Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1574/08.3PEAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
UNIDADE DE ACÇÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA: BAIXO VOUGA (JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS 374.º, N.ºS 2 E 3, AL. B), E 379.º, N.º 1, A), DO CPP; ARTS. 30.º, N.º 1, E 50.º, DO CP; ART. 86.º, N.º 1, DA LEI N.º 5/2006, DE 23-02
Sumário: I - A fundamentação da sentença penal compreende dois grandes sectores:
- A enumeração dos factos provados e não provados; e,

- A exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, que inclui a indicação e o exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.

II - A enumeração dos factos consiste na narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base os que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa.

III - A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve conter, de modo completo e conciso, a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, entendendo-se por esta, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros.

IV - A exposição dos motivos de direito traduz-se na determinação do direito aplicável aos factos e sua aplicação ao caso concreto.

V - Estamos perante uma única conduta do arguido que se traduziu na detenção, nas mesmas circunstância de tempo e de lugar, de uma pistola 6,35 mm, não manifestada nem registada e sem que aquele fosse titular da respectiva licença, e de um bastão em madeira, sem aplicação definida e susceptível de ser usado como arma de agressão.

VI - Existe uma unidade de acção, uma única resolução criminosa, a que corresponde uma única violação do bem jurídico tutelado e portanto, um único preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida, ainda que, in casu, a detenção tenha tido por objecto uma pluralidade de armas e munições

VII - Para a aplicação de pena de substituição, o juízo de prognose a realizar pelo tribunal parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Juízo de Média Instância Criminal – Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga o Ministério Público, requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática de um crime de detenção de arma de defesa fora das condições legais, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, c) e 2 e 3º, nº 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, d) e 3º, nº 2, g), da mesma lei.

            Por sentença de 6 de Julho de 2010, foi o arguido condenado, pela prática dos imputados crimes, nas penas de 2 anos de prisão e de 10 meses de prisão, respectivamente e, em cúmulo, na pena única de 2 anos e 5 meses de prisão.


*

            Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1 – Quanto ao exame crítico das provas que permitiram dar como provados os crimes de que o arguido vinha acusado, a douta sentença limita-se a afirmar:

                - "Provado que tal arma não se encontrava registada e que o arguido não possuía licença válida para uso e porte da mesma, ter-se-á de concluir pela prática de tal crime."

e

- "Ora, é obvio que tal instrumento pode ser usado como arma de agressão."

2 – Tais afirmações, são insuficientes para o preenchimento do requisito legal da fundamentação contida no n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, porquanto não permitem reproduzir o processo decisório do julgador, designadamente o motivo de ter valorado ou desvalorado determinado meio de prova.

3 – A sentença recorrida, na sua fundamentação, não faz qualquer alusão aos factos considerados como não provados. Restando-nos assim a dúvida se todos os factos alegados, com interesse para a decisão, foram apreciados.

4 – Termos em que por falta de fundamentação nos termos alegados, deve a sentença ser

considerada nula, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, nulidade que deverá ser declarada com as legais consequências.

5 – Finalmente, entendemos também que o aresto, ora em crise, violou os preceitos legalmente consagrados nos artigos 40.º, 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal, na justa medida em que, a pena aplicada ao arguido é excessiva e desproporcional, ultrapassando a medida da culpa e na medida em que se opta por não suspender a execução da pena de prisão ao arguido.

                Estamos em crer, salvo melhor opinião, que estão preenchidos os requisitos mínimos necessários à suspensão da execução da pena de prisão, quando muito, na pior das hipóteses podia o tribunal ter optado pela suspensão. sujeitando o arguido a acompanhamento. deveres ou regras de conduta, que se requer.

Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado provido, nos termos mencionados nas conclusões, com as devidas consequências legais, assim se fazendo JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público alegando que a sentença contém a exposição do raciocínio lógico seguido na decisão não sendo nula por falta de fundamentação, que as penas decretadas atenderam à gravidade dos factos e aos antecedentes do arguido, tendo sido criteriosamente ponderadas, que o passado criminal deste determina fortes exigências de prevenção especial, impeditivas da suspensão da execução da pena de prisão e conclui pelo não provimento do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer aderindo aos fundamentos da contramotivação do Ministério Público, e concluiu pelo não provimento do recurso.


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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são:

- A nulidade da sentença;

- A excessiva medida da pena de prisão e a suspensão da respectiva execução.

Oficiosamente, haverá que conhecer da questão da qualificação jurídica dos factos com referência ao concurso de crimes (cfr. Acs do STJ de 25 de Fevereiro de 2009, proc. nº 09P0097, in www.dgsi.pt e de 4 de Outubro de 2001, in CJ, S, IX, III, pág. 178).


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos [com numeração por nós aposta]:

“ (…).

            1. No dia 12 de Julho de 2008, pelas 2h30m, no Largo do Mercado Manuel Firmino, nesta cidade de Aveiro, o arguido tinha na sua posse uma pistola de defesa, sem marca, nem número, de calibre 6,35mm e duas munições do mesmo calibre.

2. A referida arma de defesa não se encontra registada, nem manifestada.

3. O arguido não possui licença válida para uso e porte de arma da classe B1, nem de detenção domiciliária da mesma.

4. Além disso, o mesmo detinha no interior do seu veículo de matrícula não apurada, um bastão em madeira de cor castanha, com a inscrição “Quita Manias”, objecto cujas características estão melhor descritas no auto de exame directo de fls. 23 e 24.

5. Tal objecto, sem aplicação definida, tem potencialidade de utilização como arma de agressão letal.

6. As armas foram apreendidas ao arguido na sequência de o mesmo, após uma discussão, se ter dirigido à sua viatura e daí ter retirado a pistola apreendida.

7. Após, e com a mesma, efectuou um disparo para o ar, apontando-a em seguida na direcção da testemunha C....

8. Na circunstância descrita, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não lhe era permitido deter a referida arma sem estar registada e manifestada e sem a respectiva licença. O mesmo também sabia não lhe ser permitido deter o referido objecto, por ser uma “bastão”, que tem como finalidade a utilização como arma de agressão.

9. O arguido não se absteve de praticar os factos descritos, mesmo sabendo que são proibidos e punidos por lei.

10. O arguido foi já condenado

- na pena de cúmulo de 3 anos de prisão pela prática de dois crimes de roubo e de dois crimes de ameaças, remontando os factos a 27 de Abril de 2002 e a decisão a 04/12/2002;

- em pena de multa pela prática de um crime de furto, remontando os factos a 21/01/2002 e a decisão a 17/02/2003;

- na pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de roubo, remontando os factos a 28/01/2003 e a decisão a 29/01/2005;

- na pena de um ano e seis meses de prisão pela prática de um crime de roubo, remontando os factos a 05/05/2002 e a decisão a 18/03/2004;

- na pena de um ano de prisão suspensa por um ano, remontando os factos a 29 de Dezembro de 2008 e a decisão a 20/01/2009;

11. O arguido ausentou-se para o estrangeiro, tendo paradeiro incerto.

            (…)”.

            B) Dela consta a seguinte motivação de facto:

            “ (…).

            O tribunal fundou a sua convicção:

No auto da apreensão de fls. 07;

Nas fotografias de fls. 13 a 17

No auto de exame de fls. 23 e 24

No CRC junto aos autos;

- no depoimento das testemunhas B..., agente da PSP e C..., sendo que ambos presenciaram os factos.

Afirmaram que o arguido se envolveu em discussão com um terceiro, e na sequência dessa discussão se dirigiu à sua viatura com a intenção de ir buscar uma arma de fogo. A testemunha C... apercebeu-se dessa intenção e seguiu o arguido a fim de evitar que este concretizasse os seus intentos.

Quando chega próximo do arguido o mesmo já tinha o revólver na mão, tendo disparado um tiro para o ar e apontando em seguida a arma na sua direcção.

Nessa altura chega também a testemunha B... que se identifica como polícia, acabando o arguido por lhe entregar a arma.

Mais disse esta testemunha que na viatura do arguido se encontrava também o bastão identificado na acusação.

Quanto às condições pessoais do arguido fundou-se a convicção do tribunal na informação constante de fls. 85 e na informação prestada pela polícia e constante da acta.

(…)”.

C) E a seguinte fundamentação de direito:

“ (…).

            II – DO DIREITO

O arguido vem acusado da prática de dois crimes de detenção de arma proibida,

O primeiro p.p. pelo art. 86º n.º 1 c) e nº 2 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência ao artº 3º, nº 4 do mesmo diploma legal;

O segundo p.p. pelo art. 86º n.º 1 d) e 3º, nº 2, al. g) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, do mesmo diploma legal;

Relativamente ao primeiro estabelece o art. 86º c) que é punido “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer outro meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo” (…), além de outros “ armas das classes B, B1, C e D”.

O n.º 2 acrescenta que a detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui para efeitos do n.º anterior, detenção de arma fora das condições legais.

Ora, foi apreendida ao arguido uma arma de classe B1, as quais, enquadrando-se no art. 3º n.º 4 da Lei 5/2006, só pode ser detida nos termos prescritos no art. 6º e 14º da mesma lei.

Provado que tal arma não se encontrava registada, nem manifestada e que o arguido não possuía licença válida para uso e porte da mesma, ter-se-á de concluir pela prática de tal crime.

Quanto ao segundo crime estabelece o art. 86 d) que é punido “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer outro meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo” (…), além de outros, “instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de

agressão e o seu portador não justifique a sua posse (…), instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão (…) ou munições.

O art. 3º n.º 2 g) estabelece que são armas, munições e acessórios de classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão.

Ora, resulta dos autos que ao arguido foram apreendidas munições.

Na viatura do mesmo encontrava-se um bastão sem que o mesmo tivesse uso definido.

Ora, é óbvio que tal instrumento pode ser usado como arma de agressão.

Cometeu assim, o crime pelo qual vem acusado.

DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

Há que decidir agora qual a pena a aplicar ao agente pelo crime que lhe é imputado.

Relativamente ao crime previsto na alínea c) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na versão primitiva do mesmo era punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Na versão introduzida pela Lei 17/2009 de 06/05 o mesmo crime é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Relativamente ao crime previsto no 86º n.º 1 d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, o crime de detenção de arma proibida era punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.

Na versão introduzida pela Lei 17/2009 de 06/05 o mesmo crime é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

Não estando fixados os limites mínimos estes serão os legais de 30 dias de prisão e 10 dias de multa.

Segundo o art. 71º nº 1 do CP a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Tenta-se por este meio que a punição assuma uma vertente pessoal ao mesmo tempo que dá resposta a exigências de carácter comunitário e de reintegração do delinquente.

Neste sentido estabelece o art. 40º do CP que “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade”. Ao mesmo tempo o n º 2 do mesmo artigo impõe como limite de qualquer pena a medida da culpa.

Estes vectores da medida da pena são concretizados pelos factores de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Alguns desses factores são elencados no art. 71º nº 2 do CP, a título exemplificativo.

O art. 71º do CP estabelece que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, a pena privativa e não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

No caso concreto é patente que não se justifica a aplicação de uma pena de multa.

De facto, o arguido já foi condenado por diversas vezes pela prática de crimes que envolvem violência, como são os crimes de roubo.

Assim, a detenção de armas revela-se, no caso, especialmente perigosa.

O arguido efectuou um disparo para o ar e apontou-o na direcção de um terceiro.

Acresce que a conduta vista na sua globalidade é grave, pois que o arguido detinha duas armas.

O arguido ausentou-se para o estrangeiro.

Assim, face ao exposto parece adequada a aplicação ao arguido das seguintes penas:

- 2 anos de prisão, em ambos os regimes, relativamente ao crime p.p. pelo art. 86º c) da Lei 5/06 de 23 de Fevereiro;

- 10 meses de prisão, em ambos os regimes, relativamente ao crime p.p. pelo art. 86º d) da Lei 5/06 de 23 de Fevereiro;

Considerando a gravidade dos factos e a personalidade do agente é o mesmo condenado na pena de cúmulo de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão.

Face às circunstâncias já consideradas entende-se não se justificar a suspensão da pena.

(…)”.


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            Da nulidade da sentença

            1. Alega o recorrente – conclusões 1 a 4 – que a sentença recorrida não faz menção aos factos não provados, criando a dúvida sobre se todos os factos alegados com interesse para a decisão foram apreciados e que, quanto ao exame crítico da prova, para tanto não é suficiente a afirmação de que a arma não se encontrava registada e que o arguido não possuía licença de uso e porte da mesma para se concluir pela prática do crime, e de ser óbvio que tal instrumento pode ser usado como arma de agressão, pelo que é a mesma nula, nos termos do art. 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal.

            Sem razão, porém, como se passa a demonstrar.

            1.1. A sentença penal é nula, além do mais, quando não contenha as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º do C. Processo Penal (art. 379º, nº 1, a) do mesmo código.

Dando-lhe específica execução, no que respeita à sentença penal, ao dever de fundamentação imposto pelo art. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, dispõe o art. 374º do C. Processo Penal – com a epígrafe «Requisitos da sentença» – no seu nº 2:

Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.

A fundamentação da sentença penal compreende assim, dois grandes sectores:

- A enumeração dos factos provados e não provados; e,

- A exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, que inclui a indicação e o exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.

O primeiro, consiste na narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base os que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração que permite verificar se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.

A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve conter, de modo completo e conciso, a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, entendendo-se por esta, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros.

A exposição dos motivos de direito traduz-se na determinação do direito aplicável aos factos e sua aplicação ao caso concreto. 

Como facilmente se percebem a fundamentação da sentença é uma exigência da sua própria transparência. Com efeito, proporciona o auto-controlo da decisão por quem a proferiu, faculta aos seus destinatários directos e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação nela levados a cabo, e permite o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, quanto à validade da prova e à impugnação da matéria de facto.

1.2. A sentença recorrida contém, obviamente, a enumeração dos factos provados.

Nela não é feita, porém, qualquer referência aos factos não provados.

Mas basta ler a acusação pública para se concluir que todos os factos que dela constam foram considerados como factos provados na sentença recorrida.

Para além deles, foram ainda considerados provados, resultantes da discussão da causa, os pontos 6 e 7, oportunamente comunicados, por despacho de 6 de Julho de 2010, proferido na audiência de julgamento [cfr. acta de fls. 116] e em estrita obediência ao disposto no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, e ainda os pontos 10 [antecedentes criminais] e 11 [ausência no estrangeiro, com paradeiro incerto].    

É assim evidente que o tribunal a quo conheceu de todos os factos alegados [os da acusação] e ainda dos que resultaram da discussão da causa e considerou relevantes. Não subsiste, portanto, qualquer dúvida de que conheceu de todas as questões de facto suscitadas, sendo certo que é este o fim visado pela lei ao impor a enumeração dos factos.

A ausência de qualquer referência a factos não provados, embora pudesse ter sido feita [como é habitual, pela singela afirmação da sua inexistência], resulta apenas e só da circunstância de não existirem tais factos. 

Quanto à apontada insuficiência do exame crítico da prova, basta ler a motivação de facto da sentença para se concluir que assim não é. Na sentença foi feita a indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal – prova testemunhal e prova documental – foi feita a síntese dos depoimentos e apontada a razão de ciência das testemunhas – presenciaram os factos – o que permite aos seus destinatários, imediatos e mediatos, a perfeita apreensão do juízo lógico que presidiu e orientou aquela convicção.

Aliás a crítica feita pelo arguido nada tem a ver, ressalvado sempre o devido respeito por opinião diversa, com a pretendida insuficiência da análise crítica da prova mas com uma insuficiente qualificação jurídica dos factos provados com referência à sua tipicidade.

Na sentença, depois de feita a transcrição do art. 86º, nº 1, c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro e de se ter acrescentado que, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, a detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do nº anterior, detenção de arma fora das condições legais, escreveu-se o que segue:

«Ora, foi apreendida ao arguido uma arma de classe B1, as quais, enquadrando-se no art. 3º, n.º 4 da Lei 5/2006, só pode ser detida nos termos prescritos no art. 6º e 14º da mesma lei.

Provado que tal arma não se encontrava registada, nem manifestada e que o arguido não possuía licença válida para uso e porte da mesma, ter-se-á de concluir pela prática de tal crime.».    

Referindo-se os arts. 6º e 14º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro às condições legais de aquisição e licenciamento das armas da classe B1, parece-nos evidente que a prova da detenção e uso, dolosos [como resulta dos pontos 8 e 9 dos factos provados], pelo arguido, de uma arma desta classe, não manifestada nem registada e não sendo aquele titular da respectiva licença de uso e porte, só pode conduzir à conclusão de que praticou o crime p. e p. pelo art. art. 86º, nº 1, c) daquela lei.

Ainda na sentença, depois da transcrição do art. 86º, nº 1, d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, escreveu-se:

«Na viatura do mesmo [do arguido] encontrava-se um bastão sem que o mesmo tivesse uso definido.

Ora, é óbvio que tal instrumento pode ser usado como arma de agressão.». 

O bastão em questão – fotografado a fls. 17 – não tem efectivamente aplicação definida, pode ser usado como arma de agressão – como, aliás, com alguma ironia, apontam os dizeres, em castelhano, que dele constam: ‘quita manias’ – e a sua posse não se mostra justificada, pelo que a sua detenção voluntária pelo arguido preenche a previsão da norma supra citada.

Em suma, a sentença respeitou estritamente o disposto no art. 374º, nº 2 do C. Processo Penal pelo que, não enferma da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, a) do mesmo código.


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            Da qualificação dos factos com referência ao concurso de crimes

    

            2. O recorrente foi condenado, pela prática de um crime p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, c) e 2 e 3º, nº 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, d) e 3º, nº 2, g), da mesma lei, nas penas de 2 anos de prisão e 10 meses de prisão, respectivamente, e em cúmulo, na pena única de 2 anos e 5 meses de prisão. 

            Os factos que a tanto conduziram resumem-se à sua detenção voluntária, na madrugada do dia 12 de Julho de 2008, em Aveiro, de uma pistola de defesa, calibre 6,35 mm, municiado com dois invólucros, com a qual efectuou um disparo para o ar, arma esta não manifestada nem registada e não sendo o mesmo titular da respectiva licença de uso e porte, e de um bastão em madeira sem que a sua posse tenha sido justificada.

            Não se questiona que a arma de fogo integra a classe B1 e o bastão a classe A, da classificação das armas do art. 3º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo que, a conduta do arguido preencheu o tipo do crime de detenção de arma proibida, simultaneamente, nas previsões das alíneas c) e d), do nº 1, do seu art. 86º.

Uma vez aqui chegados, coloca-se a questão de saber se o arguido cometeu dois crimes, em concurso efectivo, tal como foi decidido na 1ª instância pois, não tendo sido suscitada no recurso, porque se prende com a qualificação jurídica dos factos que é, como dissemos já, de conhecimento oficioso. 

2.1. O concurso de crimes ou seja, a unidade e a pluralidade de infracções, encontra-se previsto no art. 30º, nº 1 do C. Penal, segundo o qual, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. O critério determinante do concurso, ao ter em consideração os tipos efectivamente violados, é um critério teleológico com referência ao bem jurídico (cfr. Ac. do STJ de 27 de Maio de 2010, proc. nº 474/09.4PSLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Esquematicamente, podemos dizer que quando o agente, com a sua conduta, preenche apenas um tipo de crime, existe unidade de crimes. Mas se o agente preenche mais do que um tipo de crime ou o mesmo tipo de crime mais do que uma vez, temos concurso de crimes, havendo que distinguir entre concurso legal e concurso efectivo.

Existe concurso legal [ou aparente] quando o conteúdo criminoso da conduta do agente é tão esgotantemente abarcada pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados que os restantes devem recuar, subordinando-se ou hierarquizando-se perante uma tal situação (Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários e notas das lições, 1976, pág. 102 e ss.), podendo esta subordinação ou hierarquização dos tipos em concurso derivar de uma relação de especialidade [um dos tipos aplicáveis repete ou incorpora todos os elementos do outro tipo aplicável, mas acrescenta elementos suplementares ou especializadores, sejam relativos ao facto, sejam relativos ao agente], de uma relação de consumpção [a realização do tipo aplicável, mais grave, inclui o preenchimento do outro tipo aplicável, menos grave – consumpção pura – ou a situação inversa – consumpção impura], ou de uma relação de subsidiariedade [um dos tipos, o menos grave, só se aplica se o facto não for punido pelo outro tipo, mais grave]. Como se vê, em bom rigor, aqui não existe concurso de crimes mas apenas concurso de normas, onde a aplicação de uma vai excluir a aplicação das demais.  

E existe concurso efectivo [ou verdadeiro], quando o agente comete mais do que um crime [quer através de uma só conduta, quer através de uma pluralidade de condutas]. Aqui, podemos ainda distinguir entre concurso real quando várias acções preenchem vários tipos de crime ou várias vezes o mesmo tipo de crime, e concurso ideal quando uma única acção preenche vários tipos de crime [concurso ideal heterogéneo] ou preenche várias vezes o mesmo tipo de crime [concurso ideal homogéneo].

Posto isto.

2.2. O art. 86º, nº 1 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro prevê e pune um único crime, o crime de detenção de arma proibida, como a sua epígrafe indica.

No corpo do preceito descrevem-se as modalidades da acção típica – detenção, transporte, importação, guarda, compra, aquisição a qualquer título ou por qualquer meio ou obtenção por fabrico, transformação, importação ou exportação, uso ou porte, sem autorização, fora das condições legais ou contra as prescrições da autoridade competente. Depois, nas suas quatro alíneas, são enunciados os equipamentos, materiais, engenhos, produtos, armas, munições e acessórios, susceptíveis de inclusão no objecto daquelas modalidades da acção, agrupados em razão do respectivo grau de perigosidade e daí, as distintas penas previstas em cada alínea.

Trata-se de um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, cujo bem jurídico tutelado é ordem, segurança e tranquilidade pública ou seja, a segurança da comunidade, face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, para o qual o legislador estabeleceu várias molduras penais, em função da perigosidade dos materiais e objectos. 

Já anteriormente dissemos que estamos perante uma única conduta do arguido que se traduziu na detenção, nas mesmas circunstância de tempo e de lugar, de uma pistola 6,35 mm, não manifestada nem registada e sem que aquele fosse titular da respectiva, e de um bastão em madeira, sem aplicação definida e susceptível de ser usado como arma de agressão.

Existe portanto uma unidade de acção, uma única resolução criminosa, a que corresponde uma única violação do bem jurídico tutelado e portanto, um único preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida, ainda que, in casu, a detenção tenha tido por objecto uma pluralidade de armas e munições [note-se, aliás, que a 1ª instância, tendo considerado a detenção do bastão e das munições para efeitos da alínea d) do nº 1 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, não considerou existir também aqui concurso de crimes] que, pela distinta perigosidade que, presumidamente, oferecem, são, quando isolada e unicamente detidas, sancionadas com distintas penas.

Neste caso, face à unidade de acção, a detenção de uma pluralidade de armas proibidas preenchedora de um único crime de detenção de arma proibida, conduz ao sancionamento do arguido pela moldura penal mais grave, devendo considerar-se a existência de um concurso de normas, em relação de consumpção, funcionando a detenção das armas proibidas não subsumíveis àquela moldura penal, como circunstância agravante geral da ilicitude.  

Concluindo agora, consideramos não existir concurso efectivo entre o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, c) e 2 e 3º, nº 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, d) e 3º, nº 2, g), da mesma lei, mas apenas concurso legal.

Impõe-se, por isso, a absolvição do arguido da prática deste último crime, subsistindo apenas, e em consequência, a sua condenação pela prática do primeiro ou seja, a condenação pela prática do imputado crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, c) e 2 e 3º, nº 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.


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 Da excessiva medida da pena de prisão e da suspensão da respectiva execução


    

            3. Alega o recorrente – conclusão 5 – que a pena é excessiva e desproporcional, ultrapassando a medida da sua culpa, estando ainda verificados os requisitos mínimos necessários para a suspensão da respectiva execução.

Face ao entendimento que se deixou expresso no ponto que antecede, o que segue será unicamente aplicável à pena decretada ao recorrente para o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, c) e 2 e 3º, nº 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Vejamos.

Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

Frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  


O crime de detenção de arma proibida por cuja prática foi o recorrente condenado é punível com prisão ou com pena de multa.
Na redacção originária do art. 86º, nº1, c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, a moldura penal abstracta era a de pena de prisão até 5 anos ou pena de multa até 600 dias. Na redacção dada ao mesmo preceito pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, a moldura penal abstracta passou a ser a de pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias. A Lei nº 12/2011 de 27 de Abril não introduziu alteração ao preceito em causa.
O tribunal a quo optou pela pena de 2 anos de prisão, que fixou em ambos os regimes legais em confronto, para efeitos do disposto no art. 2º, nº 4 do C. Penal, tendo para tanto considerado o volume e natureza dos antecedentes criminais do arguido, que nele tornam particularmente perigosa a detenção de armas. E afigura-se-nos acertada a opção feita.
Com efeito, o recorrente regista já cinco condenações anteriores, sendo três em penas de prisão efectiva pela prática de crimes de roubo pelo que, atenta a natureza do crime em questão, a pena não privativa da liberdade não realizaria de forma adequada as necessidades de prevenção, geral e especial.
 
Atentemos agora na medida concreta da pena, fixada em 2 anos de prisão.

Já vimos que a determinação da medida concreta da pena é feita em função das necessidades de prevenção e da medida da culpa do agente.

Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

É elevado o grau de ilicitude do facto pois o arguido detinha duas armas proibidas e, tendo efectuado um disparo com a arma de fogo na via pública, apontou-a depois a um cidadão.

O dolo foi intenso e persistente.

São elevadas as necessidades de prevenção geral dada a frequência com que, por toda a parte, é praticado este crime e são notórias as necessidades de prevenção especial, quer pelos antecedentes criminais do arguido, quer pelo concreto circunstancialismo dos autos, reveladores de uma personalidade mal formada à qual também não repugna o uso gratuito da violência.

Deste modo, não existindo circunstâncias atenuantes, atentas as elevadas necessidades de prevenção e as referidas circunstâncias agravantes, tendo em conta a moldura penal aplicável na data da prática dos factos, consideramos que a pena concreta se deveria situar no ponto médio entre o primeiro quarto e o meio daquela moldura pelo que a pena de 2 anos de prisão, situada sensivelmente sobre o referido ponto médio e suportada plenamente pela culpa do arguido, não merece censura.

Considerando agora a moldura penal resultante da redacção dada á norma incriminadora pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, o agravamento do limite mínimo por esta operado – que passou a 1 ano de prisão – determinaria, face ao descrito circunstancialismo e ao critério aplicado, uma pena concreta de 2 anos e 6 meses de prisão.

Em conclusão, deve o recorrente ser punido pela lei em vigor na data da prática dos factos – por ser, em concreto, a mais favorável – mantendo-se, por se considerar justa, ao assegurar as necessidades de prevenção, sendo suportada pela medida da sua culpa, a pena de 2 anos de prisão que lhe foi imposta pela 1ª instância.

4. A sentença recorrida entendeu carecer de justificação a suspensão da execução da pena de prisão, remetendo singelamente, para as circunstâncias já relevadas ou seja, a gravidade dos factos, os antecedentes criminais do recorrente e a sua personalidade.

Já o recorrente invoca a verificação dos ‘requisitos mínimos’ para a substituição da pena de prisão.

Vejamos.

A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, significando isto que o seu cumprimento é feito extramuros, e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão.

Tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena aplicada ao agente não seja superior a cinco anos de prisão (art. 50º, nº 1, do C. Penal).

Tem como pressuposto material da sua aplicação, a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (art. 50º, nºs 1 e 2, do C. Penal).

O objectivo de política criminal deste instituto é “ (…) o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos – «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 343). 

            Já sabemos que as finalidades da punição ou seja, os fins das penas, são, a protecção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na comunidade (art. 40º, nº 1 do C. Penal). São, portanto, razões de prevenção, geral e especial, e não considerações relativas à culpa – como sucede aliás, com todas as operações de escolha das penas de substituição –, que fundam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão.

Mas os objectivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração. A prevenção geral “ deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 333).

O juízo de prognose a realizar pelo tribunal parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.

Na formulação do juízo o tribunal deve correr um risco prudente pois que a prognose é apenas uma previsão, uma conjectura, e não uma certeza. Quando tenha dúvidas sérias e fundadas sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa e a suspensão negada (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I Vol., 2ª Edição, pág. 444 e Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344).

Note-se, para terminar, já que se trata de aspecto frequentemente esquecido, que não basta a formulação de um juízo de prognose favorável para que seja decretada a suspensão da execução da prisão. A prognose favorável radica exclusivamente em considerações de prevenção especial de socialização e a lei, para além dela, exige ainda que à suspensão se não oponham as necessidades de prevenção e reprovação do crime.

Posto isto.

O pressuposto formal de aplicação da pena de substituição que analisamos está verificado nos autos.

Já não assim, no que concerne ao pressuposto material. Com efeito, o juízo de prognose a formular terá que ser desfavorável, face aos factores negativos apresentados pelo recorrente ou seja, a personalidade mal formada, com traços de violência, as suas anteriores condenações, em especial, as em pena de prisão, bem demonstrativas de não terem constituído estímulo suficiente para o abandono da prática de comportamentos desviantes, e a ausência de qualquer sinal demonstrativo de ter interiorizado a sua culpa e a necessidade da respectiva censura penal [até porque, tendo prestado termo de identidade e residência, ausentou-se para parte desconhecida, no estrangeiro, sem fazer qualquer comunicação ao processo, sendo o julgamento decorrido na sua ausência]. 

Todo este circunstancialismo revela uma considerável dificuldade do recorrente em conformar o seu comportamento de acordo com o direito, impondo a conclusão de que a substituição da pena de prisão não realizaria de forma adequada nem suficiente os fins das penas.

Idêntica conclusão, pelas mesmas razões, há que retirar, quanto à possibilidade de substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

Bem andou pois o tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão. 


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por distintos fundamentos, em conceder parcial provimento ao recurso.

Consequentemente, decidem:

A) Absolver o arguido A... da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nºs 1, d) e 3º, nº 2, g), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

B) Revogar – em consequência do decidido na alínea anterior – a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido A..., em cúmulo, numa pena única.  


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C) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.


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Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência.

 


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Coimbra, 12 de Novembro de 2014


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto))