Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141592/13.1YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
EFEITOS
REMESSA DO PROCESSO
OPOSIÇÃO
JUSTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 99º, Nº 2 DO CPC
Sumário: I – Face à declaração de incompetência material do Tribunal, proferida findos os articulados, pode o autor requerer, no prazo de 10 dias, com base no artigo 99º, nº 2 do CPC, a remessa do processo ao tribunal declarado competente;

II – Neste caso, o atendimento da oposição do réu a essa remessa pressupõe que tal oposição seja de considerar justificada, o que implica basear-se ela em motivo atendível do qual resulte ter o réu feito descaso, por razões ligadas à natureza e tramitação na jurisdição considerada incompetente, de meios de defesa que lhe seriam proporcionados no quadro da jurisdição afirmada como competente;

III – Assim, não vale como justificação a simples afirmação de diferenças de tramitação nas duas jurisdições, quando a defesa apresentada pelo réu contra a pretensão do autor pode ser feita valer, fundamentalmente nos mesmos termos, na tramitação a observar no Tribunal declarado competente.

Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA

(Artigo 656º do Código de Processo Civil)


            1. Instaurada que foi a presente acção especial relacionada com um procedimento de injunção[1], seguindo ela a tramitação declarativa decorrente da dedução de oposição à referida injunção – foi requerente desta o A..., E.P.E. (aqui apelante) e requerido o B..., E.P.E. (aqui apelado) –, veio a ser proferida a decisão certificada a fls. 17vº/20, julgando-se procedente a excepção de incompetência material da jurisdição comum, suscitada pela entidade requerida, declarando-se o Tribunal comum incompetente, absolvendo da instância essa requerida.

            1.1. Foi então – e entramos assim no trecho processual directamente relevante para o presente recurso –, através do requerimento certificado a fls. 16, solicitada pelo A.../entidade requerente, “[…] nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 99º do CPC, […] a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por ser o Tribunal competente em razão da matéria” (sublinhado aqui acrescentado).

            A esta pretensão deduziu a entidade requerida oposição (fls. 12/13) fundando-a essencialmente no carácter imprestável para a jurisdição administrativa da tramitação seguida por via da injunção e da subsequente acção conexa[2].

            1.2. Surge então o despacho certificado a fls. 11trata-se do despacho objecto do presente recurso – cujo teor aqui se transcreve:


“[…]
Aderindo na íntegra aos fundamentos aduzidos pela ré, sempre se dirá que inexiste fundamento para que o tribunal cumpra no caso dos autos o disposto no artigo 99º, nº 2 do CPC. Na verdade, estamos perante um procedimento de injunção a seguir os seus termos como acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, o qual não tem qualquer equivalência nas acções que correm termos nos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo a marcha do processo completamente diferente da dos presentes autos, por si só, mais simplificada.
Nestes termos, indefere-se o requerido.
[…]”.

            1.3. Inconformada com este despacho, reagiu a entidade requerente com a presente apelação, rematando a motivação do recurso com as seguintes conclusões:


“[…]
1. O Tribunal teria de expor as razões pelas quais emite o juízo valorativo dos argumentos apresentados pela Ré, isto é os motivos que considera relevantes para a alegada impossibilidade de defesa, quando aderiu na íntegra aos fundamentos aduzidos pela Ré para a oposição à remessa do processo para o Tribunal competente.
2. O que tem de ser feito através de um discurso fundamentador, de concreta intensidade, que demonstre a lógica, pertinência e razoabilidade do juízo formulado, o que não sucedeu.
3. Ao decidir apenas que inexiste fundamento para que o processo seja remetido para o tribunal competente, apenas por se tratar de um procedimento de injunção, por o mesmo não ter qualquer equivalência nas ações que correm nos tribunais administrativos, e sem mais concluir pelo indeferimento, violou a decisão o disposto no n.º 2 do artigo 99º do C. P. Civil, bem como o n.º 2 do artigo 7.º do D. L. 32/2003 de 17 de Fevereiro.
4. Pelo que devem os motivos invocados pela R. ser considerados irrelevantes e injustificados e a decisão de indeferimento do pedido de remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, ser substituída por outra que ordene o respetivo envio, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 99.º do C.P. Civil, por existir equivalência entre esta ação comum e as ações do mesmo tipo que correm pelos Tribunais Administrativos.
[…]”.

            2. Resumido que está o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, teremos presente que o âmbito objectivo da impugnação foi delimitado pelas conclusões transcritas no antecedente item 1.3. [v. os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)]. Adoptaremos aqui na abordagem do recurso a forma singular e sumária decorrente do artigo 665º do CPC, dada a simplicidade que reveste, na sua caracterização, o problema colocado pelo apelante.

            Com efeito, trata-se, em exclusivo, de controlar a asserção presente no despacho recorrido quanto à consideração do ponto de vista do apelado, expresso a fls. 12/13[3] – ao qual a decisão se limitou a aderir –, como consubstanciador de uma oposição justificada à remessa do processo ao Tribunal (à jurisdição) declarado(a) competente. Essa oposição tida por justificada assentou na afirmação da inexistência na adjectivação própria da jurisdição administrativa de uma tramitação correspondente à aqui em causa (ou seja: a uma acção sucedânea de injunção à qual foi deduzida oposição).

            2.1. A questão que assim se coloca gira, pois, em torno da interpretação de um particular trecho do artigo 99º, nº 2 do CPC, que assinalaremos na transcrição que se segue de toda a disposição:


Artigo 99º
Efeito da incompetência absoluta
1 – A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.
2 – Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.
3 – Não se aplica o disposto no número anterior nos casos de violação de pacto privativo de jurisdição e de preterição do tribunal arbitral.


            Corresponde esta norma ao artigo 105º do Código anterior[4], sendo aqui relevante a distinção dos trechos finais paralelos de ambos os nº 2, quanto às circunstâncias em que poderá ocorrer a remessa do processo para o Tribunal competente, subsequentemente à declaração de incompetência absoluta, estando findos os articulados: era necessário, no regime anterior a 01/09/2013, o acordo das partes; é necessário, no regime actual (artigo 99º, nº 2 do CPC), que a eventual oposição à remessa por parte do demandado seja considerada justificada (o que pressupõe a possibilidade de inexistência de acordo e que a remessa seja, não obstante, determinada pelo Tribunal, por julgar a oposição injustificada).

            Note-se que a questão da remessa do processo ao Tribunal materialmente competente é caracterizada, tanto no regime pretérito como no actual, por referência à ideia de aproveitamento dos articulados produzidos na acção desenrolada no Tribunal materialmente incompetente, sem que, todavia, esse elemento seja particularizado na sua concreta incidência.  

            Esta questão é analisada por José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, anotando o artigo 99º, em termos que julgamos útil transcrever:


“[…]
O nº 2 constitui manifestação do princípio da economia processual, na vertente da economia de atos e formalidades. Decretada a incompetência depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se se o autor requerer a remessa do processo para o tribunal competente e o réu não se opuser de modo justificado.
No correspondente nº 2 do artigo 105º do CPC de 1965, o aproveitamento dos articulados só se fazia mediante o acordo de autor e réu. O Anteprojecto da Comissão contentava-se com o requerimento do autor, apresentado dentro dos 30 dias posteriores ao trânsito em julgado da decisão, ao qual o réu não se podia opor. O Projecto da Comissão reduziu o prazo para 10 dias e a Proposta de Lei admitiu a oposição do réu, acolhendo parecer do Conselho Superior da Magistratura e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, com o que se fixou a redacção deste número. Essa oposição tem de ser justificada, o que se harmoniza com o direito de defesa e o princípio da economia processual: será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente; é discutível se continuará a sê-lo se o réu não utilizou todos esses meios, embora os pudesse utilizar, sendo certo que, a ser assim, o réu gozará, até 01/09/2014, da protecção concedida pela norma transitória do artigo 3º, a) da Lei 41/2013, de 26 de Junho.
Sublinhe-se que, por este meio, o autor evita a inutilização do processo, mas não obvia à absolvição do réu da instância – o que, no atual código, decorre inequivocamente da alusão ao trânsito em julgado da decisão sobre a incompetência absoluta –, pelo que no tribunal competente se inicia uma nova instância. Assim, aproveitam-se apenas os articulados e os atos processuais que eles impliquem (citação do réu, notificações, eventual despacho liminar ou pré-saneador), mas não os restantes atos praticados pelas partes ou pelo tribunal, nomeadamente as provas produzidas (sem prejuízo do artigo 421º), os despachos eventualmente proferidos (por exemplo, sobre o valor da acção) ou a tramitação de qualquer incidente […].
[…]” (ênfase no original, sublinhado acrescentado).

            Valem estas considerações, no que tange à interpretação do conceito de justificação da oposição à remessa do processo ao Tribunal competente, enquanto obstáculo a essa remessa dependente de uma valoração de motivos, como relativização da questão da diversidade de tramitação entre as duas jurisdições (a considerada incompetente e a afirmada como competente), quando essa incidência não torne totalmente imprestáveis os articulados apresentados no Tribunal incompetente em vista da tramitação adequada à ulterior sequência da acção no Tribunal declarado competente. E, principalmente – já que se trata de saber se a oposição à remessa se prefigura como justificada –, quando a explanação dos pontos de vista pretendidos fazer valer é substancialmente relevante na jurisdição declarada como a competente.

Ora, neste caso, observando-se a desenvolvida exposição consubstanciada no requerimento de injunção (fls. 26 e vº) e, muito especialmente, a forma particularmente ampla que revestiu a dedução da defesa pela entidade requerida contra a pretensão da requerente, para além da questão da competência material (veja-se o articulado de oposição a fls. 28vº/34vº), neste caso, dizíamos, parece-nos intuitivo ter o B... lançado logo mão – ter logo utilizado –, em argumentação alternativamente cumulada com a questão da incompetência material, todos os meios (rectius, todos os argumentos) que – acolhidos que sejam eles – justificam a improcedência substancial da pretensão do A... face à entidade requerida. E isto, enfim, face à tramitação própria de uma acção sucedânea de uma injunção à qual foi apresentada oposição, ou face à tramitação própria de um processo assente na mesma pretensão na jurisdição administrativa.

Com efeito, corresponderia – aliás, corresponde – a esta pretensão se feita valer no processo administrativo a forma de acção administrativa comum (v. o artigo 37º, nº 1 do CPTA) e esta, fundamentalmente decalcada na acção declarativa comum regulada no CPC (como determina o artigo 35º, nº 1 do CPTA), não apresenta particularidades que a destaquem, por incompatibilidade, relativamente à tramitação de uma acção declarativa conexa com um procedimento de injunção. Todavia, como antes dissemos, o ponto central da questão, referido à ideia de justificação ou não justificação da dedução de oposição à remessa do processo ao Tribunal competente (artigo 99º, nº 2 do CPC), prende-se com a avaliação da existência de um motivo que deva ser visto como atendível, como sucederá se a defesa deduzida pelo demandado, não utilizou, como referem os Autores acima citados, “[…] todos os meios que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente […]”. Parece-nos claro ter-se o aqui demandado defendido neste contexto nos mesmos termos em que o teria feito, se demandado fosse com base nesta mesma pretensão, no âmbito da jurisdição administrativa, que o mesmo é dizer, que a defesa aqui apresentada pela entidade requerida pode ser feita valer, fundamentalmente nos mesmos termos, na tramitação a observar no Tribunal que foi declarado competente.

Vale o que se disse pela afirmação de não ser justificada a oposição pelo B..., E.P.E. à remessa do processo à jurisdição administrativa. E esta asserção vale, igualmente, pela procedência do recurso.

2.2. Sumário:


I – Face à declaração de incompetência material do Tribunal, proferida findos os articulados, pode o autor requerer, no prazo de 10 dias, com base no artigo 99º, nº 2 do CPC, a remessa do processo ao tribunal declarado competente;
II – Neste caso, o atendimento da oposição do réu a essa remessa pressupõe que tal oposição seja de considerar justificada, o que implica basear-se ela em motivo atendível do qual resulte ter o réu feito descaso, por razões ligadas à natureza e tramitação na jurisdição considerada incompetente, de meios de defesa que lhe seriam proporcionados no quadro da jurisdição afirmada como competente;
III – Assim, não vale como justificação a simples afirmação de diferenças de tramitação nas duas jurisdições, quando a defesa apresentada pelo réu contra a pretensão do autor pode ser feita valer, fundamentalmente nos mesmos termos, na tramitação a observar no Tribunal declarado competente.

           

3. Face ao exposto, procedendo o recurso, revoga-se o despacho aqui apelado (o despacho certificado a fls. 11, correspondente à referência citius 9177791), determinando-se a admissão da pretensão veiculada pela entidade requerente, o A..., E.P.E., no requerimento certificado a fls. 16, quanto à remessa do processo à jurisdição administrativa nos termos do artigo 99º, nº 2 do CPC.

É isso, pois, o que aqui se determina.

            Sem custas.

            Tribunal da Relação de Coimbra, 29 de Janeiro de 2015.

(J. A. Teles Pereira)


[1] Que aqui, nos termos em que o requerente apresentou a situação no requerimento injuntivo, referindo-se à cobrança de dívidas por entidade integrada no Serviço Nacional de Saúde, observou (e tratou-se de opção do requerente) o chamado procedimento de injunção, nos termos do artigo 1º, nº 2 do Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho:
Artigo 1º
Objecto
1 - O presente diploma estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados.
2 - Para efeitos do presente diploma, a realização das prestações de saúde consideram-se feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, sendo aplicável o regime jurídico das injunções.
3 - Para efeitos do número anterior, o requerimento de injunção deve conter na exposição sucinta dos factos os seguintes elementos:
a) O nome do assistido;
b) Causa da assistência;
c) No caso de acidente que envolva veículos automóveis, matrícula ou número de apólice de seguro;
d) No caso de acidente de trabalho, nome do empregador e número da apólice seguro, quando haja;
e) No caso de agressão, o nome do agredido e data da agressão;
f) Nos restantes casos em que sejam responsáveis seguradoras, deve ser indicada a apólice de seguro.
[2] Aqui se transcrevem os termos dessa oposição:
“[…]

1.º

A forma processual de injunção utilizada para demandar a R. nos presentes autos não tem qualquer correspondência na jurisdição processual administrativa.

2.º

Efectivamente a injunção, é um procedimento especial que encontra previsão no DL 269/98 de 1/09, que se inicia com um requerimento sumário e que dispõe de uma tramitação especial nele contemplada.

3.º

Efectivamente no elenco das Acções constantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não consta nenhuma que tenha a mínima semelhança processual com a prevista do DL 269/98 de 1/09.

4.º

Pelo contrário na marcha do procedimento estão previstas um vasto leque de possibilidades de defesa para o réu, admitindo não só a reconvenção, favorável ao Réu como outros expedientes que a Acção especial ora em causa não permite.

5.º

No âmbito da presente injunção está limitada a defesa do R. à contestação.

6.º

Não admitindo qualquer outra reacção processual.

7.º

Assim nos presentes articulados não pôde por exemplo a R. reagir por excepção, nomeadamente demandando o pagamento dos valores decorrentes de tratamentos prestados no B..., EPE a utentes residentes na área de influência da R.

8.º

Considerando que estão findos os articulados está fixada a pretensão das partes, ficando a R. diminuída na sua defesa.

9.º

Acresce que da letra da norma do 99.º n.º 2 resulta apenas a permissão de aproveitamento dos articulados dentro da jurisdição civil, atenta a especificidade e identidade da marcha processual.

10.º

De outro modo não seria perceptível a norma.

11.º

Senão veja-se que idêntica norma do CPTA (art. 14.º) especifica concretamente a possibilidade de aproveitamento do articulado da petição inicial quando a remessa do processo tenha se ser efectuada para tribunais que pertençam a jurisdição diferente.
[…]”.
[3] Que transcrevemos na nota 4 supra.
[4] O qual preceituava:
Artigo 105º
Efeito da incompetência absoluta
1 – A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.
2 – Se a incompetência só for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que, estando as partes de acordo sobre o aproveitamento, o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta.