Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1495/20.1T8ACB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: OPOSIÇÃO AO ARRESTO
FUNDAMENTOS
IMPUGNAÇÃO DIRECTA
IMPUGNAÇÃO INDIRECTA
IMPUGNAÇÃO POR EXCEPÇÃO
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 372º, ALÍNEA B) DO CPC
Sumário: I) No caso de ter sido decretado sem audiência prévia do requerido, a oposição ao arresto não tem que fundar-se em factos novos por referência àqueles que justificaram o deferimento da providência.

II) O requerido poderá deduzir oposição com toda a amplitude e nos exactos termos em que o poderia ter feito se não tivesse sido dispensada a sua audição prévia.

III) Assim, pode deduzir oposição: i) por impugnação directa; ii) por impugnação indirecta ou de direito; iii) por invocação de novos factos integrantes de excepção peremptória ou dilatória.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A ..., S.A., intenta o presente procedimento cautelar de arresto contra:

B ...,

peticionando o arresto dos imóveis/direito sobre imóvel identificados nos autos.

Alegando para tal, e em síntese:

é titular de um crédito sobre o requerido no valor de 1.303.250,37 €, resultante de incumprimento de contrato de mútuo celebrado com a agora D ..., S.A., sendo o requerente portador de uma livrança avalizada pelo requerido no âmbito do aludido contrato, que não foi paga;

a “D ...” está numa situação deficitária e ao requerido apenas são conhecidos os imóveis/direito que identifica, sendo que, este tendo conhecimento das dificuldades financeiras da “D ...” dissipou o seu património mais valioso a uma sociedade gerida pelos seus filhos e pela sua ex-mulher e também a esta última numa partilha simulada, pelo que tem justo e fundado receio que os outros bens possam também ser alienados pelo requerido a terceiros, o que a verificar-se fará com que o requerente perca as garantias patrimoniais do seu crédito.

Sem produção de qualquer diligência instrutória, foi de imediato proferida decisão a decretar o arresto.

Efetuado o arresto e notificado da decisão, veio o requerido deduzir oposição, alegando não ter ocorrido qualquer empréstimo, sendo o mesmo nulo por simulação, não se encontrar pendente qualquer ação executiva, nem tendo sido citado para proceder a qualquer pagamento; o suposto crédito está garantido por hipotecas e o requerido continua a ter vários ativos na sua esfera patrimonial, inexistindo risco de incobrabilidade do crédito ou perda de garantias ou qualquer simulação ou artifício na separação de bens e pessoas.

Conclui pela revogação da decisão proferida e a condenação por litigância de má-fé.

O requerente apresenta Resposta à matéria atinente à incompetência territorial e à falta de causa de pedir, bem como sobre a litigância de má-fé.

Foi então proferida a sentença de que agora se recorre:

Face ao exposto, ao abrigo do disposto no art. 372.º, n.º 3, do CPC, decide-se revogar a providência anteriormente decretada e incidente sobre os bens id. no auto de arresto de 19/08/2020 (ref. 7007135), com o inerente levantamento do arresto. Mais se decide não condenar o requerente por litigância de má-fé.


*

Inconformada com tal decisão, a Requerente dela interpõe recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

(…)


*
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
Apelação
1. Nulidade decorrente de o tribunal ter revogado a providência com base nos mesmos factos que originaram a decisão inicial do arresto.

(…)


*

1. Nulidade decorrente de o tribunal ter revogado a providência com base nos mesmos factos que originaram a decisão inicial do arresto

Antes de mais, não se atinge a razão do levantamento de tal questão por parte do Apelante, quando, da leitura da sentença recorrida resulta claro e inequívoco que o tribunal não decidiu com base nos mesmos factos!

É a seguinte a posição assumida pelo juiz a quo quanto à invocação de tal “nulidade”:

“Considera-se que a posição do Tribunal quanto ao âmbito da oposição e da intervenção que nela tem lugar, incluindo quanto à matéria de facto, e subsequente decisão, encontra-se vertida na decisão proferida, a qual se entende não configurar a reapreciação da decisão inicial a partir dos mesmos elementos, antes a revisão da convicção anteriormente formada, através de novos meios de prova ou de novos factos.

Assim, o Tribunal decidiu com base na factualidade apurada e que não é a mesma que anteriormente havia sido considerada, incluindo agora novos factos provados e excluindo agora outros factos anteriormente provados, desde logo o anterior facto provado n.º 36 (que foi agora considerado não provado) e que também constitui fundamento da decisão proferida, conforme se procurou mencionar na mesma, não se afigurando ocorrer a dita nulidade”.

Como a apelante não pode deixar de ter reparado, circunstância que sobressai da simples comparação entre os factos dados como provados na decisão que decretou o arresto e os dados como provados na decisão recorrida,

- não só, o facto inicialmente dado sob o ponto 36. da decisão que decretou o arresto, vem a ser, na decisão recorrida, dado como não provado (al. a) dos factos dados como não provados):

36. Ao requerido B ... são apenas conhecidos os seguintes bens:

a) direito à metade indivisa do prédio urbano sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 129, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 462;

b) direito à metade indivisa do prédio rústico sito em …, correspondente a terreno de cultura, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 3879, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 2803;

c) direito à metade indivisa do prédio rústico sito em …, correspondente a terreno de cultivo, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 3878, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 2796;

d) direito à metade indivisa do prédio rústico sito em …, correspondente a terreno de mato, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 3877, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 2792;

e) direito à metade indivisa do prédio rústico sito em …, correspondente a terreno de cultura com ramada, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 984, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 734.

- como, são ainda aditados os seguintes factos não tidos em consideração na decisão anterior (por ter sido trazidos aos autos pela oposição do Requerido), e que foram relevantes para a apreciação da questão do receio de perda da garantia patrimonial:

23.º O requerido tem ações na sociedade E…, S.A., a qual tem o capital social de 401.000 €.

24.º Mediante decisão de 05/11/2004 foi decretada judicialmente a separação de pessoas e bens entre o requerido e C ..., por conversão de divórcio litigioso, o que ocorreu antes do requerido entrar na administração da “D ...”.

25.º Os imóveis arrestados foram adquiridos pelo requerido em 2015 (sito em …) e 2017 (sitos em …).

Não se pode dar razão à Apelante, desde logo, por fazer assentar a sua argumentação num pressuposto errado: de que a decisão recorrida tenha revogado o decretado arresto com base na consideração dos mesmos factos que teriam levado ao seu decretamento. E, nem a alegação pela apelante, de que os factos 23 e 26º, únicos factos novos, seriam inócuos para a apreciação do justo receio, seria suscetível de alterar os termos da questão, quando, da leitura da decisão recorrida, se torna claro que, não só, o juiz introduziu alterações à matéria de facto – através da eliminação de um facto e do aditamento de outros – na materialidade respeitante aos bens que fazem parte do património do requerido e negócios que o envolveram –relativamente à decisão que decretou o arrestou, como, veio a sustentar a revogação do arresto precisamente nestes factos novos.

A argumentação da Apelante de que, em seu entender, esses factos seriam inócuos e não seriam suscetíveis de justificar o afastamento do fundado receio de perda de garantia patrimonial, não altera os termos da questão e não transmuta a decisão recorrida numa decisão que se baseia nos mesmos factos que a anterior: quando muito, significaria que a decisão recorrida se teria baseado em novos factos, “inócuos”.

De qualquer modo, ainda que assim não fosse, e que a decisão recorrida tivesse partido e assentado exatamente nos mesmos factos – e não assentou – considerados na decisão inicial que decretou o arresto, o juiz a quo não se encontrava vinculado à decisão anteriormente proferida sem o exercício do contraditório, uma vez que a decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar em que aquele tenha sido dispensado e até a este vir a ser facultada a sua audição, assumirá sempre natureza provisória.

Tal como aconteceria se se não tivesse havido diferimento do contraditório, uma vez notificado, o requerido pode deduzir de oposição, atribuindo-se-lhe a faculdade de influenciar o sentido da decisão do processo cautelar ou reagir contra a decisão, interpondo recurso.

Como sustenta Lucinda Dias da Silva[1], com a dedução de oposição, assegura-se, não apenas, que o requerido possa exercer o contraditório, como, ainda, que o exercerá com a garantia de que, por sua via, pode contribuir para a formação do sentido da decisão, o que pressupõe a manutenção da audição do requerido relativamente ao momento em que é proferida a decisão relevante a final: embora a dispensa de audição prévia permita a antecipação da decisão relativamente ao momento do exercício do contraditório, fá-lo de um modo transitório, dado que a inversão da ordem cronológica dos atos só é autorizada relativamente a uma versão provisória da decisão, que já não à sua versão definitiva.

Com a dedução da oposição não se reage contra o ato de julgamento, contra a decisão que decretou a providência, mas contra a pretensão do requerente nos termos em que se mostra formulada no Requerimento Inicial, fazendo o processo decisório, por assim dizer, voltar à estaca zero.

Segundo a alínea b) do artigo 372º do CPC, quando não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, o requerido pode deduzir oposição “quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367º e 368º”.

Ao contrário do que sustenta o apelante, de tal norma não se pode extrair que a defesa se teria de restringir à alegação de factos “novos” ou à indicação de novos meios de prova: o requerido poderá deduzir oposição com toda a amplitude e nos exatos termos em que o poderia ter feito se não tivesse sido dispensada a sua audição prévia. Ou, nas palavras de Lucinda Dias da Silva, ao requerido deverá ser assegurado o mesmo nível de garantias se não tivesse havido dispensa de audição prévia[2].

“Tanto implica que possa deduzir oposição na modalidade de defesa por impugnação, contrariando (por impugnação direta ou indireta) a versão dos factos invocados pelo autor (oposição por impugnação de direito). Deverá ainda invocar novos factos que impeçam, modifiquem ou extingam o direito invocado pelo requerente (oposição por exceção peremptória), bem como factos de índole processual que impeçam o conhecimento do mérito da causa ou determinem a remessa dos autos para outro tribunal, independentemente da circunstância de tais factos serem, ou não, do conhecimento oficioso pelo tribunal (oposição por exceção dilatória)[3]”. 

Assim como, a manutenção do nível garantístico que seria assegurado ao requerido, se não tivesse havido diferimento do contraditório, determina que este possa exercer o contraditório relativamente à prova produzida pelo requerente, designadamente, contra-inquirindo as testemunhas apresentadas por aquele relativamente aos factos aos fatos sobre que tenham prestado depoimento ou pronunciando-se sobre os documentos apresentados[4].

Como salienta Lopes do Rego[5], ao contrário do que sucedia no regime anterior, em que os embargos do requerido à providência cautelar assumiam a configuração de uma verdadeira ação declarativa sumária enxertada no procedimento cautelar, no regime atual a oposição à providencia obedece ao mesmo formalismo da oposição que podia ter sido deduzida em caso de audiência prévia do Requerido.

Regressando à situação em apreço, temos que, ainda que tivesse tido em consideração os mesmos factos (por não o requerido não ter logrado provar os novos factos que invocou), o juiz a quo era livre de, após audição do Requerido – e podendo a sua defesa assentar, nomeadamente, em que dos factos alegados não se poderia extrair os efeitos sustentados pelo Requerente –, dar nova interpretação aos mesmos, fazendo diversa subsunção dos factos ao direito. A assim não se entender, cerceada ficaria a capacidade de o Requerido influenciar a decisão.

Não se tem, assim, por verificada, a invocada nulidade.


*

(…).

*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida, decidindo-se pela manutenção do decretado arresto.

Custas a suportar pelo Apelado/Requerido, no procedimento de arresto e na Apelação.

                                                                   Coimbra, 13 de abril de 2021



[1] “Processo Cautelar Comum, Princípio do Contraditório e Dispensa de Audição Prévia do Requerido”, Coimbra Editora 2009, pp. 263-264.
[2] Obra citada, p. 271.
[3] Lucinda D. Dias da Silva, “O Processo Cautelar Comum (…)”, p.270. Também Félix Tiago da Costa sustenta uma interpretação extensiva, se não mesmo corretiva, da al. b), do artigo 372º, que permita ao requerido suscitar em sede de oposição tudo quanto lhe seria lícito apresentar se não se verificasse dispensa do contraditório, com exceção da impugnação da decisão sobre a matéria de facto incluída na primeira decisão, assim como as questões da admissibilidade dos meios de prova do requerente, por reservadas para o recurso da decisão – “A (Des)Igualdade de Armas nas Providências Cautelares sem Audiência do Requerido”, Almedina, 2012, p.84.
[4] Neste sentido, Lucinda Dias da Silva, obra citada, p. 270.
[5] Carlos Lopes do Rego, “Cometários ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina Coimbra 2004, pp.356-357.