Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/23.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
MDE
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
CRITÉRIO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO
RECUSA FACULTATIVA
MOMENTO DA PRÁTICA DO FACTO
LUGAR DA PRÁTICA DO FACTO
CRIME INSTANTÂNEO
CRIME DURADOURO
CRIME DE OMISSÃO PRÓPRIA
CRIME DE SUBTRACÇÃO DE MENOR
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO DO MANDADO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º, Nº 1, 2º, Nº 2 E 3, 3º, 4º, 5º, 12º, Nº 1, ALÍNEA G), H) E I), 13º, Nº 1, ALÍNEA B), DA LEI Nº 65/2003, DE 23 DE AGOSTO
ARTIGOS 3º, 7º E 249º, Nº 1, ALÍNEA C), DO CÓDIGO PENAL
Sumário:

I – O Mandado de Detenção Europeu, aprovado pela Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, em execução da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13-6-2002, é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro, Estado de emissão, visando a detenção e entrega por outro Estado membro, Estado de execução, de pessoa procurada, seja para efeitos de procedimento criminal, seja para efeitos de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas da liberdade, que se executa com base no princípio reconhecimento mútuo e sem controlo da dupla incriminação do facto, nos casos previstos no artigo 2.º, n.º 2, e com controlo da dupla incriminação, nos casos subsumíveis à previsão do n.º 3 do mesmo artigo.

II – O núcleo do princípio do reconhecimento mútuo consiste em a decisão da autoridade judiciária competente e em conformidade com o direito do respectivo Estado membro dever ter efeito directo e pleno em todo o território da União Europeia, o que significa que se trata de um instrumento de reforço da cooperação entre as autoridades judiciárias dos seus Estados membros, porque as autoridades competentes do Estado membro onde a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à respectiva execução, como se fosse decisão tomada por autoridade competente deste Estado.

III – A Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, adoptou uma solução de compromisso entre a total abolição da exigência dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, ao prever, no artigo 12.º, n.º 1, causas facultativas de recusa de execução do mandado de detenção europeu, causas estas que têm, na sua maioria, uma ligação à soberania penal.

IV – A recusa facultativa de execução do mandado terá sempre que ser justificada pela demonstração das reais vantagens que resultem para a investigação e conhecimento dos crimes objecto do mandado, da prevalência da jurisdição nacional sobre a jurisdição do Estado de emissão

V – Na determinação do lugar da prática do facto o artigo 7.º do Código Penal adoptou o critério da ubiquidade, nos termos do qual relevam para a sua determinação quer o lugar da acção, quer o lugar onde se produziu o resultado típico.

VI – Crime instantâneo é aquele cuja consumação se traduz na realização de um acto ou na realização de um evento que não se prolonga no tempo, isto é, que se esgota num único momento.

VI – Crime duradouro, ou permanente, é aquele cuja consumação se prolonga no tempo por vontade do agente, que tem a faculdade de fazer terminar o estado antijurídico por si criado

VII – O crime de subtracção de menor, do artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, é um crime de omissão própria e sendo irrelevante para a consumação desta espécie de crime a ocorrência ou não de resultado, ele consuma-se com a mera omissão, considerando-se o facto praticado no momento em que o agente não actuou e no local onde o agente devia ter actuado.

VIII – A natureza dos crimes imputados no MDE e o eventual exercício, ou não, do direito de queixa, na eventualidade de na legislação do Estado de emissão também existir este pressuposto positivo da punição, é questão que está subtraída, por força do princípio do reconhecimento mútuo, ao conhecimento do Estado de execução.

IX – A circunstância de a moldura penal constante da lei portuguesa aplicável ao crime em causa ser mais benévola do que a constante da legislação do Estado de emissão não é causa nem argumento válido para recusar a execução do mandado.   

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I

1. A Exma. Magistrada do Ministério Público, junto deste tribunal da Relação, promoveu o cumprimento do Mandado de Detenção Europeu [doravante, MDE], emitido em 12 de Junho de 2020, por decisão da autoridade judiciária da República Francesa – Juíza de instrução do Tribunal ..., no âmbito do processo 5/20..., que tem por objecto o cometimento, em França, entre 2019 e 2020, de crime de subtracção de menor, previsto nos arts. 227º-9, 1º, 227º-29 do Código Penal francês e 378º e 379º do Código Civil francês, e punível com pena de prisão até três anos, contra a indiciada e ora requerida, AA, cidadã com dupla nacionalidade francesa e portuguesa … com última residência conhecida em França em ..., ..., e residente em Portugal na Rua ..., ..., ..., ....

Com base nas informações divulgadas pelo Sistema de Informações de Schengen … a Guarda Nacional Republicana, Comando Territorial ..., Posto ..., comunicou a detenção da requerida, efectuada pelas 9h10 do dia 3 de Fevereiro de 2023, a qual foi presente neste tribunal pelas 16h30 do mesmo dia, onde foi de imediato ouvida, nos termos e dentro do prazo previsto no art. 18º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, tendo então declarado não consentir na entrega ao Estado requerente, não renunciar ao princípio da especialidade, e requerido o prazo de dez dias para deduzir oposição, o que foi deferido.

2. A requerida deduziu oposição à execução do MDE, alegando, em síntese:

- A requerida não cometeu o crime de subtracção de menor … nem foi notificada pelas autoridades francesas, nem conhece decisão para proceder à sua entrega;

- A requerida vive com o filho BB, nascido a .../.../2012, e com outra filha, de ... anos de idade, na Rua ..., ..., desde 2019, com plena integração na comunidade;

- O menor BB frequenta o 5º ano, na escola Dr. CC, em ..., frequenta a escola de futebol da associação ..., em ..., faz parte da banda filarmónica de ..., de ...;

- A requerida actuou sempre no superior interesse do filho, não havendo qualquer processo tutelar cível ou sinalização ao mesmo respeitante;

- O núcleo familiar do BB sempre foi a requerida e a irmã, o menor vive em Portugal há mais tempo do que o que viveu em França, e o pai sempre soube que o mesmo se encontrava em Portugal, não se preocupando com ele;

- A requerida saiu de França para por termo a um quadro de violência doméstica praticado pelo pai do BB, na presença dos menores;

- A ser ordenada a execução do MDE, o bom relacionamento familiar do BB será afectado e se também for obrigado a regressar a França ficará comprometida a evolução do seu percurso formativo, em manifesto prejuízo do superior interesse dos menores;

- O crime imputado à requerida é um crime de execução permanente, pelo que, encontrando-se já em Portugal, quando a decisão do tribunal francês foi proferida, em 2019, o crime ainda se encontra em execução, deste modo se verificando a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea i), do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto;

- O crime imputado à requerida é punível, em Portugal, com prisão até dois anos ou multa, e tem natureza de crime semi-público, enquanto em França é punível com prisão até três anos, sendo desconhecida a sua natureza, o que significa que a execução do MDE sujeitará a requerida a um regime punitivo mais grave e com menores garantias;

- Dos autos não resulta informação clara e suficiente sobre se a República Francesa pretende a sua detenção e entrega ou apenas, a detenção e eventual aplicação de medidas de coacção/medidas de segurança, matéria que é relevante para aferir da possibilidade de aplicação da causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea g), do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto;

- Estando o BB já institucionalizado, por medida cautelar decidida pelo Tribunal ..., no seguimento da detenção da requerida, não se justifica a sua entrega às autoridades francesas;

- Corre no Tribunal ... o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais do BB;

- Na eventualidade de ser ordenada a entrega ao Estado requerente, a mesma deve ser sujeita à condição prevista no art. 13º, nº 1, b) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

A Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu à oposição, alegando …

- o mandado de detenção europeu objecto dos autos observa todos os requisitos legalmente exigíveis …

- o processo de protecção de menor e o processo de regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor BB, pendentes no Tribunal ..., não afectam o decidido pela justiça francesa, nem a execução do mandado está dependente do que neles vier a ser decidido;

- os factos imputados à requerida e que justificam a emissão do MDE, constituem, em França, um crime de subtracção de menor da custódia judicialmente decidida … e consubstanciam em Portugal, um crime de subtracção de menor, …

- dos autos não resulta que a requerida não tenha sido notificada da decisão proferida pelo tribunal de família francês …

- o crime foi praticado em França, no momento em que a requerida daí saiu com o menor sem autorização de quem de direito, sendo certo que, … tendo em conta a natureza do MDE … sempre haveria que afirmar as vantagens da prevalência da jurisdição portuguesa, e o conhecimento do crime será sempre mais fácil e expedito, se feito pelas autoridades francesas;

- não existe qualquer referência nos autos à existência de comportamento violento por parte do pai do menor contra a requerida, mas ainda que assim fosse, tal não constituiria obstáculo à execução do mandado;

- no âmbito do MDE não há que sindicar a natureza do crime e se foi ou não exercido o direito de queixa, presumindo-se a regularidade da ordem de detenção do Estado requerente, nem a moldura penal abstracta prevista para o crime em causa na lei francesa constitui entrave à pretensão formulada,

- e concluiu pela improcedência da oposição.

Por despacho do relator de 20 de Fevereiro de 2023, foram indeferidas as diligências de prova indicadas pela requerida.

Mostra-se junto o relatório social, cuja solicitação foi promovida pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na audição da requerida …

II

3. Com relevo para a decisão, estão provados os seguintes factos:

a. Pela autoridade judiciária francesa competente … foi emitido em 12 de Junho de 2020, o mandado de detenção europeu objecto dos autos, e inserido no Sistema de Informação Schengen, o pedido de detenção e entrega às autoridades francesas, da cidadã de nacionalidade francesa – mas que também tem nacionalidade portuguesa … para efeitos de procedimento criminal;

b. Os factos indiciados que suportam o pedido da República Francesa, enquanto Estado de emissão do mandado são:

b.1. Por sentença de 3 de Junho de 2019, o juiz de menores do Tribunal Judicial ..., confiou o menor BB, nascido a .../.../2012, filho da requerida, ao serviço de protecção da infância de ...; a colocação do menor neste serviço não pôde ser executada, porque a requerida deixou o seu domicílio, levando consigo o menor BB e outro seu filho, de tenra idade, para impedir aquela medida, vindo, juntamente com os dois menores, para Portugal, em data não apurada, mas posterior a 3 de Junho de 2019, residindo, actualmente, na Rua ..., ..., ...;

b.2. Por decisão de 28 de Novembro de 2018, proferida pelo juiz de família do Tribunal Judicial ..., foi atribuído a DD, pai do menor BB, o direito de visita, direito este cujo exercício foi impedido pela requerida.

c. À factualidade referida em b.1. corresponde, na legislação francesa, a qualificação jurídico-penal de crime de subtracção de menor por ascendente durante mais de cinco dias para paradeiro desconhecido das pessoas encarregadas da sua guarda, previsto pelos arts. 227-9 1º e 227-29 do Código Penal e arts. 378 e 379-1 do Código Civil, punível com pena de prisão até três anos;

d. À factualidade referida em b.2. corresponde, na legislação francesa, a qualificação jurídico-penal de crime de não apresentação de criança a pessoa que tenha o direito de a reclamar, previsto pelos arts. 227-5 e 227-29 do Código Penal, punível com pena de prisão até três anos;

e. A requerida foi detida, no âmbito destes autos, no dia 3 de Fevereiro de 2023, em ..., não consentiu na execução do MDE, não renunciou ao princípio da especialidade, e na oposição que deduziu, declarou que, caso venha a ser-lhe aplicada pena de prisão, a pretende cumprir em Portugal.

f. O menor BB frequenta uma escola de futebol em ..., integra a banda filarmónica de ..., foi inscrito pela requerida no sistema de ensino oficial em Janeiro do corrente ano, após denúncia sobre a sua situação escolar, e encontra-se actualmente acolhido em instituição de ..., desde 6 de Fevereiro do corrente ano.

O tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos supra enunciados, tendo por suporte os documentos juntos aos autos – mandado de detenção emitido pela autoridade judiciária francesa e respectiva tradução e relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais –, a oposição, na parte relativa à pretensão do cumprimento da pena detentiva em Portugal e as declarações da requerida no momento da sua audição. 

*

4. A Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.06.2002, que criou a Ordem de Detenção Europeia, veio substituir o sistema clássico até então em vigor, do complexo e lento processo de extradição, por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, fundado em procedimentos expeditos e com prazos reduzidos, mas salvaguardando sempre os direitos constitucionais de defesa.

Em execução desta decisão-quadro, o legislador português aprovou, através da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, definindo-o, no nº 1 do seu art. 1º, como uma decisão judiciária emitida por em Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Por sua vez, estabelece o nº 2 do mesmo artigo que o mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho.

Podemos dizer que o mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro – Estado de emissão – visando a detenção a detenção e entrega por outro Estado membro – Estado de execução – de pessoa procurada, seja para efeitos de procedimento criminal, seja para efeitos de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas da liberdade, que se executa com base no princípio reconhecimento mútuo e sem controlo da dupla incriminação do facto, nos casos previstos no nº 2 do art. 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e com controlo da dupla incriminação, nos casos subsumíveis à previsão do nº 3 do mesmo artigo.

O núcleo do princípio do reconhecimento mútuo consiste em a decisão da autoridade judiciária competente e em conformidade com o direito do respectivo Estado membro, dever ter efeito directo e pleno em todo o território da União Europeia, o que significa que as autoridades competentes do Estado membro onde a decisão pode ser executada, devem prestar a sua colaboração à respectiva execução, como se fosse decisão tomada por autoridade competente deste Estado.

Estamos, pois, perante um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados membros da União Europeia, entre os quais se contam a República Francesa e a República Portuguesa.

Aqui chegados.

5. In casu, estão verificados os requisitos de forma, conteúdo e transmissão do mandado de detenção europeu, previstos nos arts. 3º, 4º e 5º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

Por outro lado, a factualidade referida em b.1. e em b.2. é subsumível, na legislação nacional, à previsão do art. 249º, nº 1, c) do C. Penal, que prevê o crime de subtracção de menor, punível com prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias.

Está, pois, verificado também o critério da dupla incriminação do facto, previsto no art. 2º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

6. Inicia-se a oposição, relevante, deduzida ao mandado de detenção europeu pela requerida, com a afirmação de que o crime indicado é de execução permanente, e assim sendo, a existir crime, estando em Portugal, com os filhos, desde 2019, tal significa que, quando a decisão da justiça francesa foi proferida, já aqui se encontrava, assim se verificando a causa de recusa facultativa da execução do mandado, prevista na alínea i) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

Vejamos.

A Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto adoptou uma solução de compromisso entre a total abolição da exigência dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, ao prever no seu articulado causas facultativas de recusa de execução do mandado de detenção europeu (cfr. ac. da R. de Coimbra de 21 de Fevereiro de 2018, processo nº 2/18YRCBR, in www.dgsi.pt). E assim, as causas de recusa facultativa de execução do mandado previstas no art. 12º, nº 1 da referida lei têm, na sua maioria, uma ligação à soberania penal, designadamente, a competência do Estado Português para o procedimento criminal, a nacionalidade portuguesa da pessoa procurada, a residência em Portugal da pessoa procurada.

Nos termos do disposto no art. 12º, nº 1, alínea h), i), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, é causa de recusa de execução do mandado, que este tenha por objecto infracção que, segundo a lei portuguesa, tenha sido cometida, no todo ou em parte, em território nacional, ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas. Pois bem.

Cumpre, em primeiro lugar, notar que, como resulta do teor do mandado de detenção europeu dos autos, o mesmo tem por objecto, não um, mas dois crimes, identificados nos pontos c. e d. dos factos provados, sendo que, em Portugal, as respectivas condutas são, ambas, subsumíveis à previsão do art. 249º, nº 1, c) do C. Penal.

Depois, contrariamente ao afirmado pela requerida, a sua vinda para Portugal, como resulta dos factos provados (facto b.1.), ocorreu depois de proferida a sentença do juiz de menores do Tribunal Judicial ..., confiando o menor BB ao serviço de protecção da infância de ..., portanto, depois de 3 de Junho de 2019.

Quanto ao mais.

6.1. A questão colocada pela requerida prende-se com o momento da consumação do(s) crime(s) em causa, nos termos da lei portuguesa.

Dispõe o art. 3º do C. Penal que, o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

No que ao lugar da prática do facto respeita, são possíveis três doutrinas ou, preferindo-se, critérios: a da actividade – releva o lugar onde o agente actuou ou, sendo a conduta omissiva, devia ter actuado; a do resultado – releva o lugar onde se produziu o resultado típico, e; a da ubiquidade – relevam quer o lugar da acção, quer o lugar onde se produziu o resultado típico. E é esta última a doutrina que se encontra consagrada no art. 7º do C. Penal.

6.2. Estando em causa, como vimos, a inobservância, pela requerida, de duas decisões judiciais da República Francesa, tendo por objecto o exercício das responsabilidades parentais relativas ao seu filho BB, não permitindo, num primeiro momento, o direito de visitas ao pai do menor e, num segundo momento, não o apresentando à assistência social francesa, trazendo-o para Portugal, condutas que, conforme já referido, são susceptíveis de integrarem o tipo do crime de subtracção de menor, p.e p. pelo art. 249º, nº 1, c) do C. Penal, cumpre definir o momento da sua consumação.

Para este efeito, há que convocar, brevitatis causa, a distinção entre crime instantâneo e crime duradouro e depois, o conceito de crime de omissão própria.

a. Crime instantâneo é aquele cuja consumação se traduz na realização de um acto ou na realização de um evento que não se prolonga no tempo, portanto, que se esgota num único momento.

Crime duradouro (ou permanente) é aquele cuja consumação se prolonga no tempo por vontade do agente, que tem a faculdade de fazer terminar o estado antijurídico por si criado (cfr. Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2ª reimpressão 2012, Coimbra Editora, pág. 314). Aqui, ensina o autor citado, «a consumação, anote-se, ocorre logo que se cria o estado antijurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado.».

No crime duradouro podem, pois, distinguir-se dois momentos: um primeiro momento que abrange os actos de execução praticados até à realização do evento, portanto, até á consumação inicial do crime e; um segundo momento, que integra a omissão de o agente fazer cessar o estado antijurídico que causou, fazendo prolongar no tempo a consumação do crime (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, reimpressão 1971, Almedina, pág. 310).

b. O crime de subtracção de menor, previsto no art. 249º, nº 1, c) do C. Penal é, por outro lado, um crime de omissão própria, isto é, um crime cuja descrição típica prevê expressamente a omissão como forma do seu preenchimento.

É irrelevante para a consumação desta espécie de crime, a ocorrência ou não, de resultado, pelo que, o mesmo consuma-se com a mera omissão, considerando-se o facto praticado no momento em que o agente não actuou (art. 3º do C. Penal) e no local onde o agente devia ter actuado (art.7º do C. Penal).

6.3. Revertendo para o caso concreto, se colocarmos a questão a decidir na perspectiva do crime de subtracção de menor como crime de omissão própria, e lançarmos mão do que se deixou dito em 6.2. a), que antecede, concluiríamos, sem mais delongas, que a conduta omissiva da requerida teve lugar em França e que, por isso, de acordo com a lei portuguesa, o(s) indiciado(s) crime(s), objecto do mandado de detenção europeu em apreço nos autos, não foram praticados, no todo ou em parte, em território nacional, razão pela qual não estão verificados os pressupostos de aplicação da recusa facultativa prevista no art. 12º, nº 1, h), i) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto (cfr., neste sentido, ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2012, processo nº 27/12.0YRCBR.S1, in, www.dgsi.pt).

Olhando agora a questão pela perspectiva do crime de subtracção de menor como crime duradouro, considerando que o bem jurídico tutelado pela incriminação é o poder paternal ou a tutela sobre o menor, considerando também a factualidade provada, pode aceitar-se que o(s) crime(s) se consumou em França, continuando em Portugal a compressão do bem jurídico, e por via desta, também aqui foi praticada parte dos factos. Ainda assim, é meramente aparente, em nosso entender, a verificação dos pressupostos de aplicação da recusa facultativa em análise.

Com efeito, e como é entendimento uniforme do nosso mais Alto Tribunal, a aplicação de qualquer das causas de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu terá sempre ser justificada pela demonstração das reais vantagens que resultem para a investigação e conhecimento dos crimes objecto do mandado, da prevalência da jurisdição nacional sobre a jurisdição do Estado de emissão (cfr. acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 2018, processo nº 29/18.2YRPRT.S1, in www.dgsi.pt, e de 9 de Maio de 2012, supra, identificado).

No caso concreto, não só a requerida não trouxe aos autos quaisquer factos que, a provarem-se, e depois de devidamente ponderados, pudessem conduzir à justificação daquela prevalência [na verdade, a maior parte da oposição deduzida pela requerida visou demonstrar a actual situação do menor BB, concretamente, a sua integração a nível familiar, escolar e social, circunstancialismo este alheio à questão em apreço], como os factos mais relevantes para a investigação a desenvolver no âmbito do exercício do procedimento criminal tiveram lugar em França, estando em causa, como sabemos, o incumprimento, pela requerida, de duas decisões de tribunais franceses que tiveram por objecto a regulamentação das responsabilidades parentais relativas ao menor BB, sendo certo que aí viviam, a requerida, o menor e o pai deste, até à vinda da primeira e do segundo para Portugal. Aliás, a fixação de residência da requerida, e do menor, em Portugal, é o único factos que estabelece a conexão do a ordem jurídica portuguesa.

Em suma, porque entendemos não estar demonstrada a existência de qualquer vantagem decorrente da atribuição de prevalência à jurisdição nacional sobra a jurisdição da República Francesa, e porque, como se pode ler no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2012, «O acto de recusa de execução do MDE não pode nem deve tratar-se de um acto meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que a LMDE quis dar corpo e os valores que com essa cooperação se visam prosseguir, com destaque para a correcta administração da justiça penal.», não deve ser actuada a causa de recusa facultativa do mandado, prevista no art. 12º, nº 1, h), i) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

7. Continua a oposição, relevante, deduzida ao mandado de detenção europeu pela requerida, com a afirmação de que não resulta do mandado de detenção europeu informação clara e suficiente sobre se é pretendida a sua detenção e entrega às autoridades francesas ou se é pretendida a sua detenção e eventual aplicação de medidas de coacção, circunstância que importava apurar, por ser relevante para aferir da verificação da causa de recusa facultativa de execução do mandado, prevista na alínea g), do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

Com ressalva do devido respeito, trata-se de uma falsa questão. Explicando.

Como é sabido, o mandado de detenção europeu pode ser emitido para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade (art. 1º da lei citada).

Consta do mandado de detenção europeu dos autos que o mesmo foi emitido com fundamento numa decisão de detenção proferida por uma juíza de instrução de um Tribunal Judicial da República Francesa, nele não há referência a sentença com força executiva, e há indicação da duração máxima da pena detentiva aplicável (três anos).

De tudo isto resulta que o mandado foi emitido para efeitos de procedimento criminal. E isto é conhecido pela requerida, pois que na oposição argumenta que a execução do mandado a irá sujeitar a um regime penal mais grave e com menos garantias, e requer que a sua eventual entrega ao Estado de emissão fique condicionada à prestação, por este, de garantia de que será devolvida a Portugal para cumprimento da pena privativa da liberdade em que venha a ser condenada em França.

Assentemos então, que o mandado de detenção europeu dos autos foi emitido para efeitos de procedimento criminal.

A causa de recusa facultativa de execução do mandado, prevista na alínea g), do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, tem como pressupostos, que a pessoa procurada se encontre em território nacional, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal, e que o mandado tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executá-las, de acordo com a lei portuguesa.

Assim, porque a República Francesa pretende a detenção da requerida para efeitos de procedimento criminal e não, para efeitos de cumprimento de pena ou de medida de segurança, afastada fica, liminarmente, a possibilidade de recusar a execução do mandado com fundamento na causa de recusa prevista na alínea g) do nº 1 da referida lei.

8. Continua a oposição, relevante, deduzida ao mandado de detenção europeu pela requerida, com a afirmação de que, sendo a moldura penal abstracta aplicável ao crime de subtracção de menor previsto no C. Penal português mais benévola do que equivalente moldura da legislação penal francesa, e desconhecendo-se se em França o crime tem, como em Portugal, natureza semi-pública e, em caso afirmativo, se foi apresentada queixa, não deve ser ordenada a execução do mandado, por representar a mesma a sua sujeição a um regime punitivo mais grave e com menores garantias.

Vejamos.

A natureza do(s) crime(s) imputado(s) à requerida no mandado de detenção europeu, e o eventual exercício ou não, do direito de queixa, na eventualidade de na legislação francesa também existir este pressuposto positivo da punição, é questão que está subtraída, por força do princípio do reconhecimento mútuo, ao conhecimento do Estado de execução.

Por outro lado, é verdade que a moldura da pena de prisão aplicável ao crime de subtracção de menor, é mais benévola em Portugal (prisão até dois anos ou multa), do que em França (prisão até três anos).

Mas esta constatação não constitui causa ou argumento válido para recusar a execução do mandado. 

9. Por fim, argumenta a requerida que saiu de França para não continuar a suportar um quadro de violência doméstica actuado pelo progenitor do menor BB, na presença dos seus [da requerida] filhos.

Sem se por em causa a veracidade da alegação, não existem nos autos indícios de que se tenha verificado o afirmado quadro de violência doméstica.

De qualquer forma, esta situação, podendo, eventualmente, relevar na defesa a apresentar pela requerida quanto às imputações feitas pela justiça francesa, é irrelevante para efeitos de execução ou não do mandado de detenção em causa nos autos.

10. Pelas sobreditas razões, não se verifica qualquer causa de recusa, seja obrigatória, seja facultativa, de execução do mandado de detenção europeu.

Assim, sendo a requerida procurada pela autoria de crime(s) cometido(s) em território francês, para procedimento criminal movido pela justiça francesa, punível pela lei portuguesa com pena até dois anos de prisão – crime de subtracção de menor, p. e p. pelo art. 249º, nº 1, c) do C. Penal – e não ocorrendo fundamento de recusa obrigatória nem de recusa facultativa, não pode o mandado de detenção europeu deixar de ser concedido e cumprido, com a consequente entrega da requerida às autoridades da República Francesa.

11. A requerida, na oposição deduzida, veio peticionar que, na eventualidade de ser decidida a sua entrega às autoridades francesas, esta fique condicionada, nos termos do art. 13º, nº 1, b) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, à prestação pela autoridade judiciária francesa da garantia de que será devolvida a Portugal, para cumprimento da pena ou de medida de segurança privativas da liberdade em que venha a ser condenada.

Vejamos.

Nos termos do disposto no art. 13º, b) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado de emissão, quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado de execução, garantir a sua devolução, depois de ouvida, ao Estado de execução, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade em que for condenado no Estado de emissão.

A requerida tem nacionalidade francesa, sendo, aliás, natural de França, mas também tem nacionalidade portuguesa. Para além disto, reside há vários anos em Portugal.

É, por outro lado, claro o seu propósito, no caso de condenação em pena privativa da liberdade, em que o respectivo cumprimento decorra em Portugal.

Assim, e nos termos do art. 13º, b) da citada lei, a entrega da requerida às autoridades da República Francesa, no âmbito da execução do mandado de detenção europeu dos autos, ficará condicionada à garantia a prestar por aquele Estado [enquanto Estado de emissão] de que devolverá a requerida à República Portuguesa [enquanto Estado de execução], para que nela cumpra a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade em qua venha a ser condenada na República Francesa.

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III

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pela Juíza de instrução do Tribunal Judicial ..., República Francesa, referente à cidadã portuguesa e francesa, AA, determinando a sua entrega às autoridades judiciárias da República Francesa, para efeitos de procedimento criminal, pelos factos mencionados no mandado de detenção, consignando-se que a requerida não renunciou ao benefício da regra da especialidade.

B) A execução da entrega referida em A) fica sujeita à condição de a autoridade judiciária da República Francesa, enquanto Estado de emissão, prestar garantia de que a requerida será devolvida a Portugal, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade em que venha a ser condenada em França.

C) Comunique desde já, e independentemente do trânsito do presente acórdão, à autoridade judiciária da República Francesa, enquanto Estado de emissão, solicitando a prestação, no prazo de cinco dias, da garantia exigida (cfr. artigo 5.º, n.º 3, da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI), com menção de que a entrega da requerida não será executada antes de prestada tal garantia.

D) Sem custas, por não serem devidas.

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Proceda-se às necessárias comunicações (SEF e Gabinete SIRENE).

Cumpra-se o art. 28º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

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Após trânsito, proceda-se à entrega da requerida às autoridades judiciárias da República Francesa, no mais breve prazo possível, sem exceder dez dias (art. 29º, nº 2 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto).

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Coimbra, 8 de Março de 2023

Acórdão integralmente revisto por

Vasques Osório – relator

Maria José Guerra – adjunta

Helena Bolieiro – adjunta