Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/13.0JACBR.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: VIOLAÇÃO
AMEAÇA GRAVE
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 164º Nº 1 CP
Sumário: 1.- No crime de violação a ameaça ou é tida como tal e é levada a serio e é ameaça grave, ou não é levada a serio e deixa de ser ameaça. Assim que a ameaça levada a serio pela vítima é sempre ameaça grave.

2.- É pelo padrão da vítima, da pessoa a quem é dirigida a ameaça que se aferirá da sua gravidade.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

No processo supra identificado foi proferido acórdão que julgou parcialmente procedente a acusação deduzida, pelo Mº Pº contra o arguido.

A..., solteiro, ladrilhador, filho de (...) e de (...), nascido em (...), Coimbra, a 24/10/1971, titular do B.I. nº (...), residente na Rua (...), Coimbra.

Sendo decidido:

I- Absolver o arguido de um crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelo artº176 nº 1 al. b), conjugado com o artº 177 n.ºs 1 al. b), 6 e 7, ambos do C.P.

II- Condenar o arguido pela prática de um crime de violação agravado, p. e p. pelo artº 164 nº 1 al. a) do C.P., conjugado com o artº 177 n.ºs 1 al. b), 6 e 7, ambos do C.P. (condutas praticadas com a menor ofendida antes desta ter completado 14 anos) na pena de seis anos de prisão.

III- Condenar o arguido pela prática de um crime de violação agravado, p. e p. pelo artº 164 nº 1 al. a) do C.P., conjugado com os artº 177 n.os 1 al. b), 4 e 7, ambos do C.P. (condutas praticadas com a menor ofendida após esta ter completado 14 anos e das quais decorreu uma gravidez) na pena de sete anos de prisão.

IV- Condenar o arguido, em cúmulo dessas duas penas, na pena única de nove anos de prisão.

V- Manter a medida de coação de obrigação de permanência na habitação sob vigilância eletrónica, por se mostrarem inalterados, surgindo mesmo reforçados com a presente decisão, os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação, ponderados nos despachos que aplicaram a referida medida de coação e naqueles que sucessivamente a reapreciaram, aqui dados como reproduzidos.


***

Inconformado, da sentença interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões na motivação do mesmo e, que delimitam o objeto:

1.Desde logo, em cumprimento do disposto no artigo 412, n.º 3 do Código de Processo Penal, atenta a natureza do presente recurso como sendo portador de um dissenso em matéria de facto, cumprirá indicar quais os factos que se reputam de "incorretamente julgados".

2.Assim, dando cumprimento ao comando legal, dir-se-á que, na ótica do recorrente, merecem tal epíteto aqueles consignados nos pontos 15, 16, 17, 20, 21, 40, 41, 42, 43, 44, e IV da matéria de facto provada- ou seja e principalmente, todos aqueles atinentes à existência da ameaça e seu fundamento (completa dependência económica do agregado familiar em relação ao arguido), bem como (ponto IV) a falta de arrependimento demonstrada em audiência.

3.Na verdade, o Douto Coletivo, para formar a convicção relativamente a tal materialidade bastou-se, única e simplesmente, com as declarações para memória futura prestadas pela vítima.

4.O Douto Acórdão condenou o arguido, ora recorrente, no âmbito do processo em epígrafe, pela prática de dois crimes de violação agravados, p. e p. pelo art. 164, n.º 1, al. a), com referência ao art. 177, n.ºs 1, b), 4, 6 e 7, ambos do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão efetiva, em cúmulo jurídico.

5.Não pode o recorrente conformar-se com o Douto Acórdão proferido na medida em que entende que os pontos acima referidos foram incorretamente julgados, e assim, procedendo-se à aventada alteração da factualidade provada, tais factos não consubstanciam o tipo de crime pelo qual foi condenado.

6.Ora, nos termos do art. 164 do Código Penal, comete o crime de violação, "quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tomado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos". A conduta é punida com pena de prisão de 3 a 10 anos.

7.Em face da alteração não substancial dos factos operada pelo Tribunal a quo estamos em crer que não se pode dar como provada a existência sequer de qualquer ameaça e muito menos a utilização de ameaça grave, exigida pelo art. 164, n.º 1, do Código de Processo Penal, por parte do arguido perante a menor.

8.Efectivamente, o arguido não era o único titular de rendimentos no seio do agregado familiar, pelo contrário a mãe da menor auferia rendimentos superiores aos do próprio arguido.

9.Sendo certo, que tais rendimentos eram suficientes para a sobrevivência da mãe da menor, da menor e do seu irmão, na medida em que, infortunamente, na atualidade do nosso País, grande parte dos agregados familiares sobrevive com rendimentos inferiores aqueles auferidos pela mãe da menor (basta um dos progenitores estar desempregado, não receber subsídio de desemprego e o outro auferir o salário mínimo mensal).

10. Assim, não se tendo logrado a obtenção de prova da alegada ameaça, na medida em que se provou, em audiência de discussão e julgamento, não existir o seu fundamento - total dependência económica do agregado familiar relativamente ao arguido - não pode o arguido ser condenado pelo crime de violação.

11. Todavia, o Tribunal valorou integralmente as declarações prestadas pela vítima e condenou o recorrente no ilícito em apreço apenas com base nelas.

12. Ora, salvo o devido respeito, tal espécie decisória é criticável.

13. Em primeiro lugar, pela existência de factos provados que contrariam a existência da ameaça na medida que provam a inexistência do seu fundamento.

14. Por outro lado, o Tribunal omitiu injustificadamente as declarações da mãe da menor, relativamente ao facto da mesma "pedir para dormir com a mãe e com o arguido" (declarações constantes do ficheiro 20140109153405 112053 139473, com a duração de 26 minutos e 22 segundos, declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal. De relevo neste depoimento encontra-se a passagem entre os 23 minutos e 42 segundos e os 24 minutos e 41 segundos).

15. Ora, tais declarações da mãe da menor esvaziam e põem em irreversível crise o conteúdo das declarações da vítima no que à existência da ameaça concerne.

16. Sendo que a não apreciação do referido conteúdo de tais declarações importa a nulidade do Acórdão, nos termos do art. 379, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.

17. Por outro lado, tal decisão é, ainda criticável, pelo arbítrio relativamente ao princípio da livre apreciação da prova que viola inexoravelmente o princípio da presunção da inocência (art. 32/2 da Constituição da República Portuguesa).

18. Desde logo, porque uma decorrência desse matricial princípio, exatamente naquela que impõe que nenhum arguido está onerado com a obrigação de demonstrar a respetiva inocência.

19. Por outro lado, o princípio agora chamado a terreiro também se mostra desconsiderado numa sua outra indiscutível vertente;

20. Exatamente enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

21. Este postulado impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos, relativamente à existência da ameaça e principalmente existência probatória de factos que a contrariam, fosse valorada a favor da posição processual do arguido, ora recorrente.

22. Na medida em que, de acordo com a respetiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

23. Ora as mencionadas alterações factuais - impostas face ao que supra se adiantou - não deixarão de reconhecer importantes refrações na decisão.

24. Importa, ainda, realçar que mesmo a existir a alegada ameaça a mesma não é suscetível de integrar o conceito de ameaça grave, exigido pelo art. 164, n.º 1, do Código Penal, como anteriormente se esgrimiu.

25. Com efeito, deixará de existir razão para a emergência da condenação do arguido como autor de dois crimes de violação qualificados.

26. Na verdade, o mencionado preceito incriminador exige a comissão de uma factualidade - dita típica - que o arguido, manifestamente, não perpetrou,

27. Razão pela qual é mister concluir que o seu comportamento não preencheu o tipo-de-ilícito por que foi condenado,

28. O que leva à fácil conclusão que a norma do artigo 164, n.º 1 do Código Penal, se mostra violada.

29. Dado que, não se mostra preenchido um dos elementos do tipo, a existência de ameaça grave.

30.Finalmente - independentemente do destino das anteriores conclusões - quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.

31. Efetivamente a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.

32. Designadamente mostram-se violados os artigos 71, n.º 1, e 40, n.º 1, ambos do Código Penal.

33. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.

34.Nomeadamente o n.º 2 do citado artigo 40 estabelece que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa o que é a repristinação do princípio nulla poena sine culpa.

35. Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta, nomeadamente, que a prevenção especial ao nível da ressocialização se encontrava sensivelmente diminuída, face à idade do arguido e à sua inserção social, laboral e familiar.

36.Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em dessintonia com os preceitos invocados,

37.Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor.

38. E, ainda, necessariamente inferior ou igual a cinco anos de prisão, na medida em que a mesma se deverá fixar nos limites mínimos, como supra exposto.

39. Efetivamente, o Tribunal a quo fundamenta a medida das penas eleitas com o grau muitíssimo elevado de ilicitude da conduta, o facto de o arguido ter agido com dolo direto e muito intenso, as consequências dos atos do arguido, a dependência económica da vítima em relação ao arguido, prementes exigências de prevenção geral devido ao forte alarme social, bem como fortes exigências de prevenção especial devido à falta de arrependimento do arguido.

40. O Douto Acórdão considera que a confissão parcial do arguido, ou seja, a falta de confissão integral e sem reserva constitui falta de arrependimento do arguido pelo cometimento dos atos sexuais e suas consequências com a menor.

41. Assumindo a convicção que o facto de o arguido não confessar a alegada ameaça constitui um meio de se desculpabilizar e portanto não terá interiorizado na sua plenitude a ilicitude dos factos cometidos e que portanto, tal evidencia falta de arrependimento.

42. Todavia, salvo o devido respeito, a falta de confissão integral não pode, nem deve, de forma automática significar, desencadear na convicção do Tribunal, falta de arrependimento do arguido.

43. Em primeiro lugar, porque não podia o arguido confessar factos que não cometeu, em segundo lugar, porque os factos provados, em audiência de discussão e julgamento, não permitem a prova da existência da ameaça e, em terceiro lugar, porque não foi tido em suficiente consideração o relatório social do arguido elaborado pela equipa de vigilância eletrónica.

44. Pelo exposto, a não confissão integral, interpretada como falta de arrependimento pelo arguido, não deveria ter pesado como pesou na escolha da medida concreta das penas aplicadas ao arguido.

45. Assim, deve ser valorado o efetivo arrependimento do ora recorrente.

46. O arguido foi de uma absoluta colaboração, porquanto, desde o início que mostrou total disponibilidade para a descoberta da verdade.

47. O arguido é primário, sendo o presente processo um acidente de percurso, já que, até aí, o arguido nunca tinha tido problemas com as autoridades.

48. Foi sempre trabalhador e cumpridor com as normas socialmente aceites.

49. O arguido mantém uma positiva e consolidada inserção familiar, social e profissional onde sempre beneficiou de uma imagem positiva, pelo que a prática dos crimes terá assumido carácter excecional num percurso normativo.

50. O seu agregado familiar, composto pelos pais, está disposto a continuar a acolher e a apoiar o ora arguido.

51. Porém, salvo o devido respeito, não se compreende que uma pessoa com esse percurso de vida, a todos os níveis, sem antecedentes criminais, que sempre trabalhou, apesar da conjuntura atual, com uma família determinada a dar-lhe todo o apoio (conquanto compreende que poderá ter sido apenas um acidente de percurso), pode ser condenado em penas tão elevadas, que em cúmulo determinaram 9 anos de prisão.

52.Não estará o tribunal "a quo" a contribuir para atirar para a delinquência e para a má vida um cidadão que até à prática dos factos aqui em apreço tinha um percurso imaculado, e que por isso, ainda é recuperável, podendo ainda ser útil à sociedade?

53. Acresce que, em face do agora exposto, tal pena deverá ser suspensa como impõe o comando inserto no artigo 50, n.º 1, do Código Penal.

54. Na verdade, o sobredito preceito estatui que "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

55. Ou seja, a suspensão da execução da pena não obedece a qualquer ideia de discricionariedade, decorrendo, ao invés, do exercício de um poder-dever vinculado, que impõe que seja decretada sempre que se verifiquem os pressupostos legalmente enunciados.

56. Ora, tal medida - de insofismável carácter pedagógico - depende da respetiva adequação à socialização do arguido - atendendo à personalidade, condições de vida e conduta anterior e posterior aos factos - e do facto da censura e ameaça de prisão realizarem as finalidades da punição.

57. Isto é, são as razões preventivas de natureza especial que se a1candoram a um patamar de indesmentível relevância no que tange ao funcionamento do sobre dito mecanismo, sem que se possa, todavia, olvidar a prevenção geral.

58. Assim, sob pena de violação irremissível do disposto no n.º 1 do mencionado artigo 50 do Código Penal, deve a pena aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução.

59. Efetivamente, a personalidade do agente, o seu comportamento anterior e posterior aos crimes e as circunstâncias destes permitem o juízo de prognose que a ameaça da pena e a censura traduzida nesta realizam as finalidades da punição.

60. Pelo que, a pena deverá ser sempre escolhida tendo em conta a reintegração do agente na sociedade, não podendo a mesma ter como efeito a destruição de um projeto de vida e de uma ressocialização que com esforço o agente alcançou.

61. Em face de todo o exposto, ou seja, o facto do ora arguido não ter antecedentes criminais, ter confessado parcialmente os factos de que vinha acusado, porque efetivamente não pode confessar a existência de uma ameaça que na realidade não existiu, na medida em que nem o próprio fundamento da mesma se verificava, é nosso entendimento que, salvo o devido respeito, as penas que foram aplicadas ao aqui recorrente foram excessivas, tornando o cúmulo obviamente também ele excessivo.

62. Ao decidir como decidiu violou o Tribunal a quo as normas constantes dos artigos 40,50,70 e 71 do Código Penal, bem como as disposições contidas nos artigos 1 e 18, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Deve o recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das "conclusões" tecidas.

Foi apresentada resposta pelo Magistrado do Mº Pº que conclui:

I- O Tribunal a quo pronunciou-se sobre todas as questões de facto e de direito relevantes para a boa decisão da causa, tendo fundamentado com acerto, precisão, sem contradições e de acordo com as regras da experiência comum a posição assumida no acórdão.

II- O Tribunal a quo ponderou com equilíbrio o disposto no art.71 do Código Penal, tendo em conta, designadamente, a culpa do arguido, as exigências de prevenção geral e especial e ainda as circunstâncias que, não fazendo do tipo de crime, depuseram a seu favor e contra ele, mostrando-se, pois, adequada a pena única que lhe foi aplicada.

III- O acórdão recorrido não padece de qualquer vício nem foram violadas quaisquer disposições legais.

Nesta conformidade, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Nesta Relação, o Ex.mº PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417 do CPP.

Não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:


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São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido deu como provados e sua motivação:

II – FUNDAMENTAÇÃO

A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1- A menor B... nasceu a x... de Setembro de 1998 e é filha de C.. .e de D....

2- A mãe da menor mantém uma relação de união de facto com o arguido desde há cerca de dois anos, situação que se manteve pelo menos até ao dia 24 de maio de 2013.

3- A D... residia com os filhos, a ofendida B... e o E..., de 14 e 13 anos, na companhia do arguido A..., com quem mantém uma relação análoga à dos cônjuges, vivendo com o arguido em união de facto desde há cerca de dois anos, situação que manteve até ao passado dia 24 de maio de 2013.

4- O arguido vivia assim com a ofendida B..., o irmão desta e mãe destes numa casa arrendada sita na Rua (...), nesta cidade, situação que ocorria desde há dois anos a esta parte, sem interrupções.

5- O arguido tratava dos filhos da sua companheira – a B... e o E...– como se seus filhos fossem, chamando-os por “filha” e “filho” e por estes chamado de “pai”.

6- Durante o tempo que viveu em união de facto com a mãe dos menores, ou seja, desde há pelo menos dois anos a esta parte, o arguido acompanhava o crescimento e atividade escolares dos menores, indo buscá-los e levá-los à escola, ajudando-os nos trabalhos de casa e escolares, explicando-lhes as matérias escolares que os mesmos não compreendiam e dentro das suas possibilidades, interessava-se e participava ativamente na vida dos menores, em suma, o arguido assumiu na vida destas crianças o ativo papel de pai.

7- Este agregado familiar tinha como fonte de rendimento o salário mensal do arguido no montante de 580€ mensais e o subsídio de desemprego/subsídio social de desemprego da mãe da menor no montante de 419€ mensais, acrescido de 120€ que a mesma recebia a título de prestação de alimentos devidos à menor B..., 70€ a título de abono de família, recebendo esta ainda a quantia de 120€ mensais como contraprestação pela frequência de plano ocupacional.

8-Com efeito, a mãe da menor B... encontra-se há cerca de ano e meio desempregada e desde março do corrente ano [2013, data em que foi deduzida acusação] não usufrui de qualquer rendimento ou subsídio por se encontrar desempregada, não tendo qualquer perspetiva de retomar vida laboral.

9- O arguido repartia assim com a mãe da menor todas as despesas do agregado familiar, desde a renda de casa, água, luz, gás, alimentação, vestuário, despesas escolares e de saúde, etc.

10- A menor B... sabia perfeitamente qual a situação económica da família, designadamente sabia que a mãe não tinha qualquer possibilidade económica para se sustentar a ela própria e aos filhos, sem a ajuda do arguido.

11- Durante os primeiros tempos de relacionamento conjugal entre o arguido e a sua companheira, o arguido mantinha para com os filhos desta, designadamente para com a menor B..., uma conduta compatível com a comum de um padrasto empenhado e atencioso.

12- Acontece que a menor foi crescendo, ganhando formas femininas e a conduta deste para com a menor B... foi-se modificando, passando a olhar para esta como “uma pequena mulher” e não como “filha”.

13- Assim, desde o verão de 2012, o arguido começou a gabar a figura da menor B..., dizendo-lhe que estava “uma mulher”, que “estava muito bonita”, entre outras expressões.

14- Esta aproximação foi-se intensificando, de tal modo que, em momento não concretamente determinado do mês de junho de 2012, numa altura em que estava em casa, sita na morada acima indicada, sozinho com a menor B..., o arguido abordou-a, agarrou-a pelos braços, encostou-se ao corpo dela, impedindo-a assim, através da sua força física, de fugir e começou a beijá-la na boca, enquanto com as mãos a acariciava na zona genital e peito.

15- Perante a resistência da menor B..., que lhe pedia para parar e a deixar ir embora, o arguido, em tom muito sério, repetidas vezes disse à menor para esta estar quieta e calada e não se opor ao que lhe ia fazer, pois se não o fizesse ou contasse a alguém o que se ia passar, punha a mãe desta na rua, deixando a mãe da menor na miséria e mandava a menor B... e o irmão E...para “um colégio” – ou seja, dizia à menor que se esta não acedesse aos seus propósitos ou contasse a alguém o que ia fazer com a menor, deixava de sustentar economicamente a família, deixando assim a mãe da menor sem meios de subsistência e separando os filhos da mãe, colocando-os em instituições para crianças carenciadas.

16- A menor, à data apenas com 13 anos, muito assustada com a perspetiva da mãe ficar na rua e sem meios para viver e com a possibilidade de ser separada da mãe e do irmão, pois o arguido dizia-lhe que “iam para uns colégios”, ficou quieta e não se opôs aos avanços do arguido.

17- Assim, depois de ter criado esta envolvência em redor da menor, obtendo assim a passividade desta, o arguido levou-a para o quarto que partilhava com a companheira, deitou a menor na cama do casal, tirou-lhe a roupa e retirou a sua própria roupa, tendo os dois ficado despidos.

18- Em seguida, enquanto beijava a menor pelo corpo nu, em especial na boca, com as mãos, percorria-lhe o corpo, acariciando-lhe a zona genital e do peito.

19- Depois, introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina da menor B..., ali o mantendo em movimentos ritmados para cima e para baixo, até ali ejacular.

20- Depois desta conduta, o arguido voltou a advertir a menor, em tom muito sério, que não podia contar nada a ninguém, pois caso contrário a mãe ficava na miséria e a menor e irmão iam ser colocados em instituições, separando-se assim uns dos outros.

21- Receosa que tal pudesse acontecer, a menor nada contou, tendo ficado em silêncio.

22- A partir deste dia e até 24 de maio de 2013, o arguido diariamente mantinha para com a menor estas condutas.

23- Assim, desde data não apurada de junho de 2012 até ao dia 24 de maio de 2013, aproveitando-se das ocasiões em que ficava sozinho com a menor B..., fosse na casa onde todos habitavam e acima indicada, fosse numa outra da família do arguido e quando lá não estava ninguém, o arguido despia-se, exigia que a menor se despisse e então beijava-a, com as mãos acariciava-a pelo corpo, com especial incidência na zona genital e peito e depois introduzia o seu pénis ereto no interior da vagina da menor, ali o movimentando para cima e para baixo até ali ejacular.

24- Destes relacionamentos de sexo vaginal que o arguido manteve com a menor B... resultou, para além do mais, uma gravidez, que no dia 24 de maio de 2013 tinha 13 semanas e um dia.

25- Por vontade expressa da menor e mãe desta, no dia 31 de maio de 2013, na Maternidade (...), nesta cidade, foi efetuada a interrupção voluntária desta gravidez.

26- Na ocasião foram recolhidas as correspondentes amostras para determinação da paternidade do feto.

27- O feto, do sexo feminino, é filho da menor B...e do arguido A..., conforme resulta do teor do exame de determinação de paternidade, constante de fls. 131 a 136 e cujo teor é aqui dado integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

28- Com efeito, a menor era menstruada desde pelo menos setembro de 2012, facto que o arguido bem sabia.

29- Com exceção de uma única vez, em que o arguido utilizou preservativo, nos múltiplos contactos de cariz sexual, designadamente cópula vaginal, que manteve com a menor B..., o arguido nunca utilizou qualquer tipo de método anticoncecional.

30- Desde o seu início, no verão de 2012, em data não concretamente apurada do mês de junho, até que terminaram, no dia 24 de maio de 2013, o arguido manteve quase diariamente com a menor B... contactos de cariz sexual, designadamente com introdução do seu pénis ereto na vagina da menor, seguida de ejaculação.

31- Em consequência dos mesmos, a menor engravidou.

32- No dia 24 de Maio de 2013 o arguido foi buscar a menor B... à escola e levou-a para uma casa da família nesta comarca, onde mais uma vez manteve com esta relações sexuais de cópula vaginal.

33- Acontece que se demoraram mais que o habitual.

34- A menor chegou a casa tarde e a mãe estava já à espera desta preocupada.

35- Isto aliado ao facto da menor ter o período atrasado e, andar mal disposta, tudo levou a mãe da menor a suspeitar que esta poderia estar grávida.

36- Assim, de surpresa tirou-lhe o telemóvel, onde verificou as mensagens constantes dos autos e aqui invocadas, de conteúdo sexual explícito e enviadas pelo arguido à menor.

37- Levou a menor ao Hospital Pediátrico de Coimbra, tendo sido efetuada uma ecografia na Maternidade (...), tendo-se na ocasião confirmado a ocorrência de uma gravidez com feto com idade gestacional de 13 semanas e um dia.

38- O arguido bem sabia a idade da menor B....

39- Sabia ser um dos suportes económicos da sua família.

40- A menor, filha da sua companheira, com quem vive em união de facto, estava à sua guarda e cuidado de facto, dependendo em termos económicos deste.

41- O arguido para obter a passividade e silêncio da menor, criou em torno desta um ambiente de medo, pois dizia-lhe por repetidas vezes que caso a mesma não acedesse aos seus desejos ou contasse a alguém o sucedido “deixaria a mãe na miséria e colocava-os (à menor e irmão) em colégios”.

42- O arguido quis e conseguiu proferir expressões dirigidas à menor e adotar condutas idónea a criar nesta a convicção que, caso não acatasse os seus desejos, seria separada da mãe e irmão e seria a causa da miséria da família.

43- Aliás, tais condutas e expressões eram idóneas a causar tal convicção em qualquer cidadão médio e comum, ainda mais numa criança frágil como era a menor, fins que o arguido representou e logrou alcançar.

44- O arguido quis e conseguiu manter para com a menor B... condutas lesivas do recato sexual devido a uma menor, em especial e como era o caso, que dependia completamente em termos económicos deste e que se encontrava sob a alçada do arguido, à sua guarda e cuidado de facto, pois este tinha o dever de zelar pela sua segurança e educação.

45- O arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos lascivos do modo acima indicado, deles resultando a gravidez acima indicada.

46- Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei.

FICOU AINDA PROVADO

I – Dados relevantes do processo de socialização

A... nasceu em Coimbra, no seio de uma família de modestos recursos socio económicos, sendo o único filho do casal.

O pai trabalhava como pedreiro na construção civil e a mãe numa fábrica de confeções.

O processo de desenvolvimento do arguido decorreu, sempre nos arredores da cidade (...), num ambiente familiar normativo e com valorização de práticas educativas consistentes.

Frequentou a escolaridade em idade própria, no entanto, por falta de motivação e após duas reprovações no 7.º ano de escolaridade, abandonou os estudos, possuindo como habilitações académicas o 6.º ano.

Iniciou-se laboralmente aos 16 anos na área da construção civil como servente, passando alguns anos a trabalhar com um tio paterno e posteriormente para outras empresas dessa área.

Também trabalhou por conta própria, durante cerca de dois anos. No entanto, devido a alguns problemas (dificuldade em receber o pagamento dos trabalhos que realizava), voltou por trabalhar por conta de outrem (embora continuasse a efetuar pequenos trabalhos em horário pós laboral e aos fins-de-semana), nomeadamente para a empresa de construção civil “ K... Lda”, onde se manteve durante 13 anos.

Em termos afetivos, fez referência a alguns relacionamentos, durante a juventude e idade adulta, pouco consistentes e de curta duração. A única relação amorosa relevante, com a mãe da vítima nos presentes autos, surgiu há aproximadamente três anos, tendo o casal e os dois filhos menores da companheira passado a residir num apartamento arrendado pelo arguido, que sempre vivera com o agregado familiar de origem (pai e mãe).

Não possui comportamentos aditivos, assim como não há conhecimento de qualquer outro contacto com o sistema da justiça.

II – Condições sociais e pessoais

A... encontra-se no âmbito do presente processo judicial, desde 09Set2013, sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.

A execução da medida de coação tem vindo a decorrer na residência dos seus pais, local onde o arguido voltou a residir desde o início do presente processo judicial.

O relacionamento entre os vários coabitantes é considerado estável e coeso, com sentimentos de entreajuda.

No meio sócio residencial onde se processou todo o seu desenvolvimento e onde era conhecido o seu relacionamento, A... foi descrito como um indivíduo educado, portador de uma conduta recatada e normativa, sendo-lhe reconhecidas competências pessoais, sociais e profissionais.

Por essas razões foi com sentimentos de surpresa e admiração que a generalidade das pessoas do meio reagiu ao conhecimento dos factos que lhe são imputados.

Nos contactos efetuados junto da entidade patronal, o arguido é considerado um bom trabalhador, revelador de sentido de responsabilidade, competente e empenhado.

Não se observaram contingências situacionais que frequentemente estão associadas aos crimes de abuso sexual, tais como patologia do foro psíquico ou psicológico, consumo de substâncias (álcool, drogas), prática sexual não convencional, existência de atitudes antissociais ou outros comportamentos desajustados.

Economicamente, o seu agregado tem vivido dos rendimentos provenientes das reformas dos pais, no valor de aproximadamente 400 euros, no total, sendo a situação, apesar de precária, suficiente para a satisfação das necessidades básicas.

Futuramente verbaliza a intenção de, assim que resolvida a sua situação processual, continuar a residir com os progenitores, os quais se dispõem a prestar-lhe todo o apoio necessário e voltar a trabalhar na mesma área de atividade.

III – Impacto da situação jurídico-penal

O presente processo e o atual estatuto coativo, apesar dos condicionalismos, não vieram alterar significativamente o seu enquadramento familiar e social, continuando o arguido a manter, junto dos familiares, meio comunitário de origem e entidade patronal, uma imagem positiva.

A execução da medida de coação, pese embora o constrangimento provocado pelo confinamento a que se encontra sujeito, tem decorrido de forma positiva, sem registo de incidentes, vindo o arguido a respeitar os seus pressupostos.

O arguido vivencia com expectativa e preocupação o desfecho da atual situação jurídica.

IV – O arguido evidenciou falta de arrependimento em audiência.

V – Nada consta do CRC do arguido.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não ficou provado que o salário do arguido fosse a única e exclusiva fonte de rendimento do agregado familiar, que era ele o único e exclusivo sustento económico da casa, que o arguido também tirava fotografias à menor, quando esta estava nua e onde era visível o seu peito e zona genital e anal e não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

1: Certidão de assento de nascimento de fls. 117.

2 a 9 e 11: conjugação das declarações do arguido que, nesta parte assim descreveu esses factos, com o depoimento da testemunha D..., mãe da menor, prestado em sentido essencialmente concordante esclarecendo designadamente que subsídios recebia e que deixou de receber o subsídio social de desemprego em março de 2013.

10: declarações da menor que revelou perceção da situação económica do agregado familiar (v.g. “a minha mãe e depois deixou de receber, mas ele sempre trabalhou”).

12 a 37 e 41: Assim o relatou, no essencial, a própria B... conforme resulta das suas declarações para memória futura cuja transcrição consta de fls. 159 a 188. Aquele relato mereceu inteira credibilidade sendo que a testemunha veio a confirmar os factos à própria mãe, apesar de nunca o ter feito de forma detalhada. Especialmente impressivo desta renitência da menor em relatar os factos às pessoas que lhe são chegadas foi o depoimento da mãe da menor a qual referiu que mesmo quando confrontada com a sua gravidez visível na ecografia a menor continuava a negar essa gravidez e que quando lhe perguntou “Foi o A...?”, a resposta que obteve da menor foi “ela agarrou-se a mim a chorar e não foi preciso dizer mais nada … ali estava”. Este silêncio e renitência em relatar o sucedido é comum em vítimas de crimes sexuais e, tantas vezes induzido pelo próprio agressor, como aconteceu no caso concreto, não retira credibilidade ao seu testemunho. Anota-se que mesmo durante a avaliação psicológica a menor foi incapaz de relatar por escrito que o pior momento que vivenciou foi o abuso que sofreu apesar de o ter verbalizado como tal. E neste mesmo sentido de corroborar a credibilidade merecida pela menor o relatório dessa avaliação psicológica de fls. 151 a 154 no qual se dá conta de uma personalidade sem propensão para confabular, não se mostrou demasiado imaginativa, não recorre a fantasias, nem se mostrou sugestionável, pelo que, também de um ponto de vista psicológico, é de aceitar a credibilidade do seu discurso.

Também o arguido, assumindo embora uma postura desculpabilizante e refugiando-se num alegado consentimento da menor (totalmente incompatível, de acordo com as mais elementares regras da experiência, quer com a idade desta quer com o facto de o arguido e a mãe da menor manterem um relacionamento) não deixou de admitir parcialmente a prática dos factos, situando porém em janeiro o início das relações sexuais que reconhecidamente manteve com a menor, no que não mereceu credibilidade, no confronto com os restantes meios de prova produzidos (designadamente com as assinaladas declarações da menor).

O depoimento da mãe da menor, que assim descreveu esses factos foi também esclarecedor quanto ao ocorrido em 24/5/2013, dando conta da sua preocupação pelo facto de a menor ter chegado tarde, como leu as mensagens recebidas no telemóvel da filha e de como descobriu a gravidez desta à qual decidiram pôr termo.

24 a 27: também a informação clínica de fls. 29 a 33 (original de fls. 223/24) respeitante à ecografia realizada no dia 24/5/2013 na maternidade (...) onde se confirma uma gravidez com 13 semanas e 1 dia e o relatório pericial de fls. 133 a 135 onde se conclui que a probabilidade de o arguido ser o pai do feto do sexo feminino filho da menor B... é de 99,9999991%.

38 a 40 e 42 a 46: meios de prova supra referidos e conjugação da factualidade objetiva provada com a experiência comum das coisas.

I, II, III: relatório social de fls. 352 a 355.

IV: Apesar de constar do relatório social que o arguido apresenta sentido crítico, considerando reprovável o seu comportamento ao envolver-se sexualmente com uma menor, esse sentido crítico não surgiu evidenciado em audiência. Aliás é até contraditório com o inconformismo referido no mesmo relatório social ali justificado por não concordar com a globalidade dos factos pelos quais se encontra acusado. Foi aliás da descrição dos factos que fez em audiência, da sua já referida postura desculpabilizante e refugiando-se num alegado consentimento da menor que resultou a convicção do tribunal quanto à evidenciada falta de arrependimento. E nenhum arrependimento se infere de ter admitido a prática de relações sexuais com a menor, nem outra coisa seria de esperar face à evidência do relatório pericial de fls. 133 a 135.

IV: CRC de fls. 350.

A factualidade não provada atinente à situação económica do agregado familiar assim foi considerada porque em contradição com os meios de prova supra referidos que determinaram a convicção do tribunal em sentido diverso e a respeitante à questão das fotografias porque apesar de o arguido ter admitido que a menor lhe enviou fotografias para o seu telemóvel, esta não se referiu às mesmas quando prestou declarações.


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Conhecendo:

Analisemos as questões suscitadas:

O recorrente questiona:

- Os factos dados como provados, pontos 15 a 17, 20, 21, 40 a 44, factos atinentes à existência de ameaça e seu fundamento (completa dependência económica em relação ao arguido) e, facto do ponto IV– falta de arrependimento demonstrado na audiência.

- Violação do princípio in dúbio pro reo.

- Nulidade por omissão de pronúncia, não inclusão do facto de que a vítima queria dormir com o casal.

- Qualificação jurídica dos factos, resultante de não se verificar a agravante, ameaça.

- Pena, entendendo que as penas a aplicar efetuado o cúmulo, não deve ultrapassar os 5 anos e deve ser suspensa na sua execução.


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Recurso da matéria de facto:

No recurso interposto questiona-se a matéria de facto (factos da acusação dados como provados e que, no entendimento do recorrente, deveriam ser considerados não provados), entendendo-se como incorretamente apreciada face à prova produzida, o que deveria levar a qualificação jurídica dos factos de forma diferente e mais benévola para o arguido (esquecendo que mesmo não qualificando os factos como crime de violação, numa das situações estaríamos perante o crime de abuso sexual de crianças, com moldura penal de 3 a 10 anos de prisão – art. 171 do CP, dado que a vítima tinha idade inferior a 14 anos).

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Embora se trate dum direito constitucionalmente garantido -, cfr. art. 32/1 da CRP -, não restringível em termos que ofendam o art. 18/ 2 e 3 do mesmo diploma fundamental, o direito ao recurso encontra-se regulado pela lei ordinária nos seus pressupostos e condições de exercício por forma a que não conflitua com direitos da mesma matriz, funcione eficazmente e se desenvolva e concretize sem abusos - Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1987), 227 a 232.

Já por diversas vezes o TC -Cfr. por todos, Ac n.º 260/2002 in DR IIª Série de 24.7.2002- afirmou que se integra na liberdade de conformação do legislador ordinário a definição das regras relativas ao processamento dos recursos, desde que não signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por importar a lesão das garantias de defesa afirmadas no art. 32/1 da CRP .

Daí que o legislador ordinário o haja disciplinado, sem comprometer o seu regular e eficaz exercício.

Impugnação da matéria de facto:

Aponta-se a errada interpretação da prova produzida relativamente aos pontos dados como provados, supra discriminados e, consubstanciadores da prática do crime de violação.

No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127 do C. P. Penal.

A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, documentos, reconstituição) conjugada com as regras da experiência comum.

O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374/2 do Código de Processo Penal.

E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objeto de formulação de deduções ou induções baseadas na correção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.

A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207.

No mesmo sentido, recurso desta Relação nº 3127/99 de 2-2-2000, no qual se refere que “as declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar como provados os factos”.

Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.

E, a análise crítica da prova produzida foi efetuada na sentença recorrida, dela resultando nitidamente o motivo por que o Tribunal se convenceu.

Foi essencialmente o depoimento da menor, vítima dos crimes, que convenceu o tribunal, mas não –se pode olvidar toda a restante prova, que na sua globalidade aponta no mesmo sentido.

Na conclusão 11 o recorrente o refere, que o Tribunal valorou integralmente as declarações da vítima e o condenou apenas com base nelas.

A divergência está entre a convicção do julgador que teve a cópula como forçada pelo arguido com constrangimento da vítima e, este que entende ter havido consentimento por parte da vítima.

Sendo que os crimes foram cometidos antes de a menor perfazer 14 anos de idade e pouco após essa idade, pelo que sempre se questionaria se havia liberdade de determinação sexual da vítima com tão tenra idade.

Não houve auto-conformação por parte da vítima e a prática daqueles atos sexuais só aconteceram devido ao constrangimento sofrido.

Mas o depoimento da vítima foi convincente e, assim aconteceu como o expressa o julgador na motivação da matéria de facto, ao referir que, “Aquele relato mereceu inteira credibilidade sendo que a testemunha veio a confirmar os factos à própria mãe, apesar de nunca o ter feito de forma detalhada”.

Acrescentando, “Este silêncio e renitência [da vítima] em relatar o sucedido é comum em vítimas de crimes sexuais e, tantas vezes induzido pelo próprio agressor, como aconteceu no caso concreto, não retira credibilidade ao seu testemunho”. Sendo que a renitência em contar o sucedido não é compatível com a prática de ato sexual consentido, principalmente tendo em conta a idade da vítima.

Tendo em conta a idade da vítima e sendo que o relatório psicológico do exame que lhe foi efetuado refere esta como, sem propensão para confabular, não muito imaginativa, sem recurso a fantasias e não sugestionável, são elementos que apontam para a credibilidade do seu depoimento.

E sendo um depoimento credível e não contraditado, o mesmo deve ser julgado relevante, como o foi.

Perante esta prova produzida, que o julgador teve como convincente, o juiz só poderia concluir pela prova daqueles factos.

Não basta a discordância como pretende o recorrente, que discorda da decisão sobre a matéria de facto mas não indica prova que sustente essa discordância.

O recorrente não indica qualquer depoimento que contrarie frontalmente a matéria de facto apurada, limitando-se a referir que o Tribunal valorizou desmedidamente o depoimento da vítima.

O preceituado no art.127 do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

O alegado pelo recorrente não abala os fundamentos da convicção do julgador, que temos conformes às regras da experiência.

Nem há qualquer contradição entre o facto de a mãe da vítima auferir quantia a título de subsídios equivalente ou superior ao ordenado do arguido e o facto de a vítima ter e ver no arguido a figura do sustento económico de todo o agregado familiar e desse sustento resultar a união.

Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.

Não se verifica, pois a falta de prova para a atribuição dos factos e a sua prática pelo arguido/recorrente (não há errada apreciação da prova), nem sequer sendo necessário lançar mão do princípio in dúbio pro reo.

O princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido.

Gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.

"Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus " - vd. Castanheira Neves in processo criminal, 1968, 55/60.

O princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido - Ac. do mesmo Supremo de 18/3/98 in Proc 1543/97.

O principio in dúbio pro reo, estando ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de existência dúvida razoável.

Mas, afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.

Inexiste pois, dúvida.

O que, diferentemente se pretende é que o tribunal deveria ter valorado as provas à maneira do recorrente, substituindo-se ele-recorrente ao julgador, tal incumbência é apenas, porém deste - art. 127° CPP.

O recorrente limita-se a discordar da forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, porque atendeu a pormenores do depoimento da vítima, que o convenceram, e daí tirou as necessárias ilações, enquanto para o recorrente resultaram em não convencimento.

Por isso, que a matéria dada como apurada, resulta da conjugação de toda a prova, essencialmente do depoimento da vítima menor, mas também dos restantes depoimentos e documentos, que interpretados segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador –art. 127 do CPP- mereceram credibilidade ao tribunal.

Mantendo-se a matéria de facto tal como fixada no acórdão e referentes à prática forçada pelo arguido com constrangimento da vítima, dos atos de natureza sexual levados a cabo, factos considerados provados e que o recorrente pretendia não provados - 15 a 17, 20, 21, 40 a 44.

Relativamente ao facto do ponto IV– falta de arrependimento demonstrado na audiência.

É a convicção do Tribunal, resultante de o arguido não ter “admitido” os restantes factos dados como provados, aqueles factos supra analisados e que foram objeto de recurso, relativos à prática dos atos sexuais de forma forçada ou, consentida.

Sendo objeto de recurso é manifesto que não os aceitou, nem deles se arrependeu.

E perante a não “aceitação” dos factos, conscientemente ou por estratégia de defesa, é manifesto que não há arrependimento. Só pode haver arrependimento havendo consciencialização e aceitação dos factos.

Assim que também é de manter este facto.

Omissão de pronúncia:

Alega o recorrente como nulidade cometida a omissão de pronúncia consistente no não atendimento do expresso pela mãe da vítima no seu depoimento de que a menor pedia e chegou a dormir várias vezes na cama do casal e com estes.

Mais do que omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devesse apreciar, trata-se de facto que deveria ser atendido, na opinião do recorrente, pelo que o mesmo, como o faz por via do recurso, o deveria ter feito em audiência, como preceitua o disposto no art. 358 nº 1, do CPP.

Isso refere o recorrente ao alegar que “tal factualidade deveria ter sido incluída nos factos dados como provados”.

É certo que a mãe da vítima refere que a menor “dormia connosco algumas vezes” , alegando que estava com dores de cabeça ou mal disposta.

Assim, adita-se com o nº 11-A o facto com a seguinte redação, “ Em data incerta mas durante a vivência em união de facto entre a mãe da menor e o arguido, a menor dormiu algumas vezes com o casal, na cama destes” e o facto 11-B, com a seguinte redação, “As primeiras vezes a menor pediu para dormir na cama do casal dizendo que estava com dores de cabeça ou mal disposta”.

Pelo que, nesta parte procede o recurso.

Qualificação jurídica dos factos:

O recorrente questionava a qualificação jurídica dos factos, na perspetiva de os factos serem alterados no sentido por ele proposto na impugnação.

Não havendo lugar a essa alteração, dúvidas não restam acerca da qualificação jurídica dos factos provados.

Apesar disso, não haver alteração, se dirá:

No acórdão recorrido se refere que: “Para aferir da gravidade da ameaça prevista no artº 164º, nº 1 do C. Penal, deve atender-se à maturidade pessoal da vítima em concreto: no caso vertente a vítima não quis sentir-se responsável por ser separada da mãe e do irmão e ser a causa da miséria da família em concretização das “ameaças” que o arguido lhe dirigiu e a força deste sentimento de proteção da família (que só podemos louvar), da qual o arguido vilmente se aproveitou, torna a ameaça grave, quer pelo seu conteúdo, quer pela sua medida, quer pela sua intensidade, tanto mais que a vítima ficou convencida que aquele as podia concretizar”.

Em causa a violência ou ameaça grave, elementos vinculados da prática do crime de violação.

Entende o Professor Figueiredo Dias, «não basta nunca à integração do tipo objetivo de ilícito (…) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar, ato de violação, - isto é, que este ato tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima».

Defende este Professor que «o meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada». Nas Atas da Comissão Revisora, na discussão do tipo de crime de coação sexual, expressamente refere que «não basta a simples falta de consentimento, sendo preciso, por exemplo, a violência ou ameaça grave».

O Desembargador Mouraz Lopes considera que com a reforma de 2007 «o legislador optou por criminalizar, nos casos de coação sexual e na violação, apenas as situações de atentados à liberdade sexual que atentam gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através de coação grave ou violência e não os casos de prática de atos sexuais de relevo apenas praticados sem o consentimento da vítima maior de idade».

Já o Desembargador Sénio Alves, defende «na falta de referência expressa do artigo 164.º, n.º 1, à violência física, parece ser de concluir que tanto a violência física como a moral, se determinaram a cópula, são elementos constitutivos do tipo de violação. É que a violência moral (consistente, v.g., no perigo de um mal maior para a vítima ou sua família) pode determinar a cópula e, a não ser que se reconduzissem factos deste tipo à noção de “ameaça grave” (com as dificuldades inerentes á determinação do que é “grave” e à respetiva prova), ela ficaria impune. (…) A “grave ameaça” é algo diferente, de um ponto de vista qualitativo. Consiste, penso, no colocar a vítima perante a iminência da verificação da violência (física ou moral) provocando-lhe um tal temor que a determine à cópula».

Simas Santos e Leal Henriques dizem que há grave ameaça “quando o agente procura incutir na vítima, por forma invencível, a consciência de que, se não anuir aos seus propósitos de relacionamento sexual, ele exercerá um mal maior sobre si ou sobre alguém da sua particular afeição. Assim sucede, por exemplo, quando o agente, surpreendendo uma mulher casada a manter relações sexuais com um homem que não é o seu marido, a ameaça de revelar a este o segredo se a mesma não consentir a manter consigo trato carnal …”.

Embora com parâmetros diferenciados temos que face aos factos provados a atuação do arguido integra a prática do crime de violação, face a qualquer das posições referidas.

A ameaça ou é tida como tal e é levada a serio e é ameaça grave, ou não é levada a serio e deixa de ser ameaça. Assim que a ameaça levada a serio pela vítima é sempre ameaça grave.

E é pelo padrão da vítima, da pessoa a quem é dirigida a ameaça que se aferirá da sua gravidade.

E no caso vertente tem de se ter em conta a idade da vítima 13/14 anos de idade, que o arguido bem conhecia, sendo que uma ameaça que não é grave quando dirigida a uma pessoa adulta, já será grave quando dirigida a uma criança/adolescente com a idade da vítima.

Ameaçar é anunciar um grave e injusto dano. E o arguido ameaçou a vítima que se não se submetesse aos seus intentos, a sua família sofreria consequências, com falta de apoio económico e desmembração com ida da vítima e irmão para instituições e tiradas da mãe.

É um meio de coação grave, sendo que a vítima se consciencializou de que a ameaça seria cumprida caso não se subjugasse aos intentos.

E para além dos factos impugnados (cuja impugnação improcedeu) encontra-se provado o facto sob o nº 10, “10- A menor B... sabia perfeitamente qual a situação económica da família, designadamente sabia que a mãe não tinha qualquer possibilidade económica para se sustentar a ela própria e aos filhos, sem a ajuda do arguido”.

A violação subentende o não consentimento da vítima, isto é, a vítima não concordou com a prática dos atos e foi, de algum modo, forçada. Quando isto acontece, mesmo envolvendo crianças com menos de 14 anos, estamos na presença de uma violação. Foi o que aconteceu no caso em análise.

Há crime de violação quando o agente ameaçar e/ou chantagear, humilhar ou intimidar e por essa forma consegue a submissão da vítima.

Também os factos ora aditados (estranhando-se aquele comportamento por parte do casal) não afasta a verificação do crime já que a ameaça grave existe.

Assim que se considera correto o enquadramento jurídico dos factos provados.

Só a chantagem exercida pelo arguido levou a vítima a ceder à prática daqueles atos de natureza sexual.

E essa chantagem é relevante na medida em que foi a necessária e também a suficiente para o arguido conseguir os seus intentos.

A ameaça é grave quando seja suficiente para provocar na vítima um temor que a determine a fazer aquilo que não quer, no caso à prática do ato sexual pretendido pelo arguido. Sendo que, mesmo em relação aos factos praticados quando a menor não tinha 14 anos, não se colocando a questão do consentimento, a menor “pedia” ao arguido para a deixar ir embora e só se submeteu porque o arguido a ameaçou nos termos constantes dos factos provados.

Pelo que improcede o recurso nesta parte.

Medida da pena:

Entende o recorrente, serem as penas aplicadas (parcelares e unitária) desproporcionadas, por exageradas, tendo em conta as circunstâncias em que os factos se desenrolaram e a sua situação pessoal.

No caso concreto, a cada um dos crimes corresponde a moldura penal de prisão até 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.

Na sentença se lançou mão dos critérios legais de escolha e determinação da medida da pena, nomeadamente o art. 40 nº 1 e 2, fins das penas, proteção dos bens jurídicos e reintegração do agente, sem ultrapassar os limites da culpa e, art. 71, circunstâncias favoráveis ou contra o agente.

O tribunal recorrido aplicou as penas parcelares de 6 e 7 anos de prisão e a unitária de 9 anos de prisão.

O recorrente entende como adequadas penas que, efetuado o cúmulo jurídico não ultrapasse a unitária os 5 anos de prisão, suspendendo-se a execução da mesma, por igual período.

Na decisão recorrida, como já se disse, foram observados os critérios legais de escolha e determinação da medida de cada uma das penas.

Na aplicação da medida da pena deve ter-se em conta o disposto no artº 71º do C. Penal.

Aí se diz – no seu nº 1 – que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial).

Sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, artº 40º nº 2 do C. Penal.

Extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

Visando-se, com a aplicação das penas, a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, art. 40 nº1 do Cód. Penal.

No que se refere à prevenção geral, haverá que dizer que esta radica no significado que a "gravidade do facto" assume perante a comunidade, isto é, importa aferir do significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito (cfr. ANABELA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1995, págs. 371 e 374) ou, por outra forma, a consideração da prevenção geral procura dar "satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos" (Ac. STJ de 4-7-1996, CJSTJ, II, p. 225).

Como se extrai do acórdão do STJ de 17-03-1999, Proc. n.º 1135/98 - 3.ª Secção: «Sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa - “nulla poena sine culpa” - a função primordial da pena consiste na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.

A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.

A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de proteção dos bens jurídicos, já não tem a virtualidade para determinar o limite mínimo. Este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza eficazmente aquela proteção.

Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que, dentro da moldura legal, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social».

Decorre, assim, de tais normativos que a culpa e a prevenção constituem os parâmetros que importa ter em apreço na determinação da medida da pena.

A este respeito, ensina o Prof. Figueiredo Dias que culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há de ser determinada a medida concreta da pena. A prevenção reflete a necessidade comunitária da punição do caso concreto enquanto a culpa, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável daquela.

Na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele – art. 71 nº 2 do C. Penal.

Enunciando-se, de forma exemplificativa, no mesmo nº 2 quais as circunstâncias que podem ter tal função.

Tendo em conta estes considerandos, importa referir que as exigências de prevenção neste tipo de situações demandam necessidade de punição.

E, não tem relevância de maior a inserção social e familiar (voltou a casa dos pais) do arguido.

Nas representações sociais, os crimes de natureza sexual em que as vítimas são crianças, quer o abuso sexual sobre crianças e mais a violação, significa o mal absoluto, a presença do inumano no humano pelo uso irracional da liberdade de ação.

Os efeitos graves do facto, variam em função da idade, personalidade da criança e natureza da agressão, podendo aquela permanecer perturbada por semanas, condicionando, mais ou menos gravemente, o seu comportamento sexual posterior e o seu nível de desenvolvimento.

Demasiado frequente é prática de tais delitos. Manifesto é o interesse público de proteção de personalidades em desenvolvimento, no aspeto da sua sexualidade. Em geral, os crimes em apreço causam grande alarme e repugnância social, mesmo com vítimas adultos e mais ainda quando as vítimas são crianças.

Muitas vezes e, em casos de relações familiares entre o agente e a vítima, não raro se se tenta a desculpabilização do primeiro e a responsabilização da última. No caso concreto é o que faz o arguido ao invocar que a vítima agiu de livre vontade e consentindo em todos os atos praticados.

Urge, para tranquilidade no tecido social e dissuasão de potenciais delinquentes, visto o quadro de extensos malefícios antecedente, que ultrapassar o interesse meramente individual, impondo-se uma intervenção punitiva que pondere as sentidas considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, por esta se limitando sempre o valor da socialização em liberdade.

No caso dos autos, desfavorece o arguido, o período de prática dos factos, a sua frequência, a relação familiar com a ofendida (que vivia no mesmo agregado familiar e era tratada como filha.

É atenuante para o arguido, mas sem grande relevo dado que não se provou que tivesse qualquer influência no despertar dos instintos libidinosos do arguido, e que não desculpabiliza o seu comportamento, o facto resultante da alteração ora efetuada, de a vítima pedir para dormir na cama do casal e estes, quer o arguido quer a companheira, mãe da vítima, terem consentido, face a mera alegação de dor de cabeça ou indisposição.

Face á situação concreta, racional e lógico era que a mãe da menor se deslocasse à cama desta e a confortasse até adormecer.

Há que ter em conta as finalidades da prevenção, quer geral, quer especial, incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, assim como há que dissuadir o arguido para que não volte a prevaricar.

A pena só cumpre a sua finalidade enquanto sentida como tal pelo seu destinatário – cfr. Ac. desta Relação de 7-11-1996, in Col. jurisp. tomo V, 47.

Atenta a natureza de uma pena ou sanção, o condenado tem de senti-la sob pena de se poder traduzir em “absolvição encapotada”, e não surtir o efeito pretendido pela lei. As penas têm essa designação, de outro modo não o seriam, nem constituiriam dissuasor necessário para prevenir as infrações, se não forem sentidas como tal, quer pelo agente, quer pela comunidade em geral.

Tendo em conta os vetores apontados, tendo em conta a moldura penal, temos como correta e em nada exagerada cada uma das penas em concreto encontradas, bem como a pena unitária resultante do cúmulo jurídico.

Do exposto resulta que foram corretamente observados todos os critérios legais que conduzem à escolha e determinação em concreto da medida da pena, critérios com os quais concordamos inteiramente.

Tendo em conta todos os considerandos e a moldura abstrata das penas aplicáveis, têm-se como adequadas as penas fixadas no acórdão recorrido.

As penas, em concreto aplicadas, mostram-se bem doseadas e bem merecidas face á conduta do arguido.


*

Face ao exposto, entendemos não merecer provimento o recurso, apesar da alteração supra efetuada relativamente à matéria de facto.

Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal, pelos motivos expostos, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, em consequência:

- Altera-se a matéria de facto aditando:

11-A) “ Em data incerta mas durante a vivência em união de facto entre a mãe da menor e o arguido, a menor dormiu algumas vezes com o casal, na cama destes”.

11-B) “As primeiras vezes a menor pediu para dormir na cama do casal dizendo que estava com dores de cabeça ou mal disposta”.

- Quanto ao mais, mantém-se o acórdão recorrido.

Sem custas por não haver decaimento total.

Jorge Dias (Relator)

Orlando Gonçalves