Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6275/14.0TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTO-ÍNDICE
PRESUNÇÃO
SUPERIORIDADE DO PASSIVO
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.20,30 CIRE, 349 CC
Sumário: 1. Do facto de se provar que existe um litígio entre os sócios de uma sociedade, não pode inferir-se e dar-se como provado que um deles planeou com um terceiro pedir a sua insolvência apenas para a prejudicar e se beneficiar, desde logo porque tais asserções são conclusivas e de jaez subjetivo.
2. A superioridade do passivo sobre o ativo - al h) do nº1 do artº 20º do CIRE -, não pode ser qualquer uma, tendo de ser manifesta, ou seja: evidente, substancial, crassa, ie., com uma dimensão tal que clame um juízo de certeza, quase certeza, ou de inequívoca plausibilidade, quanto à inelutabilidade da insolvência.

3. Não satisfaz tal exigência a prova de que o ativo era de € 342.630,69 e o passivo total era de € 466.154,54, se se apura que 356.016,00 do passivo advém de suprimentos, que o litígio entre os sócios tem prejudicado a atividade societária, e que a sociedade é titular de ativos fixos tangíveis e intangíveis, que poderão ser alienados para solver as dívidas dos seus credores.

4. A não apresentação de contas pela sociedade por atuação de um sócio destituído, e contra a vontade societária, é facto justificado que não pode indiciar a insolvência nos termos do aludido segmento normativo.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A (…), Lda, intentou contra S (…), Lda. ação especial de insolvência.

Alegou, no essencial:

No exercício da sua atividade comercial forneceu à requerida diversos bens e serviços que esta não pagou, sendo por isso titular de um crédito no valor de € 10.739,85.

 A requerida cumpriu pela última vez a obrigação legal de prestar contas relativamente ao exercício de 2010.

Desde dezembro de 2013  que cessou a atividade, não tendo quaisquer trabalhadores ao seu serviço, pelo que não gera quaisquer rendimentos e está impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas dos seus credores.

Pediu:

Que seja declarada a insolvência da requerida.

A requerida deduziu oposição.

Disse:

Os seus gerentes encontram-se em litígio, tendo um deles sido destituído, e um dos sócios da requerente, e seu anterior gerente, é cunhado deste gerente destituído.

Existe conluio entre o sócio da requerente e este gerente na propositura da ação, e a insolvência foi requerida para beneficiar o dito gerente e a sua esposa, que também tem um litígio com a sociedade.

O valor da dívida será inferior ao referido, mas que o atual gerente desconhece o seu montante porque o gerente destituído não facultou à sociedade informação que permita apurar o valor real daquela.

As contas de 2012 foram apresentadas, embora tardiamente, devido à falta de informação do gerente destituído, e esta é também a razão pela qual não foram prestadas as contas de 2013.

Não desenvolve atividade porque o gerente destituído se recusar a registar as atas que estão na sua posse e impediu-a de concorrer para a continuação da exploração do parque de campismo da (...) .

Não está impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas porque possui ativos fixos, tangíveis e intangíveis, que poderão ser alienados para solver as suas dívidas, sendo o seu ativo superior ao passivo.

Conclui pedindo:

A improcedência da ação e a condenação da requerente como litigante de má fé.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual, nuclearmente,  foi decidido:

«julgo procedente a presente ação e, em consequência:

Declaro a insolvência da requerida, S (…) Lda., (…), com sede na Rua (...) Pocariça.»

3.

Inconformada recorreu a requerida.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

5.1.2.

Ademais, e em termos de direito positivo, urge atentar que o impugnante da decisão sobre a matéria de facto tem de cumprir, desde logo liminarmente e  com  o maior rigor possível, as exigências formais do artº 640º do CPC.

Das mesmas sobressai a indicação – nº 1 al. b) - dos «concretos meios probatórios constantes no processo ou do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão… diversa…»

Sendo que -nº2 al. a) - «quando os meios probatórios…tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição imediata do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso…».

 Acresce que, como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem julga é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma concreta e discriminada análise objetiva, crítica, logica e racional da prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

Sendo que, repete-se, a intolerabilidade destas tem de ser demonstrada pelo recorrente através de uma concreta e dilucidada análise hermenêutica de todo o acervo probatório produzido ou, ao menos, no qual se fundamentou a resposta.

5.1.3.

No caso sub judice pretende a recorrente que se dê como provado:

- o gerente destituído planeou com cunhado que a sociedade fosse decretada insolvente, beneficiando pessoalmente a sua esposa e o seu cunhado, sócio da requerente, em detrimento dos demais sócios e credores.

- a requerente ao requerer o pedido de insolvência está a pretender apenas beneficiar o cunhado, gerente destituído (…) e a sua esposa, (…).

(sublinhado nosso)

O tribunal não deu tal acervo como provado com a seguinte argumentação:

«Não se deu como provada a existência de um plano orquestrado entre o sócio da requerente (…) e o gerente da requerida destituído (…) porque, apesar de este suposto conluio ser em tese plausível, e até provável (atento o laço de parentesco que os une e o aceso litígio dos sócios da requerida) não foi comprovado por qualquer dos elementos de prova produzidos. Tratando-se apenas de uma possibilidade razoável, mas não segura, foi esta matéria, constante das alíneas f) e g) considerada não provada.»

(sublinhado nosso)

Já a recorrente pugna  que perante a prova dos factos constantes nos pontos 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 35, 36, 37 e 38  da sentença, dúvidas não deviam restar ao Tribunal para dar como provados tais  factos.

Apreciemos.

Conexiona-se esta visão interpretativa com a figura da prova por presunções estabelecida no artº 349º e segs do CC.

As presunções, mais do que meios de prova são um processo mental que, com base em juízos de probabilidade, as regras da experiência e os princípios da lógica, permite o desenvolvimento da matéria de facto a partir de um facto conhecido,cfr. Artº 349º e sgs. do CC e Acs. Do STJ de 06.05.97, de 08.09.98 e de 12.04.05, dgsi.pt, p. 96A730, 98B560 e 05A830, respectivamente.

Efetivamente as presunções judiciais, na tipificação do artigo 349.º do Código Civil são «ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».

Assim, integram a sua estrutura jurídica:

-a denominada base da presunção, constituída pelo facto ou factos conhecidos, isto é, provados através de outros meios de prova;

-os elementos de racionalidade lógica e técnico-experiencial actuando por indução sobre os mesmos factos;

- e o facto ou factos presumidos mediante estas operações intelectuais.

Estando verificados os dois primeiros elementos, é licito ao julgador concluir pelo terceiro, ou seja, tirar ilações da matéria de facto, desde que não altere os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam o desenvolvimento e a consequência lógica daqueles – cfr. Neste sentido os Acs. do STJ de 25.03.2004  e de 24.005.2007 in dgsi.pt. p.03B4354 e 07A979.

No caso vertente, dos factos dados como provados e mencionados pela recorrente, não pode, com o grau de plausibilidade em direito exigível, retirar-se que houve um conluio e um planeamento prévio entre a requerente, rectius o seu sócio, e o sócio destituído (…), no sentido de uma atuação, consubstanciada na presente ação, apenas para a prejudicar e beneficiar este sócio e a sua esposa.

Na verdade, de nenhum dos factos concretos apurados nos pontos mencionados, de per se ou concatenados com os restantes, se pode retirar tal conclusão.

Tal seria demasiado arriscado e ultrapassaria a margem de álea em direito nesta matéria permitida.

Aliás, e bem vistas as coisas, e como se referiu, o acervo que ora se pretende provar não se assume como factual, concreto, inciso e conciso, mas antes como opinativo/conclusivo (al.f) e, inclusive, inserto no âmbito do subjetivismo (al. g), matéria de impossível ou de acrescida atividade probatória.

Os factos apurados poderão permitir, em sede de aplicação do direito, emitir um juízo de valor sobre a atuação dos diversos intervenientes.

Mas, em sede de decisão factual, e  como se disse, não são o bastante para se dar como provado o acervo pretendido pela recorrente, quer porque, liminarmente, ele não se reporta a factualismo material concreto, mas antes a uma conclusão/dedução que não é passível de tal prova, mas antes decorrente de outros factos; quer porque, in casu, e como se viu, os factos aduzidos pela insurgente não assumem tal virtualidade.

5.1.4.

Decorrentemente os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

1. A requerida é uma sociedade que se dedica atividade de parques de campismo e caravanismo, comércio e importação de caravanas e produtos derivados, importação de habitações pré-fabricadas, instalação e comercialização das mesmas, comércio de artigos de lazer, exploração de minimercado, restaurante, bar, pizaria e danceteria, passeios equestres, spa, ginásio, golf, percursos de manutenção sica, atividades lúdico desportivas, comércio e aluguer de materiais e equipamento desportivo, oficina e

assistência técnica ao caravanista, exploração de gabinete médico, arrendamento de espaços comerciais, parques de merendas, passeios organizados com ou sem motor, parque infantil, animação e eventos culturais e desportivos, exploração e gestão de piscinas, instalação e importação de estruturas pré - fabricadas.

2. Tem o capital social de € 15.000,00 repartido por três quotas: uma do valor nominal de € 5.000,00, que pertencia a (…), Lda. e foi transmitida a (…), uma do valor nominal de € 5.000,00 pertencente a (…), Lda., e outra o valor de € 5.000,00 pertencente a (…)

3. Constam inscritos no registo comercial como gerentes da sociedade requerida (…)e (…)

4. A requerente é uma sociedade que se dedica à instalação de eletricidade, aquecimento, energias renováveis, canalizações, climatização e paneis solares.

5. No âmbito da sua atividade e a solicitação da requerida, entre 04.10.2011 e 09.01.2013 a requerente forneceu-lhe os bens e serviços descritos nas faturas n.ºs 2011000074, 1300/000004 e 1300/000007 nos montantes de € 3.133,12, € 6.705,19 e € 901,54 com condição de pronto pagamento.

6. Os serviços realizados, titulados pelas faturas supra referidas não foram motivo de reclamação.

7. A 26 de junho de 2014 a requerente enviou para a sede social da requerida uma carta de interpelação dando-lhe o prazo de cinco dias para pagamento da mencionada quantia.

8. O último exercício relativamente ao qual foram aprovadas as contas da requerida foi o exercício de 2011, tendo as contas relativas ao exercício de 2012 sido apresentadas mas não aprovadas.

9. As contas relativas ao exercício de 2013 não foram apresentadas nem aprovadas.

10. Em abril de 2014 a requerida cessou a atividade que vinha desenvolvendo no Parque de Campismo da (...) , Leiria.

11. Como já antes havia posto fim à exploração dos parques de campismo da (...) , em Cantanhede, e de (...) , em Figueiró dos Vinhos.

12. A requerida não desenvolve no momento qualquer atividade nem tem trabalhadores ao seu serviço.

13. Por essa razão não gera receitas.

14. A requerida é ainda devedora à Segurança Social.

15. O Parque de Campismo da Praia da (...) foi explorado pela Requerida entre 01/01/2011 e 31/12/2013.

16. Foi responsável pela gestão deste parque de campismo o gerente (…)

17. O gerente (…) propôs a aprovação de um plano de gestão conjunta, que o gerente (…) recusou, tendo o gerente (…) convocado uma Assembleia Geral para a destituição com justa causa do gerente (…).

18. Em assembleia geral do dia 27 de junho de 2013, os sócios da requerida deliberaram a sua destituição com justa causa.

19. A sócia (…) Unipessoal, Lda., cujo gerente é (…), instaurou um procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, no Tribunal Judicial de Cantanhede.

20. A partir daí o litígio instaurou-se entre a requerida, o gerente (…) e o gerente destituído (…)

21. Desde essa data, o gerente destituído (…) impediu o gerente (…) de exercer qualquer ato de gerência na requerida, colocando em causa o seu cargo de gerente perante colaboradores e terceiros.

22. A sentença do procedimento cautelar foi decretada em junho de 2014, estando ainda a correr a ação principal.

23. A requerente A (…), Lda. é uma sociedade por quotas, com o capital social de € 5.000,00, cujos sócios são (…) casado com (…), titular de uma quota de € 2.500,00 e (…), titular de uma quota de € 2.500,00.

24. O sócio da requerente, (…), é cunhado gerente destituído (…).

25. A requerente tem a sua sede na mesma rua, freguesia e concelho da ora requerida.

26. A requerente só prestou serviços à requerida no Parque de Campismo da Praia da (...) , sob a gestão do então gerente (…), serviços esses solicitados e acordados pelo gerente destituído, seu cunhado.

27. (…) foi colaboradora da requerida.

28. A morada constante das faturas não corresponde à sede da requerida.

29. Antes e depois da emissão destas faturas a requerente prestou outros serviços à requerida, no Parque de Campismo da Praia da (...) , tendo os mesmos sido liquidados, nunca tendo reclamado qualquer débito pendente.

30. O gerente destituído, (…), foi citado da presente acção para a sua residência familiar que é a sede da sociedade, a 19/12/2014, e nada disse ao gerente (…)

31. Os montantes faturados pelos parques de campismo cuja gestão foi a entregue ao gerente destituído dos exercícios de 2013 e 2014 não foram depositados na conta bancária da requerida, não sabendo o atual gerente qual o seu verdadeiro destino, ou seja, não sabe se foram pagas faturas aos fornecedores, quais e os montantes.

32. As contas de 2012 foram apresentadas posteriormente, devido à falta de informação prestada à contabilidade por parte do gerente destituído (…), tendo sido prestada parte dessa informação tardiamente, referente aos Parques sob a sua gestão.

33. As contas de 2013 ainda não foram apresentadas devido à falta de informação prestada à contabilidade por parte do gerente destituído (…)referente aos Parques sob a sua gestão.

34. A dívida à Segurança Social foi negociada e aprovado um plano prestacional, que deixou de ser pago.

35. A requerida não desenvolve atividade neste momento porque o gerente (…) se recusa a registar as atas que estão na sua posse dificultando a um credor normal perceber a questão da representação e vinculação da sociedade.

36. E porque o gerente (…) impediu que a sociedade concorresse em 2013 para a continuidade da exploração do Parque de Campismo da Praia da (...) , dos anos 2014 a 2017, para beneficiar a sociedade da mulher (…), que concorreu a esse concurso.

37. A requerida é titular de ativos fixos tangíveis e intangíveis, que poderão ser alienados para solver as dívidas dos seus credores.

38. Os quais foram retirados dos respetivos Parques de Campismo no final das suas concessões, da Praia da (...) a 31/12/2013 e da Vieira de Leiria a 25/04/2014, pelo gerente destituído (…)e estão na sua posse, na sua residência que é também a sede da sociedade.

39. Do último balanço apresentado pela requerida resulta que o passivo total era em 31.12.2012 de € 466.154,54 e o ativo era nessa data de € 342.630,69.

40. O valor dos suprimentos dos sócios da requerida estão escriturados no Passivo não corrente, na rúbrica financiamentos Obtidos do Balanço, tendo o valor de € 356.016,00.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A causa de pedir no processo de insolvência  consubstancia-se no(s) facto(s) do(s) qua(l)is decorre a conclusão final de que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

Ou, no caso de ser pessoa coletiva, de se provar que, contabilísticamente, o seu passivo é manifestamente superior ao ativo.

Incidindo sobre o requerente da insolvência, ab initio e em sede de petição inicial, o ónus da alegação de tais factos em termos de suficiência e de uma forma concreta, concisa e precisa.

À conclusão de que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas pode chegar-se, desde logo, através de certos factos previstos, na lei, quais sejam os vertidos no artº 20º nº1 do CIRE e que constituem os fundamentos materiais do pressuposto objetivo da insolvência previsto no citado artº 3º nº1.

Os quais são factos índices estabelecidos em exemplos-padrão  ou ocorrências prototípicas, que inculcam a situação de insolvência tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem, pelo menos tendencialmente, a impossibilidade  ou insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações.

Podendo, todavia, tal presunção ser ilidida pelo devedor, nos termos do nº3 do artº 30º.

Tudo isto, contudo, sem prejuízo da apreciação de outros factos que, eventualmente, possam vir a ser posteriormente carreados para os autos, designadamente através da atividade inquisitória do juiz: artº 11º – cfr. Luís de Meneses Leitão in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2ª ed., Almedina, 2005, p. 58.

Importa, assim, em cada caso, verificar se o factos concretos alegados pelo requerente – e os, eventualmente, trazidos ao processo pela atividade do juiz -, e  efetivamente provados, são de molde a consubstanciar alguma das hipóteses configuradas  no artº 3º, por reporte, designadamente, às situações prototípicas do nº 1 do artigo 20,º pois que só nesse caso é que será de declarar a insolvência, já que os factos previstos em cada uma de tais hipóteses são, se bem que necessários, também suficientes para o seu decretamento.

Relativamente às pessoas coletivas importa ainda ter presente que o CIRE  consagrou uma cumulação de causas possíveis que podem acarretar a insolvência: não apenas a causa mais genérica  a qual deve ser  razoavelmente apreciada pelo julgador atentos certos critérios legalmente fornecidos – artº 3º nº1 -, como a meramente contabilística pautada por critérios mais ou menos de índole matemática -  artºs 3º nº 2.

Acresce, por um lado, que estando em causa no processo de insolvência, não apenas interesses particulares, mas também interesses de ordem publica atinentes ao normal e salutar funcionamento comércio jurídico e ao saneamento do mercado,  é conveniente que dele sejam expurgadas as empresas ou pessoas singulares económica ou financeiramente inviáveis e evitar que nele pululem devedores sistematicamente relapsoscfr. Ac. do STJ de 14.11.2006, dgsi.pt, p. p.06A3271.

Mas, por outro lado, não devem ser acolhidas insolvências injustificadas ou razoavelmente duvidosas.

Pois que, desde logo na vertente patrimonial, a declaração de insolvência afeta gravemente de toda a esfera jurídica do requerido o qual fica com todos os seus bens apreendidos e privado da sua disposição e, até, administração – cfr. artºs 36º e 81º do CIRE.

E, inclusive, em termos pessoais, é inquinadora, em certa medida, de uma certa imagem de prudência e probidade que deve pautar a atuação de um normal cidadão, pois que, designadamente, o insolvente fica inscrito na central de riscos de crédito do Bando de Portugal – cfr. artº 38º nº3 al.c).

5.2.3.

No caso vertente estão em causa os factos índice previstos nas als. b) e h) do artº 20º.

Quanto aquele a julgadora entendeu não estar presente, pois que «a justificação apresentada pela requerida para questionar o montante da dívida…afasta a conclusão de que o incumprimento da obrigação revela a impossibilidade de a requerida satisfazer em tempo a generalidade das suas obrigações.

 Com efeito, a requerida não recusa o pagamento por não ter poder pagar, mas antes porque, de boa fé, e por motivos legítimos, questiona o valor do crédito que a requerente pretende cobrar. Recusa tanto mais compreensível tendo em conta que a requerente não terá interpelado previamente a requerida, tendo em vista a cobrança do seu crédito…

Por outro, verifica-se que, apesar de a requerida esta inativa desde abril de 2013, a cessação da respetiva atividade se não relaciona com a sua situação económico-financeira, mas exclusivamente com o litígio que opõe os respetivos gerentes, …e que tem conduzido à paralisia da atividade societária».

(sublinhado nosso)

Já quanto a este julgou-o verificado porquanto: «Não tendo as contas da requerida relativas ao exercício de 2012 sido aprovadas em prazo…nem tendo as contas relativas ao exercício de 2013 sido apresentadas ou aprovadas, é manifesto que se verifica a presunção de insolvência a que alude a segunda parte da alínea h) do art. 20.º, n.º 1...

…afigura-se que a simples invocação da superioridade do ativo sobre o passivo não permite no caso demonstrar a solvência da requerida.

Em primeiro lugar, porque o pedido de insolvência não assentou no fundamento (alternativo) consagrado no art. 3.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ou seja, na superioridade do passivo sobre o ativo, mas no critério-base consagrado no n.º 1 do referido normativo, traduzido na impossibilidade de cumprimento pontual da generalidade das obrigações vencidas, já que é este fundamento que a verificação das situações previstas no art. 20.º permite presumir. A simples prova da superioridade do ativo, que pode ser de difícil liquidação, não permitiria por isso concluir pela respetiva solvência. 

Nesse sentido, parece ser o entendimento de Carvalho Fernandes e João Labareda quando observam que a exibição da escrita arrumada, da qual resulte a superioridade do ativo sobre o passivo, não é condição suficiente da prova da solvência, e que “Só assim não será se o fundamento da ação for a manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, conforme al. h) do n.º 1 do art. 20.º” (ob. cit., pág. 244).    

Como tal, a demonstração da solvência da devedora passaria, no caso, não pela prova da superioridade do ativo sobre o passivo, mas pela prova de que a devedora tem liquidez, decorrente de ativo líquido (dinheiro em caixa, depósitos bancárias vencidos, produtos e títulos de crédito ou bens fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro) ou de crédito (bancário ou outro), para pagar as respetivas dívidas na data do seu vencimento. Prova essa que, como decorre da análise dos factos provados, não foi feita – veja-se nomeadamente que os bens que integram o património da requerida estão no domicílio do gerente destituído, e que se encontra em litígio com a sociedade, pelo que dificilmente seriam convertíveis em dinheiro.»

(sublinhado nosso).

Perscrutemos.

Como supra se disse, o requerente da insolvência tem de provar a existência dos factos indiciadores da mesma.

A al. h) do nº1 do artº 20º, presume tal, sendo o devedor uma pessoa coletiva, se existir uma «manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas se a tanto estiver legalmente obrigado»

Alcança-se assim que a lei não se contenta com uma qualquer superioridade do passivo sobre o ativo, mas antes exigindo uma manifesta superioridade.

Ou seja, e por outras palavras, uma superioridade evidente, substancial, crassa, ie., que se apresente com uma dimensão tal que clame um juízo de certeza, quase certeza, ou, no mínimo de inequívoca plausibilidade, quanto à inelutabilidade do caminho que está traçado para a requerida: a impossibilidade de satisfazer as suas dívidas vencidas e, consequentemente,  a insolvência.

Ora provou-se: Do último balanço apresentado pela requerida resulta que o passivo total era em 31.12.2012 de € 466.154,54 e o ativo era nessa data de € 342.630,69.

Temos, assim, um passivo superior ao ativo em cerca de 124 mil, euros, o que, relativamente ao valor total daquele, corresponde a uma percentagem de cerca de 27%.

Entende-se, sdr. por opinião diversa, que este valor, só por si, e considerando  outrossim o elevado valor do próprio ativo que ultrapassa em quase três vezes  aquele montante de 124 mil euros, não é o bastante para se concluir pelo fatal destino da insolvência para a requerida.

E se esta conclusão advém com suficiência da fria análise dos números, ela é reforçada pelo restante circunstancialismo que envolve o presente caso.

Primus, há que atentar que a grande parte do passivo  - 356.016,00 – corresponde a valor dos suprimentos dos sócios da requerida – ponto 40 dos factos assentes.

O qual, assim, considerando a qualidade dos credores, se apresenta como um passivo que pode assumir mais flexibilidade quanto ao modo e o tempo do seu pagamento.

Secundus, e como a Srª Juíza já valorou para a análise do facto índice da al. b), é seguro que a situação deficitária da requerida se apresenta, pelo menos em parte relevante, causada pelo litigio que grassa entre os sócios da requerida, maxime dos impedimentos  que o sócio destituído (…) tem levantado.

Pois que tal atuação tem obstaculizado ao normal desenvolvimento da atividade, como resultou provado – pontos 31,  35, 36 e 38.

Temos assim que a própria requerente não logrou provar, como lhe competia, factualidade suficiente para se poder concluir pela verificação da presença deste facto índice na sua vertente substancial: manifesta superioridade do passivo.

Certo é que provou  que a requerida tem um atraso superior a nove meses na apresentação das contas.

Mas também se apurou que este facto não lhe é imputável, mas antes o sendo ao referido (…),  o qual tem impedido a sua apresentação – pontos 32 e 33.

Existe, assim, uma causa de justificação para a não apresentação das contas, sendo admissível a conclusão de que não foram apresentadas contra a vontade da requerida.

Por conseguinte, de tal não apresentação  não pode retirar-se a ilação que normalmente seria de retirar e que vem referida na sentença - e da qual a lei retira a presunção da insolvência -, qual seja: que a requerida  pretendeu impedir quem com ela contrata o conhecimento da sua situação económico-financeira que deve ser refletida nas contas.

Nesta conformidade se concluindo que não tendo a requerente provado, como era seu ónus, o presente  facto índice  na sua vertente substantiva – manifesta superioridade do passivo -, e tendo a requerida justificado a prova da vertente mais formal de tal facto – não apresentação de contas –, falece o substrato aduzido pela requerente – causa petendi – necessário ao decretamento da insolvência.

Pelo que despiciendo se torna apurar se a requerida ilidiu, ou não, a presunção decorrente de tal facto índice, provando a sua solvência.

Não obstante sempre se dizendo que, no mínimo, nos parece muito duvidoso o entendimento da julgadora de que a requerida não logrou operar tal ilisão.

Na verdade  provou-se que A requerida é titular de ativos fixos tangíveis e intangíveis, que poderão ser alienados para solver as dívidas dos seus credores. – ponto 37.

Ora uma interpretação  possível,  quiçá a mais normal,  deste facto – pois que dele não dimana qualquer restrição à mesma -, é que os ativos da requerida são liquidáveis  para poderem satisfazer as suas dívidas a tempo de evitar que ela entre irremediavelmente numa situação de insolvência.

Sendo aqui de conceder, até por uma questão de coerência, a justificação que a julgadora julgou verificada para a análise do facto da al. b), qual seja a de que a cessação da atividade  da requerida se não relaciona com a sua situação económico-financeira, mas exclusivamente com o litígio que opõe os respetivos gerentes, …e que tem conduzido à paralisia da atividade societária.

Ou seja, ultrapassado que seja este litígio, e retornando a requerida à sua normal atividade, não se mostra intoleravelmente arrojado/arriscado, admitir que ela, respaldada nos ativos que possui, possa vir a cumprir as suas obrigações e evitar a insolvência.

Procede o recurso.

6.

Sumariando:

I - Do facto de se provar que existe um litígio entre os sócios de uma sociedade, não pode inferir-se e dar-se como provado que um deles planeou com um terceiro  pedir a sua insolvência apenas para a prejudicar e se beneficiar, desde logo porque tais asserções são conclusivas e de jaez subjetivo.

II - A superioridade  do passivo sobre o ativo - al h) do nº1 do artº 20º do CIRE -, não pode ser qualquer uma, tendo de ser manifesta, ou seja: evidente, substancial, crassa, ie., com uma dimensão tal que clame um juízo de certeza, quase certeza, ou de inequívoca plausibilidade, quanto à inelutabilidade da insolvência.

III – Não satisfaz tal exigência a prova de  que o ativo era de € 342.630,69 e o passivo total era de € 466.154,54,  se se apura que 356.016,00 do passivo advém de suprimentos, que o litigio entre os sócios tem prejudicado a atividade societária, e que a sociedade é titular de ativos fixos tangíveis e intangíveis, que poderão ser alienados para solver as dívidas dos seus credores.

IV – A não apresentação de contas pela sociedade por atuação de um sócio destituído, e contra a vontade societária, é facto justificado que não pode indiciar a insolvência nos termos do aludido segmento normativo.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, decorrentemente, revogar a sentença que decretou a insolvência, com as legais consequências.

Custas pela recorrida.

Coimbra, 2015.04.28.

 Carlos Moreira ( Relator )

Anabela Luna de Carvalho

João Moreira do Carmo