Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/09.8 TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
IMPEDIMENTO DE JUIZ
Data do Acordão: 05/05/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 40º43º,44º, 410º,412ºE 428º DO CP
Sumário: 1.O recurso sobre a decisão da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre tal matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero “remédio” para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
2.O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
3.O tribunal de recurso na reapreciação da decisão da matéria de facto deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
4.O juiz que presidiu a um julgamento num determinado processo não fica impedido de presidir a julgamento num outro qualquer outro processo, apenas por as partes serem as mesmas.
5 Não sendo um caso de impedimento, resta a possibilidade de o juiz solicitar a sua escusa ou ao arguido pedir a recusa do juiz, nos termos do disposto no artigo 43º.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. RR, já melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, uma vez que indiciado, segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, da prática de factualidade consubstanciadora da autoria de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Realizado o contraditório, proferiu-se sentença que, além do mais por ora irrelevante, condenou o mencionado arguido enquanto agente do ilícito assacado, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), ou seja, na multa global de € 2.625,00 (dois mil seiscentos e vinte e cinco euros).
1.2 Dissentido com o assim sentenciado, interpõe o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as conclusões seguintes:
1.2.1. Os factos vertidos como provados nos pontos 1.º a 10.º da decisão recorrida, deveriam, pelo contrário, haver-se como não provados. E,
1.2.2. Deveria o M.mo Juiz a quo ter dado como provado que:
- O arguido disse a verdade perante o Tribunal de Pombal.
- Foram as demais testemunhas que alteraram a verdade.
1.2.3. Tudo tendo como fundamento os depoimentos (cujos tempos de gravação se não mostram indicados nas actas de audiência realizadas) das testemunhas de defesa, perfeitamente claras quando inquiridas.
1.2.4. O Tribunal sindicado, decidindo pela forma em que o fez, ultrapassou os limites que lhe eram impostos nos artigos 128.º; 129.º e 355.º, todos do Código de Processo Penal, para ponderação da prova testemunhal e documental.
1.2.5. Bem como violou, ainda, o princípio do in dúbio pro reo.
1.2.6. Atentando-se na circunstância de o arguido ser um cidadão reformado, a pena de multa cominada mostra-se em medida excessiva.
1.2.7. O M.mo Juiz a quo, enquanto interveniente no julgamento do processo que deu origem aos presentes autos, deveria ter requerido escusa, atento o disposto no artigo 43.º, do Código de Processo Penal.
Terminou pedindo a revogação do sentenciado com a sua absolvição.
1.3. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento da impugnação do arguido.
1.4. Admitida, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntica improcedência.
Cumpriu-se com o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se não ser caso de se decidir sumariamente, e embora ocorresse fundamento determinante á rejeição parcelar do recurso, atentas razões de celeridade e economia processuais, relegar-se-ia tal conhecimento para final, devendo, consequentemente, seguir-se a subsequente tramitação, pois que, igualmente e no demais, nada obstava ao conhecimento de meritis.
Colhidos que foram os vistos devidos, realizada conferência, urge apreciar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. Na decisão recorrida, teve-se como provado que:
1. No dia 4 de … de 2007, pelas 10 horas, no âmbito do Processo Comum Singular n.º …/05.8 TAPBL, que correu termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, no decurso da audiência de julgamento, em que era arguido J., acusado da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, o ora arguido foi então inquirido na qualidade de testemunha de defesa.
2. No início do seu depoimento, o arguido, perante Magistrado Judicial, afirmou responder com verdade às perguntas que lhe fossem efectuadas, prestando juramento.
3. No decurso do seu depoimento afirmou que no dia 10 de .. de 2005, seguia no veículo conduzido pelo ali arguido J, sentado ao lado do condutor, tendo iniciado viagem junto à casa do arguido até à casa da ali assistente M..
4. Porém, tal depoimento foi contrariado pelo depoimento de tal assistente e das testemunhas S; JR e T que de modo concordante referiram que o arguido J se encontrava sozinho na ocasião, tendo inclusive estado muito próximo do veículo conduzido pelo arguido, não o tendo visto a acompanhá-lo.
5. Perante a contradição do seu depoimento, o ora arguido foi advertido de que podia incorrer em responsabilidade criminal caso prestasse falsas declarações, tendo o mesmo, não obstante isso, continuado a afirmar que se encontrava no veículo do arguido J na ocasião dos factos.
6. Por sentença de 10 de .. de 2007, transitada em julgado em 25 de Julho de 2007, proferida no referido processo, o ali arguido J foi condenado, além do mais, na pena única de 190 dias de multa, à taxa diária de 6 €.
7. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que na qualidade de testemunha se encontrava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe estavam a ser efectuadas no decurso da audiência de julgamento.
8. Tinha perfeita consciência que as declarações que prestava não correspondiam à verdade, não obstante ter prestado juramento e da advertência para as consequências penais do seu comportamento.
9. Actuou com intenção de obstar à realização da Justiça, abalando com a sua conduta a credibilidade que o depoimento das testemunhas em causa devem merecer no âmbito do processo penal.
10. Determinou-se à adopção do comportamento supra descrito, apesar de ter representado previamente a ilicitude dos factos e a sua punibilidade.
11. O arguido é casado, embora separado de sua mulher, e vive sozinho em casa própria.
12. É militar da G.N.R. na reserva e aufere um vencimento mensal de cerca de 900 €.
13. Tem como habilitações literárias a 4.ª classe de escolaridade.
14. O arguido não tem antecedentes criminais.
2. 2. Já no que concerne a factos não provados, tiveram-se como tais na mesma decisão que:
1. O arguido RR disse a verdade perante o Tribunal de Pombal.
2. Foram as demais testemunhas que alteraram a verdade material.
2.3. Por fim, é do teor seguinte a motivação probatória constante da indicada sentença:
O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, desde logo nas declarações do arguido RR, o qual reafirmou que o por si declarado na audiência de julgamento, no âmbito do Processo Comum Singular n.º …/05.8 TAPBL, correspondia à verdade, repetindo que na data em que os factos ocorreram, ali apreciados, acompanhava o então arguido J.
Denotou, porém, algum nervosismo, respondendo de forma evasiva a várias perguntas formuladas e produzindo declarações incoerentes e, algumas vezes, inverosímeis. Na verdade, não conseguiu, desde logo, explicar convenientemente como é que estando deitado ou debruçado no banco do veículo, na parte da frente, ao lado do condutor, ainda para mais de noite, como reafirmou, teve a percepção visual suficiente para afirmar que nenhuma das restantes testemunhas se aproximou do veículo, ficando impossibilitadas de o ver.
Aliás, nem é necessária uma análise muito rigorosa das fotografias juntas aos autos a fls. 245 a 247 (que lhe foram tiradas) para se concluir que em todas elas é visível o arguido, admitindo este que o carro fotografado era aquele onde se fazia transportar. Nem tão pouco o arguido teria capacidade ou agilidade física para melhor se “esconder”, dadas as suas características físicas (cerca de 1,74 m de altura e 90 kg, segundo reconheceu em audiência de julgamento).
Ademais, apesar de repetidamente instado para esclarecer tal ponto de facto, não respondeu directamente o arguido à questão de saber por que motivo não queria que o vissem com o arguido do Processo Comum Singular acima identificado, denotando notório embaraço e insegurança na apresentação da sua versão dos factos, motivo pelo qual não foi minimamente credível.
O mesmo se diga da testemunha J arguido no processo supra referido, o qual pautou o seu discurso por inequívoca animosidade para com a queixosa e assistente do processo onde foi julgado e condenado, demonstrando parcialidade na descrição dos factos, ainda para mais respondendo muitas vezes em tom exaltado, sempre nervoso e agitado, com clara dificuldade em serenar e transmitir os seus conhecimentos de forma tranquila e depurados de quaisquer juízos de valor, não tendo o seu depoimento sido revestido, de todo, da isenção necessária para convencer o Tribunal quanto à matéria de facto por si dada a conhecer.
Já a testemunha I, funcionária judicial deste Tribunal, no 1.º Juízo, prestou um depoimento totalmente objectivo e descomprometido, confirmando que se encontrava em exercício de funções quando o arguido foi ouvido na qualidade de testemunha, corroborando a existência de divergência ou de discordância quanto ao teor do depoimento então prestado face à restante prova produzida, auxiliando o Tribunal no apuramento dos correspondentes factos.
Por seu turno, a testemunha M, assistente no Processo Comum Singular n.º ../05.8 TAPBL, referiu de forma peremptória que se encontrava a assistir à audiência de julgamento do referido processo, após ela própria ter sido ouvida, quando foi inquirido o arguido, tendo assim assistido à prestação do seu depoimento, realçando espontaneamente o teor do mesmo e asseverando que na ocasião dos factos então em discussão não viu o arguido, contrariamente ao por ele declarado, sendo certo que até se encontrava a cerca de 6/7 metros do veículo do então arguido J, o qual se encontrava parado em local com boa iluminação pública (visto que era noite). Realçou ainda convictamente e com firmeza que momentos antes de chegar a casa, ao ficar lado a lado no seu veículo com a viatura conduzida pelo então arguido J que a seguia, também não reparou na presença do arguido RR, sendo que até possuía uma posição privilegiada, visto que conduzia uma carrinha que lhe permitia estar em plano superior àquela viatura, demonstrando suficiente segurança na descrição dos factos e auxiliando o Tribunal na formação da sua convicção quanto à falsidade do declarado pelo arguido na audiência de julgamento do identificado Processo Comum Singular.
É que a testemunha J, marido da testemunha anterior, advogado nesta comarca, prestou um depoimento absolutamente insuspeito, rigoroso e objectivo, dando a conhecer com segurança, sem alguma vez entrar em contradição, através de um discurso pronto e fluente, que na data dos factos em discussão se encontrava próximo de sua mulher, no patamar da entrada da sua casa, a uma distância de 3,5 metros/4 metros do carro conduzido por J parado defronte da sua residência, garantindo que de maneira nenhuma o arguido ali se encontrava, pois dispunha de um campo visual suficiente para o banco dianteiro do lado direito, ainda para mais por se encontrar num plano ligeiramente superior ao do veículo, o que lhe permitiria ver o ocupante, mesmo que este procurasse esconder-se.
Também a testemunha JR prestou um depoimento concordante com o da testemunha anterior, seu genro, acentuando que já antes desses factos conhecia o arguido, há longos anos, asseverando que nas circunstâncias de espaço e de tempo em análise o mesmo não acompanhava J, facto que garantiu com segurança, até porque ficou a cerca de 3 metros do veículo em causa, no passeio, numa altura em que a viatura se encontrava estacionada na estrada, estando a rua iluminada, nunca tendo vacilado perante as perguntas que sucessivamente lhe foram feitas, revelando firmeza e constância no depoimento.
A corroborar definitivamente a convicção do Tribunal quanto à falsidade da declaração, importa ainda realçar o depoimento da testemunha T, que também acorreu ao local, acompanhando a testemunha anterior, seu pai, descrevendo com naturalidade e minúcia as características do carro conduzido por J o modo como se encontrava parado, na estrada, aduzindo pronta e espontaneamente que chegou a aproximar-se da viatura, tendo estado a cerca de 0,5 metros do mesmo, posição privilegiada para confirmar de forma peremptória que na ocasião ninguém, para além do condutor, se encontrava naquele veículo (nomeadamente, o ora arguido), não tendo subsistido quaisquer dúvidas sobre a veracidade desta versão dos acontecimentos trazida a juízo, tendo sido dado como não provado que o arguido tivesse falado com verdade quando ouvido na qualidade de testemunha.
Refira-se que o depoimento da testemunha MC, arrolada pelo arguido, não teve qualquer contributo para o apuramento dos factos em discussão, dado que não assistiu aos mesmos, ainda tendo tido oportunidade para afirmar que o arguido, por vezes, circula nos veículos algo “deitado para trás”, tendo o Tribunal registado tal gosto pessoal do arguido, tal capacidade de observação da testemunha mas, em todo o caso, irrelevantes para a decisão da causa.
Indispensável revelou-se, diferentemente, o teor da certidão de fls. 2 a 205 (quanto à identificação do Processo Comum Singular em que o arguido foi ouvido na qualidade de testemunha, à data em que ocorreu a inquirição na audiência de julgamento, ao teor do seu depoimento, na parte em declarou que acompanhava o ali arguido no carro, à prestação de juramento e à advertência que lhe foi feita das consequências penais a que se expunha caso faltasse à verdade, tendo também relevado para apuramento dos tipos legais de crime que a J eram imputados e do teor da decisão condenatória, data da sua prolação e do respectivo trânsito em julgado), o que foi tomado em consideração em conjugação com as declarações e depoimentos atrás analisados.
Relativamente às condições económicas, familiares e profissionais do arguido relevaram as suas próprias declarações, prestadas nesta parte com naturalidade.
Finalmente, baseou-se o Tribunal no C.R.C. do arguido junto aos autos no que respeita aos seus antecedentes criminais.
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III – Fundamentação de Direito.
3.1.Atento o conjugadamente estatuído nos artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, o âmbito dos recursos mostra-se definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios e/ou nulidades previstos/as, respectivamente, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo diploma adjectivo Cfr., ainda, Acórdão n.º 7/95, do STJ, para Fixação de Jurisprudência, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995.
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In casu, devendo extirpar-se parte da impugnação do recorrente, atenta a respectiva manifesta improcedência (como supra já mencionámos e de seguida comprovaremos), também porque se não antolha subsistir fundamento determinante à aludida intervenção oficiosa, atentando-se nas conclusões que apresentou, resulta serem as seguintes questões as definidoras do thema decidendum:
- A decisão recorrida padece do vício de nulidade, atento o regime resultante do citado artigo 43.º, do Código de Processo Penal?
- A pena que lhe foi cominada na 1.ª instância, mostra-se em medida excessiva?
Vejamos:
3.2. Dispõe o artigo 428.º, do Código de Processo Penal, que “As relações conhecem de facto e de direito.”
Por seu turno, aquela primeira forma de impugnação pode lograr obter-se
através de duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no citado artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, pela “impugnação ampla” da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Por ora, quedar-nos-emos nesta 2.ª hipótese.
Aqui, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre tal matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero “remédio” para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa A propósito e exemplificativamente, consultar em www.dgsi.pt, os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, in processo 07P21; de 23 de Maio de 2007, in processo 07P1498; de 3 de Julho de 2008, in processo 08P1312..
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-lhe a lei o ónus de proceder a uma tríplice especificação.
Na verdade, a propósito, estabelece o artigo 412.º, n.º 3 em causa:
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das «provas que devem ser renovadas» implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta De forma pouco expressa, o recorrente parece invocar a nulidade adveniente da omissão de consignação, nas actas das audiências realizadas nos autos, da menção do tempo de gravação dos depoimentos recolhidos, para efeitos de recurso.
Olvida, contudo, que eles se encontram gravados no sistema de gravação Habillus Media Studio, devidamente individualizados através da identificação de cada testemunha inquirida e correspondente período de tempo, como tudo se comprova através do CD junto aos autos. , devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do mesmo artigo 412.º).
Aliás, é nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 4, ainda do Código de Processo Penal.
No caso presente, resulta á exuberância que o arguido não deu acatamento a tais normativos.
Com efeito:
Omitiu a indicação concreta dos pontos de facto controvertidos, antes se atendo a uma impugnação genérica de toda a factualidade tida por provada na 1.ª instância, o que se mostra sem arrimo legal Como se referiu no Acórdão do STJ, de 6 de Abril de 2000, in BMJ 496.º/169, “Os n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP limitam o julgamento da matéria de facto àqueles pontos que referem, mas não permitem o julgamento da globalidade dessa matéria.” (sublinhado nosso).
Depois, não delimitou concretamente o meio de prova que em seu entender se mostra indevidamente valorado e qual ou quais os que impunham decisão distinta.
Após, mesmo não arguindo de falsos documentos autênticos que suportaram parte dos factos provados [1; 2 e 6], impugnou, igualmente, a correspectiva materialidade.
Por último, essencial e prejudicialmente, intui-se, não observou a disciplina da alínea c) do n.º 3 do artigo 412.º.
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre as consequências deste incumprimento.
Assim, decidiu, por exemplo Nos Acórdãos n.ºs 259/02 [publicado no Diário da República [DR], II.ª Série, de 13 de Dezembro de 2002]; 104/2004 e 488/2004 [ambos acessíveis em http://tribunalconstitucional.pt].
Em igual sentido, também o STJ, v.g., no seu Acórdão de 17.11.2004, processo n.º 3195/04-3 [disponível em http://www.dgsi.pt/jstj]., que se o recorrente não acata com o ónus de motivação indicado, fica incumprida a sua obrigação, e é como se ela não existisse. Donde não se justificar nessa hipótese um qualquer convite à sua formulação (pois que redundaria na concessão de uma nova oportunidade de recurso Em linha com tal entendimento, a redacção do actual artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, em cujos termos, “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.”) e, antes, impor-se a rejeição do recurso.
Por outro lado, ponderou num outro aresto Datado de 31 de Outubro de 2003, publicado no DR, II.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003., a situação em que ocorrera a simples menção na motivação dos aludidos ónus, mas o seu não transporte adequado para as conclusões (não concretização nos moldes exigíveis). Aqui, sustentou que já então se imporia um prévio convite ao recorrente para acatamento adequado do ónus devido, sob pena, agora sim, de violação das garantias de defesa do processo criminal plasmadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa O que mereceu consagração legal ao estatuir-se agora no dito artigo 417.º, mas seu n.º 3, que “Se a motivação de recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”.
Ora, como é bom de ver, o caso sub judice situa-se no domínio da primeira das mencionadas situações, donde que se imponha a rejeição do recurso na parte em que o recorrente ensaiava impugnar “amplamente” a matéria de facto, e, consequentemente, se considere como definitivamente fixada a matéria de facto, tal como consta da 1.ª instância.
3.3. Entrando agora na apreciação do restante objecto do recurso, indaguemos se a decisão recorrida padece da nulidade assacada.
Vislumbra-a o arguido por o M.mo Juiz presidente do julgamento nestes autos e naqueles n.º …/05.8 TAPBL, também do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, ser o mesmo, Dr. JC.
Atento o consignado no artigo 40.º, alínea c), do Código de Processo Penal, apenas está impedido de intervir em julgamento o juiz que, relativamente ao mesmo processo, tiver participado em julgamento anterior.
Tal regime, decorrente da alteração operada ao Código de Processo Penal, por intermédio da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, embora tenha vindo alargar Por forma inclusive excessiva, no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, página 120, anotações 11 e 12 ao aludido artigo 40.º. o impedimento ao juiz que participou em julgamento anterior, mesmo assim, confinou essa limitação, naturalmente, dentro do mesmo processo, como resulta se atentarmos ao próprio corpo do artigo em causa.
O que até bem se compreende, já que não faria qualquer sentido que o juiz que tivesse presidido a um julgamento num determinado processo ficasse impedido de participar em qualquer outro processo, apenas por serem as partes eventualmente as mesmas (e quem exerceu o seu múnus por algum tempo numa comarca, sabe do que é, para alguns, a litigância reiterada!).
Esta a situação verificada, pelo que, não se estando perante um caso de impedimento, apenas restaria a possibilidade de o juiz solicitar a sua escusa (o que se não verificou) ou ao arguido pedir – por princípio, até ao início da audiência (artigo 44.º) – a recusa do juiz, nos termos do disposto no artigo 43.º, por o seu comportamento no processo, fora dos casos daquele artigo 40.º, poder ser considerado suspeito.
Acresce, todavia, que:
A lei apenas comina com nulidade os actos praticados pelo juiz recusado ou escusado após a solicitação daquela recusa ou escusa, e mesmo assim, salvo se eles não puderem ser utilmente repetidos e deles não resultar prejuízo para a justiça da decisão do processo (mencionado artigo 43.º, mas seu n.º 5) do CPP). Isto é, a lei prevê Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, pág. 131, anotações 19 a 21 ao artigo 43.º. uma nulidade sanável sui generis, por duas razões: devido ao seu regime de arguição e devido ao seu regime de sanação. Não se trata, portanto, de uma nulidade atinente à composição do tribunal prevista pelo artigo 119.º, alínea a), in fine, cujo regime geral é afastado pela norma cominatória especial do artigo 43.º, n.º 5.
Explicitando, continua Paulo Pinto de Albuquerque, referindo estarmos perante um regime de sanação distinto do regime geral do artigo 121.º, porque a nulidade fica sanada, para além dos termos gerais, se não houver utilidade na repetição do acto e prejuízo para a justiça da decisão do processo (artigo 43.º, n.º 5, 2.ª parte) e, por outro lado, também se mostra especial o regime de arguição relativamente ao que consta do artigo 120.º, n.º 3, uma vez que a nulidade dos actos do juiz impedido é uma decorrência directa da recusa do juiz. Razão por que a nulidade deve ser arguida no mesmo prazo da recusa do juiz, isto é, dentro dos prazos do artigo 44.º
Ora, in casu, não se mostrando alegada a nulidade até ao início da audiência, concomitantemente, com o pedido de recusa do juiz, mesmo a existir, haveria de ser considerada por sanada.
Vale por dizer, então, que improcede este fundamento do recurso.
3.4. Mostrando-se devidamente enquadrado juridico-penalmente o acervo fáctico acolhido, resta ponderar do apontado carácter excessivo da medida da pena aplicada.
Se na motivação o arguido alegou em favor da sua redução a inexistência de razões de prevenção especial que justifiquem o quantum arbitrado, já nas conclusões se ateve á consideração de que este era “excessivo, para um cidadão reformado”.
Como é consabido, a determinação da medida da pena em causa, desdobra-se numa dupla operação: uma primeira, de obtenção da sua dosimetria concreta em função das regras estabelecidas conjugadamente nos artigos 40.º; 71.º e 47.º, n.º 1, todos do Código Penal; uma segunda, de cálculo do montante diário a arbitrar, e que “o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos familiares.” (dito artigo 47.º, mas seu n.º 2)
O recorrente sem se ater adequadamente e em bom rigor à impugnação de uma ou ambas essas tarefas, traçou em bissectriz uma impugnação que, prima facie, a ambas abarcaria.
O alegado mostra-se, porém, infundado, nenhuma censura merecendo o estatuído.
Na verdade, a decisão recorrida sopesou com adequação e proporção ambas as vertentes mencionadas, especificando nas tarefas de escolha e da medida da sanção o carácter primário do delinquente, o carácter ocasional dos factos praticados, pese embora a ausência de arrependimento e retractação, esta mais censurável atentando mesmo ao seu estatuto profissional que lhe acarretava maior probidade, e, ainda, os elementos respeitantes á sua situação económica pessoal (rendimentos e encargos comprovados).
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IV – Decisão.
São tudo termos pelos quais consequentemente se decide:
- Rejeitar o recurso interposto, atenta a sua manifesta improcedência, na parte em que o recorrente almejava impugnar (“amplamente”) a matéria de facto.
- No mais, julgar improcedente o mesmo recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 5 de Maio de 2010