Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
254/12.0TTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
ESTADO DE NECESSIDADE
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 51º/1 DA LEI Nº 107/09, DE 14/09; 410º, 2/3 DO CPP; 34º E 35º DO CPENAL.
Sumário: I – O Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação laboral, apenas conhece de direito, por força do disposto no artº 51º/1 da Lei 107/09, de 14/09.

II – Ressalva-se dessa regra a apreciação oficiosa que o Tribunal da Relação deve levar a efeito dos vícios enunciados no artº 410º/2 e 3 do CPP.

III – É jurisprudência uniforme dos tribunais superiores a de que os vícios enumerados no artº 410º/2 do CPP representam anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, devendo ser apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, designadamente depoimentos exarados no processo ou documentos juntos ao mesmo, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.

IV – O estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o ilícito ou deixar que, como consequência necessária de o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao do ilícito.

V – Depende, também, da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e a probabilidade de eficácia do meio empregado.

Decisão Texto Integral: I) Relatório

A Autoridade para as Condições do Trabalho, Centro Local da Beira Interior, condenou a recorrente A..., SA, com sede na rua […], na coima única de € 11.000 pela prática de duas contra-ordenações previstas e punidas pelas disposições conjugadas dos arts. 6º/1/b do DL 347/93, de 1/10, na redacção dada pela Lei 113/99, de 3/8, 5º/1/3 da Portaria 987/93, de 6/10, 8º/1/m do DL 220/08, de 12/11, Portaria 762/02, de 1/7, 163º/1 da Portaria 1532/08, de 29/12, 5º/3, 15º e 98º/6 da Lei 102/09, de 10/9, 281º, 550º, 554º/3/e/4/b e 556º/1 do CT/09, 18º e 19º do DL 433/82, de 27/10, a que se fizeram corresponder as coimas parcelares de 100 Uc´s e de 25 Uc´s.
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Inconformada, deduziu a arguida impugnação judicial, tendo o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco mantido a condenação da recorrente pela autoria daquelas contra-ordenações, mas com redução das coimas parcelares para 90 Uc´s e 15 Uc´s, bem como da coima única para 9.690 euros.
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Mais uma vez inconformada, recorreu a arguida para esta Relação, pugnando pela revogação da sentença e pela sua absolvição das contra-ordenações pelas quais foi condenada.
Apresentou as conclusões a seguir transcritas:
[…]
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela integral improcedência do recurso e manutenção do julgado.
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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público entende que o recurso não merece provimento.
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Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
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II) Questões a decidir

São as seguintes as questões a decidir no âmbito deste recurso:
1ª) se a sentença padece do vício de erro notório de apreciação da prova;
2ª) se a recorrente actuou em situação de estado de necessidade excludente da ilicitude ou da culpa;
3ª) se a recorrente actuou em situação de conflito de deveres excludente da ilicitude.
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III) Fundamentação

A) De facto.

O tribunal recorrido deu como provados os factos a seguir transcritos:
[…]

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B) De direito

Primeira questão: se a sentença padece do vício de erro notório de apreciação da prova
Comece por referir-se que o Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação laboral, apenas conhece de direito, por força do disposto no art. 51º/1 da Lei 107/09, de 14/9.
Ressalva-se dessa regra a apreciação oficiosa que o Tribunal da Relação deve levar a efeito dos vícios enunciados no art. 410º/2/3 do CPP, aplicável ex-vi dos arts. 41º/1 e 74º/4 do DL 433/82, de 27/10, da redacção do DL 244/95, de 14/9 – cfr. acórdão do STJ de 19/10/95 (DR, 1ª série, A, de 28/12/95) que fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º/2, CPP, mesmo que o objecto do recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Nos termos desse art. 410º/2/3 CPP:
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”.
Não sendo caso de aplicação do nº 3 acabado de transcrever, por não ter sido arguida pela recorrente, nem se vislumbrar, qualquer inobservância do tipo da nela enunciada, importa determinar se a sentença recorrida padece de algum dos vícios enunciados no transcrito nº 2.
Diga-se, antes de mais, que os vícios em questão não podem ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pela recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos do art. 127º do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125º do CPP, o Tribunal a quo alcançou sobre os factos.
Por outro lado, tem sido jurisprudência constante dos nossos tribunais superiores a de que os vícios enumerados no art. 410º/2 do CPP representam anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, devendo ser apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, designadamente depoimentos exarados no processo ou documentos juntos ao mesmo, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito – v.g. acórdãos do STJ de 21/3/2013, proferido no âmbito da revista 321/11.7PBSCR.L1.S1, de 15/11/2012, proferido no âmbito da revista 5/04.2TASJP.P1.S1., de 8/11/2006, proferido no âmbito da revista 3102/06, de 5/3/97, BMJ 465º, pág. 407, de 8/1/97, BMJ 463º, pág. 189, de 11/6/92, BMJ 418º, pág. 478, de 31/1/90, BMJ 393º, pág. 333.
Trata-se de jurisprudência pacífica e consolidada, não se vislumbrando fundamento suficiente para dela divergir.
Cumpre, assim, exclusivamente com base na sentença recorrida, conjugada com as regras de experiência comum, indagar se aquela decisão padece dos apontados vícios.
Comece por referir-se que este Tribunal não divisa qualquer regra de experiência comum que, conjugada com a sentença, permita concluir no sentido da verificação dos vícios em questão.
Lida a sentença recorrida, também não se descortina em que parte enferma ela de tais vícios.
Na verdade, começando pelo da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º/2/a CPP), é sabido que o mesmo só tem lugar quando da factualidade vertida na decisão se retira faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – acórdão do STJ de 6/4/00, BMJ 496, pág.169.
Por outras palavras, este vício só tem lugar quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação, pronúncia ou, no caso das contra-ordenações, da decisão da autoridade administrativa – cfr. acórdãos do STJ 4/10/2006, proferido no âmbito do processo 06P2678, de 05/9/2007, proferido no âmbito do processo 2078/07, e de 14/11/2007, proferido no âmbito do processo 3249/07.
Na verdade, como escreve o Prof. Germano Marques da Silva “É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.” - Curso de Processo Penal, Verbo, 2000, III Vol., págs. 339 e 340.
Assim, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objecto do processo delimitado pela decisão da autoridade administrativa, mas vinculado ao dever da descoberta da verdade material (art. 340º do CPP), desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos que deveria ter desenvolvido e indagado, concluindo-se pela verificação do vício em apreço quando houver factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação e pela defesa ou resultantes da discussão, mas que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver – acórdão da Relação do Porto de 6/11/1996, proferido no âmbito do processo 9640709.
Ora, analisando a sentença recorrida não se detecta na mesma qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito tomada.
Por outro lado, não se descortina qualquer outra diligência que devesse ter sido realizada ou qualquer outra matéria de facto relevante para a decisão que devesse ter sido indagada e que, indevidamente, o tribunal recorrido não realizou ou não indagou.
Como assim, não se verifica na sentença recorrida o vício em apreciação.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º/2/b), distintas da falta de fundamentação, respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto, podendo existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, assim como entre a fundamentação probatória da matéria de facto - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, págs. 341/342.
Este vício ocorre, pois, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Nenhuma situação desse tipo se regista na situação em apreço.
Aliás, como já dito, a divergência da recorrente relativamente ao sentido com que foi valorada a prova produzida e aos factos que com base nela foram dados como provados não evidencia qualquer contradição do tipo da que apreciamos neste momento.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova (art. 410º/2/c) verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., pág. 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão da recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. acórdão do STJ de 9/7/1998, proferido no âmbito do processo 1509/97).
Diga-se, ainda, que não traduz qualquer erro notório o facto de o tribunal ter dado credibilidade a determinadas declarações e/ou meios de prova produzidos, em detrimento de outras.
Ora, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer erro do tipo acabado de apontar.
Concluindo, dir-se-á que no caso em apreço não estamos perante qualquer dos vícios previstos no art. 410º/2 do CPP, bem como não corre qualquer nulidade do tipo das previstas no nº 3 do mesmo artigo
Como assim, subsiste intocada a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância.
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Segunda questão: se a recorrente actuou em situação de estado de necessidade excludente da ilicitude ou da culpa

Importa decidir, antes de mais, se a conduta da recorrente é susceptível de ser enquadrada na figura do estado de necessidade que, como é sabido, pode revestir a natureza de um verdadeiro direito de necessidade (art. 34º do CP), sendo então uma causa de exclusão da ilicitude, ou de estado de necessidade desculpante (art. 35º do CP), caso em que constitui uma causa de exclusão ou de diminuição da culpa.
Nos termos do art. artigo 34º do CP “Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”.
Está aqui enunciada uma causa de exclusão da ilicitude do facto punível cujo fundamento assenta numa ideia de ponderação de interesses entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo, sendo que, como resulta do próprio texto legal, o interesse ou bem jurídico cujo perigo se afasta tem de ser superior ao interesse sacrificado.
O estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o ilícito ou deixar que, como consequência necessária de o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao do ilícito.
Depende, também, da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e a probabilidade de eficácia do meio empregado.
Pode-se então concluir que a superioridade que se exige nos termos do art. 34º CP entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico ameaçado pelo perigo não se mede em termos de quantidade: a quantidade não implica superioridade qualitativa.
O perigo tem que ser um perigo real e efectivo.
Também ter de ser actual, no sentido de que tem que ser um perigo que exista naquele momento ou que está iminente, podendo advir de factos naturais ou de factos humanos.
É preciso, ainda, que cumulativamente se verifique outro elemento desta causa de justificação previsto no art. 34º/b do CP: que exista uma sensível superioridade entre o interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
Isto passa pela análise de se verificar qual é o interesse mais valioso.
Por isso, é sempre necessário verificar em cada situação qual o interesse mais valioso de entre os que se mostram conflituantes, apontando a doutrina alguns índices para a determinação da sensível superioridade que tem de existir entre o interesse salvaguardado e o interesse sacrificado, a saber: a medida das sanções penais cominadas para a violação dos bens jurídicos em causa, por referência à axiologia constitucional; os princípios ético-sociais vigentes na comunidade em determinado momento; a modalidade do facto; a reversibilidade ou irreversibilidade das lesões; as medidas de culpa; a medida do sacrifício imposto ao próprio lesado.
Finalmente, tem de estar verificado um último requisito previsto no art. 34º/c, qual seja o da razoabilidade da imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse, tendo em atenção o valor e natureza do interessa ameaçado – trata-se de uma limitação ético-social que visa proteger da violação a dignidade e autonomia ética da pessoa, pois o direito tem de se conter e de se manter dentro de certos limites, recuando mesmo, se necessário, em face desses valores.
Reportando-nos à situação em apreço, importa ter presente, antes de mais, que os bens jurídicos tutelados com as disposições legais violadas são de natureza eminentemente pessoal: a integridade física e mesmo a vida dos que devem beneficiar do cumprimento legal dos normativos referentes aos meios de detecção e combate contra incêndios e dos que se reportam à prevenção dos riscos profissionais e à promoção da segurança e da saúde dos trabalhadores – em concreto, a integridade física e mesmo a vida daqueles que eram colocados a trabalhar na ETA de X….
Importa ter presente, também, que as violações dos normativos referentes aos meios de detecção e combate contra incêndios e dos que se reportam à prevenção dos riscos profissionais e à promoção da segurança e da saúde dos trabalhadores estão legalmente tipificadas como contra-ordenações, sendo que não vislumbramos que a interrupção do abastecimento de água que a recorrente procurou prevenir esteja tipificada como infracção criminal ou contra-ordenacional.
Face ao exposto, crê-se que não existe superioridade, para mais sensível, dos interesses que se pretenderam salvaguardar com a reactivação da ETA de X... e com o abastecimento de água às populações do município de Y... que estava em risco e que assim se garantiu, comparados com aqueles que se pretendem tutelar com as normas violadas pela recorrente; no limite, poderiam estar em causa interesses de idêntico valor – os da integridade física e da vida.
Noutro plano, importa ter presente que a ETA de X... reiniciou a sua actividade em Agosto de 2009 (ponto 16º dos factos provados), aí se iniciando igualmente a conduta ilícita da recorrente, sendo que essa conduta ilícita persistiu até 5 de Novembro de 2009 (data da realização da visita inspectiva), sem que dos factos provados resulte uma real impossibilidade da recorrente ter providenciado ou pelo menos tentado no sentido do cumprimento dos normativos cuja violação determinaram a sua condenação pela autoria das contra-ordenações aqui em causa.
Além disso, não resulta dos factos provados que em Novembro de 2009 ainda se registasse uma situação de riscos no abastecimento de água do tipo da que em Agosto de 2009 determinou a reactivação da ETA de X... sem prévio cumprimento dos dispositivos legais cuja violação determinou a condenação da recorrente.
De resto, essa ETA foi encerrada em 12/11/2009 (ponto 9º dos factos provados), sete dias depois da visita inspectiva da ACT que deu origem aos presentes autos, facto que indicia que em Novembro de 2009 já nem sequer seria necessário manter em actividade a ETA de X....
Face ao exposto, não pode sustentar-se, face aos factos dados como provados, que em Novembro de 2009 ainda se registava um perigo actual de interrupção de fornecimento de água às populações do município de Y... que justificou a reactivação da ETA de X... em Agosto de 2009 e que pudesse invocar-se para justificar a manutenção dessa ETA em funcionamento sem cumprimento dos dispositivos legais cuja violação determinou a condenação da recorrente.
Por outro lado, face ao período de tempo em que a ETA de X... se manteve em funcionamento e não resultando dos factos provados qualquer situação de impossibilidade de cumprimento desses mesmos dispositivos legais por parte da recorrente durante todo esse período, deles resultando, ao invés, que esse incumprimento resultou de uma opção consciente da recorrente no sentido de não considerar a ETA de X... como sendo prioritária no planeamento de levantamento de riscos (ponto 7 dos factos provados), não pode sustentar-se que a violação pela recorrente daqueles dispositivos legais mantida desde Agosto de 2009 até Novembro de 2009 constituísse o meio menos prejudicial para se afastarem riscos associados à interrupção do fornecimento de água que porventura pudesse decorrer do encerramento da ETA de X... antes de Novembro de 2009.
A tudo acresce que: […]

Assim sendo, caso a recorrente tivesse actuado de forma diligente, como devia, a mesma deveria ter equacionado, mesmo antes de Agosto de 2009, a possibilidade de no decurso desse ano ter de activar a ETA de X... e de, por isso, ter de implementar nela as medidas necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais por cuja violação acabou por ser condenada, tanto mais quanto é certo que já no ano anterior tinha sido advertida pela autoridade recorrida para a situação de incumprimento em que se encontrava, no que toca à ETA de X..., em matéria de avaliação de riscos e de meios de combate a incêndios, designadamente extintores (ponto 11º dos factos provados).
Ora, o certo é que a recorrente nada fez no sentido da implementação dessas medidas, colocando-se consciente e persistentemente numa situação de incumprimento legal cuja ilicitude pretende agora afastar.
Também por aqui se verifica não poder sustentar-se que a colocação da ETA de X... em funcionamento sem cumprimento prévio dos dispositivos legais que determinaram a condenação da recorrente foi o meio menos prejudicial para se afastarem riscos associados à interrupção do fornecimento de água que determinaram a activação da ETA de X... em Agosto de 2009.
De tudo resulta, pois, não estarem preenchidos todos os requisitos cumulativamente enunciados no art. 34º do CP para poder ter-se por verificada a causa de exclusão da ilicitude nele enunciada.
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De acordo com o nº 1 do artigo 35º do CP, “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Esta norma reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, do agente ou de terceiro, e exige que o perigo que ameaça bens dessa natureza seja actual, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de o remover, e que, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente.
Comece por dizer-se que não resulta dos factos provados que de Agosto de 2009 a Novembro do mesmo ano se registasse uma situação continuada de risco para a vida, para a integridade física, para a honra ou para a liberdade de quem quer que fosse, e que para a remoção desse risco tivesse sido necessário manter a ETA de X... em funcionamento durante todos esses meses e em violação dos normativos legais que determinaram a condenação da recorrente.
Por outro lado, tendo em conta que já em Agosto de 2008 a recorrente tinha sido informada pela autoridade recorrida para a situação de incumprimento que se registava na ETA de X... em matéria de avaliação de riscos e de meios de combate a incêndios (ponto 11º dos factos provados), que a ETA de X... existe para ser activada quando a ETA de Z... não tem capacidades para suportar o abastecimento de água da população (ponto 10º dos factos provados), que durante o ano de 2009 registou-se fraca pluviosidade que determinou uma diminuição significativa dos níveis de água de Z... (ponto 15º dos factos provados), que por tudo isso a recorrente podia e devia ter equacionado, mesmo antes de Agosto de 2009, a possibilidade de no decurso desse ano ter de activar a ETA de X... e de, por isso, ter de implementar nela as medidas necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais por cuja violação acabou por ser condenada, que a recorrente nada fez no sentido da implementação dessas medidas, antes, durante ou depois do mês de Agosto, mantendo-se conscientemente nessa situação de incumprimento até Novembro de 2009, não pode sustentar-se que a conduta ilícita da recorrente materializada na continuada e ilícita manutenção da ETA de X... em funcionamento de Agosto de 2009 a Novembro de 2009 constituísse o único meio de remover um perigo que ameaçava a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade de quem quer que fosse.
De resto, conforme ensinava Cavaleiro Ferreira “A desculpabilidade terá lugar quando não seja razoável exigir dele (agente), segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.” (Lições de Direito Penal I, Editorial Verbo, Lisboa, 1987, pág.167).
Para tanto dever-se-á ponderar, em concreto, o valor determinante do motivo que animou o agente, o fim subjectivo pretendido e o seu estado emotivo em contraposição com o desvalor objectivo do ilícito praticado.
Ora, como já resulta do supra exposto, consideramos que a recorrente deveria ter actuado de outro modo, procurando implementar, pelo menos a partir do momento em que reactivou a ETA de X..., as medidas necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais cuja violação determinou a sua condenação, tanto mais quanto é certo que manteve essa estação em funcionamento até Novembro de 2009, sem que uma só dessas medidas tivesse sido implementada e não resultando dos autos impedimentos a que essa implementação tivesse, ao menos, sido equacionada e tentada.
Consequentemente, não tem aplicação o nº 1 do artigo em análise.
Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, “Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”.
Ou seja, a defesa de bens ou interesses jurídicos que não os indicados no nº 1, ainda que verificados os requisitos exigidos por esta norma, não afasta a culpa do agente, mas apenas a mitiga, constituindo mera circunstância passível de atenuar especialmente a pena ou, em casos excepcionais, fundamento para que esta seja dispensada.
Ora, já acima se disse que não estava verificado, pelo menos, o pressuposto enunciado no nº 1 do art. 35º de que não fosse razoável exigir à recorrente um comportamento diferente daquele que adoptou, considerando que: a recorrente estava advertida, pelo menos desde 2008, da situação de incumprimento que se verificava na ETA de X...; a recorrente poderia e deveria ter equacionado, conforme o supra exposto, mesmo antes de Agosto de 2009, a possibilidade de ter de socorrer-se daquela ETA; entre Agosto de 2009 e Novembro de 2009, a recorrente não providenciou conscientemente pela implementação de qualquer daquelas medidas, persistindo intencionalmente numa situação ilícita de incumprimento que conhecia, sem que resulte dos factos qualquer obstáculo à implementação delas ou de alguma delas.
Em conclusão, não há lugar para aplicação do art. 35º do CP.
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Terceira questão: se a recorrente actuou em situação de conflito de deveres excludente da ilicitude

Resta apurar se a conduta da recorrente é susceptível de enquadramento na figura do conflito de deveres a que se alude no art. 36º do CP.
Dispõe o nº 1 desse artigo, na parte que ora nos interessa, que “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos (…), satisfizer dever (…) de valor igual ou superior ao do dever (…) que sacrificar.
Neste preceito contemplam-se as hipóteses em que o agente é colocado perante o dilema de, na impossibilidade de cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres que sobre ele impendem, ter de optar pelo cumprimento de um deles, sacrificando o outro
O agente agirá a coberto desta causa de justificação optando pelo cumprimento do dever mais valioso, no caso de ser possível hierarquizar os deveres em confronto por referência aos bens jurídicos protegidos e à importância que aqueles deveres assumem para a pessoa que vinculam.
Nos casos em que não é possível estabelecer essa hierarquização, perante a colisão de deveres de igual valor, o agente pode eleger o cumprimento de qualquer um desses deveres e, cumprindo-o, fica afastada a ilicitude da sua conduta ao preterir o outro dever conflituante - Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, pág. 93.
Como quer que seja, a ilicitude da conduta do agente só pode ter-se por excluída se verificados estiverem os pressupostos de impossibilidade de cumprimento dos deveres jurídicos em conflito e de o(s) dever(es) jurídico(s) cumprido(s) ser(em) de valor igual ou superior ao(s) sacrificado(s).
Ora, no caso dos autos e lidos os factos dados como provados, tais pressupostos não podem ter-se por verificados.
Na verdade, sublinhe-se mais uma vez que a condenação da recorrente não foi determinada apenas pela reactivação da ETA de X... em Agosto de 2009 sem prévio cumprimento dos normativos legais cuja violação determinou a sua condenação; a condenação da recorrente foi determinada pela circunstância de em Novembro de 2009 a recorrente ainda manter aquela ETA a funcionar e persistir aquela mesma situação de incumprimento.
Ora, dos factos provados não resulta que de Agosto de 2009 a 5 de Novembro de 2009 a recorrente tenha realmente estado sempre impossibilitada de cumprir simultaneamente os seus deveres de garantir o abastecimento de água, que cumpriu, e os seus deveres de providenciar pelas medidas necessárias ao cumprimento dos referidos normativos, que não cumpriu.
Na verdade, dos factos provados não resulta um só impedimento a que a recorrente tivesse ao menos equacionado e tentado cumprir os ditos normativos, deles resultando, ao invés, que a manutenção da referida situação de incumprimento foi intencional e  resultou de uma decisão da recorrente no sentido de  não considerar a ETA de X... como sendo prioritária no planeamento de levantamento de riscos (ponto 7 dos factos provados).
Não resultando dos factos provados essa situação de impossibilidade da recorrente dar cumprimento aos normativos invocados para a sua condenação, excluída está a possibilidade de aplicação da causa de exclusão da ilicitude prevista no citado art. 36º/1 do CP.
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IV) Decisão
Termos em que acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

(Jorge Manuel Loureiro - Relator)
 (Ramalho Pinto)