Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
848/19.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE BENS
TERCEIROS
MEIOS DE DEFESA
RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS
LIQUIDAÇÃO
PROMITENTE COMPRADOR
TRADIÇÃO
POSSE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART 146.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (C.I.R.E.)
ARTS. 1251.º, 1263.º, 1265.º, 1287.º, 1311.º, 1316.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) Após a liquidação dos bens em processo de insolvência, o terceiro que tenha visto os seus direitos agredidos por via da apreensão de bens para a massa já não pode socorrer-se da acção prevista no art. 146.º, n.º 1, do C.I.R.E.

II) O referido em I) não impede ao terceiro o exercício, em acção comum, do direito de restituição dos bens indevidamente apreendidos para a massa.

III) A tradição do imóvel objecto de um contrato-promessa de compra e venda é susceptível de conferir posse ao promitente comprador, sendo que tal posse pode determinar a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre tal imóvel, mesmo que não tenha sido registado ou tenha sido registado em nome de terceiro.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Autora – G…, LDA.  

Réu – L..

Objecto do litígio – Reivindicação da fracção “A” correspondente ao rés-do-chão direito do prédio urbano sito na Rua…, Lote 1, freguesia de …., concelho de …., inscrita na matriz predial urbana da freguesia …. sob o art. 1291 e descrita na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 492 e indemnização.

Questões a decidir:

1.º DIREITO DE PROPRIEDADE – Saber se a Autora é titular do direito de propriedade sobre a fracção acima referida com fundamento na aquisição derivada por contrato e presunção do registo (acção) ou, pelo contrário, se o Réu é titular do direito de propriedade sobre a fracção acima referida com fundamento na aquisição originária por usucapião (reconvenção).

2.º DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO – Saber se a Autora tem direito de exigir uma indemnização ao Réu.

3.º ABUSO DO DIREITO – Saber se a Autora actuou em abuso do direito.

4.º LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – Saber há litigância de má-fé da Autora e/ou do Réu.

O Sr. Juiz do Juízo Central Cível de Leiria julga a acção e, consequentemente, decide:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência,

2. Absolvo o Réu L… de todos os pedidos deduzidos pela Autora G…, LDA..

3. Julgo a reconvenção totalmente procedente e, em consequência,

4. Declaro que o Réu L… adquiriu o direito de propriedade, por usucapião, sobre a fracção “A”, correspondente ao rés-do-chão direito para habitação, com garagem na cave e logradouro, do prédio urbano sito na Rua …, Lote 1, freguesia de …, concelho de …, inscrita na matriz predial urbana da freguesia da …. sob o art. 1291.º, descrita na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 00492/11051990 e condeno a Autora G…, LDA., a reconhecer o aludido direito de propriedade do Réu L… sobre a referida fracção.

5. Absolvo a Autora e o Réu do pedido recíproco de condenação como litigantes de má fé.

6. Custas a cargo da Autora.

7. Registe e notifique.

8. Após trânsito, proceda-se ao registo oficioso da presente sentença – cfr. artigos 3.º, n.º 1, al. c), 8.º-A, n.º 1, al. b), e 8.º-B, n.º 3, al. a), do Código do Registo Predial. 

Leiria, 27/10/2020”.

A autora G…, não se conformando com a decisão, interpõe o seu recurso, assim concluindo: 

(…)

O réu/reconvinte, L…, pugna pela improcedência do recurso.

2. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

1.O Juízo Central Cível de Leiria ao dar como não provados os factos constantes da alínea b) dos factos dados por não provados, julgou incorrectamente por ter apreciado mal a prova?

2. Saber se a Autora é titular do direito de propriedade sobre a fracção acima referida com fundamento na aquisição derivada por contrato e presunção do registo (acção) ou, pelo contrário, se o Réu é titular do direito de propriedade sobre a fracção acima referida com fundamento na aquisição originária por usucapião (reconvenção).

3.º. Saber se a Autora tem direito de exigir uma indemnização ao Réu e qual o seu valor.

O Tribunal de Leiria assentou, assim, a matéria de facto:

A. Factos Provados

Resultaram provados os seguintes factos constantes dos articulados (com relevo para decidir, excluindo factos conclusivos e conceitos jurídicos):

1. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 00492/11051990 a fracção “A”, correspondente ao rés-do-chão direito para habitação, com garagem na cave e logradouro, do prédio urbano sito na Rua …, Lote 1, freguesia de …., concelho de …., inscrita na matriz predial urbana da freguesia da …sob o art. 1291 (doc. 1 e 2).

2. A referida fracção encontra-se inscrita a favor da Autora pela Ap. 3102 de 27/09/2018 na Conservatória do Registo Predial de … (doc. 1 e 2).

3. Consta de documento datado de 27/09/2018, designado de “Compra e Venda” (autenticado pela Dr.ª C…, Advogada), que A…, na  qualidade de Administrador de Insolvência de “M…, Lda.”, declarou vender, livre de ónus e encargos, a “G…, Lda.”, que declarou aceitar, pelo preço de €35.000,00, a fracção identificada supra no ponto 1.º (doc. 3).

4. Em 2018 a Autora contactou o Réu para que este lhe entregasse a fracção referida livre de pessoas e bens, o que este recusou.

5. Caso a fracção referida fosse arrendada poderia corresponder a uma renda mensal de €400,00/€500,00.

6. No dia 25 de Outubro de 1990, foi outorgado contrato promessa de compra e venda, entre A…, na qualidade de promitente vendedor, e, L…, na qualidade de promitente comprador (cfr.doc.1).

7. Foi objecto do contrato prometido, a compra pelo Réu da fracção autónoma descrita sob o n.º 492, correspondente à letra A, inscrita a aquisição por compra pela Ap. 04/11051990 a favor de A…, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1291, da freguesia da …, concelho de …, sito Rua dos M…, lote 1, …. (doc. 2, 3).

8. O preço acordado no valor total de Esc.9.000.000$00 (nove milhões de escudos) [agora correspondentes a €44.891,81], a ser pago da seguinte forma (doc. 1):

a) No dia 25/10/1990, na data da outorga do contrato: Esc.3.000.000$00 (três milhões de escudos);

b) Até 31/11/1990, a entrega de Esc.1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil e escudos);

c) Até 02/03/1991, a entrega de Esc.3.000.000$00 (três milhões de escudos);

d) Restante parte do montante: Esc.1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil e escudos), no acto da escritura de compra e venda.

9. No mesmo dia 25 de Outubro de 1990, foi outorgado contrato promessa de compra e venda, entre A…, na qualidade de promitente vendedor, e, L…., na qualidade de promitente comprador, para a compra pelo Réu de 1/2 da cave de um prédio em construção, sito na Rua dos … na …. (cfr. doc. 4).

10. A cave ora prometida comprar, corresponde a estacionamento no prédio em construção onde se situa a fracção A, como consta da descrição predial (doc. 2, 3).

11. O preço acordado foi de Esc.1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos) [agora correspondentes a €7.481,96], a pagar no acto da escritura de compra e venda (doc.4).

12. O Réu efectuou os seguintes pagamentos por conta da compra da fracção:

a) No dia 25/10/1990, na data da outorga do contrato: Esc.3.000.000$00 (três milhões de escudos) (doc. 5);

b) No dia 14/11/1990, pagou a quantia de Esc.500.000$00 (quinhentos mil escudos) (doc. 6);

c) No dia 23/11/1990, pagou a quantia de Esc.1.000 000$00 (um milhão escudos) (doc. 7);

d) No dia 14/12/1990, pagou a quantia de Esc.1.000.000$00 (um milhão escudos) (doc. 8);

e) No dia 16/01/1991, pagou a quantia de Esc.600 000$00 (seiscentos mil escudos) (doc. 9);

f) No dia 28/02/1991, pagou a quantia de Esc.1.400.000$00 (um milhão e quatrocentos mil escudos) (doc.10);

13. O total dos montantes pagos e entregues é de Esc.7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos) [agora correspondentes a €37.409,84] (docs. 5, 6, 7, 8, 9 e 10).

14. Ficando apenas em falta o pagamento de Esc.1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), correspondentes actualmente a €7.481,96.

15. O promitente vendedor era sócio da sociedade “A…, Lda.”, com o NIF: ….

16. A sociedade “A…, Lda.”, com o NIF:…, entrou em processo de insolvência.

17. Em 1991, não tendo outro sítio para morar com a sua família, porquanto já tinha dispensado a casa arrendada onde residia, o Réu decidiu ir habitar a fracção acima identificada incluindo a cave, até hoje.

18. E quando o Réu vai residir para a fracção com a família, esta encontrava-se com as paredes em tijolo, sem portas nem janelas, luz, água ou electricidade.

19. O Réu foi constituído fiel depositário da fracção, no âmbito de penhora concretizada pela AT em 22/09/1993 (doc.11 fls.103 vº).

20. O Réu outorgou contrato com a EDP em seu nome em 1999 (doc.11).

21. Tendo posteriormente concluído todas as obras necessárias na fracção, incluindo colocação de aros, portas, móveis de cozinha e rodapé, azulejos e mosaicos.

22. Pela realização das obras referidas o Réu despendeu quantia não totalmente apurada, mas superior a €2.000,00.

23. O Réu acabou a execução das obras na fracção nela habitando com a sua família e usando a cave desde 1991.

24. Nela dormindo,

25. Habitando,

26. Pagando a água,

27. Luz,

28. Telefone,

29. Recebendo correspondência da Segurança Social,

30. Da AT (tudo cfr. doc.13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21),

31. Fazendo obras de conservação quando necessário,

32. Recebendo a sua correspondência,

33. Utilizando a cave, onde estaciona o seu veículo,

34. À vista,

35. E com o conhecimento de todos,

36. E sem a oposição de ninguém.

37. Através da citação para os presentes autos o Réu tomou conhecimento de que a propriedade da fracção foi transmitida para a propriedade da “M…, Lda.” e demais factos infra descritos, com a obtenção de cópias do processo (doc. 12).

38. O processo de insolvência corre os seus termos com o nº.1795/14.0T8VFX-J2, no 2 Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, doc.11.

39. Apesar de constar nos autos de insolvência a referência à posse do Réu e constarem cópias dos contratos promessa, o Réu nunca foi notificado no âmbito deste processo para reclamar os seus direitos sobre a fracção (doc. 12).

40. Foi nomeado Administrador da Insolvência (doravante apenas AI), A…, tendo a fracção sido apreendida à ordem da insolvência como verba nº.4, doc.11, fls.91 vº.

41. No requerimento ao processo, datado de 5/12/2017, o AI informa o processo das verbas apreendidas à ordem da massa insolvente, onde consta a fracção A, doc.12.

42. Neste mesmo requerimento constam duas notas do AI, com o seguinte teor: "Foi obtida uma proposta para aquisição da verba 4, pelo valor de €45 000.00, conforme anexo 1:

- NOTA 1: A proposta é feita, com a referência de que o imóvel se encontra ocupado, bem como da necessidade de obras a efectuar;

- NOTA 2: O imóvel encontra-se ocupado por L… e Família desde 1991, conforme contratos de promessa de compra e venda em anexo 2.” (tudo, doc.12, fls.91 vº).

43. A proposta efectuada por C… menciona que o apartamento se encontra ocupado (doc.12 fls.92).

44. Por requerimento enviado ao processo datado de 22/12/2017 o AI vem reiterar a recepção de uma proposta de compra no valor de €45.000.00 para a fracção, apondo as seguintes notas:

- "(...) finda a data (...) a proposta seria aceite, atendendo a que o imóvel se encontra ocupado desde 1991, por L… e família (...) [tudo doc.12 fls.106].

45. Não concordando a Segurança Social, credora reclamante com a proposta, pelo que, a proposta não foi aceite (doc.12 fls.107).

46. Por requerimento enviado ao processo datado de 26/04/2018, o AI vem informar da recepção de uma proposta de compra no valor de €35.000.00 para a fracção, efectuada pela aqui Autora, com as seguintes notas:

- Foi obtida uma proposta para aquisição da verba 4, pelo valor de €35.000.00, conforme anexo 1.

- NOTA 1: A proposta é feita, com a referência de que o imóvel se encontra ocupado, e a que a mesma é feita neste valor, comprando o imóvel nos eu estado físico e jurídico.

- NOTA 2: O imóvel encontra-se ocupado por L… e Família desde 1991, conforme contratos de promessa de compra e venda." (doc.12 fls.109).

47. Na proposta apresentada pela ora aqui Autora (a fls 110, doc.12) do proc de insolvência, datada de 24/04/2018, vem a aqui Autora dizer o seguinte:

- "G…, Lda. (...) pelo prédio urbano sito na …, freguesia …., concelho de …, descrito CRP de … 492-A, inscrito na matriz sob o artigo 1291, se encontra ocupado por terceiros que dizem há mais de 25 anos, dizem ter direito do usucapião."

- Valor da oferta: €35.000.00." (doc.12 fls.110).

Factos Não Provados

Não se provaram os seguintes factos:

a) Que a Autora é possuidora da fracção acima descrita.

b) Que o Réu está a causar à Autora um prejuízo mensal de €500,00.

c) Que as obras realizadas pelo Réu na fracção em causa alcançaram o valor de €30.000,00.

d) Que o Réu realizou obras na cave.

1.Da discordância da matéria de facto.

Como nota prévia.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova - consagrado no artigo 607.º nº 5 do CPC - que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

A lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador - artigo 607.º, nº 4 do CPC.

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal da Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.

Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.

Para desencadear a reapreciação dos factos pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.

Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.

Não basta, pois, identificar meios de prova e dizer-se que os mesmos deviam ter sido valorados em certo sentido e em detrimento daqueles que o tribunal valorou. A formação da convicção do juiz não pode resultar de “partículas probatórias”, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto da prova produzida - a prova é um todo que deve ser analisado e conjugado de forma coerente, ponderadas as regras de experiência e tendo em atenção as regras do ónus da prova.

Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos, por isso, quem invoca a violação do valor tabelado de um meio de prova tem de tornar claro o sentido da sua alegação, por referência aos elementos do processo.

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora, se assiste razão à recorrente.

Alega a apelante que a 1.ª instância “ao dar como não provados os factos constantes da alínea b) dos factos dados por não provados, julgou incorrectamente por ter apreciado mal a prova. O douto Tribunal a quo, no ponto 5 dos factos dados por provados, dá como provado “caso a fracção referida fosse arrendada poderia corresponder a uma renda mensal de €400/€500 (…) mas dá como não provado que o Réu está a causar um prejuízo ao A. de 500,00€ (quinhentos euros)”.

Com todo o respeito pela alegação, entendemos que a recorrente não tem razão. Além de a expressão “está a causar prejuízo” configurar uma questão conclusiva, de direito, o facto de se ter dado como provado que o valor locativo da fração sub judice era de 400/500 €, não leva à conclusão de que o Réu está a causar prejuízo do mesmo valor. A apreciação da questão do “prejuízo” em causa está umbilicalmente ligada à decisão da questão principal em causa. Quem é o proprietário/possuidor do imóvel em causa nestes autos?

Tendo a 1.ª instância atribuído o direito de propriedade ao réu/reconvinte, não poderia esta instância dar como provado que a autora/reconvinda o Réu está a causar um prejuízo ao A. de 500,00€ (quinhentos euros)”, sob pena de contradição.

No entanto, logrando vencimento nesta 2.ª instância, os factos assentes pelo Juízo Central Cível de Leiria – Em 2018 a Autora contactou o Réu para que este lhe entregasse a fracção referida livre de pessoas e bens, o que este recusou; caso a fracção referida fosse arrendada poderia corresponder a uma renda mensal de €400,00/€500,00 -, mostram-se suficientes para a fixação do pedido indemnizatório formulado pela autora/reconvinda - sendo o imóvel em questão um prédio urbano, será, assim, suficiente demonstrar que o mesmo se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento, correspondendo, neste caso, a indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo.

2.Da questão de direito.

A apelante censura a decisão da 1.ª instância “…porque no caso vertente não se verificaram os requisitos necessários para aquisição do direito de propriedade com recurso à figura jurídica da usucapião”.

O que alega a recorrente:

1. O Réu/Apelado teve conhecimento do processo de insolvência, de que fracção ia ser vendida no âmbito desse processo e não reclamou absolutamente nada, nomeadamente não invocou nos autos os requisitos de usucapião para poder adquirir o direito de propriedade com recurso à usucapião (…) se pretendia pedir o reconhecimento do direito de propriedade, por usucapião, tinha de pedir a separação do bem da massa insolvente e não o fazendo já caducou o seu direito.

Ou seja, tendo o Réu conhecimento do processo de insolvência e de que a fracção ia ser vendida no âmbito desse processo, não tendo aí reclamado invocando o instituto da usucapião para adquirir a propriedade do imóvel, caducou o seu direito.

Com todo o respeito, a apelante carece de razão.

Umas breves notas:

Como sabemos, a apreensão a realizar pelo administrador de insolvência abrange todos os bens do devedor declarado insolvente e que sejam suscetíveis de serem penhorados, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos, detidos ou objecto de cessão aos credores, “ficando absolutamente claro que ela abrange todos os bens integrantes do património do devedor, que lhe pertençam já à data da declaração da insolvência ou venham a pertencer-lhe na pendência do respetivo processo” - art.º 149, n.º 1º do CIRE, que será o diploma a citar sem menção de origem. Esses mecanismos são a restituição e a separação de bens.

O mecanismo processual da restituição e da separação de bens configura, assim, o meio processual a que pode recorrer o terceiro titular de um direito real de gozo – direito de propriedade ou direito real limitado ou menor – para fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão que, com ofensa do direito do reivindicante, resulta numa posse indevida pela massa do bem que estava em seu poder aquando da declaração da insolvência.

No entanto, sendo o processo de insolvência um processo com natureza urgente e preocupações de celeridade processual, do regime dos arts. 141º, 144º e 146º, resulta que foram colocados três mecanismos a favor do terceiro para poder reagir contra a apreensão de bens a favor da massa insolvente de que o terceiro seja possuidor efetivo - em nome próprio -, proprietário ou titular de um direito real menor incompatível com a apreensão desse concreto bem a favor da massa insolvente e que se norteiam pela fase processual em que o requerente, toma conhecimento da necessidade do exercício dos seus direitos.

Essa restituição e separação de bens pode ser pedida:

a) até ao termo do prazo para a reclamação de créditos, por reclamação, endereçada ao administrador da insolvência e para o domicílio profissional deste, por uma das vias previstas no n.º 2 do art.º 128º, em requerimento acompanhado de todos os documentos de que o reclamante disponha, em que devem ser invocados os factos necessários à demonstração do seu direito à separação - art.º 141º, n.º 1;

b) no caso de bens apreendidos para a massa depois do termo do prazo fixado na sentença declaratória da insolvência para a reclamação de créditos, mediante requerimento a correr por apenso ao processo de insolvência, a ser apresentado no tribunal da insolvência, no prazo de cinco dias posteriores à apreensão desse bem cuja separação e restituição peticiona - art.º 144º, n.º 1;

e c) por acção declarativa com processo comum para o exercício do direito à separação ou à restituição de bens, instaurada pelo terceiro lesado, que assume a posição de autor, contra a massa insolvente, os credores do devedor/insolvente e o próprio devedor/insolvente, os quais assumem a posição de réus, acção essa que pode ser instaurada a todo o tempo - n.º 2 do art.º 146º -, enquanto o direito à separação ou à restituição de bens possa ser atendido no processo de insolvência - n.º 1 do art.º 146º -, isto é, enquanto os bens objeto dessa separação ou restituição não forem liquidados no processo de insolvência - art.º 146º.

O que nos mostram os autos:

Que só com a citação para a presente acção de reivindicação, tomou o apelado conhecimento de que a propriedade do imóvel foi transmitida para a M…, L.da. e que nunca foi notificado no processo de insolvência para reclamar os seus direitos sobre o bem em causa nos presentes autos - Pontos 37 a 39.

Que o mesmo já não se encontrava na esfera jurídica da massa insolvente, pelo que, ao apelado estava já vedado o recurso ao mecanismo do art.º 146.º.

Tudo isto, sem prejuízo de se poder exercer o seu direito de restituição em acção comum, fora do âmbito do processo de insolvência, quando confrontado, como é o caso dos autos, com uma acção de reivindicação por terceiro, cujo procedimento não prescreve pelo decurso do tempo – artigo 1312.º do Código Civil.

2.O réu/reconvinte usava o imóvel para habitação, sendo que o direito de uso e habitação exclui a aquisição do direito de propriedade por usucapião. Que quando o Réu foi habitar o imóvel, não houve tradição, nem pagou o valor total do preço, logo não há transmissão da posse. Mesmo com a hipótese de ter havido tradição do imóvel, o apelado adquiriu o corpus mas não tinha o animus, pressupostos essenciais para a aquisição por usucapião.

Vejamos.

O art.º 1311.º, n.º 1, do Código Civil autoriza o proprietário a exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

Como sabemos, a usucapião é uma forma de constituição de direitos reais que destrói quaisquer direitos em contrário, podendo o seu beneficiário, por força das regras da acessão na posse, começar a contar o respetivo prazo a partir da constituição da posse. Demonstrada a usucapião, a reivindicação procede sempre, uma vez que por ela, se extinguem todos os direitos anteriores em contrário.

Mais, a usucapião como forma de aquisição originária, não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem. O criador de tal instituto entendeu que, ponderados determinados aspectos, certas situações de facto, pudessem converter-se num verdadeiro direito, como ocorre no caso da posse, desde que se prolongue durante um período de tempo significativo, o qual se sobrepõe inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído, pois surge um direito ex - novo, por mera vontade do respectivo titular, na sua esfera jurídica, desde que judicialmente verificada e declarada a situação de facto que lhe subjaz e que, inclusivamente retrotrai à data do início de tal situação de facto, sobrepondo-se ao registo, constituindo, por isso, a base do nosso ordenamento dominial.

A usucapião, como forma de constituição de direitos reais, defende a posição do proprietário legítimo, sendo que, a circunstância de um imóvel se encontrar registralmente inscrito a favor de alguém, tendo por base uma aquisição derivada, não obsta à aquisição por usucapião a favor de outrem, pois que, a usucapião inutiliza por si as situações registais existentes, em nada sendo prejudicada por estas vicissitudes.

Escreve a 1.ª instância:

“A causa de pedir nas acções reais consiste no acto ou facto jurídico de que deriva o direito real, ou ainda, na esteira de Oliveira Ascensão, a causa de pedir é necessariamente complexa, por incluir os factos constitutivos do direito invocado e ainda na existência de uma situação de desconformidade na relação com a coisa, a que a entrega deve por termo. Assim, é entendimento pacífico que o reivindicante só tem de alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra em poder do réu.

E caso o réu detenha a coisa por título legítimo, recai sobre ele o ónus de alegar e provar o facto jurídico em que assenta a sua detenção, pois só assim evitará a procedência do pedido de entrega ou restituição formulado pelo autor. Ou, dito de outro modo, a acção de reivindicação está dependente da propriedade do reivindicante e da posse não usucapível ou de mera detenção de terceiro, só improcedendo por via de excepção na presença de outro direito inoponível. Quem pede em acção de reivindicação a entrega de uma coisa, tem de alegar e provar que o objecto, cuja entrega pede, lhe pertence em propriedade, em virtude de aquisição originária ou derivada. O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei – cfr. art. 1316.º, do CC.

No caso de aquisição derivada (como o caso do contrato ou sucessão por morte) a prova é extremamente difícil, considerando o valor do registo predial no direito latino – que apenas assegura a prioridade da aquisição de um direito contra um novo adquirente (ao contrário do que sucede na Alemanha, em que a inscrição de um direito de propriedade nos livros do registo predial provam a propriedade) – pelo que se admite a prova por presunções legais.

Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr. art. 350.º, n.º 1, do CC). O registo definitivo do direito de propriedade gera por isso presunção de propriedade, ou seja, constitui presunção jurídica de que o mesmo direito pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (cfr. art. 7.º, do C. R. Predial). Para além do registo definitivo do direito de propriedade gerar presunção de que o mesmo direito pertence ao titular inscrito, é possível demonstrar um qualquer modo de aquisição do direito de propriedade, tanto aquisição derivada como aquisição por usucapião.

No caso concreto em apreciação, considerando que a Autora alegou ser proprietária da fracção em causa apenas com fundamento na aquisição derivada, por contrato e presunção registral e que o Réu de igual modo alegou ser proprietário dessa mesma fracção mas com fundamento na aquisição originária, por usucapião que invoca, importa averiguar desde já se o Réu adquiriu o direito de propriedade por usucapião (…) No caso concreto em apreciação, os factos provados acima elencados configuram a prática, pelo Réu de actos materiais de posse sobre a fracção em causa, típicos de proprietários, uma vez que ficou provado, para além do mais, o seguinte:

- O Réu outorgou contrato com a EDP em seu nome em 1999.

- Tendo posteriormente concluído todas as obras necessárias na fracção, incluindo colocação de aros, portas, móveis de cozinha e rodapé, azulejos e mosaicos.

- Pela realização das obras referidas o Réu despendeu quantia não totalmente apurada, mas superior a €2.000,00.

- O Réu acabou a execução das obras na fracção nela habitando com a sua família e usando a cave desde 1991.

- Nela dormindo,

- Habitando,

- Pagando a água,

- Luz,

- Telefone,

- Recebendo correspondência da Segurança Social,

- Da AT,

- Fazendo obras de conservação quando necessário,

- Recebendo a sua correspondência,

- Utilizando a cave, onde estaciona o seu veículo,

- À vista,

- E com o conhecimento de todos,

- E sem a oposição de ninguém.

Nesta sequência, tais factos correspondem inequivocamente ao exercício do direito de propriedade, com o conteúdo tal como definido no art. 1305.º, do CC (cfr. art. 1251.º, do CC) e não configuram meros direitos de uso e habitação (cfr. art. 1484.º, do CC), excluídos da aquisição por usucapião (cfr. artigo 1293.º, al. b), do CC), como pretendia a Autora.

Com efeito, basta atentar no facto do Réu ter pago a quase totalidade do preço da fracção previsto no contrato promessa de compra e venda, de ter acabado de construir a fracção em causa, nela incorporando diversos materiais, pois estava inacabada quando se apossou da mesma, para além dos actos materiais nela praticados, acima elencados, para se compreender que são actos atinentes ao conteúdo do direito de propriedade e não de uso e habitação. A actuação do Réu configura ainda a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do referido direito e propriedade (cfr. art. 1263.º, al. a), do CC).

Importa referir que, embora a posse se adquira pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito (cfr. art. 1263.º, al. a), do CC), não se exige que a coisa seja usada com desenvolvimento completo de todos os poderes materiais correspondentes ao exercício do respectivo direito real, no caso do direito de propriedade, com desenvolvimento completo e integral dos poderes de uso, fruição e administração e pelo modo como o deveria fazer um proprietário diligente. O proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente. Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a algum daqueles poderes, até mesmo porque, presumindo-se a propriedade perfeita, se deve supor que se trata dos actos correspondentes ao direito de propriedade. E a exclusividade do direito de propriedade (art. 1305.º do CC) não é incompatível com a prática sobre a coisa, por terceiros, de actos consentidos ou tolerados pelo proprietário – como decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/03/2009 - relatado por SANTOS BERNARDINO, processo n.º 09B0149, www.dgsi.pt).

Do exposto resulta que ficou demonstrado o corpus da posse devido à prática de actos materiais pelo Réu, desde 1991, sobre a fracção em causa. Como já referido, a posse que releva para a usucapião tem de conter estes dois elementos – o corpus e o animus. E se faltar o animus, ou seja, o exercício do poder de facto sobre a coisa sem o animus possidendi, traduz mera posse precária, simples detenção (cfr. art. 1253.º) e é insusceptível de conduzir à usucapião. Porém, a prova do animus está facilitada com o estabelecimento, no n.º 2 do art. 1252.º do CC de uma presunção de posse: em princípio, presume-se a posse (em nome próprio) naquele que exerce o poder de facto, ou seja, naquele que tem o corpus.

E, por isso, por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/1996 - relatado por AMÂNCIO FERREIRA, publicado no publicado no diário da república, II série, n.º 144, de 24/06/1996 - , foi uniformizada a jurisprudência nestes termos: “– Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. Ora, atenta a presunção referida, basta provar o poder de facto sobre a coisa para se presumir automaticamente o animus – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2010 - relatado por SOUSA LEITE, processo n.º 1277/08.9TBCBR.C1.S1, www.dgsi.pt.

Assim, cabia à Autora ilidir aquela presunção, ou seja, cabia à Autora provar qualquer facto de onde resultasse que o Réu não poderia beneficiar de tal presunção, o que não sucedeu.

Deste modo, e em suma, ficou de igual modo provado o animus da posse relativamente ao Réu. E ficou demonstrado que a posse foi mantida por período de tempo superior a 20 anos, ou seja, por período de tempo mesmo superior ao legalmente previsto nos artigos 1294.º a 1296.º, do CC.

Quanto às caraterísticas previstas nos artigos 1258.º a 1262.º, do CC (se a posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta): No caso concreto em apreciação, considerando que a posse se funda na celebração de contrato-promessa de compra e venda, como este mecanismo não é, em si mesmo e em abstracto, um modo legítimo de transmitir e de adquirir o direito de propriedade sobre a fracção em causa, é inequívoco que a posse do Réu não é titulada – no mesmo sentido pode ser consultado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/10/2003 - SANTOS BERNARDINO, proc. n.º 03B1415, www.dgsi.pt. Contudo, a inexistência de título não significa, sem mais, que a posse não é de boa fé: o que sucede é que, presumindo-se de má fé a posse não titulada, recai sobre o possuidor, se quiser ilidir a presunção, o ónus da prova de que, ao adquirir a posse, ignorava que lesava o direito de outrem – como se decidiu no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/10/2003 - SANTOS BERNARDINO, proc. n.º 03B1415, www.dgsi.pt). 

No caso concreto em apreciação, considerando os factos provados acima elencados, com destaque para a circunstância de em 1991 o Réu ter pago a quase totalidade do preço da fracção ao proprietário de então no âmbito da celebração de contrato promessa (em que o proprietário de então prometeu vender a fracção em causa) e este não exerceu qualquer oposição a tais actos materiais do Réu, ficou assim demonstrada a actuação do Réu de boa fé. De todo o modo, é inútil – ao que julgamos – analisar aprofundadamente esta temática (se a posse exercida pelo Réu é ou não titulada, ou se é de boa ou má fé), uma vez que decorreram mais de 20 anos de exercício da posse, ou seja, mesmo que não fosse titulada e/ou de má fé já teria decorrido o tempo necessário para poder ser invocada eficazmente a usucapião.

Assim, a posse em causa é não titulada, bem como, não há título de aquisição nem registo deste, nem tão pouco registo de mera posse, no entanto, é pública, pacífica e de boa-fé (cfr. artigos 1261.º e 1262.º, do CC), por isso, a usucapião pode dar-se no termo de 15 anos, ao abrigo do disposto no art. 1296.º, do CC. Ora, no caso concreto em apreciação ficou provado que a posse foi mantida por mais de 20 anos, por isso, mesmo que tivesse sido de má fé, sempre decorreu o tempo necessário para se dar a usucapião invocada.

Nesta sequência, verificam-se os necessários pressupostos de que depende a aquisição do direito de propriedade por usucapião do Réu sobre a fracção em causa, a qual retroage à data do início da posse, ou seja, ao ano de 1991 – cfr. art. 1288.º, do CC. Finalmente, a circunstância de ter ficado provado que a Autora adquiriu a fracção em causa, por contrato, no ano de 2018, e que a mesma se mostra inscrita no registo predial a seu favor não impede a válida e eficaz aquisição, por usucapião, do direito de propriedade do Réu sobre a mesma fracção e que prevalece sobre aquela”.

Concordamos.

Os factos trazidos à instância não dão razão à apelante, sendo que o Supremo Tribunal de Justiça se tem pronunciado, sistematicamente, no sentido de que o possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes não tenha sido registado ou tenha sido registado em nome de terceiro – por todos o Acórdão de 18.2.2021 relator conselheiro Nuno Pinto Oliveira. (…) Como se diz, p. ex., nos acórdãos do STJ de 14 de Novembro de 2013 — processo n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1 —, de 5 de Maio de 2016 — processo n.º 5562/09.4TBVNG.P2.S1 —, de 19 de Setembro de 2017 — processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1 — ou de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 423/11.0TBHRT.L2.S1 —, “[a] usucapião, de natureza substantiva, prevalece sobre o registo” expressão do acórdão do STJ de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º  23/11.0TBHRT.L2.S1.— logo, “[a] aquisição por via da usucapião, porque é originária, faz ceder o registo anterior ao início da respectiva posse, ainda que o mesmo exista” - expressão do acórdão do STJ de 5 de Maio de 2016 — processo n.º 5562/09.4TBVNG.P2.S1”.

Por outro lado, como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2018, “Por regra, tal como ensina Antunes Varela [..], o contrato promessa, sendo um negócio meramente obrigacional, não transmite, por si só, a posse ao promitente-comprador. Mesmo nos casos em que ocorre a tradição da coisa, antes da celebração da escritura definitiva de compra e venda, o promitente-comprador, adquirindo, embora, o corpus possessório, não adquire o animus possidendi, ficando, por isso, investido na qualidade de mero detentor ou possuidor precário. Todavia, esta regra não é absoluta. Com efeito, e como nos dá conta o Acórdão do STJ de 23.05.2006 - Processo n.º 584/12.0TCFUN-B.L1.S1, www.dgsi.pt. [..], vem sendo entendimento deste Supremo Tribunal, que «a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio»[..]. Quer isto dizer que, casos existem, em que a posse resultante da tradição da coisa pode assumir todas as características que definem a posse verdadeira e própria, a que alude o art.º 1251º do C. Civil, juntando ao corpus também o animus correspondente ao direito real em causa [..]. Nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.04.2012 (revista nº 299/05.6TBMGD.P1.S1) «excepcionalmente, a tradição material da coisa a favor do promitente-comprador pode conferir a posse, para efeitos de usucapião, como sucede nas hipóteses em que a tradição ocorre, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de transmitir, em definitivo, o direito prometido, e passando o promitente-comprador, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa entregue”.

Mais, “A posse do promitente comprador sobre o bem entregue pelo promitente vendedor, iniciada como precária só é apta a conduzir à usucapião se, supervenientemente, se converter em posse em nome próprio mediante a inversão do título de posse, prevista no artigo 1265º, do Código Civil, que pressupõe que aquele torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía, através da prática de atos positivos, inequívocos e reveladores, a sua intenção de passar a atuar como titular do direito de propriedade – Acórdão do STJ de 11.3.2021, retirado do site wwww.dgsi.pt.

É o caso em análise nestes autos. Como refere a 1.ª instância: “Nesta sequência, tais factos correspondem inequivocamente ao exercício do direito de propriedade, com o conteúdo tal como definido no art. 1305.º, do CC (cfr. art. 1251.º, do CC) e não configuram meros direitos de uso e habitação (cfr. art. 1484.º, do CC), excluídos da aquisição por usucapião (cfr. artigo 1293.º, al. b), do CC), como pretendia a Autora. Com efeito, basta atentar no facto do Réu ter pago a quase totalidade do preço da fracção previsto no contrato promessa de compra e venda, de ter acabado de construir a fracção em causa, nela incorporando diversos materiais, pois estava inacabada quando se apossou da mesma, para além dos actos materiais nela praticados, acima elencados, para se compreender que são actos atinentes ao conteúdo do direito de propriedade e não de uso e habitação. A actuação do Réu configura ainda a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do referido direito e propriedade (cfr. art. 1263.º, al. a), do CC) (…) em suma, verificam-se os necessários pressupostos de que depende a aquisição pelo Réu do direito de propriedade, por usucapião, sobre a fracção em causa, a qual se sobrepõe à aquisição derivada por parte da Autora: - O Réu actuou pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção em causa (cfr. art. 1251.º, do Código Civil); - O Réu praticou reiteradamente, com publicidade, os actos materiais correspondentes ao exercício do direito (cfr. art. 1263.º, al. a), do Código Civil); - O Réu manteve por mais de 20 anos a prática dos actos acima referidos, para efeitos do disposto no art. 1296.º, do Código Civil e com os caracteres exigidos, destacando-se a posse pública e pacífica”.

Improcedem, pois, as conclusões da recorrente, mantendo-se o decidido pela 1.ª instância.

(…)
3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Leiria.

As custas ficam a cargo da apelante.

Coimbra, 25 de Maio de 2021

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(António Freitas Neto- 1.º adjunto)

(Paulo Brandão – 2.º adjunto)