Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1066/15.4T8PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ALIMENTOS
DIVÓRCIO
EX-CÔNJUGES
CESSAÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2012, 2013, 2016, 2016-A CC
Sumário: 1. Como consequência da adoção do sistema de divórcio constatação de ruptura, por via do que a nossa lei consagra atualmente o princípio da auto-suficiência, decorre o carácter temporário da obrigação a favor dos ex-cônjuges (cf. art. 2016º do C.Civil), isto é, a regra geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, depois do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, é a de que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, constituindo exceção o direito a alimentos, a que qualquer dos cônjuges tem direito independentemente do tipo de divórcio, sendo que, por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser-lhe negado.

2. Sendo fundada a dita obrigação num dever de solidariedade pós conjugal, a sua constituição depende da necessidade do credor e das possibilidades do devedor; de caráter essencialmente alimentar, a prestação fica sujeita a alterações nos termos do art. 2102º do mesmo C.Civil e cessa tão logo o titular do direito seja capaz de prover à sua subsistência ou o devedor fique sem recursos que lhe permitam continuar a suportá-la (cf. arts. 2012º e 2013º ainda do mesmo C.Civil).

Decisão Texto Integral:




                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                          *

1 – RELATÓRIO

J (…), veio ao abrigo do disposto no artº 936º, nº3 do CPC deduzir pedido de cessação da prestação de alimentos contra M (…)

Para fundamentar tal pretensão, alega em síntese que foi casado com a Ré/requerida, tendo vindo a ser decretado o divórcio por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil da (...) , tendo no âmbito do dito processo sido fixada uma pensão de alimentos a pagar por si à Ré/requerida, no montante de 500€ mensais.

Na sua versão, tal pensão foi fixada não porque a Ré/requerida verdadeiramente dela carecesse mas porque então ele A./requerente gozava de uma situação financeira muito favorável, desenvolvendo actividade numa empresa na Alemanha que lhe propiciava um vencimento mensal de 6.500€ líquidos a que acrescia uma comissão de 2% sobre o valor das vendas, sendo ainda da responsabilidade da sua entidade patronal o pagamento da renda do apartamento que habitava e a atribuição de uma viatura automóvel, cartão de crédito, computador e telemóvel.

Enquanto manteve essa situação, o A./requerente foi cumprindo com a prestação de alimentos a que se havia obrigado até que, em Junho de 2012 ficou desempregado, passando a auferir apenas o subsídio correspondente cujo montante não lhe permitia, sequer suportar o pagamento da renda da casa que então habitava de cerca de 1.500€ mensais.

Viu-se então obrigado a recorrer à ajuda de amigos e familiares para prover à sua subsistência e a contrair empréstimos com a mesma finalidade, e ainda com a de pagar as prestações de empréstimos contraídos em Portugal ainda durante a união conjugal.

Entretanto, em Dezembro de 2014 foi-lhe diagnosticado um Mieloma Múltiplo, o que o forçou a terapia sistémica intensiva, com quimioterapia e radioterapia da coluna vertebral a um transplante de células matrizes em 215, tudo originando longos períodos de hospitalização e implicando deslocação exclusivamente em cadeira de rodas.

Muito embora em 2015 a sua vida tenha voltado a ser relativamente normal a doença de que continua a padecer é causadora de um grau de invalidez de 100% pelo que se encontra já a tratar da sua pensão de invalidez que só passaria a auferir a partir de 2017.

Tal situação de absoluta carência financeira, força-o a desenvolver alguns trabalhos para obter rendimentos, não obstante o esforço que nisso tem que despender, até porque só da prestação empréstimos carece de mais de 1.700€ mensais, não sendo o remanescente que aufere sequer suficiente para lhe permitir pagar a renda de casa, alimentação, vestuário e despesas médicas, pelo que ó com o apoio da sua actual mulher consegue viver com um mínimo de dignidade.

Tal situação impede-o em absoluto de pagar qualquer quantia de alimentos à Ré/requerida, o que, aliás, não faz desde o ano de 2012, só não tendo pedido a cessação da prestação alimentar nessa altura, pois estava convicto de que estando ele nesta situação, conhecida da Ré/requerida, e continuando ele a liquidar sozinho as prestações de empréstimos contraídos durante o casamento e que a ambos oneravam, a mesma prescindiria do recebimento da dita pensão, que aliás, durante anos lhe não cobrou, só se tendo apercebido que assim não era, quando teve conhecimento da instauração da execução por alimentos no ano de 2015.

Ora, não só face ao que deixa dito não está ele em condições de pagar a prestação alimentar fixada como a própria Ré/requerida dela não carece, pois é reformada, auferindo pelo menos 500€ mensais, não paga renda de casa, habitando a que a casa de morada de família na companhia da filha, que já trabalha e rem vencimento, sendo a única herdeira, conjuntamente com a mãe da herança do falecido pai, da qual fazem parte imóveis de elevado valor, alguns dos quais passíveis de gerar rendimentos regulares.

Deve pois declarar-se cessada a obrigação de pagamento da prestação alimentar fixada em benefício da Ré/requerida aquando do divórcio.

                                                           *

Foi agendada a conferência a que alude o artº 936º, nº3 do CPC, para a qual as partes foram regularmente convocadas, não tendo aí sido possível formalizar o visado acordo.

Foi determinada a notificação da Ré/requerida para contestar querendo a presente ação no prazo legal.

                                                           *

Correspondendo a tal faculdade, a Ré/requerida veio, nos termos de fls. 77 e segs., pugnar pela total improcedência da ação.

Fundamenta tal pretensão na sucinta alegação de é pessoa doente, carecida de medicamentos e tratamentos, tendo como único rendimento uma parca reforma de 363,95€, valor que nem lhe permite fazer valer às necessidades mais básicas, incluindo a aquisição de óculos de que carece.

Mais invoca que o valor escasso da reforma que aufere se deve exclusivamente ao A./requerente que “a forçou” a “levantar os descontos” feitos durante o período em que trabalhou na Alemanha dinheiro que foi canalizado para uma empresa que o A./requerente montou e que acabou por não sobreviver economicamente.

Mais alega que embora de facto a situação profissional do A./requerente aquando do divórcio fosse genericamente aquela que o mesmo invoca, na realidade os rendimentos que o mesmo tinha não se restringiam aos que alegam, pois mantinham concomitantemente actividade empresarial que gerava rendimentos e em 2013, quando saiu da empresa onde trabalhava obteve uma indemnização de quase 60.000€ e recebeu um seguro de vida de 100.000,00€ em 2015, tendo-se apropriado de tais valores, parte dos quais lhe pertenciam a ela Ré/requerida, não tendo usado tais valores para liquidar os empréstimos contraídos, pelo que não pode agora invocar as prestações referentes aos mesmos para obviar ao pagamento da pensão de alimentos, até porque os valores obtidos através dos empréstimos foram usados em proveito do próprio que, sabendo isso mesmo, assumiu o pagamento dos valores correspondentes às prestações.

Mais invoca que o património da herança de seu pai é velho e insusceptível de gerar rendimentos, carecendo de fundamento fazer apelo à sua existência.

Mais invoca a Ré/requerida desconhecer sem culpa as condições do A./requerente que, não obstante a invocada diminuição de rendimentos, ainda assim possui um nível de vida muito superior ao seu.

                                                           *

Após algumas vicissitudes relacionadas com a pendência da oposição à execução, veio a ser agendada audiência prévia no âmbito da qual não foi possível obter o acordo das partes e com os fundamentos na acta correspondente exarados, foi determinado que por escrito fosse elaborado despacho saneador, que de forma tabelar aferiu positivamente os pressupostos de validade e regularidade da instância, consignado o objecto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.

Instruída a causa procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo, conforme da ata elaborada melhor consta.

                                                           *

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados (e não provados), relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que os factos apurados permitiam concluir que se havia verificado efetivamente uma alteração de circunstâncias que justificava que no caso concreto se declarasse cessada a prestação alimentar que as partes entenderam fixar, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«Por todo o exposto, nos termos e por força das disposições legais referidas, na parcial procedência de acção e reconvenção, decide-se declarar cessada a obrigação de o A. pagar alimentos à R., nos termos determinados no divórcio que entre ambos correu.

Custas pela R., sem prejuízo do apoio judiciário que a beneficia.

Registe e notifique.»

                                                           *

É com esta decisão que a Ré/requerida não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

Por sua vez, apresentou o A./requerente as suas contra-alegações a fls. 304-336, das quais extraiu as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído, sendo que nesse mesmo despacho sustentou a inverificação das arguidas nulidades da sentença.

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- nulidades da sentença [alíneas b), c) e d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil]?;

- vício da falta de fundamentação da matéria de facto [art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil]?;

- impugnação da matéria de facto [quanto aos pontos 6, 7, 8, 10, 21, 22 e 25[2], dados por “provados” incorretamente]?;

- erro de decisão [ao dar-se procedência à pretensão do Autor]?

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.

Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram “provados” no tribunal a quo:[3]:

«1. J (…) e M (..) contraíram casamento um com o outro no dia 31 de Julho de 1983, sem convenção antenupcial.

2. Requereram o divórcio por mútuo consentimento em 19 de Janeiro de 2012 junto da Conservatória do Registo Civil da (...) , tendo para o efeito junto os necessários acordos, os quais vieram a ser homologados por decisão datada de 9 de Fevereiro de 2012, neste momento já definitiva.

3. Segundo um desses acordos o requerente marido pagaria, mensalmente, à requerida mulher até ao dia 8 de cada mês a quantia de 500€ a título de alimentos.

4. Foi junta uma relação de bens da qual faz parte uma verba de activo com a seguinte descrição: “prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão para habitação e logradouro sito em (...) , Rua (...) , freguesia da (...) , Concelho da (...) , descrita na CRP da (...) sob o nº 00 (...) e inscrita da respectiva matriz urbana sob o artº 11 (...) , com o valor patrimonial de 11.364,43€” e cinco verbas de passivo, quatro delas dívidas ao Banco (…), então no valor declarado global de 44.366,75€ e a última à C (…), SA. no valor de 23.634,04€.

5. O aqui requerente liquidou a prestação alimentar supra mencionada até ao mês de Junho de 2012, inclusive, em Dezembro do mesmo ano pagou 200€.

6. No ano de 2013 (Junho) requerente e requerida fizeram um acerto de contas de conteúdo exacto não apurado, tendo ficado para pagar até ao referido ano, exclusive, o montante de 326€.

7. No ano de 2013 o requerente liquidou apenas a quantia referente a um mês.

8. No ano de 2014 nenhuma quantia foi paga, o mesmo se passando no ano de 2015 até à data de propositura da execução a que estes autos estão apensos, o que ocorreu a 19.3.2015, tendo em vista a cobrança da quantia de 17.020,30€ de alimentos vencidos.

9. Na sequência do divórcio, o casal não procedeu a partilha do património comum por qualquer forma.

10. De forma regular mas sem periodicidade que tenha logrado apurar-se requerida enviava ao requerente um apanhado das quantias que na sua opinião estavam em dívida a título de alimentos.

11. O requerente tem vindo a liquidar pelo menos alguns valores referentes aos empréstimos supra mencionados em pelo menos no valor de 32.514€.

12. Na altura em que foi fixada a prestação alimentar, o ora requerente encontrava-se a trabalhar na Alemanha para a empresa Y (…) onde exercia o cargo de Director geral, auferindo um vencimento de 6.500€ líquidos/mês, acrescido de uma comissão de 2% sobre o valor das vendas efectuadas.

13. Nos termos do contrato celebrado, era a entidade patronal do mesmo quem lhe pagava a renda do apartamento onde o requerente habitava, estava obrigada a proporcionar-lhe o uso de um veículo automóvel de Marca Volkswagen, modelo Passat, cartão de crédito, computador e telemóvel.

14. Tal relação laboral cessou em Junho de 2012, tendo o requerente ficado na situação de desemprego, tendo nessa altura a sua situação patrimonial sofrido alteração substancial que o forçou, inclusivamente a contrair empréstimos, tendo em vista fazer face a todas as suas despesas.

15. Entretanto o requerente foi acometido de problemas de saúde mais concretamente uma doença cancerígena (mieloma múltiplo) que no início do ano de 2015 correspondia a um grau de incapacidade para o trabalho de 100% e implicava a deslocação exclusivamente em caideira de rodas e logos períodos de hospitalização

16. Foi submetido a terapia sistémica intensiva, com quimioterapia e radioterapia, tendo feito transplante de células matrizes.

17. Desconhece-se a evolução dessa patologia até ao momento presente, muito embora se haja apurado que requerente se encontra a tratar da pensão de invalidez, tendo rendimentos que não foi possível apurar, mas que, em todo o caso serão sempre substancialmente inferiores aos que detinha à data do divórcio e supra mencionados.

18. Voltou a contrair matrimónio e reside com a mulher na Alemanha, em apartamento pelo qual paga 1.500€ de renda mensais.

19. A requerida é reformada, auferindo em 2017 a quantia mensal de 363,95€, que englobava 50% do 13º mês.

20. Não paga renda de casa pois vive gratuitamente na que foi a de morada do casal com a filha do casal, tendo-lhe sido atribuído o uso da referida casa no âmbito do processo de divórcio.

21. A requerida é conjuntamente com a mãe, herdeira da herança por óbito de seu pai da qual fazem parte bens que não foi possível apurar, não levando a cabo a partilha por motivos que não logra explicar com exactidão.

22. A progenitora entrega-lhe a título exacto não apurado, quantias variáveis mas que nalguns casos ascendem a vários milhares de Euros.

23. Tendo residido e trabalhado na Alemanha a requerida efectuou descontos tendo em vista a reforma.

24. Contudo, de acordo com a possibilidade existente naquele país, em altura exacta não apurada, procedeu ao resgate do valor correspondente e investiu o dinheiro em causa, numa empresa, que em território nacional o requerente fundou, ainda durante o assamento.

25. O requerente, actuou de igual maneira, relativamente às deduções por si efectuadas no mesmo período e deu-lhes o mesmo destino.»

*

            Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados[4]:

«Restante matéria constante dos temas de prova ou dos articulados, com relevo decisório ainda que colateral: não provados;

Em particular não se provou que os exactos valores das dívidas do casal fossem nos valores mencionados nos autos ou quaisquer outros para além do que se deixou como provados; que as condições pessoais, económicas e familiares de requerente e requerida sejam ou tenham sido outras para além do que a esse respeito se deixou dado como provado; que a requerida tenha acordado qualquer moratória ou perdão no que se refere à prestação de alimentos para além do que a esse respeito se deixou dado como provado.»

                                                                       *

            3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz nas alegadas nulidades da sentença.

 E tendo sido arguida a nulidade da sentença por reporte a várias causas [alíneas b), c) e d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil], vejamos um por um esses fundamentos.

Consabidamente, nos termos do disposto no art. 615º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil, a sentença é nula por falta de fundamentaçãoquando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Ora, temos presente o corrente entendimento de que a sentença só é nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito.

Sem embargo, importa ter em conta o mais completo e rigoroso entendimento quanto a este particular, que é o de que também e ainda ocorre essa nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial[5].

Consequência da inobservância deste dever de fundamentação será então a nulidade da decisão recorrida, que não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. arts. 615º, nº 1, al. b) do n.C.P.Civil.

Mas será que na decisão sob recurso conclusivamente se expôs a convicção a que se chegou, com base em premissas (de facto ou de direito) não explicitadas ou cujo sentido não fosse apreensível?

Não ocorreu isso de todo!

Muito antes pelo contrário: a Exma. Juíza a quo referenciou o que estava em causa, relativamente ao que procedeu ao enquadramento que teve por conveniente e adequado, de forma suficientemente percetível e lógico-jurídica, decidindo em conformidade com o raciocínio exposto.

Por outro lado, o que se denota é que a Ré/recorrente discorda da decisão em si (quer de facto, quer de direito), particularmente quanto ao seu âmbito e extensão.

Só que isso é outra vertente da questão, de cuja apreciação se tratará na sequência imediata.

De referir, aliás, que a Ré/recorrente nem sequer especificou, com o mínimo de sistematização e individualização, onde e porque é que se verificava esta concreta nulidade…

Termos em que, sem necessidade maiores considerações, improcede este primeiro fundamento da arguição de nulidade.

                                                                       ¨¨

E que dizer relativamente ao fundamento da arguição de nulidade da decisão consistente em os seus fundamentos se encontrarem em oposição com a decisão, ou por ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível [al.c) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil]?

            A resposta a esta questão é claramente negativa – e releve-se este juízo antecipatório! – aliás, só se compreendendo a sua arguição por um qualquer equívoco ou deficiente interpretação dos conceitos legais.

É que segundo a referida alínea c) do citado art. 615º, nº1 do n.C.P.Civil, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, mas, obviamente que quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.

Na verdade, o que está em causa nesse normativo é a contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão (dispositivo da sentença) seguir caminho oposto ou direção diferente[6], inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.os 667º e 668º do C.P.Civil[7], e atualmente nos art.os 614º e segs. do n.C.P.Civil, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.

Contudo, compulsada a sentença, o que se constata é que foi face à matéria de facto nela alinhada como provada/assente que se perfilhou um determinado enquadramento jurídico, sendo em coerência com essa fundamentação de facto e de direito que veio a ser proferida a “decisão”.

Dito de outra forma: só fazendo uma interpretação enviesada ou redutora da linha de fundamentação seguida na sentença se poderia sustentar que foi cometido este vício – com referência à “decisão” constante do “dispositivo”...

Não obstante o vindo de dizer, o que foi citado em termos de fundamentação (latu sensu) pelo tribunal a quo, poderá constituir um eventual erro de julgamento (quer de facto, quer de direito) sobre a questão sub judice, mas não um vício estrutural da sentença, que tivesse virtualidades para conduzir à nulidade da mesma.

Por outro lado, “No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos gerais dos arts. 280-1 CC e 295 CC”.[8] 

Contudo, analisando-se a decisão recorrida, facilmente se depreende que a  mesma não enferma de tal vício porquanto na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se deteta qualquer oposição ou contradição.

Aliás, salvo o devido respeito, a Ré/recorrente também nem sequer especificou, com o mínimo de sistematização e individualização, onde e porque é que se verificava esta concreta nulidade…

Termos em que improcede claramente esta via de argumentação aduzida pela Ré/recorrente como fundamento para a procedência do recurso, sem embargo do que infra se decidirá na apreciação dos também alegados fundamentos recursivos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e do “erro/desacerto” na aplicação do direito.

                                                                       ¨¨

Resta apreciar o argumento da nulidade da decisão por omissão e por excesso de pronúncia [art. 615º, nº1, al.d) do n.C.P.Civil].

Nos termos da dita al. d), verifica-se a nulidade da sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Com referência à 1ª parte desta citada al.d), do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.

Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Ora, tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 615º nº1, al.d), do n.C.P.Civil…

Ora se assim é, importa concluir que não houve indubitavelmente omissão de pronúncia quanto aos alegados “Temas de prova” fixados no despacho saneador que não teriam tido resposta/acolhimento na factualidade dada como “provada”!

Como igualmente não houve qualquer excesso de pronúncia em tudo o que concerne ao âmbito/conteúdo dos factos dados como “provados”…

Dito de outra forma: a eventual apontada incorrecção neste particular, não é causa de nulidade de sentença, configurando, quando muito, um erro de julgamento!

Nessa medida, será apreciada nos subsequentes capítulos deste aresto, para lá se reservando a sua apreciação.

Por outro lado, a invocada falta de despacho sobre o deferimento ou indeferimento de meios de prova solicitados, tinha que ter sido invocada pela Ré/recorrente, até ao encerramento da audiência – admitindo-se que esta foi o terminus do momento em que as mesmas foram cometidas! – por a parte estar presente por si e acompanhada da sua Mandatária (cf. art. 199º do n.C.P.Civil), sendo certo que tratando-se, como se tratava, de diligências de prova, a omissão quanto à sua admissibilidade constitui uma irregularidade/nulidade secundária, donde, anterior à sentença.

Assim sendo, não tendo sido suscitada oportunamente, tem que se considerar sanada essa eventual irregularidade/nulidade secundária.

O que tudo serve para dizer que, nesse particular, não estava em causa manifestamente a nulidade da sentença da omissão de pronúncia [cf. art. 615º, nº1, al.c) do n.C.P.Civil], na medida em que – como doutamente sublinhou o Autor/recorrido nas suas contra-alegações! – o invocado  art. 615º reporta-se exclusivamente às causas de nulidade da sentença.

Assim improcedendo, sem necessidade de maiores considerações, este último fundamento da arguida nulidade.

                                                           *

3.3 – A Ré/recorrente sustenta, ainda, o vício da falta de fundamentação da matéria de facto [art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil].

Segundo a alegação da Ré/recorrente, ocorre este invocado vício na medida em que «Não foi pela Mmª Juiz feita uma análise crítica dos meios de prova produzidos no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento».

Na medida em que a Ré/recorrente invoca para fundamentar esta sua linha de raciocínio o disposto no art. 607º, nº 4 do n.C.P.Civil, é possível desde logo concluir que, no fundo, está a invocar alegado vício do segmento da sentença que decidiu a matéria de facto e a forma como o fez, mais concretamente a eventual deficiência da fundamentação apresentada e/ou a insuficiência da motivação apresentada.

Só que, se disso se trata, está afinal a invocar um erro de julgamento quanto à decisão sobre a matéria de facto.

Na verdade, estamos reconduzidos a uma situação de impugnação da decisão sobre a matéria de facto no quadro do previsto pelo art. 640º do n.C.P.Civil!

Sendo certo, por outro lado, que tal não é igualmente fundamento para eventual nulidade da sentença por “falta de fundamentação

É certo que, face ao conspecto alegado, em tese, se poderia configurar a causa de nulidade da sentença prevista no art. 615º, nº1, al.b), 1ª parte do n.C.P.Civil, nos termos do qual é nula a sentença quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”

Porém, desde logo quando se fala, a tal propósito, em “falta de fundamentação”, está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente.

Sem embargo, importa ter presente que se constitui como mais completo e rigoroso o entendimento de que também e ainda ocorre essa nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial[9].

Ora, na sentença recorrida encontram-se claramente especificados os fundamentos de facto e de direito da decisão, pelo que não vislumbramos como possa ter acolhimento essa eventual causa de nulidade da mesma!

Improcede, assim, e também esta via de argumentação aduzida pela Ré/recorrente como fundamento para a procedência do recurso, sem embargo de esta mesma questão ir ser apreciada no enquadramento que temos por pertinente, já na sequência, pois que também vem suscitada nessa base (enquanto alegado “erro na apreciação da prova”).

*

3.4 – A Ré/recorrente deduz igualmente impugnação da matéria de facto [quanto aos pontos 6, 7, 8, 10, 21, 22 e 25, dados por “provados” incorretamente]

Apreciemos com o necessário pormenor e detalhe cada um dos pontos de facto questionados.

(…)

Assim sendo, no parcial acolhimento da reclamação apresentada quanto a este grupo de pontos de facto, operando a reapreciação da prova feita, procede-se à retificação da redacção dos ditos pontos de facto “6.” e “7.” , os quais passam a figurar com o seguinte teor:

«6. No ano de 2013 (Junho) requerente e requerida fizeram um acerto de contas de conteúdo exacto não apurado, tendo ficado por pagar, exclusivamente no que toca ao mês de Junho de 2013, o montante de 326€.»;

«7. No ano de 2013 o requerente não liquidou a pensão de alimentos de 11 meses.»

                                                           ¨¨

Vejamos, agora, o ponto de facto “10.”

(…)

Na medida em que esta situação de facto resulta insofismavelmente atestada pela “Escritura de Herdeiros por morte do Pai da Requerida”, junta como doc.1 das alegações recursivas, o qual enquanto documento autêntico, tem valor probatório pleno (cf. art. 371º, nº1 do C.Civil), donde, sem necessidade de maiores considerações, no acolhimento da impugnação quanto a esta parte, se determina que o dito ponto de facto “21.” passa a figurar com o seguinte teor:

«21. A requerida é conjuntamente com a mãe e irmã, herdeira da herança por óbito de seu pai da qual fazem parte bens que não foi possível apurar, não levando a cabo a partilha por motivos que não logra explicar com exactidão.»

                                                           ¨¨

(…)

Que dizer?

Desde logo que, mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo Recorrente ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, pois que, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, apontando-se como casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas – v.g. por distração – determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

Nesta linha de entendimento, sempre foi sublinhado que «A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.»[10]

Assim, se o julgador de 1ª instância tiver entendido valorar diferentemente da ora Recorrente tais depoimentos, não pode nem deve a Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém na presente sede (v.g. a inquirição presencial das testemunhas – os princípios da imediação e oralidade).[11]

Aliás, em consonância com este entendimento se mostra a circunstância de se manter no atual art. 640º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, donde ter ele que ser conjugado com o artº 607, nº5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”.

Deste modo e sem necessidade de maiores considerações, igualmente improcede a impugnação nesta parte.

*

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O enquadramento e decisão que importa operar na situação vertente reporta-se nuclearmente ao invocado erro de decisão, por se ter dado procedência à pretensão do Autor.

Será assim?

Desde logo, temos que, discordando a Ré/recorrente da sentença proferida, não aduz um único argumento ou razão jurídica que seja para pôr em causa o mérito substantivo da decisão em si.

Recorde-se que tendo sido formulado pedido de cessação da prestação de alimentos pelo A./recorrido à sua ex-mulher e aqui Ré/recorrente, o mesmo obteve provimento, por o Tribunal a quo ter considerado que os factos apurados permitiam concluir que se havia verificado efetivamente uma alteração de circunstâncias que justificava que no caso concreto se declarasse cessada a prestação alimentar que as partes entenderam fixar aquando do divórcio entre ambas.

Ora se assim é, não vemos como questionar uma tal decisão de mérito.

É que as alterações à matéria de facto, decorrentes do supra determinado na apreciação sobre a impugnação relativamente à decisão sobre a matéria de facto, foram meramente pontuais, mantendo incólume o quadro factual em que se estribou a sentença recorrida.

Sendo certo que para bem se aquilatar o acerto de uma tal decisão, importa naturalmente aprofundar a ratio legis dos normativos legais atinentes, pelo que é isso que se vai fazer, com o necessário sintetismo.

Consabidamente, como consequência da adoção do sistema de divórcio constatação de ruptura, a nossa lei consagra atualmente o princípio da auto-suficiência, daí decorrendo o carácter temporário da obrigação a favor dos ex-cônjuges (cf. art. 2016º do C.Civil).

Fundada tal obrigação num dever de solidariedade pós conjugal, a sua constituição depende da necessidade do credor e das possibilidades do devedor; de caráter essencialmente alimentar, a prestação fica sujeita a alterações nos termos do art. 2102º do mesmo C.Civil e cessa tão logo o titular do direito seja capaz de prover à sua subsistência ou o devedor fique sem recursos que lhe permitam continuar a suportá-la (cf. arts. 2012º e 2013º ainda do mesmo C.Civil).

Finalmente, a auto-suficiência não é aferida à luz do padrão de vida conjugal, antes afirmando expressamente o legislador que o credor de alimentos não tem o direito de exigir a sua manutenção (cf. nº 3 do já citado art. 2016º).

Contudo, não deixou de prever que na fixação dos alimentos seja tido em conta a medida da colaboração prestada pelo cônjuge credor à economia do casal (art. 2016º-A, no seu nº 1), afloramento do critério da compensação que justifica o reconhecimento do crédito a que alude o nº2 do art. 1676º do C.Civil, fora do campo específico da obrigação alimentar.[12]

Consagrando esta mesma linha de entendimento, veja-se o que já foi doutamente sublinhado em aresto deste mesmo Tribunal da Relação de Coimbra:

«Deste modo, e como decorre da sequência dispositiva dos artigos 2016º e 2016º-A, ambos do Código Civil, a regra geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, depois do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, é a de que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, constituindo exceção o direito a alimentos, a que qualquer dos cônjuges tem direito, independentemente do tipo de divórcio, sendo que, por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser-lhe negado.-------

Finalmente, atento o disposto no artigo 2016º-A, número 3, do Código Civil, nos termos do qual o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio, ter-se-á que concluir que esta obrigação alimentar genérica, na situação de dissolução ou de interrupção do vínculo conjugal, se terá que aferir, tão-só, pelo que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, não abrangendo já o dever de assegurar um nível de vida correspondente à condição económica e social da respectiva família, com a mesma extensão que teria se os cônjuges continuassem a viver em comum.-------

A obrigação alimentar entre os ex-cônjuges não apresenta, pois, uma feição indemnizatória, pois que já não tem subjacente o dever recíproco e simultâneo de assistência de um dos cônjuges para com o outro, na constância do matrimónio, nem sequer a existência da culpa, única ou principal, do ex-cônjuge, mas apenas um direito de crédito da pessoa carente, de carácter alimentar, sobre outra pessoa, sujeita a um critério de dupla proporcionalidade, quer em função dos meios do que houver de prestá-los, quer da necessidade daquele que houver de recebê-los, com o limite fixado pela possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.-------

Assim, a obrigação alimentar genérica, na situação de dissolução do vínculo conjugal, prossegue, tão-só, o objectivo de fazer face às carências económicas do credor, a suprir em função dos meios económicos suficientes do obrigado, apenas recaindo sobre este o dever de o manter, ou seja, de lhe proporcionar o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário (em conformidade com o estipulado pelo artigo 2003º, do Código Civil), mas não já o suficiente para o credor satisfazer as exigências de vida correspondentes à condição económica e social da família.-------

O cônjuge divorciado não tem, pois, o direito adquirido de exigir a manutenção do nível de vida existente ao tempo em que a comunidade do casal se mantinha, o que significa que o dever de assistência, enquanto existir a comunhão duradoura de vida, tem uma extensão muito maior do que o cumprimento do mero dever de alimentos, quando essa comunhão tiver cessado».[13]

Naturalmente que a prova da incapacidade de prover à subsistência – que está na génese do direito a alimentos entre divorciados – impende, como facto constitutivo desse direito, àquele que deles pretende beneficiar, atento o disposto no art. 342º, nº1, do mesmo C.Civil.

Por outro lado, a necessidade do alimentando consiste na impossibilidade de prover total ou parcialmente à sua subsistência – seja com os seus bens pessoais seja com o seu trabalho, sendo, pois, a impossibilidade de prover ao seu sustento aferida pelo seu património e pela sua capacidade de trabalho.

Donde, no caso de poder prover às suas necessidades através do seu trabalho ou de outros meios que lhe proporcionem um rendimento suficiente, o direito a alimentos pelo ex-cônjuge pode mesmo, no limite, não lhe ser reconhecido, dado ser um meio subsidiário, só justificável na ausência de outros meios de subsistência.

Neste quadro, o que é que temos no caso vertente?

Em nosso entender, que é de subscrever, no essencial, o aduzido na sentença recorrida, a saber, que «resulta dos factos alegados e apurados que A. e R. tendo sido casados um com o outro divorciaram-se em 19.1.2012 por mútuo consentimento junto da Conservatória do Registo Civil da (...) , dessa forma tendo tornado irrelevante, pelo menos nesta sede qualquer discussão sobre a vida individual ou conjunta que fizeram até à data em que efectivamente se divorciaram, pois apenas a essa data se podem reportar os efeitos patrimoniais do divórcio.

Nessa altura, acordaram que o aqui A. pagaria à aqui R. a quantia mensal de 500€ a título de alimentos.

Resulta agora irrelevante se o fizeram porque o A tinha um nível de vida tão elevado que entendeu contribuir com esse valor para que a R. pudesse viver conveniente e desafogadamente, se porque consideraram efectivamente esse valor necessário para o sustento desta ou se o mesmo visava compensar a R., de algum facto ou circunstância decorrido durante o casamento ou em sede de divórcio, não só porque nada disseram a esse respeito como porque efectivamente qualificaram tal quantitativo de prestação alimentar e agora não é legítimo pretenderem invocar o contrário, coo efectivamente nada disso resultou efectivamente provado.

O que importa averiguar é se efectivamente ocorrer uma alteração de circunstâncias que justifique que no caso concreto se declare cessada a prestação alimentar que as partes entenderam fixar, independentemente dos pressupostos que a tal os motivaram.

Ora, tal alteração efectivamente ocorreu.

De facto, à data, o A. tinha uma situação económica, no mínimo invulgar para os parâmetros nacionais, auferia um vencimento líquido mensal de 6.500€. acrescido de 2% sobre o valor das vendas a título de comissão, tinha renda paga em território Alemão, carro atribuído, cartão de crédito, computador e telemóvel pelo que, só com o valor do salário, que não se encontrava onerado com os custos mais elevados de qualquer economia doméstica (renda, transporte, comunicação, despesas de representação), que lhe acresciam poderia viver uma vida folgada, faustosa até, cumprir sozinho os pagamentos das obrigações bancárias contraídas durante a união conjugal e bem assim pagar a dita prestação alimentar à R. e caso entendesse, ainda efectuar poupanças.

Tal situação alterou-se drasticamente á longos anos, pois logo em Junho de 2012, o A. ficou sem aquele trabalho ou qualquer outro, passando de uma condições do tipo daquela que se vem de citar para uma outra de desemprego que seguramente lhe deixava dificuldades para gerir as suas próprias necessidades, pois se o subsídio de desemprego na Alemanha é seguramente muito superior ao nacional, o custo de vida médio também ascende ali a valores incomparáveis aos Portugueses, pelo menos naquela altura.

E, foi passado pouco tempo que o A. foi cessando o pagamento da prestação alimentar, como se constata dos factos provados e a execução proposta comprova a pontos de os ter parado em mês exacto não apurado do ano de 2013 e ainda assim, após o acerto de contas feito nos termos constantes do ponto 6. dos fatos provados.

E tal paragem não mereceu qualquer reacção da exequente até que em 19.3.2015, ou seja, passados cerca de 2 anos, vem propor execução.

Contudo, no referido ano de 2015, a situação do A. sofreu ainda uma mudança mais profunda, desta vez ao nível da saúde, passando a padecer de doença grave, que mantém até ao presente e para além do sofrimento que lhe causa, de acordo com os elementos constantes dos autos, o incapacitava totalmente para o trabalho.

Não obstante por via disso, poder vir a receber ou a ter recebido (o que não se provou) valor adveniente de seguro de saúde, desconhece-se o que eles visavam compensar e que despesas teve ele que pagar com os montantes que recebeu, mais do que isso, estando em vias de ser reformado e vivendo quase exclusivamente porventura dos valores recebidos e do apoio dos familiares, não se vislumbra, como com tão profunda diferença patrimonial desde a data do divórcio se pode sequer conceber manter a obrigação do A. em pagar alimentos à R..

Diga-se, aliás, que não recebendo ela qualquer valor desde mês exacto não apurado do ano de 2013, não se vislumbra como teria sobrevivido se o valor da prestação alimentar fosse fundamental para a sua subsistência.

Mas, mais do que isso, desde o Divórcio passaram já mais de 6 anos, sem que a R. que se declara como credora do A. tenha providenciado por propor inventário para acertar contas com o mesmo, quase se afigurando que pretende que ele liquide integralmente as dívidas contraídas durante o casamento, sem qualquer intervenção da sua parte, mas ainda assim, manter-se credora da prestação alimentar.

Durante o referido período, a R. igualmente não tratou de resolver a sua situação patrimonial, providenciando por se autonomizar economicamente e podia fazê-lo, seja através da obtenção das quantias que entende ter a haver do A., por via da partilha do património comum, seja da partilha do património deixado por óbito de seu pai, do qual conjuntamente com a mãe é única herdeira, após a qual, ainda que por sua conta, poderia encontrar forma de gerir sozinha a sua própria situação económica, ainda que sem ter um tradicional “emprego” por conta de outrem.

Aliás, durante todo esse período ocupa a que foi a casa de morada da família, pelo que não tem quaisquer gastos com habitação, reside com a filha que trabalha e que se não contribui para as despesas domésticas tem condições para o fazer e beneficia da ajuda regular da progenitora que lhe vai entregando por motivos exactos não apurados, mas seguramente sem os pedir de volta, pois são as únicas contitulares da herança do falecido e a R. a única filha, valores esses que usa da forma que bem entende e que já podia ter usado para montar uma pequena actividade produtiva, que lhe permitisse subsistir autonomamente do A., passado tanto temo sobre o divórcio, precisamente numa altura em que este viu drasticamente diminuído o seu rendimento, padece de doença grave, suporta sozinho os encargos bancários do passivo contraído durante o casamento e carece, ele próprio da ajuda de familiares para prover à sua integral subsistência.»

Assim, por nada haver que censurar ao sentido da decisão recorrida, importa declarar, sem mais improcedente o recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Como consequência da adoção do sistema de divórcio constatação de ruptura, por via do que a nossa lei consagra atualmente o princípio da auto-suficiência, decorre o carácter temporário da obrigação a favor dos ex-cônjuges (cf. art. 2016º do C.Civil), isto é, a regra geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, depois do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, é a de que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, constituindo exceção o direito a alimentos, a que qualquer dos cônjuges tem direito independentemente do tipo de divórcio, sendo que, por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser-lhe negado.

II – Sendo fundada a dita obrigação num dever de solidariedade pós conjugal, a sua constituição depende da necessidade do credor e das possibilidades do devedor; de caráter essencialmente alimentar, a prestação fica sujeita a alterações nos termos do art. 2102º do mesmo C.Civil e cessa tão logo o titular do direito seja capaz de prover à sua subsistência ou o devedor fique sem recursos que lhe permitam continuar a suportá-la (cf. arts. 2012º e 2013º ainda do mesmo C.Civil).

 III – Assim, se no caso vertente, os factos permitem concluir que se havia verificado efetivamente uma alteração de circunstâncias, nada há que censurar à decisão que declarou cessada a prestação alimentar.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se, a final, julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.

            Custas em ambas as instâncias pela Ré/recorrente.

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  Coimbra, -- de Dezembro de 2018  

                                              

Luís Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] Sendo certo que quanto a este elenco de factos concretamente impugnados se tem em consideração a delimitação decorrente do que figura nas “conclusões” das alegações recursivas, directriz legal de acordo com a melhor jurisprudência, a saber, «Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.» - cf. acórdão do STJ de 12.05.2016, no proc. nº 324/10.9TTALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Já com as alterações decorrentes do deferimento da retificação dos manifestos lapsos de escrita invocados pela Ré/recorrente, dada a não oposição do A./recorrido, e face à simplicidade/linearidade do que estava em causa (cf. arts. 249º do C.Civil e 614º do n.C.P.Civil).
[4] Dando-se aqui por reproduzido o mencionado na antecedente nota.
[5] cf., “inter alia”, o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17-04-2012, no processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, o qual não obstante proferido no quadro do pré-vigente C.P.Civil entendemos que mantém plena atualidade face ao n.C.P.Civil.
[6] Assim o acórdão do STJ de 14.01.2010, no proc. nº 2299/05.7TBMGR.C1.S1, com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr., por todos, o acórdão do STJ de 23.05.2006, no proc. nº 06A1090, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Assim por JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 735.
[9] cf., “inter alia”, o Ac. do T.R. de Coimbra de 17-04-2012, no processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, com entendimento que persiste como perfeitamente válido no presente quadro normativo.
[10] Assim no acórdão do S.T.J. de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
[11] Neste sentido o acórdão do T.R. de Lisboa de 04/02/2014, proferido no proc. nº 982/10.4TVLSB.L1-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[12] Cf. mais aprofundadamente sobre cada um dos aspectos aqui sumariamente referidos, TOMÉ, MARIA JOÃO ROMÃO CARREIRO VAZ, in “Considerações sobre alguns Efeitos Patrimoniais do Divórcio na Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro: (in)adequação às 42 realidades familiares do século XXI?”, in E foram felizes para sempre…? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio – Actas do Congresso de 23, 24 e 25 de Outubro de 2008, Coimbra Editora, 2010.
[13] Trata-se do acórdão de 12.01.2016, no proc. nº 1833/13.3TBPBL.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.