da aqui requerida. Pelo que, também pela aplicação do artigo 17º, nº2 do CRegistoP tal hipoteca permaneceria inoponível à Requerida. Por último, não se vislumbra como rodear a imposição do nº1 do artigo 17º do CRegP, relativa à exigência de prévia declaração judicial de nulidade ou anulabilidade do registo “com trânsito em julgado”. A inscrição da hipoteca constituída a favor da autora foi objeto de cancelamento com fundamento na extinção do respetivo direito de crédito. É certo que, de modo a prevenir os efeitos da demora de tal ação judicial, se poderá reconhecer à Requerente o direito a acautelar a sua garantia patrimonial derivada de uma hipoteca não reconhecida no registo, o que nos leva de volta à questão inicial respeitante à adequação da providência em causa. Invoca a Requerente a constituição de uma hipoteca que não se encontra devidamente inscrita no registo como estando em vigor – terá sido objeto de cancelamento com base em documentos falsos; A validade e existência de tal hipoteca encontra-se dependente de uma ação de nulidade de registo (ainda não proposta) – na qual se peça que se declare a nulidade do cancelamento da hipoteca por o mesmo ter sido levado a cabo com base em documentos falsos. Como já aqui foi referido, o registo é considerado pela nossa doutrina maioritária como constitutivo, para alguns mesmo como condição de validade ou mesmo de existência da hipoteca Maria Isabel Helbling Menéres Campos, analisando as posições assumidas na doutrina e na jurisprudência, e concluindo que o registo sendo mera condição de eficácia e não intervindo na constituição ou na validade da hipoteca, gera uma ininvocabilidade absoluta, pois o negócio, embora válido, não produz quaisquer dos efeitos para que tende – “Hipoteca, Caraterização, Constituição e Efeitos”, p. 172 e 182-191. Para Mónica Jardim, sem registo não há direito real de hipoteca – “A Eficácia Constitutiva do Assento Registral da Hipoteca ou A Constituição da Hipoteca Enquanto Exceção ao Princípio da Consensualidade”, in Escritos de Direito Notarial e Registral”, Almedina 2017, p. 128. No sentido de um efeito constitutivo, cfr., ainda, Cláudia Madaleno, “A Vulnerabilidade das Garantias Reais – A Hipoteca voluntária face ao Direito de Retenção e ao Direito de Arrendamento”, Coimbra Editora, pp. 63-72. – a hipoteca depende de registo para produzir efeitos quer entre as partes quer relativamente a terceiros (artigo 687º, CC e nº2 do artigo 4ºCRegP). Para a hipótese de o cancelamento da hipoteca vir a ser declarado nulo ou ineficaz, Vaz Serra “Hipoteca”, Boletim do Ministério da Justiça nº 63, Fevereiro 1956, p. 329-331. defendia que, em tal hipótese, o que poderá fazer-se é nova inscrição válida ex nunc, não prejudicando, por isso, quaisquer terceiros com direitos registados antes, quer este registo seja posterior à primeira inscrição da hipoteca, quer seja anterior a ela: a nulidade do cancelamento só prejudica os terceiros que, ao tempo do registo da ação de nulidade, não estiverem inscritos. Não resultando da certidão de registo que tal garantia se encontre em vigor Não se tratando de certidão integral, dela não consta sequer que alguma vez tenha sido levada a registo, registo do qual só há nota nos autos através de uma “informação” emitida em 12-04-2106 (doc. 2, junto com a P.I., fls. 40 do processo físico)., a Requerente não se pode socorrer da providência cautelar de apreensão de veículo prevista nos arts. 15º e ss. do Dec. Lei nº 54/75, de 24-02. Não podendo a Requerente socorrer-se da providência da apreensão do veículo prevista no DL 54/75, de 12-02 – para a qual existe um procedimento específico, mas para o qual não reúne os requisitos necessários (não tem registado a seu favor qualquer hipoteca ou reserva de propriedade) – não se nos afigura que possa vir a obter o mesmo efeito através de uma providência cautelar não especificada. Assim sendo, não se vê como facultar ao requerente a apreensão de um veículo que se encontra registado a favor da Requerida sem qualquer ónus ou encargos, sendo que, ainda que houvesse alguma expectativa de lhe vir a ser reconhecida a oponibilidade da hipoteca face à Requerida – o que aqui se rejeita – a providência cautelar adequada à garantia do seu crédito seria o arresto e a apreensão do veículo. A apelação é de proceder. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o levantamento da apreensão do veículo e a sua devolução à Requerida Custas a suportar pela Apelada. Maria João Areias ( Relatora ) Alberto Ruço Vítor Amaral Coimbra, 12 de junho de 2018 |