Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2320/12.2TALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
SUBSCRITOR
ARGUIDO
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
DEFESA EM JUÍZO
Data do Acordão: 06/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 63.º, 64.º, 68.º 287.º, DO CPP
Sumário: I - Convocando as normas previstas nos arts. 63.º, 64.º e 98.º, do CPP, o requerimento para abertura da instrução pode ser subscrito pelo próprio arguido quando relatar unicamente questões de facto, traduzidas por acontecimentos naturalísticos e suas provas, mas não já quando envolva questões de direito.

II - Mas ainda que as questões invocadas no RAI sejam de facto, a sua defesa em juízo, nomeadamente em sede de debate instrutório, tem de ser feita por advogado.

Decisão Texto Integral:

 Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

No processo supra identificado, o Ministério Público deduziu acusação contra A... , aí completamente identificado, imputando-lhe factos integradores da prática de um crime de coação na forma tentada e continuada, p.p. pelos arts 154º nº1 e 2 3e 155, nº1, al. c) do Código Penal, e três crimes de denúncia caluniosa, p.p. pelo artº 365º nº 1 e 2 do mesmo código.

*

Notificado da acusação, veio o arguido, por requerimento subscrito pelo próprio, invocando o art. 98º nº1 Código de Processo Penal, o artº 32 nº1da Constituição da República Portuguesa, o artº 14º nº3 al. d) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e art. 6º nº3 al. b) e c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, afirmando que a acusação não passa de um embuste e de um ato persecutório e de vingança por parte da Magistrada do Ministério Público, e que a mesma acusação não contem elementos integradores da tipicidade dos crimes que lhe assaca, veio requerer a instrução visando a sua não pronúncia e o arquivamento dos autos. No mais, o dito requerimento é uma verdadeira “contestação por negação”, sem quaisquer factos ou provas que permitam infirmar a acusação, (requerimento junto a fls. 21 que aqui se dá por inteiramente reproduzido).

*

Sobre este requerimento veio a incidir o despacho de fls 58 e seguintes que na parte relevante se transcreve:

(…)

“Verifica-se que o requerimento de abertura de instrução se encontra subscrito pelo arguido apesar de este possuir defensor oficioso.

Inicialmente defendíamos a tese de que com base no disposto no artº 98º do Código de Processo Penal o arguido podia apresentar exposições. Memoriais e requerimentos em geral onde se incluía o requerimento de abertura da fase da instrução – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, tomo I, p. 223.

Porém, a prática forense vem apontando que tal circunstância leva a que no processo surjam, por vezes, incompatibilidades na condução técnica da defesa, entre arguido e defensor, e sendo este defensor oficioso com os subsequentes incidentes de pedidos de substituição de defensor, seja pelo próprio advogado, seja pelo próprio arguido, com prejuízo para uma decisão célere.

Sensível a tais questões tem a jurisprudência mais recente vindo a defender que o arguido não dispõe de legitimidade para pessoalmente subscrever o requerimento de abertura de instrução, sobretudo quando no mesmo o arguido não se limita a impugnar factos mas sim questões de direito, como sucede no caso dos autos. Situação que se estende a todos os requerimentos formulados nos autos em que o arguido formula questões de direito.

Na verdade, aderindo a esta posição e na linha do douto Acórdão da Relação de Coimbra de 6-11-2013, relatado pelo Ex.mo Juiz Desembargador, Dr. Jorge Dias, que sustenta que «Situações em que levantando-se questões de direito só podem ser subscritas por quem se encontre legalmente habilitado, o advogado. E a jurisprudência vai no sentido de advogado, também o arguido, não se poder defender a si próprio, subscrevendo as peças processuais que considere adequadas à prossecução da sua defesa sem a assinatura do defensor nomeado ou constituído, por maioria de razão não o poderá fazer um arguido que não é advogado».

Cfr. Também neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães de 6-2-2013, no processo 1508/09.8TAGMR.G1, bem como Acórdão da Relação de Lisboa de 10.2.2009, in CJ, tomo I, p. 164.

 Na verdade, e citando o referido Acórdão de Coimbra “ um individuo pode ser exímio condutor, mas se não estiver legalmente “encartado”, não pode conduzir veículos motorizados na via pública.

Pelo exposto, por falta de legitimidade, e consequentemente, por inadmissibilidade legal da instrução, não admito a abertura da fase da instrução.

Desde já se consigna que o pedido de substituição de defensor, seja por parte do arguido ou do ilustre advogado, não interrompe o prazo em curso – seguindo-se a argumentação do douto Acórdão da Relação de Coimbra de 18-12-2013, relatado pela Ex.ma Juiz Desembargadora Drª Olga Maurício, acessível in www.dgsi.pt

Registe e notifique sendo o arguido, MP e ilustre defensor. Após transito devolva ao MP. “

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Inconformado com o assim decidido, veio o arguido agora pela mão da Ex.ma Defensora Oficiosa, interpor recurso, despedindo a respetiva motivação com as seguintes

Conclusões

1 O Arguido ao ser notificado da Acusação e não concordando com a mesma, elaborou um Requerimento de Abertura de Instrução e assinou-o, logo o mesmo não foi subscrito por Advogado.

2 O Requerimento de Abertura de Instrução foi enviado para Tribunal;

3 O Ex.mo Senhor Doutor Juiz proferiu despacho de inadmissibilidade legal da instrução por ilegitimidade do Arguido;

4 O Arguido não se conformando com o douto despacho, pretende recorrer com base nos seguintes argumentos;

5 O Código de Processo Penal consagra no seu artigo 98º, cujo título é - Exposições, memoriais e requerimentos, no nº1 o seguinte: “ O Arguido, ainda que em liberdade, pode apresentar exposições, memorandos e requerimentos em qualquer fase do processo, embora não assinados pelo defensor, desde que contenham dentro do objecto do processo ou tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais. As exposições, memoriais e requerimentos do arguido são sempre integradas nos autos”

6 O próprio artigo 287º prevê no número 1 o seguinte: “ A abertura de Instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação, ou do seu arquivamento:

a) Pelo ARGUIDO---“, no número 4 deste mesmo artigo consagra de que “ No despacho de abertura de instrução o Juiz nomeia defensor ao Arguido que não tenha advogado constituído ou defensor nomeado

7 O artigo 64º do Código de Processo Penal discrimina quais os atos em que é obrigatória a assistência de Defensor neles não se encontrando o requerimento de abertura de instrução.

8 A falta de assistência de Defensor Oficioso no requerimento de abertura de instrução não justifica, contudo, a rejeição sem mais da instrução, sob pena de ilogismo: se a assistência do defensor visa proteger o Arguido, a falta daquela não pode justificar sem mais uma agravação da posição processual deste.

9 Apresentado requerimento para abertura da instrução apenas subscrito pelo Arguido, deve este e o seu Defensor Advogado serem notificados para, em 10 dias, juntarem aos autos requerimento com ratificação do processado subscrito pelo Defensor Advogado, sob pena de rejeição da instrução, por inadmissibilidade legal desta.

*

O recurso foi admitido.

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O Ministério Público junto do tribunal recorrido apesar de notificado para o efeito, não apresentou resposta. 

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O Ex. mo Juiz, mandou juntar aos autos a certidão da sentença onde foi decretada a interdição por anomalia psíquica do arguido, bem como do despacho que considerou verificados os pressupostos subjacentes decidiu mante-lo internado num estabelecimento psiquiátrico, 

Juntos estes elementos, sustentou tabelarmente a decisão recorrida, determinou o envio dos autos para este Tribunal.

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Recebido o processo de recurso neste Tribunal, o Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, sufragou o teor do despacho recorrido, concluindo nos seguintes termos:

Atendendo ao teor do mesmo requerimento que para além da incompetência territorial, já tratada nos autos, se limita a discordar da qualificação jurídica, sem que aponte quaisquer diligências probatórias ou elementos probatórios, também teria de ser rejeitado nos termos do art.º 287º nº3 do COO já que, nenhuma razão se vislumbra pata a impugnação do despacho recorrido por banda do arguido recorrente.

 *

 Delimitação do recurso:

É consensual quer na doutrina quer na jurisprudência que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades e vícios a que se reporta o artº 410º do CPP.

Pois bem, a questão posta à nossa consideração, apesar do emaranhado do processo que constitui estes autos em separado, resume-se a saber se o arguido pode por si só apresentar requerimento para abertura da instrução, e se apresentado nestes termos, deve ser ratificado o processado por parte do seu defensor.

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Conhecimento do recurso

Entende o arguido/ recorrente que a norma constante do nº1 do artº 98º do CPP[i] lhe permite apresentar requerimento para a abertura da instrução.

Mas, sem razão.

A norma invocada descende da que consta do artº 52º nº1 da Constituição que confere aos cidadãos o direito de petição e tem em vista permitir ao arguido através da sua intervenção pessoal que a autoridade judiciária possa tomar conhecimento de elementos relevantes para a sua defesa, não colidindo nem substituindo a intervenção de advogado nos actos processuais consagrados na lei processual penal.

Com efeito, a faculdade que o arguido tem de intervir no processo e de se dirigir diretamente à autoridade judiciária transmitindo informações ou formulando petições que considere relevantes para o exercício do seu direito de defesa, constitucionalmente consagrado no artº 32º nº1 da Constituição, dirige-se essencialmente à consagração do princípio do direito de intervenção probatória, e não serve - não pode servir - para que substitua o seu defensor, que o deve acompanhar obrigatoriamente nos actos a que se reporta o nº1 do art.º 64º do CPP, designadamente desde que contra si seja deduzida acusação, nº2 do mesmo preceito legal.

Resulta daqui, que depois de ser deduzida acusação, ou seja, aquando do pedido de instrução pelo arguido que sobre a mesma recaí, ele tem de estar obrigatoriamente assistido por advogado, citado artº 64º nº2.

Por outro lado, de harmonia com o disposto no artº 63º nº1, o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este.

Por último, como se escreve no Ac. do STJ de 25.09.2008, proc. 2300/08- 3ª sec[ii]., referindo-se à norma invocada pelo recorrente: “ Tal direito de petição não serve para que o arguido substitua a intervenção do respectivo advogado, devendo ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar, nomeadamente naqueles em que se colocam especiais exigências de rigor jurídico.

Da convocação destas três normas, artº 63º, 64º e 98º, tendemos para uma solução eclética e casuística do caso que nos ocupa, ou seja, o requerimento para abertura de instrução pode ser subscrito pelo próprio arguido quando relatar unicamente questões de facto, traduzidas estas por acontecimentos naturalísticos e suas provas, mas não já quando envolva questões de direito suscitadas por aquelas que convocam conhecimentos jurídicos.

Mas, mesmo que as questões invocadas no requerimento sejam de facto, a sua defesa em juízo tem de ser feita por advogado, - que intervém obrigatoriamente no debate instrutório art.º 64º nº1 al. c) - pois só este pode ter intervenção processual nos actos de instrução, v.g. sugerir questões às testemunha oferecidas, e fazer o enquadramento legal que se impõe, daí a necessidade de o defensor ratificar o requerimento formulado apenas pelo arguido, como se defendeu entre outros no Ac.TRE de 24.09.2013, proc. 599/09.6taolh – Relator Proença da Costa, disponível em www.dgsi.pt [iii].

Tudo isto porque o instituto da defesa não é estabelecido ou consagrado apenas em favor do arguido, mas também para garantir o bom funcionamento da justiça, interesse de ordem pública, cuja prossecução só se consegue com uma participação processual isenta e desapaixonada, sendo esta a razão principal da intervenção de advogado e não do próprio interessado, nos actos processuais.

Por outro lado, destinando-se a instrução a comprovar factos (nº1 do artº 287), não é possível requerê-la apenas para discutir a qualificação jurídica dos que constam da acusação, discussão que terá a sua sede em julgamento[iv]

Volvendo ao caso dos autos, verifica-se que o arguido no seu requerimento, não invoca factos naturalísticos susceptíveis de infirmarem a acusação pública que foi contra ele deduzida, mas enreda-se em questões de direito desde a incompetência territorial do tribunal por o ofendido ser magistrado, aliás de pronto resolvida, passando pela arguição de nulidade de todo o processo por ter sido constituído arguido duas vezes o que, na sua tese, resulta que nunca se possa determinar os prazos de prescrição e de suspensão (?!), conexão deste com outros processos, acabando por discutir os elementos do tipo dos crimes pelos quais foi acusado, tudo questões que extravasam manifestamente as questões de facto com o âmbito que supra lhes foi assinalado, e que como foi dito não podem constituir objecto de abertura de instrução, a imporem o indeferimento do referido requerimento.

Ademais, sendo as questões invocadas do domínio do direito, o recorrente não indica, nem se vê como o pudesse fazer, quaisquer diligências a efetuar, e não se vislumbra que actos instrutórios poderiam ser levados a cabo, pelo que também por este prisma o requerimento está votado ao insucesso, por não ser admissível, nos termos do nº 3 do artº 287º.

 Como, com inteiro acerto, refere a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta no seu Parecer, «ainda se admissível fosse a abertura de instrução, nos termos requeridos sempre, importará acentuar que “o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução” (artº 288º nº4), ou seja, é o teor do requerimento de abertura de instrução que baliza o âmbito e limites da intervenção do juiz de instrução e que, no caso concreto, nada havia para investigar.

Donde, sempre aquele requerimento teria como destino, a rejeição da requerida instrução, nos termos do artº 287º nº3 do CPP já que, na nossa perspectiva, nenhuma razão se vislumbra para a impugnação do despacho recorrido, por banda do arguido/recorrente.»

Conclui-se assim que o requerimento não pode ser recebido do ponto de vista da sua autoria, por não ter sido subscrito por advogado, porque extravasa o âmbito que permite ao arguido pessoalmente requerer a instrução, como também não é admissível na vertente substancial, porque não contém factos, limitando-se a invocar questões de direito, que por si sós não podem ser objecto de instrução.

Assim, e sem mais, indefere-se por inadmissível, o requerimento para abertura da instrução de que se recorre.

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se improcedente o recurso e confirma-se o despacho recorrido devendo o processo prosseguir os seus trâmites em conformidade.

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Custas pelo arguido com a taxa de justiça que se fixa em 3 UC.

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Coimbra, 3 de Junho de 2015

 

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)


[i] Como serão todos os que doravante se indicarem sem menção de diploma.
[ii]  Citado no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pág. 332
[iii] Não se aceitando, no entanto, o argumento extraído do nº4 do art.º 287º do CPP,  para dizer que a instrução pode ser requerida pessoalmente pelo arguido. Isto porque os casos aí previstos são os de a instrução ser requerida pelo assistente, porque nos restantes, tem de haver acusação pública, particular, ou ambas (artº 285º nº4) e havendo acusação vigora o nº 3 do art.º 64º, ou seja, depois deduzida acusação tem de ser nomeado defensor oficioso ao arguido.
[iv] Cfr. Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pág. 1002, nota 5.