Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1056/14.T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 41/23013 DE 26/6, ART.703 CPC
Sumário: 1.- A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

2.- A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.

3.- A incidência do novo regime processual sobre situações jurídicas constituídas no passado, lesiona mais fortemente o interesse particular a usar um título executivo legitimamente expectável, do que o interesse público de diminuir o risco de uma execução injusta, o qual pode ser alcançado por outra via processual.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

Com base em seis documentos particulares, intitulados “Declaração de Confissão de Dívida” subscritos pelo executado R (…), enquanto principal devedor, T (…) veio pedir o pagamento de quantia certa com base nesses acordos celebrados com o executado em, respetivamente, 01/02/2012, 10/03/2013, 10/04/2013, 01/05/2013, 01/06/2013 e 10/06/2013.

 O tribunal da 1ª instância decidiu indeferir liminarmente a ação executiva, considerando que os documentos particulares apresentados pelo exequente não se mostram revestidos de força executiva – cfr. artºs. 726, nº. 2, al. a), do Novo Código de Processo Civil.

Subjacente a tal decisão esteve o entendimento de que, com a entrada em vigor do NCPC em 1 de Setembro de 2013, os documentos particulares constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor anteriormente a 1 de Setembro de 2013 – que até essa data e pela lei vigente à data da sua constituição gozavam de força executiva –, perdem a sua exequibilidade. E, uma vez que os títulos apresentados pelo exequente não cabem na previsão das als. b) e d), do artº. 703, nº. 1, do NCPC, não podem os mesmos, face ao disposto nessa norma, valer como títulos executivos.

Inconformado com tal decisão veio o exequente recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

1. Com a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, foram eliminados do rol dos títulos executivos os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

2. Alteração esta que resulta das disposições conjugadas do art. 703.º do novo Código de Processo Civil, com o n. º 3 do art. 6. º, da lei que o aprovou.

3. Sendo que, em momento anterior, tais documentos eram dotados de características da exequibilidade conferida pela alínea c) do n. º 1 do art. 46.º, no anterior Código de Processo Civil.

4. O Tribunal Constitucional decidiu pela inconstitucionalidade da norma resultante dos arts. 703.º do CPC e 6.º n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de Julho, na interpretação de que aquele art. 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do art. 46.º n.º 1 alínea c) do anterior CPC.- vide Ac. T.C. n.º 847/2014, processo n.º 537/2014, do dia 17 de Dezembro de 2014.

5. Assim, a norma do art. 703.º do novo CPC, quando conjugada com o art. 6.º n.º3, da Lei 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica de exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do art. 46.º, do anterior CPC viola o princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

Termos em que, deve ser julgado procedente por provado o presente Recurso, e em consequência deve a execução ser liminarmente admitida, prosseguindo os seus trâmites legais, como é de esperada JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

           

                                                                        II

A factualidade a considerar consta do relatório supra, a que se aditam os seguintes factos:

- Os seis acordos cuja cópia foi junta como título executivo, não se mostram autenticados por notário, de acordo com o disposto nos artºs 35, nº 1 e 3, 150 a 152, do Código de Notariado;

- Tais documentos também não foram alvo de autenticação por conservadores, oficiais de registo, advogados, solicitadores ou por alguma das câmaras de comércio e indústria – entidades que, para além dos notários, possuem competência para autenticar documentos particulares – cfr. art. 38º do Dec-Lei nº 76-A/2006 de 29 de Março.

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se é inconstitucional a norma constante do artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de julho, quando referida a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do referido Código, em execuções instauradas depois dessa data.

Refere a decisão recorrida que:

«Da leitura da alª c) do art. 703 nº 1, podemos retirar que deixou de poder servir de fundamento à execução um conjunto largo de documentos particulares, a saber: As garantias bancárias, “os contratos de concessão de crédito ou com os documentos subscritos pelo devedor para reconhecimento da obrigação de pagamento ao credor de determinada quantia ou dos quais resulte a constituição da obrigação de pagamento de determinada quantia”.

 Por isso as execuções apresentadas a partir de 1 de setembro de 2013 – cfr. artºs 6 nº 3 e 8 da Lei 41/2013 de 26 de junho – só podem ter como fundamento os documentos referidos no art. 703 do NCPC, já que todos os documentos particulares, com exceção dos referidos na alínea c) – onde não se inclui o título dado à execução – perderam a sua força executiva».

Concluindo depois:

« (…) não enveredamos, pois, pela tese da inconstitucionalidade sobre a aplicação da nova lei aos documentos que perderam a sua força executiva, considerando que as execuções instauradas  posteriormente a 1 de setembro de 2013 não poderão basear-se em documento particular constituído em data anterior e a que fosse atribuída exequibilidade pelo regime vigente à data da sua constituição».

Tal posição apoiada por parte da doutrina[1] e da jurisprudência[2] foi já rejeitada pelo Tribunal Constitucional, por via do Acórdão nº 847/2014 de 3/12/2014, Proc. 537/14,[3] consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140847.html que decidiu:

“Julgar inconstitucional a norma resultante dos artºs 703 do CPC e 6º nº3 da Lei nº 41/2013 de 26/6, na interpretação de que aquele art. 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e, então, exequíveis por força do art. 46º nº 1, alª c), do CPC de 1961».

Posição que subscrevemos e que seguiremos neste acórdão.

Vejamos.

Está em causa a interpretação da norma que resulta da conjugação do disposto no art. 703º do CPC com o disposto no nº 3 do art. 6º da Lei nº 41/2013 de 26/06.

Dispõe o art. 703º do CPC que:

1 - À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante».

Dispõe, por sua vez, o art. 6º nº 3 da Lei 41/2013 de 26/06, que veio alterar o Código de Processo Civil, que:

«3 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor».

É o seguinte o texto da alínea c) do art. 46 do CPC, na redação revogada pela Lei 41/2013 de 26/6:

«1- À execução apenas podem servir de base […]:

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.»

Ora, tendo o novo Código de Processo Civil eliminado do elenco dos títulos executivos, este tipo de documentos e, tendo a alteração legislativa aplicação imediata, sem que tenha sido estabelecido um regime transitório que limite a sua aplicação aos títulos (documentos particulares) anteriormente constituídos mas ainda não executados, estes perderam o seu valor como tal, por via da sucessão no tempo de leis processuais.

Desse modo, um credor munido de documento particular, legalmente dotado de exequibilidade no momento da sua constituição, deixa, entretanto, de ter um título executivo, não podendo, por isso, aceder, imediatamente, ou seja, sem qualquer ação (declarativa) ou formalismo (injunção) prévios, à ação executiva.

Ou seja, a lei processual que ao tempo da constituição do documento, diminuiu as exigências formais para a concessão da característica da exequibilidade, alargando a exequibilidade  a documentos particulares relativos a obrigações pecuniárias  de montante determinável por simples cálculo aritmético”, com dispensa do reconhecimento notarial, bastando a imputação ao executado da assinatura nele inscrita, desde que do seu conteúdo derive  o reconhecimento ou constituição de alguma das obrigações previstas, deixou de lhe valer.

Como se desenvolveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 847/2014 de 3.12.2014, publicado também em Cadernos de Direito Privado nº 48:

«A alteração normativa em presença caracteriza-se pela aplicação para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes. Nestes casos ainda que a nova regulação jurídica não substitua ex tunc a disciplina normativa existente, ela acaba por atingir posições jurídicas ou garantias geradas  no passado e relativamente às quais os respetivos titulares formaram legítimas expetativas de não serem perturbados por um regime jurídico inovador. Trata-se da situação que a doutrina classifica de “retroatividade inautêntica ou “retrospetiva”».

E, mais à frente:

«Numa situação como a do presente processo, um dos limites constitucionais à atuação do legislador é o princípio da segurança jurídica ou o princípio da proteção da confiança. Com efeito, apesar de o texto da Constituição não aludir expressamente a este princípio, ele é pacificamente dedutível do princípio do Estado de Direito, consagrado no art. 2º da CRP.[4] A afirmação deste princípio significa que, num Estado de Direito, a atuação dos poderes públicos deve ser previsível e confiável».

Sustentando-nos ainda na fundamentação do acórdão antecedente, «o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão objetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes».

«A questão que deve ser colocada é, então a de saber se a norma em causa afeta, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expetativas legitimamente fundadas dos cidadãos, traduzindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito».

«Segundo a metodologia adotada no Tribunal Constitucional, importa começar por formular um juízo sobre a legitimidade das expetativas dos cidadãos visados. Neste âmbito é necessário que  i) as expetativas dos particulares sejam legítimas e fundadas em boas razões, que ii) o Estado (em especial, o legislador) tenha atuado de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade, e que iii) os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta essa expetativa de continuidade de comportamento estadual, materializados ou traduzidos em atuações concretas (cfr. ac. nº 355/2013). Confirmada a legitimidade da confiança, deve, então, avançar-se para a ponderação sobre a prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expetativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. acs. nºs 56/2003 e 355/2013). Este juízo implica também a aferição da medida da afetação da confiança – relativamente a interesses públicos prevalecentes – no sentido de esta não poder ser desrazoável ou excessiva (cfr. ac. nº 355/2013). Neste âmbito deve recorrer-se a um raciocínio de ponderação semelhante ao efetuado quanto ao princípio da proporcionalidade».

Concluímos, pois, na esteira do acórdão em referência que, não será admissível uma afetação de expetativas em sentido desfavorável quando, constitua uma mutação da ordem jurídica com que os destinatários não pudessem contar e, quando essa mutação não seja ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos prevalecentes.

Este o critério de aferição para determinar se a norma jurídica afeta ou não o princípio da confiança ínsito na constituição.

Aqui chegados teremos de começar por considerar legítimas e justificadas as expetativas dos titulares de documentos particulares que se muniram dos mesmos ao tempo em que a lei processual lhes atribuía expressamente força executiva.

“…o  legislador atuou de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade , que os determinaram à realização de planos de vida (…)”.

É de supor que, muitos dos credores que, no passado, se tornaram titulares de um mero documento particular assinado pelo devedor que, à data da sua constituição consubstanciava título executivo, caso antevissem a alteração processual, teriam obtido dos devedores a subscrição dum documento formalmente mais exigente.

Ocorreu assim uma mutação inesperada na ordem jurídica, cabendo então apreciar se a mesma foi determinada por um interesse público premente e simultaneamente arbitrário e demasiado oneroso.

Subjacente à opção pela alteração legislativa, estiveram razões de segurança jurídica.

Como se lê no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 07-10-2014, Pr. 61/14.5TBSBG.C1 (Relatora: Maria João Areias), que sustenta uma posição divergente à nossa, mas que, nesta questão particular, não dissentimos:

“Com a Reforma de 2013, o legislador deixa de reconhecer força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor e que importem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, eliminando-os do elenco dos títulos executivos enumerados taxativamente no artigo 703º do Novo CPC.

Tal restrição, respondendo à censura exercida pela doutrina relativamente ao facto de o ordenamento jurídico português ser um dos mais generosos na concessão de exequibilidade a títulos não judiciais, teve por objetivo a dignificação dos títulos executivos, com vista a atribuir uma maior segurança jurídica à ação executiva e evitar oposições à execução unicamente para a discussão do documento particular e da relação subjacente”.

A opção por um elenco mais restrito dos títulos executivos, obrigando a maiores exigências formais na verificação da autenticidade das declarações ou assinaturas constantes dos documentos ou, obrigando à propositura duma ação declarativa prévia, traduz a expressão dum interesse público relevante, porquanto se diminui o risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório, como consta da “exposição de motivos” da Proposta de Lei nº 113/XII, que veio dar origem à Lei nº 41/2013 de 26/6.

Daí que, não seja desconforme à Constituição a nova norma processual que limita o elenco dos títulos executivos quando pensada para os títulos constituídos a partir da sua entrada em vigor.

O que ora está em causa são os títulos executivos – documentos particulares que o eram à data da sua constituição e que deixaram de o ser com o novo regime processual civil. Confrontam-se no caso dois interesses legítimos: o interesse público em evitar execuções injustas e o interesse particular em manter a força executiva do documento, importando sopesar um e outro de modo a apurar o que mais pesa.

Ora, o risco de instauração de execuções injustas tem na lei os seus próprios mecanismos de atenuação, quer seja, pela via da dedução de oposição à execução (art. 816 do CPC antigo e art. 731 do CPC novo), quer seja pela faculdade concedida ao juiz de, na sequenciada dedução de oposição à execução com simples fundamento na falta de autenticidade da assinatura imputada ao executado, ordenar a suspensão da execução mediante a exibição de documento que constitua indício de prova revelador da viabilidade da oposição (art. 818 do CPC antigo e art. 733 do CPC novo).

Com a eliminação da exequibilidade dos documentos particulares deixa o credor de contar com a presunção da prova da dívida de que até aí dispunha e que lhe permitia o acesso imediato à ação executiva.

A incidência do novo regime processual sobre situações jurídicas constituídas no passado, lesiona mais fortemente o interesse particular a usar um título executivo legitimamente expectável, do que o interesse público de diminuir o risco de uma execução injusta, o qual pode ser alcançado por outra via processual.

Conclui-se, pois, na esteira do acórdão do tribunal Constitucional que viemos a seguir que “a aplicação imediata e automática da solução legal, ínsita na conjugação dos art.ºs 703 do CPC e 6º nº 3 da Lei nº 41/2013, de 26/06, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do Código de Processo civil revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporariamente essa aplicação, é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, plasmado no art. 2º da Constituição”.

Daí que, entendamos nós também, julgar inconstitucional a norma resultante dos artºs 703º do CPC e 6º nº 3 da Lei 41/2013 de 26/6, na interpretação de que aquele art. 703 se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e, então exequíveis por força do art. 46 nº 1 alª c) do CPC de 1961.

Concede-se por, consequência, provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da execução.

Em suma:

- A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

- A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.

- A incidência do novo regime processual sobre situações jurídicas constituídas no passado, lesiona mais fortemente o interesse particular a usar um título executivo legitimamente expectável, do que o interesse público de diminuir o risco de uma execução injusta, o qual pode ser alcançado por outra via processual.

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da execução.

Sem custas.

Coimbra,

 (Anabela Luna de Carvalho( Relatora)

 (João Moreira do Carmo)

 (José Fonte Ramos)


[1] Miguel Teixeira de Sousa, Anotação ao Ac. Tribunal Constitucional nº 847/2014 de 3.12.2014, Pr. 537/14
[2] Ac. TRC de 07-10-2014, Pr. 61/14.5TBSBG.C1, Relatora: MARIA JOÃO AREIAS, e Ac. TRP de 09-12-2014, Pr. - 1011/14.4T8PRT.P1, Relator: FERNANDO SAMÕES, ambos in www.dgsi.pt.

[3] Bem como no Ac. n.º 161/2015, da 3.ª Secção, de 04 de Março de 2015), no qual, sem votos de vencido, se decidiu o seguinte:
            “Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2.º da Constituição, a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961;”.

           
[4] Art. 2º (Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular,
no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de
efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de
poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento
da democracia participativa.