Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/09.8TAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 01/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 410º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Tendo o tribunal a quo determinado a medida da pena que impôs ao arguido com total omissão da factualidade inerente às suas circunstancias pessoais, nomeadamente, as relativas à sua inserção social e às suas condições económicas e financeiras, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos previstos no art.º 410º, n.º 2, al. a), do C. Proc. Penal, a reclamar o reenvio do processo para novo julgamento, ainda que restrito a esta concreta questão.
Com efeito, o tribunal apenas poderia dispensar a consideração desses elementos na decisão se porventura lhe fosse de todo em todo impossível obtê-los, como frequentemente sucede nos casos de arguidos ausentes em parte incerta e relativamente aos quais não é possível proceder a inquérito às suas condições pessoais ou reunir um mínimo de elementos que possam ser atendidos na fixação da pena.
Mas, mesmo nesses casos, deve o tribunal consignar essa impossibilidade na motivação da matéria de facto, preferencialmente, dando conta das diligências realizadas, pois só assim resultará inequívoco que a ausência de factos relativos às condições pessoais e económicas não resulta da inércia do tribunal, mas da impossibilidade objectiva de os obter.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo Tribunal Judicial de Montemor-O-Velho, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

“(…)
Pelo exposto, decide-se:
1. Condenar cada um dos arguidos A..., B... e C... pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º nº1 e 3 do Código Penal, na pena de multa de 100 dias, à razão diária de 5,00€, no montante total de 500,00€.

(…)”.

Inconformado, recorre o M. P., retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do disposto nos arts. 40.°, n.º 1 e 2 e 71.° do Código Penal ao fixar a medida da pena aplicada nos presentes autos aos arguidos em 100 (cem) dias de multa.

2. De facto, o Tribunal a quo ao fixar a medida da pena não ponderou devidamente as seguintes circunstâncias:

- as elevadas exigências de prevenção geral positivas associadas a este tipo de criminalidade que constitui um claro ataque ao exercício da justiça e à descoberta da verdade material, verificando-se cada vez com mais frequência a prática de tais condutas, denotando um sentimento de impunidade das mesmas na comunidade em geral;

- as também elevadas exigências de prevenção especial positivas atendendo à postura manifestada pelos arguidos na audiência de julgamento realizada nos presentes autos, negando a prática do crime, o que é demonstrativo que não interiorizaram a ilicitude e a gravidade da sua conduta;

- a intensidade do dolo que assumiu a mais grave das suas modalidades; e

- a elevada ilicitude demonstrada no facto de com a sua actuação pretenderem os arguidos lograrem a absolvição de uma pessoa que sabiam ter cometido um crime e a imputação de crime a pessoa que sabiam não ter praticados quaisquer factos.

3. Uma correcta ponderação de tal circunstancialismo impunha a aplicação aos arguidos da pena de 300 (trezentos) dias multa, o que se pugna.

            Os arguidos não responderam.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela revogação da sentença, determinando-se o reenvio para novo julgamento restrito à determinação das condições pessoais e da situação económica do arguido A... com fundamento em insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso limitam o recurso à matéria de direito respeitante à determinação da medida das penas, havendo no entanto que conhecer a título prévio da questão suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta.

                                                           *          *          *         

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:

1. No dia 12-12-2007, no processo nº 24/07.7TAMMV, em Audiência de Discussão e Julgamento, os arguidos foram inquiridos como testemunhas de defesa do arguido D....

2. Procedeu-se a julgamento com todas as formalidades legais, tendo a Mm Juiz começado por identificar as testemunhas que juraram dizer a verdade às perguntas que lhe iam ser feitas e foram solenemente advertidos que estavam obrigados a faze-lo sob pena de cometer crime.

3. No processo supra referido encontrava-se a ser julgado o arguido D..., amigo e colega de pesca dos aqui arguidos, sendo-lhe imputada a prática de dois crimes de pesca proibida ao meixão, pelos factos ai melhor descritos.

4. No decurso da referida audiência, por diversas vezes, foi perguntado aos arguidos se sabiam alguma coisa sobre as circunstâncias de tempo, modo, lugar e acerca de quem capturou o meixão e de que forma e modo o mesmo terá sido transportado do rio Mondego até chegar às mãos do arguido, tendo os arguidos dito, em síntese que nos dias em causa nos autos um tal  … chegou à borda do rio com o meixão, junto da bombagem e pediu ao arguido para levar os caixotes com meixão para Eireira, para depois vender a clientes.

5. Contudo, os arguidos sabiam perfeitamente que o meixão tinha sido pescado pelo arguido, que o mesmo lhe pertencia e foi carregado e transportado na sua viatura para Eireira para vender aos seus clientes.

6. Os arguidos também tinham pleno conhecimento que o … , não se encontrava no dia 20/21-12-2006 e 17-01-2007 a pescar no rio Mondego, nem se encontrava no local, uma vez que se encontrava em parte incerta e não é visto em Lavos há uns anos

7. Os arguidos, sabendo que prestavam informações falsas ao Tribunal após terem jurado falar a verdade e serem advertidos de que se não o fizessem incorriam em responsabilidade criminal, actuaram da forma descrita deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

8. Aos arguidos não são conhecidos antecedentes criminais.

10. O arguido A… está desempregado há 4 anos e não recebe qualquer subsidio.

11. A sua esposa é operária fabril e aufere €500,00 mensais e têm uma filha de 10 anos de idade, vivem em casa própria, pagando uma prestação mensal de €300,00.

12. O arguido  B… explora um café, recebendo a quantia mensal de €485,00, está separado de facto, vive em casa da mãe ajudando nas despesas e suporta o pagamento de uma prestação mensal de €310,00 de um empréstimo.

            Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:

- os arguidos disseram várias vezes que no dia 21 de Dezembro o arguido não tinha capturado o meixão.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

O Tribunal formou a sua convicção tendo em conta o conjunto de toda a prova produzida, a documental e a constituída por declarações e depoimentos, esta em função da respectiva razão de ciência, da postura, parcialidade, segurança e verosimilhança do declarado, que transpareceram na audiência de julgamento, analisada no seu conjunto de acordo com a livre apreciação da prova, sustentada nas regras da experiência comum.

Assim, considerou-se:
A certidão de fls. 1 e ss e composta pelas doutas decisões de facto e de direito proferidas nesse processo, bem como as transcrições.
Das transcrições da audiência de julgamento, consta expressamente a prestação de juramento legal e a advertência para o dever de resposta com verdade às perguntas que lhe iam ser feitas.
Consideraram-se as declarações dos arguidos se bem que apenas quanto às suas condições pessoais, já que no demais os arguida prestaram declarações pouco credíveis nos seus termos e no confronto com os elementos documentais e testemunhais produzidos, como adiante se concretizará.
Consideraram-se os depoimentos das testemunhas … , irmão do referido … ,  … , agente da GNR,  … , agente da GNR, estes últimos que relataram a existência da acção de fiscalização e apreensão do meixão e o primeiro quanto ao facto de o paradeiro do seu irmão ser desconhecido e o mesmo não ser visto na zona há bastante tempo.
O depoimento da testemunha D..., arguido no outro processo, que se limitou a confirmar a versão dos factos levada por si a julgamento.
As testemunhas de defesa …………., que apenas se referiram ao bom carácter dos arguidos.
Assim, os arguidos confirmaram a sua versão apresentada no julgamento do arguido D..., em como viram um individuo, que acham ser o … , a entregar uns caixotes com meixão ao ali arguido D..., a fim de esse o transportar no seu veiculo.
As testemunhas agentes da autoridade, mais uma vez descreveram os factos que presenciaram na acção inspectiva ao ali arguido D..., que levaram à apreensão do meixão por si transportado.
As declarações dos arguidos não convenceram o tribunal, assim como já não convenceram os seus depoimentos como testemunhas, por não serem coerentes com as regras da experiência comum as versões dos factos produzidas.
Na realidade não tem cabimento que o ali arguido tivesse realizado um segundo transporte de meixão a pedido de uma pessoa apenas sua conhecida se anteriormente já tivesse sido objecto de uma acção de fiscalização por prática de igual acção.
Resultou ainda, mais uma vez, do depoimento dos agentes da GNR, que o ali arguido fazia o transporte do meixão, nunca tendo referido que o mesmo não lhe pertencia.
A versão dos arguidos é manifestamente inverosímil, destinando-se a favorecer o ali arguido.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos valeu o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.

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Importa conhecer desde já da questão prévia suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, visto esta condicionar a apreciação das questões que delimitam o âmbito do recurso interposto. A questão posta traduz-se no facto de o tribunal a quo ter determinado a medida da pena que impôs ao arguido A... com total omissão da factualidade inerente às suas circunstancias pessoais, nomeadamente, as relativas à sua inserção social e às suas condições económicas e financeiras, o que traduziria o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada nos termos previstos no art. 410º, nº 2, al. a), a reclamar o reenvio o processo para novo julgamento, ainda que restrito a esta concreta questão.

Resulta dos autos que o arguido A... requereu que a audiência tivesse lugar na sua ausência, nisso consentindo expressamente por se encontrar a trabalhar no estrangeiro (cfr. fls. 395). O seu requerimento foi desferido e a audiência teve lugar na ausência desse arguido (cfr. fls. 397), tendo o tribunal proferido sentença sem que no entanto se tivesse pronunciado sobre as condições pessoais do arguido A....

Por força do disposto no art. 71º, nº 2, do Código Penal, na determinação da medida da pena o tribunal está vinculado à apreciação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor do agente ou contra ele, aí se incluindo as condições pessoais do agente e a sua situação económica [(al. d) do mesmo nº 2]. É verdade que o arguido não esteve presente em audiência e que inclusivamente se encontra a trabalhar no estrangeiro, o que impediu a recolha de elementos relativos à sua situação pessoal através das suas próprias declarações. De todo o modo, não estava o tribunal dispensado por essa razão de efectuar diligências tendentes à averiguação desses elementos. Como bem notou a Exmª Procuradora-Geral Adjunta no douto parecer que juntou aos autos, a necessidade de proceder a essa averiguação deve hoje considerar-se como incontornável, sendo vastíssima a jurisprudência publicada que se tem feito voz deste princípio. O tribunal apenas poderia dispensar a consideração desses elementos na decisão se porventura lhe fosse de todo em todo impossível obtê-los, como frequentemente sucede nos casos de arguidos ausentes em parte incerta e relativamente aos quais não é possível proceder a inquérito às suas condições pessoais ou reunir um mínimo de elementos que possam ser atendidos na fixação da pena. Mas mesmo nesses casos deve o tribunal consignar essa impossibilidade na motivação da matéria de facto, preferencialmente dando conta das diligências realizadas, pois só assim resultará inequívoco que a ausência de factos relativos às condições pessoais e económicas não resulta da inércia do tribunal, mas da impossibilidade objectiva de os obter. Ora, no caso vertente não só não há qualquer indicação na motivação de facto da sentença que dê conta da impossibilidade de obtenção de tais elementos como não resulta dos autos que quaisquer diligências tenham sido efectuadas. Não obstante, as condições sociais e económicas do arguido relevam na determinação do juízo de culpa e logo, relevam para a determinação da medida da pena; e as condições económicas assumem particular relevância no caso de imposição de pena de multa, não tanto para a determinação da medida da pena, mas para a determinação da taxa aplicável, já que a amplitude prevista no nº 2 do art. 47º do Código Penal quanto ao quantitativo diário da multa tem em vista esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meios de a solver, realizando assim o princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios [1].

Concede-se, pois, que a averiguação dos elementos em causa deverá ter lugar posto que, como se lê no recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11/09/2012 [2], «ao encerrar a produção de prova sem curar de se dotar de tais elementos, o tribunal cometeu a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal.

Ao proferir decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, lavrou sentença ferida do vício de insuficiência da matéria de facto provada, do art. 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, com as consequências previstas no art. 426º, nº 1, do Código de Processo Penal».

Resultam assim prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso, posto que o Tribunal da Relação não pode suprir o vício verificado e este contende com a validade da sentença recorrida, havendo que determinar o reenvio dos autos para novo julgamento, restrito ao apuramento das condições pessoais respeitantes ao arguido A..., a que se seguirá a prolação de nova sentença com determinação da pena em função do que vier a ser apurado.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, julga-se verificado o vício previsto no art. 410º, nº 2, al. a), do CPP e consequentemente determina-se o reenvio dos autos para novo julgamento, restrito ao apuramento das condições pessoais (condições sociais e económicas) respeitantes ao arguido A..., devendo depois ser proferida sentença em conformidade com o que vier a ser apurado.

Sem tributação.

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                                                                                  Coimbra, ____________

                                    (texto processado e revisto pelo relator)

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                                               (Jorge Miranda Jacob)

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                                               (Maria Pilar de Oliveira)


[1] - Cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., págs. 198/199 e Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 126 e ss.
[2] - Proc. nº 09/12.8PALGS.E1 (Relatora: Ana Brito), disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre