Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2034/18.0T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
VEÍCULO AUTOMÓVEL
APREENSÃO
HIPOTECA
REGISTO
ALIENAÇÃO
TERCEIROS
Data do Acordão: 06/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 5, 7, 17 CRP, 291 CC, DL Nº 54/75 DE 24/2
Sumário:
1. A possibilidade de apreensão de um veículo com fundamento na existência de uma hipoteca – tratando-se de um regime excecional face à regra geral das garantias patrimoniais – só encontra cobertura legal no caso de tal hipoteca se mostrar devidamente registada.
2. No caso de dupla alienação pelo mesmo transmitente, em que há lugar a duas cadeias de aquisições incompatíveis entre si, a proteção dada pelo art. 5º CRegP abarca o conflito entre alguém pertencente a uma cadeia e alguém pertencente à outra (e, não só, entre os adquirentes imediatos), resolvendo-se tendo em conta a prioridade do registo das aquisições imediatas do autor comum.
3. A proteção concedida ao terceiro adquirente pelo artigo 5º CRegP é imperativa – uma vez verificado os respetivos pressupostos, importa a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva.
4. Tendo um transmitente comum constituído uma hipoteca sobre um veículo e, posteriormente, logrado obter o cancelamento do registo de tal hipoteca – mediante a apresentação de documentos falsos –, transmitindo a propriedade a favor de outrem e este a um terceiro, que registaram as suas aquisições, tal hipoteca, por não constar do registo, não será oponível ao subadquirente.
5. O artigo 17ºCREgP regula todos os casos em que um subadquirente de boa-fé e a título oneroso não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade de registo a favor do transmitente, porque confiou na presunção registral e registou o seu direito antes do registo da ação impugnatória.
6. Caso o cancelamento da hipoteca venha a ser declarado nulo mediante a interposição da competente ação, a repristinação do ato indevidamente cancelado só poderá produzir efeitos ex nunc, não prejudicando, por isso, quaisquer terceiros com direitos registados antes, quer este registo seja posterior à primeira inscrição da hipoteca, quer seja anterior a ela.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

B (…), intenta o presente procedimento cautelar comum contra R (…), Lda., pedindo a apreensão do veículo automóvel de matrícula (…) e respetivos documentos e a subsequente entrega a fiel depositário, nomeando-se para o efeito a aqui Requerente.

alegando, para tal e em síntese:
no exercício da sua atividade, a Requerente celebrou com V (…) um contrato de crédito ao consumidor através do qual foi concedido um financiamento para a aquisição do identificado veículo, obrigando-se o mutuário a proceder ao pagamento de 85 prestações mensais, com inicio em 28.02.2016 e termo em 28.02.2023;
para garantia de tal crédito, o mutuário constituiu sobre o mencionado veículo hipoteca voluntária, cujo montante total garantido ascende a 30.912,78 €, hipoteca devidamente registada;
o mutuário não pagou nenhuma das prestações devidas no âmbito do contrato, pelo que a Requerente instaurou ação executiva com vista à execução da hipoteca registada a seu favor e cobrança coerciva do seu crédito;
foi aí que, através da pesquisa realizada no Registo Automóvel quanto ao veículo objeto do contrato, apurou já não se encontrar inscrita como beneficiária da hipoteca anteriormente registada a seu favor e que o veículo já não se encontrava registado a favor do mutuário;
em 28.06.2017 veio a ser cancelada tal hipoteca, tendo sido simultaneamente registada a propriedade do veículo em questão a favor de J (…)encontrando-se desde 08-08-2017 registado a favor da aqui requerida;
a requerente nunca requereu a extinção da referida hipoteca, desconhecendo quem seja a pessoa que, na qualidade de representante da Requerente, terá aposto a assinatura no modelo próprio que serviu de base à extinção da hipoteca sobre o mencionado veículo;
a circunstância de o veículo automóvel continuar a ser utilizado pela requerida totalmente livre de qualquer ónus ou encargos implica uma lesão grave e dificilmente reparável do direito da Requerente, o qual substancia um direito real de garantia;
os automóveis são bens de fácil deterioração e desvalorização, implicando o seu mero uso ou mesmo o mero decurso do tempo, uma desvalorização acentuada do mesmo;
o seu direito real de garantia – direito a ser pago pelo produto da venda do veículo sobre o qual detém uma garantia real – não será salvaguardado senão através da entrega efetiva do veículo garantido pela hipoteca.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas indicadas pelo Requerente, com dispensa da prévia audição da Requerida, após o que foi proferida decisão a decretar a imediata apreensão do veículo, bem como a sua entrega à Requerente, através de depositário por si nomeado.

Notificada de tal decisão, a Ré vêm deduzir oposição à decretada oposição, com os seguintes fundamentos:
a Requerida nada sabe sobre o alegado pela Requerente;
o facto é que o requerimento para extinção do registo foi apresentado na Conservatória e a extinção da hipoteca declarada, sendo que os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que previamente seja pedido o cancelamento do registo e a correspondente ação de nulidade;
e para o cancelamento teria de propor a ação de nulidade do registo;
o registo definitivo faz presumir a propriedade a favor da Requerida;
o veículo encontra-se garantido com um seguro por danos próprios, garantindo o valor de perda da coisa;
quem sofre um prejuízo imediato é a Requerida que fica privada da fruição do veículo, sendo este essencial à sua vida profissional;
a requerida é um terceiro de boa-fé para efeitos de registo, e encontrando-nos perante uma invalidade registral e não substancial, aplica-se o artigo 17º nº2 do do CRegP.
Conclui pela revogação da providência.

Após instrução da causa, pelo juiz a quo foi proferida sentença, a julgar improcedente a oposição, mantendo na íntegra a providencia decretada.


*
Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula Face ao incumprimento do dever de nelas sintetizar os fundamentos do recurso, nos termos do artigo 639º, nº1 do CPC.:

A) (…).

B) A propriedade de uma coisa transmite-se por mero efeito do contrato de compra e venda, independentemente de o pagamento do preço ter ou não sido efetuado, razão pela qual o não pagamento do preço não acarretar venda a non domino.

B) O registo na conservatória automóvel de um veículo em nome de determinada pessoa faz presumir ser essa pessoa o proprietário, presunção ilidível pela prova do contrário.

C) A elisão de tal presunção impõe que se prove que o proprietário é outra pessoa, porque o contrato que fundou a inscrição como proprietário no registo é nulo, anulável ou inexistente.

D) O cancelamento no registo predial de uma hipoteca com base em documentos falsos e por pessoa sem poderes de representação para tal pelo credor hipotecário, mesmo provada a falsidade dos documentos e a falta de representação, acarreta a nulidade do registo da hipoteca, não a nulidade do negócio de compra e venda com base na qual o registo de propriedade foi efetuado.

E) A impugnação dos factos sujeitos a registo não pode ser efetuada sem que simultaneamente seja feito o cancelamento do registo (art. 8, nº1 do CRP), o que implicaria que o procedimento cautelar não deveria ser admitido ou, caso se admitisse, não deveria prosseguir (art. 8 nº2 do CRP).

F) A nulidade do registo que cancelou/extinguiu a hipoteca tem de ser através de ação própria, nos termos do artigo 17 do CRP e com base nos fundamentos do artigo 16 do mesmo código.

H) Esta nulidade, que é registral, não relativa ao contrato de compra e venda (substantiva), nos termos do artigo 17 nº 2 do CRP não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.

I) A declaração de nulidade ou anulabilidade substantiva do negócio que deu causa à inscrição no registo não prejudica os direitos adquiridos por terceiro de boa-fé, se o registo de aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade, salvo se esta ação for proposta dentro do prazo dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio, situação em que os direitos de terceiro não são reconhecidos.

J) A falsidade de cancelamento de um registo de hipoteca, mesmo verificada e provada, não permite que se conclua ter havido uma venda a non domino, pois a venda pode ter sido validamente constituída, sem prejuízo de a hipoteca poder continuar adstrita ao bem, mantendo-se como hipoteca.

L) O cancelamento de uma hipoteca com base em documentos falsos ou em falta de representação, apenas pode determinar a nulidade do registo da hipoteca, não da propriedade de bem registado, razão pela qual, por força do direito de sequela, todos os sucessivos adquirentes do bem, são terceiros para efeitos de registo, porque adquirem do mesmo autor (o que constituiu a hipoteca) direitos incompatíveis.

M) (…)

O) Numa ação em que nada aponta para que estivesse em risco sério o fim ou eficácia da providência (366 do CPC), não deveria ser tomada decisão de apreensão do veículo sem a audição da requerida e, mais grave ainda, ser decidida a sua entrega a quem não é seu proprietário, mas apenas credor hipotecário do veículo, caso o venha a demonstrar na ação principal.

P) A providência cautelar não é o meio processual adequado, com fundamento em falsidade do registo, para pedir a apreensão do veículo, pois o meio processual adequado é apenas uma ação de nulidade do registo nos termos do artigo 17º do CRP.

R) Assim, por força das conclusões anteriores, impõe-se que seja revogada a sentença e o veículo entregue à requerida R…, seu legítimo proprietário.


*
A requerente apresenta contra-alegações no sentido da improcedência da apelação.
*
Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:

1. Adequação da providência de apreensão do veículo à garantia do crédito da Requerente

2. Oponibilidade da hipoteca não registada perante a Ré adquirente.

3. Se o vício do cancelamento da hipoteca afeta a posterior transmissão da propriedade a favor da Ré.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

São os seguintes, os factos dados como provados e que não foram objeto de impugnação por qualquer das partes, e que se reproduzem parcialmente, face à irrelevância Alguns dos quais perfeitamente conclusivos. dos restantes para a decisão das questões aqui em apreço:

1. A requerente é uma sociedade que tem por objeto o exercício, entre outras, da atividade de concessão de crédito.

2. Em 15.01.2016, no exercício dessa atividade, a requerente celebrou com V (…)(…), o Contrato de Crédito a Consumidor nº 318129. Através do referido contrato, foi pela requerente concedido ao mutuário um financiamento no valor de € 22.410 (vinte e dois mil e quatrocentos e dez euros) com vista a aquisição do veículo da marca Mini, modelo Cooper D Cx. Man., com a matrícula (…).

3. O veículo automóvel foi entregue ao mutuário. Nos termos do contrato celebrado, o mutuário ficou obrigado a proceder ao pagamento à requerente do montante correspondente ao financiamento concedido mediante a realização de 85 (oitenta e cinco) prestações mensais variáveis, 84 (oitenta e quatro) no valor inicial de € 269,95 (duzentos e sessenta e nove euros e noventa e cinco cêntimos) cada uma, acrescidas de € 1,82 (um euro e oitenta e dois cêntimos) a título de comissões de processamento e 1 (uma) última prestação no valor de € 7.470 (sete mil, quatrocentos e setenta euros), com início em 28.02.2016 e termo em 28.02.2023.

4. Para garantia do crédito da requerente, o mutuário constituiu sobre o mencionado veículo hipoteca voluntária, cujo montante total garantido ascende à quantia de € 30.912,78, acrescida da quantia de € 1.000,00 de despesas, tudo num total de € 31.912,78, hipoteca essa que foi registada.

5. O mutuário não pagou à requerente, nem na data de vencimento, nem posteriormente, nenhuma das prestações devidas no âmbito do contrato.

6. Em consequência da falta de pagamento das prestações devidas, a requerente intentou uma ação executiva, com vista a execução da hipoteca registada a seu favor e cobrança coerciva do seu crédito, a qual corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto – Juiz 5, sob o nº 7255/17.0T8PRT.

7. No âmbito das diligências de penhora levadas a cabo pelo agente de execução na ação executiva, a requerente apurou, através da pesquisa realizada ao Registo Automóvel, quanto ao veículo objeto do contrato, que já não se encontra inscrita como beneficiária da hipoteca anteriormente registada pelo mutuário sobre o veículo, nem a propriedade do veículo se encontra registada a favor do mutuário V (…) - executado nos referidos autos de execução.

8. Através de certidão emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, a requerente constatou que, em 28.06.2017, foi cancelada a hipoteca anteriormente registada, tendo sido, simultaneamente, registada a propriedade do veículo em questão a favor de J (…), (…) e que, presentemente, a propriedade do veículo se encontra registada, livre de quaisquer ónus e/ou encargos, a favor da requerida.

9. No histórico de registos, constata-se que:
- em 11.02.2016 foi requisitado o registo de propriedade do veículo a favor do mutuário;
- na mesma data, e simultaneamente, foi requisitada e registada a hipoteca a favor da requerente tendo por base o contrato de crédito celebrado com aquele;
- em 28.06.2017, e em ato simultâneo, foi requisitada a extinção do registo daquela hipoteca e registada a propriedade sobre o veículo em questão a favor de J (…)
- em 08.08.2017, a propriedade sobre o referido veículo foi registada a favor da requerida, livre de quaisquer ónus e/ou encargos.

10. A requerente nunca requereu a extinção da referida hipoteca (…).

11. (…) a pessoa que, alegadamente na qualidade de representante da requerente, terá aposto a respetiva assinatura no modelo próprio que serviu de base à extinção da hipoteca sobre o mencionado veículo, M (…), não exerce nem nunca exerceu funções para a requerente, não é, nem nunca foi procurador da requerente (…).

12. (…) de acordo com o instrumento de reconhecimento de assinaturas, o mesmo terá alegadamente sido realizado pela Srª Drª (…), advogada com a cédula profissional (…)e domicílio profissional (…) Lisboa.

13. Tal advogada não prestava àquela data quaisquer funções para a requerente.

(…).

15. O gerente da requerida, Dr. (…), que pretendia comprar um veículo para a requerida, viu na internet um veículo que lhe agradava - o dito veículo da marca Mini, modelo Cooper D Cx. Man., com a matrícula (…). (…)

16. Em Agosto de 2017, (…) pagou o preço por transferência bancária para uma conta titulada por uma tal V (…), (…)

17. Nesse mesmo dia trouxe o veículo. Após a aquisição, porque a viatura possuía apenas um kit de chaves, o gerente da requerida dirigiu-se ao representante da marca, a BMW de Coimbra, e pediu uma segunda via.

18. O pedido foi enviado pela sucursal ao fabricante e passados alguns dias recebeu o duplicado, sem que o representante da marca pusesse alguma objeção sobre a propriedade do veículo ou sobre qualquer pedido de apreensão.

19. O sócio gerente da requerida é médico urologista e presta consultas e opera cirurgicamente em Coimbra, Aveiro, Leiria e Viseu. A razão da aquisição do veículo teve a ver com esta mobilidade, pois o outro veículo que possui é um desportivo, dispendioso em consumo e mais dificultoso em obter e manobrar estacionamento na via pública, inadequado às permanentes deslocações do gerente da requerida.

20. Após a aquisição do veículo, efetuou logo um contrato de seguro com cobertura de danos próprios.

21. Os veículos automóveis são bens de fácil deterioração e desvalorização. O mero uso dos veículos e o mero decurso do tempo implica desvalorização dos mesmos. Existe o risco de, em caso de acidente, a requerente vir a perder a sua garantia. O veículo, registado como propriedade da requerida, encontra-se sujeito a qualquer apreensão e apropriação por parte de eventuais credores daquela, sem que a requerente tenha qualquer controlo da situação.


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B. O Direito

1. Adequação do procedimento cautelar pelo qual se requer a apreensão do veículo

A Requerente B (…) intenta o presente procedimento cautelar pedindo a apreensão do veículo atualmente registado em nome da Requerida, alegando ser titular de um créditoresultante de um contrato de crédito ao consumidor celebrado com V (…)garantido por hipoteca voluntária registada a seu favor; mais alega que, quando tentou executar o seu crédito, se apercebeu de que, sem que tenha participado em tal procedimento, a hipoteca teria sido declarada extinta em simultâneo com o registo de aquisição a favor de um tal J (…), tendo posteriormente sido registada a propriedade a favor da aqui requerida, livre de ónus e encargos.
Daí conclui que, face ao risco de depreciação do veículo, o seu direito real de garantia – direito a ser pago pelo produto da venda do veículo sobre o qual detém uma garantia real – não será salvaguardado senão através da entrega efetiva veículo garantido pela hipoteca.

A Requerente é clara na identificação do direito que com o presente procedimento pretende acautelar – um direito de crédito resultante do incumprimento do contrato de crédito ao consumo celebrado com V (…) invocando a garantia resultante da constituição de uma hipoteca a seu favor, que só não constará do registo por alguém, tendo-se feito passar por seu representante, terá logrado conseguir a extinção do respetivo registo.

O Requerente não tem qualquer pretensão à titularidade do veículo, agindo aqui como mero credor titular de um direito real de garantia sobre o veículo em causa, pretendendo acautelar o seu direito a fazer-se pagar pelo produto da sua venda.
Só pode solicitar-se um procedimento cautelar não especificado quando se pretenda debelar um risco de lesão excluído dos limites materiais de algum dos procedimentos cautelares especificados.
A subsidiariedade não se reporta tanto ao direito ameaçado, antes ao risco de lesão especialmente prevenido por cada uma das providências específicas: assim, o direito de crédito em sentido amplo pode beneficiar de medidas que não se restringem ao arresto; basta que a situação de risco seja diversa do perigo da perda da garantia patrimonial (vg. alimentos provisórios ou arbitramento de reparação provisória).
E se o arresto é, por regra, o procedimento adequado à manutenção da garantia patrimonial do credor, a expansão do crescimento do número de litígios relacionados com a falta de cumprimento de obrigações pecuniárias ligadas a contratos de aquisição, levou o legislador a consagrar um mecanismo expedito que possibilitasse a recuperação do crédito: a apreensão de veículos automóveis prevista nos arts. 15º a 22º do Dec. Lei nº 54/75, de 24 de fevereiro.
A apreensão de veículos constituiu, assim, uma providência cautelar justificada pela necessidade de impedir a utilização de veículos automóveis, a fim de garantir a sua preservação, perante a evidência de que a manutenção da situação ocasiona a sua desvalorização ou importa o perigo de inutilização, colocando em causa a eficácia de uma eventual decisão favorável ao credor no processo principal.
A apreensão de veículos automóveis é a medida adequada a tutelar o direito de crédito derivado da sua venda a aprestações ou garantido por hipoteca sobre tais bens António Santos Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Vol. 2ª ed., p.57..
Constituída hipoteca sobre veículos automóvel para garantia de um crédito o cumprimento coercivo da obrigação far-se-á prioritariamente através da execução do bem hipotecado, pelo que, instaurada a ação executiva, a penhora incidirá em primeira linha sobre o bem hipotecado, por força do art. 752º, nº1 do CPC.
Como salienta Abrantes Geraldes, a providência de apreensão exerce uma função instrumental em relação à penhora que será realizada no processo de execução Temas da Reforma de Processo Civil, .
Assim sendo, se a hipoteca constituída a favor da Requerente ainda continuasse vigente no registo, dúvidas não haveria de que a Requerente teria a faculdade de se socorrer da referida providência especificada de apreensão do veículo automóvel (e ainda que a respetiva propriedade se encontrasse registada, já não em nome do devedor mas de terceiro).

O caso em apreço apresenta, contudo, a particularidade de o credor não dispor, neste momento, de qualquer hipoteca registada a seu favor – a hipoteca constituída a seu favor e levada a registo pela AP.377 de 11.02.2016 (fls. 40) foi objeto de cancelamento no registo, pela AP.376 de 08-02-2016 (fls. 25), com base na apresentação de documentação falsa.
Reconhecendo tal diferença, a Requerente, em vez de se socorrer do referido procedimento especial de apreensão de veículos, intenta o presente procedimento cautelar não especificado, requerendo a “apreensão do veículo” e a sua nomeação como fiel depositário.
Ou seja, a Requerente socorre-se do presente procedimento cautelar não especificado como meio de contornar o obstáculo derivado do facto de, ao nível do registo, inexistir qualquer referência à hipoteca constituída a seu favor em 2016 pelo então titular inscrito, o que o impede de se socorrer do procedimento especial de apreensão de veículos automóveis.
Colocar-se-ia, assim a questão se saber se o Requerente poderia peticionar a “apreensão” do veículo, numa altura em que, perante o registo, a Requerida surge como a titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, livre de qualquer ónus ou encargo, questão que retomaremos mais adiante.


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Pelo que nos é dado a entender da leitura da sentença recorrida (que seguiu de perto o teor do Acórdão do STJ de 13-10-2016 Acórdão relatado por Tavares de Paiva, disponível in www.dgsi.pt., no âmbito de uma ação de declaração de nulidade do cancelamento de uma hipoteca, que se debruça sobre uma situação exatamente igual à dos autos, em que o mutuário, depois de constituir uma hipoteca a favor do mutuante, por meios fraudulentos consegue obter o cancelamento da Hipoteca, encontrando-se atualmente o veículo registado em nome do 2º Réu, livre de qualquer ónus ou encargos.), o juiz a quo serviu-se da seguinte argumentação para julgar prevalecente o direito de hipoteca invocado pelo autor, negando, inclusivamente, à Requerida Talvez influenciada pelo teor do citado Acórdão do STJ, a sentença recorrida refere-se sistematicamente ao “2º R.” (no Acórdão do STJ estão demandados o transmitente comum, que constituiu a hipoteca e posteriormente alienou o veículo, e um 3º subadquirente, a favor de quem se encontra registado o veículo), quando a presente providência é movida exclusivamente contra o atual titular registral. o direito de propriedade sobre o veículo:
- reconhecendo gozar a Requerida da presunção de titularidade do direito prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial, considerou que, encontrando-se provado nos autos que a sua pretensão provém de uma venda a non domino, se tem por ilidida a presunção de que o direito lhe pertence;
- sendo o cancelamento da hipoteca (por ter sido levado a cabo por pessoa sem poderes de representação e sem ter sido ratificado pela Requerente) ineficaz em relação à Requerente, o negócio de aquisição pela Requerida constituindo uma venda de coisa alheia, encontrar-se-ia ferido de nulidade (art. 892º CC), pelo que relevaria aqui uma invalidade do tipo substantivo que, por sua vez, acarretaria a nulidade do próprio registo por só ter sido possível com base em documentação falsa;
- ou seja, relativamente à aquisição feita pela requerida não se encontraria demonstrado o cumprimento do trato sucessivo;
- o nº1 do artigo 17º, do Código de Registo Predial – que exige a prévia declaração de nulidade do registo por decisão com transito em julgado para que tal nulidade possa ser invocada em juízo –, não constituiria obstáculo à invocação da nulidade do registo, porquanto pode ser invocada como exceção com vista à destruição da presunção que deriva do registo;
- a Requerida não é terceiro para efeitos de registo, porquanto não adquiriu o veículo de um autor/transmitente comum, pelo que não pode sequer invocar a qualidade de terceiro de boa-fé a que alude o artigo 17º, nº2 do CRegistoP;
- existindo sobretudo nulidades de carater substantivo, consubstanciada na referida venda a non domino, a solução deveria ser encontrada através do artigo 291ºCC;
- a ação que deve ser proposta e registada no prazo de três anos é a ação de anulação do cancelamento da hipoteca e o prazo de três anos conta-se desde o negócio celebrado entre o simulado adquirente e o terceiro subadquirente (e quanto a este argumento, embora a sentença o não conclua expressamente, subentende-se que se entenderia que a ação de anulação ainda estaria em tempo para ser proposta);
- o nº1 do art. 17º CRP não teria aplicável porquanto as providencias cautelares não se encontram sujeitas a registo pelo atual artigo 3º nº1 do CRegistoP.

Em nosso entender, a sentença recorrida e o acórdão em que se baseia assentam numa série ou sucessão de equívocos, que passamos a dilucidar:

2. A transmissão para a requerida importaria uma transmissão a non domino

Antes de mais, haverá que deixar claro que, ao contrário da posição expressa na sentença recorrida, a Requerida/Apelada terá de ser considerada a verdadeira e única titular do direito de propriedade sobre o veículo em apreço, quer pela aplicação do regime registral, quer face ao direito substantivo.

A questão que aqui se coloca não passa por discutir se a Requerida é, ou não, titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, mas, sim, por saber se, sendo a Requerida a proprietária do veículo, lhe é, ou não, oponível a hipoteca constituída a favor da Requerente, em 2016, pelo então proprietário V (…), hipoteca que não constava do registo à data em que a Requerida adquiriu o veículo e procedeu ao registo da aquisição a seu favor.

O veículo em causa terá sido adquirido por V (…) com recurso a um financiamento bancário concedido pela Requerente (contrato de crédito ao consumo), aquisição esta devidamente levada a registo, bem como a hipoteca então constituída a favor da mutuante/Requerente. Cerca de um ano depois, é registado o cancelamento da hipoteca e, em simultâneo, a transferência da propriedade por parte do devedor/mutuário para J (…), que dois meses depois, o vendeu à aqui requerida, que procedeu ao pagamento do referido preço, registando tal aquisição.

Não haverá dúvidas de que a constituição de uma hipoteca sobre um veículo por parte do mutuário não lhe retira a titularidade do mesmo, importando, tão só, a oneração do direito de propriedade.
A hipoteca é um direito real de garantia que confere ao credor a possibilidade de se fazer pagar pelo produto do bem sobre o qual incide, com preferência sobre os demais credores, assegurando o cumprimento de uma obrigação.
E o direito de sequela atribuído ao titular da hipoteca significa que a garantia é inerente ao bem, acompanhando-o em posteriores alienações ou onerações, seguindo-o em todas as suas transferências Maria Isabel Helbling Meneres Campos, “Da Hipoteca, Caraterização, Constituição e Efeitos”, Almedina, p.38..
Para o devedor, a vantagem consiste na possibilidade de manter o poder de disposição da coisa, podendo aliená-la a terceiro e extraindo da mesma todas as suas potencialidades – o devedor que hipotecou continua a gozar do poder de disposição em relação ao objeto da hipoteca, podendo vendê-la ou hipotecá-la Maria Isabel Helbling Meneres Campos, “Da Hipoteca, Caraterização, Constituição e Efeitos”, Almedina, p.21 e 38..
A constituição da hipoteca a favor da financiadora não impedia o mutuário/proprietário do veículo de, validamente, o alienar a terceiro, implicando, tão só, que a hipoteca acompanharia a coisa nas suas sucessivas transmissões da propriedade.

A eventual declaração de nulidade do cancelamento da hipoteca (pelo facto de ter sido requerida por quem não representava a Requerente) não poderia, nunca, acarretar a nulidade das sucessivas alienações, podendo, importando, tão só e eventualmente, a transmissão da coisa onerada com uma hipoteca.

3. Incumprimento do trato sucessivo

O princípio do trato sucessivo, um dos princípios orientadores do registo predial, propõe-se refletir toda a histórica jurídica do prédio, desde a descrição até à atualidade, ou seja, desde a pessoa primeiramente inscrita como titular até quem figura, no novo ato a registar, como autor da alienação ou oneração Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, “Noções Fundamentais, Efeitos substantivos do Registo Predial”, AAFDL Editora 2017, p. 34..
O princípio do trato sucessivo, expresso em cada um dos números1 a 4 do artigo 34º do Código de Registo Predial – referindo-se ao trato sucessivo formal, independentemente de corresponder ou não à realidade José Alberto Gonzalez, “Direitos Reais (parte geral) e Direito Registral Imobiliário”, Quid Juris, 2ª ed., p.271. – significa que a efetivação de cada registo de aquisição depende do registo prévio de aquisição por parte do transmitente Nas palavras de Mouteira Guerreiro, cada aquisição é um elo de uma cadeia e só é definitivamente acolhido nessa cadeia se quem nele figura como transmitente estiver acolhido como titular do direito transmitido (artigo 34º do CRP): o direito do adquirente deve apoiar-se no do transmitente e o encargo só pode ser constituído por, ou contra, o respetivo titular – “Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), Coimbra Editora, p. 75..

Tal princípio encontra-se umbilicalmente relacionado com o princípio da obrigatoriedade do registo (artigo 2º CRegP) e com o disposto no nº1 do artigo 5º do CRegP, segundo o qual “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.

Nos contratos destinados a constituir ou a transmitir direitos reais sobre coisa determinada, quer se trate de direitos reais de gozo, quer de direitos reais de garantia, o efeito final visado pelos contraentes relativamente à coisa (móvel ou imóvel), produz-se, em via de regra, por virtude do mero efeito do contrato (nº1 do artigo 408º Código Civil) Princípio da consensualidade consagrado no nº1 do artigo 408ºCC, por força do qual a constituição ou transferência dos direitos reais de coisa determinada se dá por mero efeito do contrato..
Em princípio, e com exceção do penhor (art. 669º, nº1 CC) e da hipoteca (art. 687ºCC), não há necessidade da prática de qualquer outro ato jurídico ou material, para criar o ou transmitir o direito real Antunes Varela, RLJ Ano 118, p. 289, em anotação ao Acórdão do STJ de 4 de março de 1982..
Contudo, se é certo que os contratos de alienação e oneração de coisa determinada, em geral, gozam, por via de regra, da eficácia direta ou imediata própria dos chamados contratos reais, por força do mero acordo consensual, certo é também que relativamente às coisas imóveis (bem como às móveis sujeitas a registo), a sua eficácia externa, depende de um requisito geral importantíssimo que condiciona ou limita os efeitos do contrato: a inscrição no registo predial, ao qual se encontram sujeitos os imóveis e os veículos automóveis (nº1 do artigo 5ºCRegP).

No caso em apreço, da certidão de registo emitida 29-08-2017 e dos documentos que lhe serviram de suporte (fls. 16v. a 34 do processo físico), constata-se que, encontrando-se, à data da constituição da hipoteca, registado em nome do mutuário, V (…)(por compra ao anterior proprietário registado, S (…)), foram levadas ao registo as seguintes transmissões da propriedade relativamente a tal veículo:
- a 28-06-2017, a favor de J (…), por compra ao anterior proprietário registado, V (…);
- a 08-08-2017, a favor da aqui Requerida, por compra a J (…), anterior proprietário registado.

Tendo a requerida adquirido o veículo ao J (…) (por venda verbal, forma válida de transmitir tal direito de propriedade), que, por sua vez, o adquirira a quem tinha legitimidade para tal, V (…), seu verdadeiro proprietário, e transmitindo-se a propriedade por mero efeito do contrato, a propriedade transferiu-se validamente do credor mutuário, V (…) para o J (…) e, posteriormente, deste para a R (…) aqui Requerida.
E, não só se tem por verificado o requisito de eficácia interna, como todas as sucessivas alienações cumprem este requisito de eficácia perante terceiros: desde o 1º titular inscrito (B (…) Lda.) até ao que transmitiu ao mutuário, a aquisição a favor deste (V (…)), bem como as posteriores transferências da propriedade deste para o J(…) e deste para a aqui Requerida, por compra, todas estas transmissões de propriedade foram levadas a registo, desde a 1ª inscrição até ao atual titular inscrito, a Requerida.

Assim sendo, e ao contrário do referido na sentença recorrida, mostra-se cumprido o princípio do trato sucessivo – na cadeia das várias transmissões constantes do registo, todas as alienações são provenientes do titular inscrito.

Pode assim concluir-se, que, não só, a nível substantivo – por mero efeito do contrato –, se operou a transmissão da propriedade do V (…)para o J (…) e deste para a Requerida, por lhe ter sido transmitida por quem tinha legitimidade para o fazer, como, tendo cada uma dessas transmissões sido levada a registo, são as mesmas oponíveis a terceiros.

4. Âmbito de aplicação do nº4 do artigo 5º, artigo 17º, nº2, do CRegP, e artigo 291º CC.

Defende-se a Requerida com fundamento em que tendo-se certificado, antes de adquirir o veículo, que o vendedor era o proprietário registado e que inexistiam sobre o mesmo quaisquer ónus e encargos e tendo procedido ao registo da aquisição a seu favor, tem a seu favor a presunção de propriedade do art. 7º CRP, sendo que, não poderia a Requerente impugnar em juízo factos registados, sem que previamente tivesse pedido o cancelamento do registo mediante a propositura da ação de nulidade do registo, nos termos do artº 17º CRP.

Vejamos, assim, se a proteção que lhe é dada pela situação registral – encontra-se inscrita a seu favor a aquisição da propriedade do veículo, sem que do registo conste a existência de qualquer ónus ou encargos – é suficiente para afastar uma hipoteca com registo anterior mas que terá sido objeto de cancelamento mediante o recurso a documentos falsos.

Ou seja, haverá que aferir de que modo é que a Requerida pode confiar nessa aparência do direito que lhe foi dada pelos registos em vigor.

Não podemos concordar com a subsunção que a sentença recorrida faz dos factos em causa, às normas constantes dos artigos 7º, 5º, nº4, e 17º do CRegP, e à sua conjugação com o disposto no artigo 291º do Código Civil.

Não se discute que a Requerida goza da presunção da titularidade que lhe é conferida pelo artigo 7º do Código de Registo Predial – “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” – e que esta é uma presunção iuris tantum, por via de regra, ilidível.

O âmbito de tal presunção é definido por Mónica Jardim pelo seguinte modo:
“O registo não é condição de existência ou da validade do ato; ele não é pressuposto para que ocorra a constituição ou transmissão do direito cujo facto aquisitivo é publicado; ele não garante que o respetivo beneficiário seja o titular e, consequentemente, não cobre os vícios do ato publicado.
O registo, em Portugal, limita-se a assegurar ao potencial adquirente que o titular registral ainda não alienou ou onerou o seu direito anteriormente a outrem, ou, mais rigorosamente, o registo limita-se a assegurar, ao potencial adquirente, que qualquer transmissão ou oneração que o titular registral haja anteriormente feito não lhe será oponível, desde que ele venha a solicitar primeiro o registo da sua aquisição “A Segurança jurídica gerada pela publicidade registral em Portugal e os credores que obtêm o registo de uma penhora, de um arresto ou de uma hipoteca judicial”, Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, Vol. LXXXIII, Coimbra 2008, p. ”.
O registo não o protege, por via de regra, contra qualquer invalidade substantiva de que possa padecer o seu negócio ou as anteriores transmissões igualmente levadas ao registo, ou de um terceiro que se venha a arrogar proprietário do imóvel por via do instituto da usucapião.
Não pomos, assim, em causa que a presunção derivada do registo seja uma presunção iuris tantum, como tal, em regra, elidível mediante prova em contrário.

Mas, nem sempre tal presunção será elidível mediante a prova da realidade substantiva (e é esse um dos equívocos em que incorre a sentença recorria e o Acórdão do STJ em que se baseia), como passamos a explicar.

Para além do referido efeito presuntivo, o registo pode ainda ter um efeito constitutivo – é o caso da hipoteca, que antes do registo não produz nenhuns efeitos, quer entre as partes, quer relativamente a terceiros (nº2 art. 4º CRegP) Divergindo a doutrina se se trata de um mero requisito de eficácia ou de existência – cfr., a tal respeito, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, “Estudos de Direito Predial (…), p.42-43, nota 15..

Pode ter o efeito consolidativo, atribuído pelo já citado nº1 do artigo 5º, pela oponibilidade a terceiros. Se os direitos reais nascem por mero efeito do contrato, sendo geneticamente oponíveis aos terceiros em geral, a aquisição não registada não poderá ser oposta a este círculo de terceiros que que tenham registado a aquisição que fizeram ao autor comum Segundo Paulo Coutinho Ataíde, a formulação do nº1 do artigo 5º é imprópria, por não ser exato que os factos só produzam efeitos contra terceiros depois do registo. Os direitos reais quando se constituem em conformidade com as normas substantivas competentes produzem normalmente efeitos contra os terceiros em geral, apenas deixando de os produzir se os respetivos factos constitutivos não estiverem registados quando os terceiros que adquiriram a um autor comum venham a registar a sua aquisição – obra citada, p. 45..
E, finalmente pode levar a um efeito aquisitivo quando a inscrição registral, em conjunto com os demais requisitos legalmente exigidos, implica a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva.

É aqui que entra em ação a delimitação do âmbito do nº4 do artigo 5º, do artigo nº2 do 17º, do CRegistoP, bem como do artigo 291º do Código Civil, porquanto, todos eles, uma vez verificados os respetivos requisitos, poderão levar à aquisição de um direito contra a realidade substantiva Neste sentido, entre outros, J. de Seara Lopes, “Direito dos Registos e do Notariado”, Almedina 2009, p. 428, Maria Clara Sotto Mayor, “Invalidade e Registo, A proteção do terceiro adquirente de boa fé”, Coleção Teses, Almedina, p.720, Mónica Jardim, “Revisitando o artigo 291º do Código Civil”, in “Estudos de Direitos Reais e Registo Predial, Geslegal 2018, p. 358..

Diz-nos o nº4 do artigo 5º CRegP que “Terceiros para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

A conjugação do nº1 do artigo 5º – que faz depender do registo a eficácia externa contra “terceiros”, relativamente a todos os factos que a ele se encontrem sujeitos –, com a noção de registo que nos é dada pelo nº4 do citado artigo 5º, implica que, na falta de registo, quem seja parte no negócio corre o risco de, com base na situação registral anterior – em relação à qual funciona a presunção da titularidade do direito – ver constituída e registada a favor de outrem uma situação jurídica incompatível com a emergente do seu negócio e sobre ela prevalecente, na medida em que beneficia de registo prioritário (artigo 6º do CRP).

Não havendo registo do facto que lhe está sujeito, os direitos incompatíveis que forem adquiridos por este terceiro ao autor comum a ambas as disposições, e em seguida registados, sobrepõem-se àquele facto não registado, nisto consistindo o efeito atributivo ou aquisitivo do registo predial, contemplado nos termos conjugados do artigo 5º, ns.1 e 4 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, obra citada, p.48..

Mónica Jardim “A segurança jurídica Gerada pela publicidade registral em Portugal e os credores que obtêm o registo de uma penhora, de um arresto ou de uma hipoteca judicial”, Boletim da FDUC, Vol. XXXIII, Coimbra 2008, pp.387-388. salienta que este efeito se produz, não só, no caso típico da dupla alienação sucessiva da mesma coisa por parte de quem é o titular inscrito, quando o segundo adquirente inscreva o negócio aquisitivo antes do primeiro, mas igualmente sempre que certo ato de aquisição não seja inscrito e um terceiro adquira e registe um direito de outra natureza, incompatível com o emergente daquele negócio não inscrito. Sendo os direitos da mesma natureza, a incompatibilidade é total e absoluta e, por isso implica a perda do direito cujo facto aquisitivo não foi registado. No caso do confronto entre um direito de propriedade (não registada) e uma hipoteca, a incompatibilidade é apenas parcial, não implicando a perda do direito de propriedade, porquanto a diversa natureza dos direitos em presença, tendo em conta a nota caraterística dos direitos reais de garantia, apenas exige que o credor hipotecário seja admitido a fazer valer a hipoteca sem que o titular do direito de propriedade lhe possa opor o seu direito.

A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo Embora com algumas nuances, sem interesse para a discussão aqui em apreço, uma vez que se discute o eventual alargamento do seu âmbito a outros subadquirentes
que não hajam adquirido do mesmo transmitente, por se tratar de um ato em que o transmitente não tem intervenção direta, como é o caso da penhora ou da hipoteca judicial. que terceiros para efeitos de registo são, assim, os adquirentes do mesmo transmitente de direitos, total ou parcialmente, incompatíveis sobre o mesmo objeto Não cabendo aqui a apreciação da querela a respeito de saber se o conceito de terceiros para efeitos de registo abrange tão só os que adquiriram do mesmo adquirente comum ou ainda e também aqueles que confiando no registo, inscrevem direitos a seu favor (ex. hipoteca judicial ou penhora) sem a cooperação do mesmo ou contra a sua vontade..
Como sustentam Antunes Varela e Henriques Mesquita Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 127, p.20, a noção de terceiros em registo predial é a que resulta da função do registo, do fim tido em vista pela lei ao sujeitar o ato a registo, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor não dispôs da coisa ou não a onerou senão nos termos que constarem do registo.
O terceiro registral a que alude o artigo 5º pressupõe que exista a seu favor uma inscrição predial e, enquanto esta se mantiver, o correspetivo direito não poderá ser afetado pela produção dos efeitos de outro ato que esteja fora do registo e com ele seja compatível Isabel Pereira Mendes, “Estudos Sobre Direito Predial”, Almedina – 1997, p.123. .
O registo, tal como se encontra organizado, não assegura senão que, se o direito pertence àquele em cujo nome está escrito, este não constituiu sobre esse direito encargos além dos que estiverem igualmente inscritos nos respetivos livros, se foram sujeitos a registo Adriano Vaz Serra, “Hipoteca”, BMJ, nºs. 62 e 63, p. 7, e RLJ Ano 97, p. 57..

No caso em apreço, poderia ser alegado e provado que, apesar de registado a seu favor, o veículo nunca pertenceu ao referido V (…) – é este o transmitente comum aos negócios (parcialmente) incompatíveis aqui em confronto, o de hipoteca a favor da Requerente e o direito de propriedade a favor da Requerida – mas sim, a um terceiro e, aí, sim, tal seria efetivamente suficiente para afastar a presunção de propriedade conferida pelo artº 7º do CPR.

Contudo, no caso em que os direitos conflituantes provêm do mesmo transmitente No caso em apreço, o facto de a Requerida ser já um subadquirente não afasta tal qualificação, ao contrário do que dá a entender a sentença recorrida: o mutuário – verdadeiro proprietário – primeiramente constitui uma hipoteca sobre o veículo e, posteriormente, vende o veículo ao J (…) ocultando a existência da hipoteca., o registo confere àquele que nele confia e regista o seu direito uma proteção suplementar: em tal caso, apesar de ao tempo da 2ª alienação, o titular inscrito já não ser o verdadeiro proprietário, tratando-se de uma venda a non domino, o legislador quis protegê-lo.
O registo garante ao adquirente que o transmitente do prédio não realizou em relação a ele atos capazes de o prejudicar (atos que não constem do registo), o que significa que esses atos são pura e simplesmente ineficazes em relação ao adquirente, não se lhe sendo oponíveis.

Como salienta Antunes Varela RLJ Ano 118, p. 314, tal garantia já não é dada sob a forma precária de uma simples presunção, mas com a armadura normativa de um preceito imperativo como o é o artigo 5º do Código de Registo Predial.

O artigo 5º (tal como o artigo 17º, nº2 CRegP e o artigo 291ºCC, como veremos mais adiante), consagra uma aquisição derivada que envolve uma exceção ao princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet. “Exceção que significa que, não obstante a aquisição ser derivada, o adquirente obtém um direito que já não pertencia ao disponente ou é mais amplo do que lhe pertencia. Portanto, em causa está uma aquisição a non domino Mónica Jardim, “Escritos de Direito Notarial e Direito Registral”, Almedina, 2017, p.276-277; ”.

E, como afirma Gabriel Orfão Gonçalves “Aquisição Tabular”, 2ª ed., aafdl, Lisboa, 2007, p. 20., se o artigo 7º estabelece uma presunção, a qual é ilidível, o artigo 5º, nº1, consagra uma ficção: estabelece que, encontrando-se alguém sob certos pressupostos, vem a adquirir um direito de quem não é dominus. Alegados e provados em juízo os pressupostos do artigo 5º nº1, o pseudo-adquirente adquire verdadeiramente. Não há aqui qualquer possibilidade de ilidir esta realidade.
A nosso ver, este é um dos equívocos em que cai a decisão recorrida (e o acórdão em que se apoia): a considerarem-se verificados os pressupostos do artigo 5º Os pressupostos legais para o funcionamento do efeito aquisitivo estabelecido no artigo 5º, nº4, são os seguintes :
- preexistência de um registo incompleto sobre a situação jurídica do prédio;
- ato de transmissão ou oneração do prédio do prédio a favor de terceiro, praticado com base no registo incompleto;
- o terceiro há de ter registado a sua aquisição antes do registo do facto aquisitivo do titular substantivo.
Alguns autores, acrescentam ainda um outro requisito – onerosidade do ato de terceiro e a sua boa-fé –, como é o caso de Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Estudos de Registo (…), p.57, entendimento contra o qual se insurge Antunes Varela, alegando que a ser assim o valor jurídico do registo predial ficaria praticamente quase eliminado – RLJ nº 118, p. 307-308, nota (1)., não é facultada a prova de que, apesar de não ter levado a sua aquisição ao registo, é ele o titular do direito de propriedade por o haver adquirido ao titular inscrito em data anterior ao registo do 2º adquirente.
Aliás, é exatamente esta a finalidade do artigo 5º: protegendo o terceiro de atos não inscritos no registo (mas já não em face de vícios de atos inscritos), protege o terceiro da ilegitimidade do tradens decorrente da anterior disposição válida Mónica Jardim, “A Segurança Jurídica (…), p. 393..

Tendo o autor comum transmitido ou onerado o seu direito ao primeiro adquirente por mero efeito do contrato, por força do princípio da consensualidade, logicamente que o segundo ato de disposição já padece de uma ilegitimidade: o “verdadeiro” titular já o não era em virtude da disposição anterior disposição válida. É esta, e só esta, a hipótese de ilegitimidade que o regime do artigo 5º nº1 supre Mónica Jardim, “Escritos (…), p.284..

A inscrição do ato no registo não defende o adquirente contra os efeitos da destruição provocada pela nulidade ou anulação do contrato, nem contra os efeitos da destruição em cascata desencadeada pela nulidade ou anulação de qualquer contrato de alienação ou oneração anterior (artigo 289º CC).

É aí que entra em ação o âmbito do artigo 291º do CC É o seguinte o teor do citado artigo 291º CC:

1. A declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa-fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à celebração do negócio impugnado.
3. (…)”, que prevê hipóteses de verdadeiras invalidades de direito substantivo, enquanto o nº2 do artigo 17º do CRegP se refere a nulidades de registo No sentido de que o nº2 do artigo 17º não abrange as verdadeiras nulidades substantivas, Mónica Jardim, Artigos 5ª nº4 e 17º, nº2, do Código de Registo Predial e artigo 291º do Código Civil, Anotação ao Acórdão STJ de 30-09-2014, Proc. 3959/05”, in “Estudos de Direitos Reais e Registo Predial, p.454..
O artigo 291º do Código Civil impede a aplicação retroativa da declaração de nulidade ou anulação do direito do transmitente, relativamente o adquirente de boa-fé que haja procedido ao registo da sua aquisição antes do registo da ação de nulidade ou anulação A doutrina define o conceito de terceiros para efeitos do artigo 291º, pela seguinte forma: “Terceiros para fins de tutela de boa-fé são os que integrando-se numa e mesma cadeia de transmissões, veriam a sua posição afetada por uma ou várias causas de invalidade anteriores ao ato em que foram intervenientes” – Mónica Jardim, “A Segurança Jurídica gerada pela publicidade registral (…), Boletim FDUC, Vol. LXXXIII, p. 398. O artigo 291º do CC, visa resolver o conflito entre o direito do 1º alienante e o direito do terceiro numa cadeia de negócios inválidos, sendo estranha a esta norma qualquer finalidade sancionatória dirigida a quem não regista, como sucede no caso de dupla alienação – Maria Clara Sottomayor, “Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa-fé”, Coleção Teses, Almedina, p.335.
E de acordo com o previsto no artigo 291º, os efeitos extintivos caraterísticos da nulidade ou anulação do contrato mantêm-se plenamente durante os três anos posteriores à conclusão do negócio impugnado, desde que a ação, estando sujeita a registo esteja registada Como salienta Antunes Varela, o artigo 291º não representa uma limitação à força anteriormente atribuída ao registo, mas sim uma conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade e da anulação, na medida em que permite ao titular da inscrição efetuada no registo, embora só a partir de um certo período de tempo posterior à conclusão do negócio nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) relativamente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativamente à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou da anulação – Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118, p.310..

A ser aplicável ao caso em apreço, não tendo decorrido ainda os três anos desde o ato impugnável (cancelamento do registo da hipoteca), o Requerente ainda se encontrava em tempo de invocar o vício decorrente de cancelamento indevido.

Contudo, no caso em apreço não nos encontramos perante uma qualquer nulidade substantiva (para além da derivada da falta de “legitimidade” do transmitente pelo facto de ter constituído anteriormente sobre o veículo um ónus parcialmente incompatível com a transmissão do direito de propriedade, irregularidade esta a suprir pela via do artigo 5º), mas sim perante uma nulidade registral.

Pela aplicação pura e simples do artigo 5º, afirmaríamos que, tendo o V (…) titular inscrito no registo, constituído, primeiramente uma hipoteca a favor da aqui requerente, vindo posteriormente a transferir a propriedade a favor do J (…) e este a favor da Requerente, sem que, à data destas duas transmissões, constasse do registo a referência a qualquer hipoteca em vigor a favor da Requerente, tal hipoteca não lhe é oponível.

É certo que, como já referimos, a inoponibilidade de tal hipoteca ao 2ª e 3º subadquirentes pressupõe o reconhecimento de que o transmitente comum está a transmitir mais do que aquilo que possui, mas foi precisamente essa a intenção do legislador na ponderação dos valores em causa – no confronto entre a verdade substantiva e a segurança do tráfico, o legislador deu prevalência a esta última.

Antes de passarmos à análise dos efeituais efeitos da repristinação da inscrição do registo da hipoteca na sequência de uma ação de nulidade do registo de cancelamento da hipoteca, queremos deixar claro o diferente âmbito de aplicação entre a proteção dada pelo artigo 5º do CRP e a dada pelo artigo 291º do CC:
- enquanto no artigo 5º CRP temos uma relação triangular, de dupla disposição (de um direito total ou parcialmente incompatível com a 1ª transmissão);
- no artigo 291º CC temos uma relação sequencial ou cadeia de negócios de disposição inválidos.
Em ambas as situações – dupla alienação e invalidade em cadeia – estão em causa negócios inválidos. Contudo, na dupla alienação o 1º negócio é válido. É o segundo negócio incompatível que é inválido por constituir uma alienação de bens alheios (artigos 892º, 953º e 939º) celebrada pelo mesmo autor ou transmitente. Na invalidade sequencial ou em cadeia, verifica-se a invalidade do 1º negócio que provoca, por arrastamento, a invalidade dos negócios subsequentes, decorrente da falta de legitimidade do transmitente, que tinha ocupado a posição de adquirente no 1º negócio inválido No caso do artigo 5º verifica-se um conflito de adquirentes do mesmo transmitente, sendo o 1º negócio válido; na hipótese do artigo 291º há um conflito entre o 1º transmitente e o ultimo subadquirente de uma cadeia de nulidades sequenciais ou derivadas, em que o 1º negócio é nulo ou anulável, sendo distintos os fundamentos destas disposições – Maria Clara Sottomayor, “Invalidade e Registo, A proteção do terceiro adquirente de Boa-fé”, Coleção Teses, Almedina, p.328 e 338..
As diversas soluções consagradas para um caso e outro resultam de que na relação triangular o direito registado a favor do transmitente já lhe pertenceu uma vez, enquanto na relação sequencial o direito falsamente registado do aquirente intermediário nunca lhe pertenceu.
No caso de dupla alienação, em que há lugar a duas cadeias de aquisições incompatíveis entre si, a proteção dada pelo artº 5º CRP abarca o conflito entre alguém pertencente a uma cadeia e alguém pertencente à outra (e, não só, entre os adquirentes imediatos), resolvendo-se tendo em conta a prioridade do registo das aquisições imediatas do autor comum Como sustenta Mónica Jardim, se na origem da cadeia está uma aquisição prioritariamente registada, dela beneficiam todos os ditos anéis da dita cadeia, ou seja, os sucessivos adquirentes, uma vez que adquirem daquele que, ao abrigo do artigo 5º do Cod.Preg.Predial, efetivamente adquiriu o direito – “Escritos de Direito Notarial e Direito Registral”, p.285..

No caso em apreço, encontramo-nos perante uma dupla transmissão (embora apenas parcialmente incompatível) a partir de um verdadeiro proprietário, verificando o conflito entre o sujeito de uma das cadeias de transmissões (o credor hipotecário) e um subadquirente da segunda cadeia de transmissões Já o conflito de direitos que a que se reporta o artigo 291º CC existe entre o 1º alienante, que vem a ser considerado o verdadeiro proprietário em virtude da retroatividade da declaração de nulidade e da anulação (art. 289º) e o terceiro subadquirente de boa-fé, que desconhecia o vício do negócio e atuou de boa-fé. – daí a aplicabilidade do artigo 5º CRP e o afastamento do artigo 291º CC.
No caso em apreço, o único vício (substantivo) que afeta a transmissão de propriedade do V (…) (verdadeiro proprietário) para o J (…) (e deste para a Requerida) é a parcial falta de legitimidade do transmitente derivada da anterior constituição da hipoteca.
Este é claramente o âmbito de aplicação do artigo 5º do CRegP, no confronto com o artigo 291º do CC ( no caso do artigo 291º o transmitente nunca foi proprietário, por o negócio pelo que lhe foi transferida a propriedade se encontrar afetado de nulidade ou anulabilidade). No confronto entre o direito de hipoteca não registado e a aquisição da propriedade a favor do J (…), embora posterior, prevalece esta última por se encontrar registada. Desta prevalência beneficiará igualmente a Requerida que vem a receber daquele o seu direito e o regista.

*
O caso em apreço apresenta, contudo, uma particularidade relativamente ao âmbito do artigo 5º CRegP: apurado indiciariamente que o primeiro negócio celebrado pelo transmitente comum – constituição da hipoteca – terá sido levado ao registo pela apresentação nº 00377 (doc. 2, fls. 40), tal hipoteca só não constará do registo à data da 2ª e da 3ª transferências pelo facto de ter sido objeto de posterior cancelamento, mediante pedido formulado em nome da aqui requerente por alguém que não era de facto seu representante e com recurso a uma procuração falsificada.

O cancelamento de tal hipoteca é suscetível de integrar uma nulidade do registo, nos termos da al. a) do artigo 16º do Código de Registo Predial – registo falso ou lavrado com base em títulos falsos.

E chegamos, assim, ao citado artigo 17º do CRegP, uma das normas invocadas pela Requerida a seu favor, como meio de obstar à oponibilidade perante si da hipoteca não registada à data da sua aquisição do veículo e respetivo registo:
1. A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com transito em julgado.
2. A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.

A citada norma (que consagra mais uma hipótese de aquisição tabular) regula todos os casos em que um subadquirente de boa-fé e a título oneroso não pode ser prejudicado pela declaração de nulidade do registo a favor do transmitente (cujas causas se encontram previstas no artigo 16º CodRegP), isto porque confiou na presunção registral e registou o seu direito antes do registo da respetiva ação impugnatória.

Os direitos adquiridos por terceiro não serão, assim prejudicados pela eventual nulidade de um registo elaborado por ex., com recurso a documentos falsos – no caso em apreço, temos um registo incompleto pelo facto de, posteriormente à constituição da hipoteca por parte do (…) (autor ou transmitente comum), devidamente levada a registo, tal registo ter sido objeto de cancelamento (indevido) com base em documentos falsos; a transmissão da propriedade operada seguidamente a favor do (…) ficou registada sem qualquer ónus e encargos, tal como a transmissão seguinte a favor da aqui requerida.

Caso o Requerente venha a lograr obter o cancelamento através da ação de nulidade do cancelamento da hipoteca (ação esta que se me afigura dever ser igualmente intentada contra o mutuário), ação que se encontrará sujeita a registo, tal registo será sempre posterior ao registo da aquisição da propriedade a favor da aqui requerida.

Pelo que, também pela aplicação do artigo 17º, nº2 do CRegistoP tal hipoteca permaneceria inoponível à Requerida.

Por último, não se vislumbra como rodear a imposição do nº1 do artigo 17º do CRegP, relativa à exigência de prévia declaração judicial de nulidade ou anulabilidade do registo “com trânsito em julgado”.
Dado o valor de publicitação atribuído ao registo, os atos nele inscritos manterão a sua força e os efeitos dele derivados, enquanto a nulidade da inscrição registral não for judicialmente declarada Atentar-se-á em que a decisão da 1ª instância invoca a favor da desnecessidade de tal declaração judicial prévia, o teor de um acórdão proferido precisamente numa ação para declaração da nulidade do registo – em que a autora pede que se declare a ineficácia do cancelamento da hipoteca e que seja ordenado o seu registo oficioso –, intentada pela financiadora contra o mutuário e o posterior adquirente..
Estão agora em causa fatores de nulidade do próprio registo, previstos no artigo 16º, que têm de ser arguidos judicialmente, para que a nulidade possa ser invocada após a decisão judicial transitar em julgado Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Estudos (…), p. 62..

A inscrição da hipoteca constituída a favor da autora foi objeto de cancelamento com fundamento na extinção do respetivo direito de crédito.
Apesar de tal cancelamento ter sido averbado ao registo mediante a apresentação de documentos falsos, a requerente nem sequer se socorreu do expediente do artigo 16º do CRP, que permite a anotação ao registo da invocação de falsidade dos documentos com base nos quais ele tenha sido efetuado. É certo que, de qualquer modo, e de harmonia com a regra da prioridade inserta no art. 6º, tal anotação só o protegeria para o futuro.
De qualquer modo, a autora nunca se encontraria dispensada de proceder à propositura de uma ação de declaração da nulidade do registo (a intentar, nomeadamente, contra o credor mutuário).

É certo que, de modo a prevenir os efeitos da demora de tal ação judicial, se poderá reconhecer à Requerente o direito a acautelar a sua garantia patrimonial derivada de uma hipoteca não reconhecida no registo, o que nos leva de volta à questão inicial respeitante à adequação da providência em causa.

Invoca a Requerente a constituição de uma hipoteca que não se encontra devidamente inscrita no registo como estando em vigor – terá sido objeto de cancelamento com base em documentos falsos;

A validade e existência de tal hipoteca encontra-se dependente de uma ação de nulidade de registo (ainda não proposta) – na qual se peça que se declare a nulidade do cancelamento da hipoteca por o mesmo ter sido levado a cabo com base em documentos falsos.

Como já aqui foi referido, o registo é considerado pela nossa doutrina maioritária como constitutivo, para alguns mesmo como condição de validade ou mesmo de existência da hipoteca Maria Isabel Helbling Menéres Campos, analisando as posições assumidas na doutrina e na jurisprudência, e concluindo que o registo sendo mera condição de eficácia e não intervindo na constituição ou na validade da hipoteca, gera uma ininvocabilidade absoluta, pois o negócio, embora válido, não produz quaisquer dos efeitos para que tende – “Hipoteca, Caraterização, Constituição e Efeitos”, p. 172 e 182-191. Para Mónica Jardim, sem registo não há direito real de hipoteca – “A Eficácia Constitutiva do Assento Registral da Hipoteca ou A Constituição da Hipoteca Enquanto Exceção ao Princípio da Consensualidade”, in Escritos de Direito Notarial e Registral”, Almedina 2017, p. 128. No sentido de um efeito constitutivo, cfr., ainda, Cláudia Madaleno, “A Vulnerabilidade das Garantias Reais – A Hipoteca voluntária face ao Direito de Retenção e ao Direito de Arrendamento”, Coimbra Editora, pp. 63-72. – a hipoteca depende de registo para produzir efeitos quer entre as partes quer relativamente a terceiros (artigo 687º, CC e nº2 do artigo 4ºCRegP).
De qualquer modo, quer o teor do artigo 687º CC, quer o nº2 do art. 4º CRegP, não deixam margem para dúvidas de que, entre nós o registo da hipoteca se apresenta como condição de oponibilidade em relação a terceiros (bem como em relação às próprias partes).

Para a hipótese de o cancelamento da hipoteca vir a ser declarado nulo ou ineficaz, Vaz Serra “Hipoteca”, Boletim do Ministério da Justiça nº 63, Fevereiro 1956, p. 329-331. defendia que, em tal hipótese, o que poderá fazer-se é nova inscrição válida ex nunc, não prejudicando, por isso, quaisquer terceiros com direitos registados antes, quer este registo seja posterior à primeira inscrição da hipoteca, quer seja anterior a ela: a nulidade do cancelamento só prejudica os terceiros que, ao tempo do registo da ação de nulidade, não estiverem inscritos.

Não resultando da certidão de registo que tal garantia se encontre em vigor Não se tratando de certidão integral, dela não consta sequer que alguma vez tenha sido levada a registo, registo do qual só há nota nos autos através de uma “informação” emitida em 12-04-2106 (doc. 2, junto com a P.I., fls. 40 do processo físico)., a Requerente não se pode socorrer da providência cautelar de apreensão de veículo prevista nos arts. 15º e ss. do Dec. Lei nº 54/75, de 24-02.
Com efeito, tal diploma consagra um regime de exceção relativamente ao regime geral das providências cautelares: em princípio, a providência cautelar adequada à manutenção da garantia patrimonial do credor é o arresto, só sendo legítimo o recurso a uma providência cautelar não especificada se para a medida preventiva não houver um procedimento específico (nº3 do art. 362º CPC).

Não podendo a Requerente socorrer-se da providência da apreensão do veículo prevista no DL 54/75, de 12-02 – para a qual existe um procedimento específico, mas para o qual não reúne os requisitos necessários (não tem registado a seu favor qualquer hipoteca ou reserva de propriedade) – não se nos afigura que possa vir a obter o mesmo efeito através de uma providência cautelar não especificada.

Assim sendo, não se vê como facultar ao requerente a apreensão de um veículo que se encontra registado a favor da Requerida sem qualquer ónus ou encargos, sendo que, ainda que houvesse alguma expectativa de lhe vir a ser reconhecida a oponibilidade da hipoteca face à Requerida – o que aqui se rejeita – a providência cautelar adequada à garantia do seu crédito seria o arresto e a apreensão do veículo.

A apelação é de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o levantamento da apreensão do veículo e a sua devolução à Requerida

Custas a suportar pela Apelada.

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral

Coimbra, 12 de junho de 2018