Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/11.4TBTBC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO NACIONAL
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
CONTRATO DE SEGURO
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 239/2003 DE 4/10, ART.301 CC
Sumário: 1.- Ao contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias são aplicáveis as regras do DL nº 239/2003 de 4/10.

2.- O direito à indemnização por danos decorrentes da responsabilidade do transportador prescreve no prazo de um ano, contado a partir da data da entrega da mercadoria ao destinatário ou da sua devolução ao expedidor ou, em caso de perda total, do 30º dia posterior à aceitação da mercadoria pelo transportador ( art.24 nº1 e 2 ).

3.- A invocação da prescrição pela ré seguradora beneficia a ré transportadora que não a invocou.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

J (…) & Companhia, Ldª, instaurou ação contra as rés “L (…)Transportes, SA” e sua seguradora, “C (…) ”, pedindo a sua condenação solidária no pagamento de € 108.688,68, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou a autora, em síntese:

Contratou com a ré “L (…)” o transporte de uma máquina;

No decurso da viagem, a máquina foi projetada para fora do reboque, tendo ficado danificada e impossibilitada de funcionar;

Por contrato de seguro, a transportadora havia transferido para a 2ª ré a responsabilidade civil decorrente de acidentes e danos causados a terceiros, no âmbito do exercício da sua atividade;

Sofreu prejuízos que identifica, quer com a reparação da máquina, quer com a sua imobilização.

A ré “L(…)”, aceitando o acidente, defende que o mesmo não lhe é imputável, desconhecendo os danos alegados.

A ré “C(…)” invocou a prescrição do direito de que a autora se arroga, por estar excedido, à data da interposição da ação, o prazo previsto no artigo 24º do DL 239/2003; confirmou a celebração do contrato de seguro com a ré “L(…)” e considerou que o acidente se deveu ao piso lamacento da via pública que determinou a queda do camião onde a mercadoria era transportada, o que configura uma cláusula exoneratória da responsabilidade da ré “L(…)”, nos termos do artigo 18º do DL 239/2003; invocou a franquia contratada de € 800,00, considerando que o IVA peticionado não pode constituir base para o pagamento de qualquer indemnização, que não são devidos os lucros cessantes e de paralisação, impugnando ainda, por excessivo, o valor peticionado a tal título.

A autora replicou, considerando que o prazo prescricional aplicável é o de 20 anos; invocou ainda que a ré “L(…)” reconheceu a responsabilidade, pelo que o prazo prescricional se interrompeu nos termos do artigo 325º do Código Civil; defendeu a inexistência de caso fortuito.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar extinto, por prescrição, o direito acionado pela autora, absolvendo as rés do pedido.


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Inconformada, a autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1.º Entende a Recorrente que, uma vez que a recorrida apenas lhe entregou a mercadoria – Crivo Móvel – após a sua reparação, em 29.03.2010, o prazo de prescrição só pode ser contado a partir desta data.

2.º Destarte, mal andou o Tribunal a quo considerando a data do sinistro - 18.12.2009 – como o momento em que teria sido devolvida a mercadoria ao expedidor e a partir do qual principia a contagem do prazo prescricional.

3.º Não havendo uma perda total, a contagem do prazo de prescrição apenas se iniciaria após a entrega da mercadoria, pelo que não se verifica o decurso do prazo de um ano até ao exercício do direito peticionado nos autos.

4.º Não se verificando, desta forma, a prescrição do direito da autora.

5.º Ainda que assim não fosse, a 1ª ré L (…) Transportes, S.A. não invocou o instituto da prescrição.

6.º O Tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, por um lado;

7.º Outrossim, para ser eficaz a prescrição, tem de ser invocada e provada por aquele a quem aproveita conforme dispõe o artigo 342° do Código Civil.

8.º Não tendo a 1ª ré invocado a prescrição não pode o Tribunal, oficiosamente, estender a esta a exceção invocada feita pelas demais.

9.º Ao fazê-lo o Tribunal a quo atuou em clara violação do Principio do Dispositivo, plasmado no artigo 5° do Código de Processo Civil.

10.º O que, de acordo com o disposto no artigo 608º do Código de Processo Civil, consubstancia uma situação de excesso de pronúncia.

11.º Dispõe a alínea d) do artigo 615° do Código de Processo Civil, que a apreciação por parte do Tribunal a quo de questões de que não podia tomar conhecimento é fundamento de nulidade da sentença.

12.º Sendo também nula na parte em que estende a invocação da prescrição efetuada pela 2° ré à 1º ré da ação.

13.º O Tribunal a quo violou assim o disposto no artigo 615°, alínea d) do Código de Processo Civil, e nos artigos 303° e 323°, ambos do Código Civil, bem como o n° 24º do DL 239/2003, de 04/10.


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            As rés defenderam a correção da decisão em crise e a extensão do benefício da invocação da prescrição a todas as rés.

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As questões a decidir são as seguintes:

Indagar sobre a prescrição do direito da autora;

A limitação do benefício decorrente da prescrição à ré que a invocou; o excesso de pronúncia;

A ponderação de consequências da eventual não prescrição.


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Os factos considerados provados foram os seguintes:

1 – Por contrato de seguro válido entre 24 de Julho de 2009 e 23 de Julho de 2010, titulado pela apólice nº (...) , a ré “L(…)”, na qualidade de tomadora e segurada, havia transferido para a ré “C (…),”, designadamente, a responsabilidade civil face a terceiros e face à carga, por danos causados no exercício da sua atividade;

2 – No âmbito da sua atividade comercial de, respetivamente, construção civil e de serviço de transportes, a autora e a ré “L(…)” acordaram o transporte, por esta, de um Britador ou Crivo Móvel, propriedade daquela, desde Mogadouro até Bemposta.

3 – Na sequência do referido em 2, a ré “L (...) ”, em 18 de Dezembro de 2009, carregou e acondicionou o Crivo Móvel nas instalações da autora, em Mogadouro, num veículo pesado com a matrícula (...) CB.

4 – Na sequência de um acidente ocorrido durante a viagem, o Crivo Móvel foi projetado para fora do reboque e ficou impossibilitado de funcionar desde 18 de Dezembro de 2009 até 29 de Março de 2010.

5 – E careceu de reparação, com a aplicação de “chassis de tremonha dealimentação; cilindros hidráulicos das sapatas de posicionamento; proteção lateral RH, no tapete de alimentação do crivo; varandim lateral RH do passadiço do Crivo; estrutura da seção inferior do tapete dos finos; calhas de deslizamento interiores da mesma estrutura; estrutura da cabeça superior do tapete lateral.

6 – A reparação do Crivo, incluindo peças e mão de obra, importou um total de € 48.871,32, sendo € 40.726,10 de mercadorias e serviços e € 8.145,22 de IVA.

7 – Para retirar o Crivo e porta-máquinas do local do acidente, a autora disponibilizou uma máquina Komatsu PC 228US, o que importou um custo de € 342,00.

8 – O Crivo tinha sido adquirido pela autora em 18/8/2009, no estado de novo, por € 194.400,00.

9 – E era o único de que a autora dispunha para o exercício da sua atividade de construção civil, sendo utilizado diariamente para a produção de inertes de pedreira, britados e selecionados.

10 – À data do acidente, a autora executava os serviços referidos no artigo anterior para fornecimento ao cliente M (…), SA, para os quais o Crivo era necessário.

11 – O Crivo produzia em média 1200 toneladas, em valor total que em concreto não foi possível apurar.

12 – A sua paralisação implicou uma menor rentabilização do trabalho de quatro funcionários da autora, naquele período.

13 – Nos termos do contrato de seguro supra referido, foi acordada uma franquia de € 800,00 para a carga geral.

14 – Após a ocorrência do acidente, entre a autora e a ré “L(…)” decorreram contatos no sentido da reparação do Crivo.

15 – Para a reparação referida em 4 seria necessário um prazo de duas semanas para obtenção das peças necessárias e de 10 a 14 dias para a reparação propriamente dita.


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            Não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto.

Da leitura das alegações da autora, ao interpretar o facto nº4, poderá parecer que, após o acidente, não está clara a data da disponibilidade da máquina por ela. Porém, conforme os articulados, fica esclarecido que a autora recebeu a máquina avariada no dia 18.12.2009; por isso alegou ela que ficou impedida de a utilizar desde aquele dia até ao dia 29.03.2010 (final da reparação), tendo sido ela a disponibilizar uma outra máquina para retirar o Crivo do local do acidente e foi ela a solicitar a terceiros a sua reparação.


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Indagar sobre a prescrição do direito da autora.

As partes aceitam que o contrato celebrado entre a autora e a ré “L(…)” configura um contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, regulado pelo DL 239/2003, de 4 de outubro, a primeira na sua qualidade de expedidora/destinatária da mercadoria e a segunda na sua qualidade de transportador rodoviário.

A lei define aquele como o contrato celebrado entre o expedidor e o transportador, no qual o transportador se obriga perante o primeiro a deslocar uma determinada mercadoria, por meio rodoviário, entre locais situados em território nacional e a entregá-las ao destinatário.

A responsabilidade do transportador encontra-se no artigo 17º, nº 1, da lei em análise: “O transportador é responsável pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega”.

No caso, a autora e a ré “L(…)” acordaram o transporte, por esta, de uma máquina propriedade daquela, desde Mogadouro até Bemposta, a concretizar no dia 18.12.2009.

No transporte ocorre um acidente que danificou a mercadoria transportada. As partes estão de acordo que não ocorreu perda total desta.

 A lei em aplicação contém regras próprias quanto à prescrição em crise.

Assim, resulta do seu artigo 24º:

 “1. O direito à indemnização por danos decorrentes de responsabilidade do

transportador prescreve no prazo de um ano.

2. O prazo referido no número anterior conta-se a partir da data da entrega da mercadoria ao destinatário ou da sua devolução ao expedidor ou, em caso de perda total, do 30ª dia posterior à aceitação da mercadoria pelo transportador”.

Ora, a máquina transportada e danificada no transporte foi recebida pela autora no dia 18.12.2009. Nesta data, a autora constata os danos provocados, tendo consciência do direito que o citado art.17º lhe confere contra o transportador, embora desconhecendo a extensão integral dos prejuízos.

Nos termos do nº2 do referido art.24º, é a verificação inicial do dano, pelo recebimento da mercadoria, que determina o início da contagem do prazo para a prescrição.

 A ação só foi instaurada em 29.03.2011, havia já decorrido mais de um ano a contar de 18.12.2009.

No seu recurso, a autora confunde a data da entrega da mercadoria ou da conclusão do transporte (18.12.2009) com a data da reparação da mercadoria.

Esta última poderá ter importância para apurar a extensão dos danos, mas não é a decisiva para colocar o lesado na condição de conhecer o seu direito contra o transportador. É com a entrega da mercadoria que o lesado percebe aquele direito que pode acionar.

E, como bem assinala a seguradora, fazer depender o início da contagem do prazo de prescrição da reparação da mercadoria (pelo lesado ou por terceiros) seria conceder que o prazo fosse manipulável.

Em conclusão, na data em que a ação foi instaurada, o direito acionado estava prescrito.


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A limitação do benefício decorrente da prescrição à ré que a invocou. O excesso de pronúncia.

Defende a recorrente autora que, não tendo a 1ª ré invocado a prescrição, não pode o Tribunal, oficiosamente, estender a exceção invocada pela seguradora àquela, absolvendo-a também do pedido.

Entendemos que não tem razão.

Na prescrição pune-se a inércia do titular do direito e tutela-se a certeza e segurança das relações jurídicas, pela respetiva consolidação, operada em prazos razoáveis.

“A prescrição não tem por fonte uma declaração negocial, mas um facto – o decurso de um prazo.” (P. Lima, A. Varela, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª edição, página 272.)

Por isso, a prescrição aproveita a todos os que dela possam tirar benefício, sem exceção dos incapazes (art.301º do Código Civil, doravante CC).

Como facto invocado, ele tem de ser considerado pelo juiz (art.5º do Código de Processo Civil, doravante CPC).

Numa situação de pluralidade de réus, em litisconsórcio voluntário, como se apresenta este processo, se apenas um deles contesta, impugnando os factos articulados pelo autor e alegando factos que integram exceção perentória (art.576º, nº3, do CPC), tal contestação aproveita ao réu não contestante, por força da alínea a) do art. 568º do CPC.

Esta alínea prevê todos os casos de pluralidade de réus, seja ela de litisconsórcio necessário, voluntário ou de coligação. Com efeito, nenhum sentido faria que, na mesma ação, os mesmos factos pudessem ser considerados como não provados em relação a um dos réus, porque os impugnou, e como provados em relação aos restantes, que não ofereceram contestação. (L. Freitas, M. Machado, R. Pinto, CPC Anotado, vol.2º, 2ª edição, página 299.)

Nesta ação, acionados o lesante e a sua seguradora, por força do seguro de responsabilidade civil, cobrindo esta o risco da constituição no património do segurado da obrigação de indemnizar, as posições das rés são tendencialmente coincidentes.

A exceção da prescrição é exterior ao contrato de seguro e, como facto, alargar-se-á a todos os que dela possam beneficiar (o citado art.301º do CC).

Noutra perspetiva, a da punição do titular do direito, pela sua inércia, qualquer que seja o interessado a invocar esta (até terceiros com legítimo interesse na sua declaração – art.305º, nº1, do CC), o que está em causa é a extinção do direito. (M. Pinto, Teoria Geral, 4ª edição, 2ª reimpressão, páginas 372 e seguintes.)

A recorrente autora confunde a pessoa que invoca a prescrição e a pessoa que beneficia dela. Poderá existir um conjunto de beneficiários e, no meio deles, apenas um invocar a prescrição. Se este conjunto estiver acionado no mesmo processo, é aceitável que apenas um invoque a exceção (“relação formal de representação”, referida na obra dos anotadores do CPC), beneficiando os demais.

A recorrente confunde alegação de factos com pedido e com questões a resolver. A prescrição foi um facto e uma questão colocada no processo que importava resolver (arts.5º, 608º, nº2, 609º, nº1 e 615º, nº1, d), do CPC). As rés, não tendo alegado os mesmos factos e colocado as mesmas questões, pediram a absolvição do pedido. Neste contexto processual, o tribunal estava obrigado a conhecer da prescrição e a fazê-lo de forma uniforme (extinção do direito), para com as rés que se colocavam no mesmo patamar de responsabilidade. (Sobre o litisconsórcio unitário, ver Teixeira de Sousa, Estudos, Lex, 1997, página 171.)

Em conclusão, a invocação da prescrição pela ré seguradora, demonstrada, beneficia a ré transportadora, que não a invocou, não merecendo censura a decisão recorrida.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2016-02-02


Fernando de Jesus Fonseca Monteiro( Relator)

António Carvalho Martins

Carlos Moreira