Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/10.2TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PARTILHA
CÔNJUGE
HERDEIRO
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - JUÍZOS CÍVEIS - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1732º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1.O cônjuge do herdeiro apenas será de considerar interessado directo na partilha e apenas terá de ser citado quando tiver interesse directo na partilha, o que, depende do regime de bens do casamento.

2. Sendo o casamento celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, o cônjuge terá interesse directo na partilha já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732º do Código Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Nos autos de inventário por óbito de A..., os interessados B... e C... reclamaram contra a relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, D....

A interessada F... respondeu às reclamações.

Com as reclamações e as respostas foram indicadas testemunhas. Entre elas figurava o Exm.º Sr. Juiz Desembargador E..., marido da interessada F....

B... pediu se indeferisse o depoimento do Exm.º Sr. Juiz Desembargador sob a alegação de que era inábil para depor.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo indeferiu o pedido, com a seguinte fundamentação: “os requerimentos não referem a disposição legal em que se baseiam. Não vislumbramos o fundamento da invocada inabilidade”.

B... não se conformou e interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação do despacho recorrido.

Os fundamentos do recurso, expostos nas conclusões, foram os seguintes:

1. Foi indicado como testemunha, por uma das interessadas neste inventário, o marido, para prova da versão que alinha com a mãe, cabeça-de-casal, sobre o universo dos bens da herança do falecido Professor Doutor A...;

2. Mas o marido da interessada deve ser citado para os termos do inventário, no âmbito e alcance do artigo 1682º do Código Civil;

3. E com a finalidade de intervir na conferência de interessados, onde a mulher adquirirá e disporá de direitos sobre os bens a partilhar;

4. Nessa medida, o depoente é parte; apenas seria lícito que prestasse depoimento de parte – artigo 617º do CPC;

5. Mas, neste caso, não cabe o depoimento de parte, porque se não destina à confissão de factos contrários à versão da interessada que nomeou o marido a depor;

6. Nem à versão da interessada, nem à versão com a qual está alinhada: o ponto de vista da inventariada e viúva;

7. Assim é inábil para depor como testemunha o Exm.º Senhor Juiz Desembargador E..., e deve, por isso, ser-lhe recusado o depoimento quer de viva voz quer por escrito.

A interessada F... respondeu, concluindo pela improcedência do recurso. Para tanto alegou que era casada com o Sr. Juiz Desembargador no regime de separação absoluta de bens, sendo, assim, claro que não se aplicava nem o disposto no artigo 1682º, n.º 1, nem o disposto no artigo 1682º-A, ambos do Código Civil; mesmo que fossem casados no regime da comunhão de adquiridos, não se aplicavam as disposições citadas, pois não se trataria de alienação ou oneração de bens móveis, nem de imóveis, estabelecimento comercial ou de casa de morada de família.

O interessado C... aderiu ao recurso, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 683º do CPC.

No requerimento de adesão pediu se revogasse o despacho recorrido e se substituísse por outro que determinasse a impossibilidade de depoimento da testemunha arrolada à matéria de requerimentos que, para além de serem processualmente inadmissíveis, apresentavam nova prova que não havia sido apresentada no momento processualmente adequado. O aderente apresentou alegações, onde concluiu, em síntese, o seguinte:
1. Os requerimentos e a respectiva prova apresentados pela interessada F..., enquanto respostas às reclamações apresentadas contra a relação de bens por B... e pelo apelante são ilegais por processualmente inadmissíveis;
2. Como tal, estamos perante uma nulidade por prática de acto que a lei não admite, uma vez que a presença de tais requerimentos influi directamente no exame ou na decisão do incidente;
3. A apreciação desta matéria torna-se essencial para a apreciação do recurso ao qual se adere, porquanto se trata de matéria prejudicial para a aferição da possibilidade de depoimento da testemunha E...;
4. Isto porque o requerimento da interessada F... com a referência n.º 849626 indica que pretende o depoimento da testemunha relativamente aos factos constantes dos requerimentos através dos quais respondeu às reclamações contra as relações de bens. 

A interessada F... respondeu, alegando que o recurso a que o interessado aderiu tinha por objecto o despacho que deferiu o depoimento do Exm.º Sr. Juiz Desembargador E..., pelo que estava vedado ao interessado C... alargar o objecto do recurso a que aderiu.


*

A exposição que se acaba de efectuar mostra que a principal questão suscitada pelas conclusões do recurso interposto pelo interessado B... é a de saber se o Exm.º Sr. Juiz Desembargador E... está impedido de depor como testemunha no incidente de reclamação contra a relação de bens.

Antes de respondermos a esta questão, importa, no entanto, decidir se cabe também ao tribunal da Relação pronunciar-se sobre a questão suscitada pelo aderente, ou seja, decidir se os requerimentos e a respectiva prova apresentadas pela interessada F..., enquanto resposta às reclamações contra a relação de bens, eram ilegais por processualmente inadmissíveis.

A resposta a esta questão é inequivocamente negativa. 

Em primeiro lugar, a adesão ao recurso apenas permite a uma parte aproveitar-se do recurso interposto por um dos seus compartes; a adesão não permite ao aderente alargar o objecto do recurso interposto pelo comparte.

Em segundo lugar, o aderente já pediu o desentranhamento das respostas às reclamações e o indeferimento do requerimento que indicou como testemunha o Exm.º Sr. Juiz Desembargador E... para depor sobre a matéria dessas respostas, tendo o tribunal a quo indeferido estas pretensões por despacho proferido em 7 de Dezembro de 2010. Assim sendo, a revogação desta decisão e a substituição dela por outro que ordenasse o desentranhamento das respostas às reclamações só poderia ser alcançada mediante recurso contra o despacho proferido em 7 de Dezembro de 2010.            

Pelo exposto, não se conhece da questão suscitada pelo aderente.


*

Precisado o objecto do recurso, importa dizer que os factos relevantes para a decisão são os descritos no relatório deste acórdão. Além deles, toma-se ainda em conta que a interessada F... é casada com o Exm.º Sr. Juiz Desembargador E... sob o regime da separação de bens.

*

O principal fundamento do recurso é constituído pela alegação de que o Exm.º Sr. Juiz Desembargador E... está impedido de depor como testemunha no incidente da reclamação de bens, pois pode depor na causa como parte, uma vez que, sendo marido de uma interessada no inventário, terá de intervir na conferência de interessados e terá de ser citado para os termos do processo.

Este fundamento do recurso remete-nos, desde logo, para as inabilidades para depor como testemunha, designadamente para o disposto no artigo 617º, do Código de Processo Civil, segundo o qual “estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes”.

Segue-se daqui que o Exm.º Sr. Desembargador estaria impedido de depor como testemunha no incidente de reclamação contra a relação de bens, se nele pudesse depor como parte. Para tanto seria necessário, como é bom de ver, que tivesse a qualidade de parte principal no processo de inventário.

Como se procurará demonstrar, não tem esta qualidade.     

O artigo 1327º do Código de Processo Civil só reconhece legitimidade para intervirem como partes principais em todos os actos e termos do processo aos interessados directos na partilha [alínea a), do n.º 1] e ao Ministério Público, quando a herança seja deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas colectivas [alínea b), do n.º 1].

O n.º 2 e o n.º 3 do mesmo preceito reconhecem legitimidade a outros interessados para intervirem no inventário, mas já não é em relação a todos os actos e termos do processo. Assim, o n.º 2 reconhece legitimidade para intervir no inventário aos legatários e donatários, quando haja herdeiros legitimários, mas restringe a intervenção “aos actos, termos e diligências susceptíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e implicar eventual redução das respectivas liberalidades”. O n.º 3 estende a legitimidade para intervir aos credores da herança e aos legatários, mas apenas nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus créditos, cometendo ao Ministério Público a representação e defesa dos interesses da Fazenda Pública.

Não tendo o caso dos autos qualquer relação com a hipótese prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 1327º, segue-se do exposto que o Exm.º Sr. Juiz Desembargador só seria de qualificar como parte principal se fosse interessado directo na partilha. E, se o fosse, teria, como alega o recorrente, de ser citado para os termos do inventário, por força do disposto no n.º 1, do artigo 1341º, do CPC, e de ser notificado para a conferência de interessados.

A verdade é que não pode ser considerado como interessado directo na partilha. Interessados directos na partilha são os herdeiros do inventariado, qualidade que tem a recorrida F..., esposa do Exm.º Sr. Juiz Desembargador E....

Quanto ao cônjuge do herdeiro, o seu interesse na partilha só será directo se o regime de bens do casamento for o da comunhão geral. Só nesta hipótese é que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732º do Código Civil.

Não sendo o regime de bens o da comunhão geral, o interesse na partilha é indirecto, pois os direitos ou os bens adquiridos pelo cônjuge que é herdeiro são considerados bens próprios dele [artigo 1722º, n.º 1, alínea b), do Código Civil].

Considerando que, nos termos do artigo 1341º, n.º 1, do CPC, só são citados para os termos do inventário – além de outros que não relevam para o caso - os interessados directos, segue-se daqui que, por aplicação desta norma só são citados para os termos do inventário o cônjuge do herdeiro que estiver casado sob o regime da comunhão geral de bens.

Este entendimento tem a seu favor os seguintes antecedentes legislativos.

No domínio do Código de Processo Civil de 1939, o assento do STJ de 12/1/1965, publicado no DR, n.º 24, I Série, de 29/1/1965, estabeleceu a doutrina segundo a qual no domínio do CPC de 1939, o cônjuge meeiro do herdeiro era também parte principal no processo de inventário.

O artigo 1329º, n.º 1, do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-lei n.º 44 129 de 28 de Dezembro de 1961 mandava citar para os termos do inventário as pessoas com interesse directo na partilha e os seus cônjuges. Esta fórmula mostrava que os cônjuges dos herdeiros não eram considerados como interessados directos na partilha.    

O Decreto-lei n.º 227/94, de 8 de Setembro reformulou a tramitação do processo de inventário. O preceito que a partir daí passou a regular as citações dos interessados no processo de inventário – artigo 1341º - passou a mandar citar para os termos do inventário, além de outros interessados que não relevam para o caso - apenas os interessados directos na partilha. Os cônjuges dos herdeiros deixaram de ser mencionados como herdeiros a citar. 

Segue-se do exposto que o cônjuge do herdeiro apenas será de considerar interessado directo na partilha e apenas terá de ser citado quando tiver interesse directo na partilha, o que, como bem se vê, depende do regime de bens do casamento. Assim, sendo o casamento celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, o cônjuge terá interesse directo na partilha já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732º do Código Civil. A favor deste entendimento cita-se Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 3ª ed., p. 367, Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume II, 2ª edição 2004, Almedina, página 246.

No caso, estando a testemunha casada sob o regime da separação de bens, é seguro, face ao disposto no artigo 1327º, n.º 1, do CPC, que não tem legitimidade para intervir no inventário como parte principal. Logo não pode dele ser exigido depoimento de parte. Assim sendo, não está impedido de depor como testemunha.

Deste modo, a decisão recorrida, ao indeferir o pedido do recorrente no sentido de não ser admitido a depor como testemunha, tem inteira cobertura legal.


*

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


*

As custas serão suportadas pelo recorrente.

*

         

Emídio Francisco Santos (Relator)

António Beça Pereira

Nunes Ribeiro