Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
830/19.0T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
FALTA DE INQUÉRITO
NULIDADE INSANÁVEL
INSUFICIÊNCIA DE INQUÉRITO
Data do Acordão: 02/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 72.º, N.º 2, 119.º, AL D), E 120.º, N.º 2, AL. D), DO CPP; ART. 218.º DO CP
Sumário: I – A “falta de inquérito” a que se reporta a alínea d) do artigo 119.º do CPP ocorre quando se verifica ausência absoluta de inquérito ou de actos de inquérito, situação que não se confunde com a “insuficiência de inquérito”, reconduzindo-se esta figura à nulidade relativa prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do mesmo diploma legal, traduzida, não já na ausência total da dita fase processual, mas, tão só, na omissão de certos actos legalmente obrigatórios.

II - Salvo nos casos em que for evidente, manifesto, em face da denúncia, não serem os factos denunciados – cuja qualificação não se impõe ao denunciante – susceptíveis de integrar qualquer crime ou, sendo-o, a prossecução da acção penal revelar-se, em função v.g. da extinção do direito de queixa, da prescrição do crime, de amnistia, inquestionavelmente comprometida, verifica-se falta de inquérito quando o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem que seja realizada qualquer diligência.

III – Tendo sido proferido despacho de arquivamento - fundado na inadmissibilidade legal do procedimento criminal, sustentada na falta de legitimidade do MP para o exercício da acção penal, em consequência da renúncia ao direito de queixa (cfr. artigo 72.º, n.º 2, do CPP) -, em relação ao qual o assistente se insurgiu, requerendo a abertura da instrução, a ausência de qualquer diligência de inquérito tendente a considerar, à luz das diferentes circunstâncias qualificativas contempladas no artigo 218.º do CP, a existência de suficientes indícios de um crime de natureza pública, consubstancia a nulidade prevista na alínea d) do artigo 119.º do CPP.

Decisão Texto Integral:




Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 830/19.0T9LRA, provindo do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Leiria – Juízo Inst. Criminal – Juiz 3, finda a fase de inquérito o Ministério Público, entendendo carecer de legitimidade para o exercício da ação penal, por inadmissibilidade legal do procedimento, determinou o arquivamento dos autos – [cf. fls. 24 a 25].

2. Requereu, então, o denunciante a sua admissão a intervir nos autos como assistente e, bem assim, a abertura da instrução, pugnando pela pronúncia a final dos denunciados (…) e (…) pela prática de um crime de burla qualificada – [cf. fls. 28 a 32].

3. Por despacho judicial proferido em 10.07.2019 veio o requerimento de abertura da instrução a ser rejeitado, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b) e 287.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, por inadmissibilidade legal.

4. Inconformado recorreu o assistente, formulando as seguintes conclusões:

1. O ora Recorrente requereu a Abertura de Instrução com base na discordância face ao arquivamento do Ministério Público, em que, no entendimento deste, se estaria perante um crime particular e não de um crime público, como é convicção do Recorrente;

2. Entende o Recorrente que se está perante um crime público, não dependente de queixa ou acusação -, por se tratar de um crime de burla qualificada – em razão do valor do prejuízo e portanto, entende que não renunciou a qualquer direito de queixa ou acusação;

3. O Recorrente requereu a abertura da instrução para que se determinasse se se estava ou não diante de um crime de burla qualificada e, como tal, dependente de simples denúncia, e, consequentemente, não tendo renunciado a qualquer direito com a dedução do pedido cível prévio;

4. O Tribunal a quo quer impor ao Recorrente, enquanto participante/denunciante que faça mais do que lhe compete, indicando autorias, lideranças, poderes de autoridade, etc. Mas, entende o Assistente, não lhe caber tal função;

5. Mais, relatou o Recorrente na sua participação e no seu RAI tudo quanto sabia.

6. Concretamente, e contrariamente ao aduzido pelo Tribunal a quo, o Recorrente enumerou/narrou os factos que entende ter de estar por base de uma acusação.

7. Mais, no RAI, aplicou e enumerou as normas aplicáveis ao caso em análise e mostrando o porquê de se dever considerar a burla como qualificada e, como tal, pronunciar-se os Arguidos.

8. Não parece ao Recorrente fazer sentido os argumentos aduzidos, quando queria, e quer, o Recorrente ver discutida em instrução a questão de saber se se está perante um crime público ou particular, dependente de denúncia ou acusação particular.

9. Não se poderá acolher o argumento de que o Recorrente não autonomizou os argumentos de facto e de direito, porquanto, e embora não estando sujeito a qualquer forma, o Recorrente no seu RAI elencou 36 factos, tendo de seguida elencado as normas de direito aplicáveis, como se verá;

10. O RAI do Recorrente continha todos os factos que imputava aos Arguidos e que consubstanciam, na sua opinião crime público, bem como, elencou todas as normas que hajam de ser aplicadas.

11. O ora Recorrente apresentou o seu RAI ao abrigo do artigo 287.º do CPP, cumprindo com o prescrito no seu n.º 2 e, consequentemente com o artigo 283.º, n.º 3, al. b) e c) do CPP;

12. Discorda o Recorrente com o Tribunal a quo porquanto contrariamente a este, o Recorrente considera ter feito uma narração dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena, incluiu na medida do possível – conforme prevê a lei – o lugar, o tempo e a motivação da prática.

13. Não lhe sendo exigido que adivinhe mais do que sabe, nem qualquer formalidade especial. O que fez o Recorrente, indicando os factos de que tinha efetivo conhecimento. Tudo conforme o artigo 283.º, n.º 3, al. b), por remissão do art.º 287.º, n.º 2 do CPP.

14. Mais fez, indicando as disposições legais aplicáveis, ou seja, no seu RAI o Recorrente indicou as normas que considerava aplicarem-se ao caso, em concreto o artigo 218.º, conjugado com o artigo 217.º e ainda o artigo 202.º, al. a) do CP.

15. Pretende o Recorrente a qualificação do crime de burla, por conta do prejuízo elevado e, como tal, a consideração do mesmo como crime público.

16. E, consequentemente, que se declare que o Recorrente não tenha renunciado ao direito de queixa por não aplicação do 72.º e 116.º do CP.

17. Assim, contrariamente ao alegado na douta sentença do Tribunal a quo, o Recorrente cumpriu com os requisitos do artigo 287.º, n.º 2 e artigo 283.º, n.º 3, al. b) e c) do CPP, pelo que, decidiu mal aquele Tribunal, devendo a decisão ser revogada e declarada aberta a instrução;

18. Andou mal o Tribunal a quo em decidir como decidiu, urgindo ponderação e decisão diversa da que se plasmou na sentença recorrida.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, ser admitido o requerimento de abertura de instrução.

5. Foi proferido despacho de admissão do recurso – [cf. fls. 50].

6. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

A – Através do seu recurso, o recorrente/assistente vem reagir contra o despacho da Mm.ª Juiz de Instrução por inadmissibilidade legal (art.º 287.º, n.º 3, do CPP);

B – A não admissão do requerimento para abertura de instrução alicerça-se corretamente, no disposto no art.º 287.º, n.º 3, do CPP, ou seja, na inadmissibilidade legal da instrução;

C – Na realidade, o requerimento de abertura de instrução não contém os elementos referidos nos artigos 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP;

D – No RAI, o assistente enumera as suas razões de discordância relativamente ao arquivamento dos autos e tira conclusões quanto à análise da prova;

E – Porém, a descrição dos elementos de facto que caracterizam o crime de burla qualificada é muito “esparsa”;

F – Parafraseando a Mm.ª Juiz “Não são alegados factos integradores da intenção inicial de provocar engano, não alega que (…) sabia dos defeitos do veículo e omitiu-os deliberadamente ao assistente, com intenção de o enganar. Também não alega factualidade integradora da astúcia no provocar desse engano …”.

G – Também no RAI não se descreve a consciência da ilicitude e o conhecimento da proibição e punição por parte dos suspeitos.

H – O assistente pretende imputar a prática de um crime a dois arguidos sem mencionar se existe coautoria ou autorias singulares.

I – Para o caso da “coautoria”, não se faz alusão ao eventual plano conjunto e atuação concertada dos arguidos para concretizarem aquele plano.

J – Os arguidos são uma pessoa coletiva e uma pessoa singular. Contudo, o assistente não descreve “quem, ocupando uma posição de liderança, agiu em nome da pessoa coletiva ou no interesse coletivo desta ou quem agiu sob a autoridade de uma tal pessoa em virtude de violação de deveres de vigilância ou controlo que lhe cabia”.

K – Ora, o requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição, determinação do âmbito e limites da intervenção do juiz de instrução;

L – Não constando do RAI a descrição os elementos referidos nos artigos 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP o conteúdo da instrução encontra-se vazio;

M – Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º 2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamental a aplicação de uma pena ao arguido;

N – A omissão narrativa dos concretos factos fundamentadores da aplicação ao arguido duma pena ou duma medida de segurança, gera uma verdadeira ineptidão e nulidade do requerimento de instrução, tornando juridicamente impossível a realização da fase instrutória, por falta de objeto;

O – O que conduz à rejeição do requerimento para abertura da instrução.

Termos em que deverá o recurso ser declarado improcedente, mantendo-se inalterada a douta decisão recorrida.

Assim se fazendo JUSTIÇA.

7. O Exmo. Procurador da República emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

8. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, reagiu o recorrente defendendo a procedência do recurso.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, se delimita o objeto do recurso, no caso em apreço cabe decidir se o requerimento para abertura da instrução cumpre os requisitos contemplados no n.º 3 do artigo 283.º, aplicáveis ex vi do n.º 2 do artigo 287.º, ambos do CPP.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise [transcrição]:

Porque tem legitimidade, requereu em tempo, está devidamente representado por advogadas e dispensado do pagamento da taxa de justiça devida, admito (…) a intervir nos autos como assistente (artigos 68º, n.º 1, al. a), n.º 3 e n.º 4, 70º, n.º 1 e 519º, n.º 1, todos do C. P. Penal).

Notifique.


*

Tendo em vista comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público de não acusar, o assistente (…) apresentou requerimento de abertura da instrução (RAI) visando a pronúncia «(…) dos participados pela prática do crime de burla qualificada (…)». Os “participados” são (…) e (…).

Como é consabido, a atividade do juiz em sede de instrução está sempre balizada pelas razões de facto e de direito alegadas no RAI. Se o que se contesta é uma acusação ou a decisão de acusar, o balizamento, o objeto processual, obtém-se do cotejo desta com as razões de discordância do requerente; se o requerente não se conforma com a decisão de arquivar, então incumbe-lhe produzir no seu libelo introdutório todos os elementos constitutivos da acusação que pretende ver reproduzida num despacho de pronúncia.

Assim, impõe o n.º 2 do artigo 287º do C. P. Penal que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contenha os requisitos exigidos para a acusação nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do mesmo código, isto é, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e a indicação das disposições legais aplicáveis.

O que vale por dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente deve constituir substancialmente uma acusação, com todos os requisitos exigidos para esta, só podendo a decisão instrutória recair sobre os factos indicados, em ordem a subsumi-los nas disposições legais igualmente indicadas. Posição que, na atualidade é consensual, doutrinal e jurisprudencialmente.

No caso dos autos, ao longo do RAI, mesclada com a enumeração das razões de discordância do assistente com o despacho de arquivamento, de argumentos de direito, de conclusões quanto à análise da prova, existe esparsa descrição de elementos de facto que deveriam ter sido autonomizados e enquadrados na “acusação alternativa” que ao assistente se impunha deduzir.

Ao RAI apresentado aplica-se integralmente o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2017[1]:

 «(…) 1 - No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objetivos e subjetivos – sem adjetivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio.

2 - E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem.

3 - Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito.

4 - É jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

5 - Apesar de o direito ao juiz da assistente ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido (…)».

Ainda que assim não fosse e coubesse ao Juiz de Instrução fazer o que o assistente não fez, colhendo ao longo de tudo quanto é alegado no RAI o que é alegação de factos imprescindíveis à prolação de despacho de pronúncia, o resultado final não serviria este desiderato. Desde logo, porque se pretende imputar a prática de crime a dois arguidos sem se explicar se estão em causa autorias singulares autónomas ou complementares, se existe coautoria, inexistindo qualquer descrição de plano conjunto e atuação concertada ao abrigo do mesmo. Depois, importa ter presente que o “primeiro participado” é uma pessoa coletiva, cuja responsabilização criminal dependeria da demonstração dos requisitos impostos no n.º 2 do artigo 11º do C. Penal, não descrevendo o assistente quem, ocupando uma posição de liderança, agiu em nome da pessoa coletiva ou no interesse coletivo desta ou quem agiu sob a autoridade de uma tal pessoa em virtude de violação de deveres de vigilância ou controlo que lhe cabia. O assistente trata a pessoa coletiva como se fosse singular, personificando comportamentos, dizendo que a pessoa coletiva tratou, referiu, afirmou, agiu com intenção de o enganar, sabia estar a fazê-lo, etc. Algo que, manifestamente, não é factual. O assistente não alega factos integradores da intenção inicial de provocar engano, não alega que (…) sabia dos defeitos do veículo e omitiu-os deliberadamente ao assistente, com intenção de o enganar. Também não alega factualidade integradora de astúcia no provocar desse engano, alegando meras garantias verbais que, na sua tese, se mostraram não corresponderem à realidade. O que o assistente descreve, no essencial, é uma venda de coisa defeituosa, replicando em processo penal a ação cível que alega ter já instaurado. Tal realidade não corresponde à integradora de crime de burla, sendo, pois, a alegação do assistente manifestamente insuficiente para poder sustentar um despacho de pronúncia. Finalmente, sem preocupações de exaustão, note-se que no RAI não se descreve que “os participados” (ou qualquer deles) agiram com consciência da ilicitude, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal, sendo que «(…) a consciência da ilicitude - conhecimento e consciência de que a conduta é proibida e punida por lei – deve constar do RAI apresentado pelo assistente, sob pena de não ser admissível a instrução. (…) Tal falta não é suprível pelo juiz (…)»[2].

Mesmo que resultasse suficientemente indiciado tudo quanto alega o assistente no RAI, a factualidade aí narrada não poderia sustentar, por insuficiência e falta de concretização, um despacho de pronúncia. Ora, não podendo aditar-se a factualidade em falta, sob pena de nulidade (artigo 309º, n.º 1, do C. P. Penal), a instrução constituiria um ato inútil, uma vez que nunca poderia culminar com a pronúncia pretendida.

Resta pois concluir ser o requerimento de abertura de instrução dos assistentes legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento, inexistindo fundamento legal para prévio convite ao aperfeiçoamento do mesmo.

Tal entendimento foi consagrado como jurisprudência obrigatória através do Acórdão n.º 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR- Iª -Série -A, de 04/11/2005, nos seguintes termos: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Termos em que, face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 287º, n.ºs 2 e 3, ambos do C. P. Penal, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (…) por inadmissibilidade legal da instrução.

Sem custas.

Notifique e, após trânsito em julgado do decidido, devolva ao Ministério Público, uma vez que, rejeitado o RAI, o processo nunca deixou de ser de inquérito.

3. Apreciação

Não se conforma o recorrente com o despacho que, considerando a inadmissibilidade legal da instrução, rejeitou a respetiva realização.

Invoca, em síntese, haver requerido a abertura da fase processual em questão “com base na discordância face ao arquivamento do Ministério Público, em que no entendimento deste, se estaria perante um crime particular e não um crime público”, aduzindo “não lhe caber a função” que o tribunal a quo lhe “quer impor”, “enquanto participante/denunciante que faça mais do que lhe compete, indicando autorias, lideranças, poderes de autoridade, etc.”, sendo certo que “relatou”, quer na sua participação, quer no RAI tudo quanto sabia, tendo, assim, observado o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 283.º do CPP, ex vi do artigo 287.º, n.º 2 do mesmo compêndio normativo.

Vejamos, pois.

Que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a uma forma especial resulta claro da primeira parte do n.º 2 do artigo 287º do CPP.

Não obstante, deve obedecer a vários requisitos de conteúdo que vem enunciados na dita norma, a saber:

(i) a enunciação “em súmula” das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação;

(ii) a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende ver levados a cabo, bem como dos meios de prova que não hajam sido considerados no inquérito e ainda dos factos que, através de uns e de outros, espera provar; sendo o requerimento apresentado pelo assistente tem o mesmo, igualmente, de observar o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP.

Donde, com propriedade, se pode afirmar que o requerimento do assistente deve conformar materialmente uma acusação [artigo 287º, n.º 2, parte final], impondo-se-lhe, sob pena de nulidade, que contemple os elementos enunciados nas referidas alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, isto é “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e, bem assim, “A indicação das disposições legais aplicáveis”.

O requerimento de abertura de instrução vale, neste caso, como uma verdadeira acusação, sendo através dele que se define o thema probandum em termos de não poder o tribunal, sob pena de nulidade, vir a pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles que constam do mesmo, uma vez que tal se traduziria numa alteração substancial, aspeto que encontra justificação, desde logo, no direito de defesa, o qual para ser exercido de forma eficaz, implica o conhecimento concreto e preciso daquilo que se lhe imputa e a que título, isto quer ao nível dos factos quer em sede do respetivo enquadramento jurídico.

Na verdade, a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa leva a que o tribunal esteja vinculado pelo “alegado” por quem requer a instrução, sem embargo dos poderes de investigação do juiz, que podendo praticar outras diligências probatórias, tendo em conta a indicação constante do respetivo requerimento [princípio da investigação oficiosa], está, nessa atividade, sujeito aos limites do objeto da instrução fixados no requerimento de abertura de tal fase processual no caso de arquivamento do inquérito [artigo 303º do CPP].

Isto dito, analisando o requerimento em causa importa concluir pelo bem fundado do despacho recorrido quando, justificando a insuficiente narração dos factos, consigna: “Desde logo, porque se pretende imputar a prática de crimes a dois arguidos sem se explicar se estão em causa autorias singulares autónomas ou complementares, se existe coautoria, inexistindo qualquer descrição de plano conjunto e atuação concertada ao abrigo do mesmo. Depois, importa ter presente que o “primeiro participado” é uma pessoa coletiva, cuja responsabilização criminal dependeria da demonstração dos requisitos impostos no n.º 2 do artigo 11.º do C. Penal, não descrevendo o assistente quem, ocupando uma posição de liderança, agiu em nome da pessoa coletiva ou no interesse coletivo desta ou quem agiu sob a autoridade de uma tal pessoa em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo que lhe cabia. O assistente trata a pessoa coletiva como se fosse singular, personificando comportamentos, dizendo que a pessoa coletiva tratou, referiu, afirmou, agiu com intenção de o enganar, sabia estar a fazê-lo, etc. Algo que, manifestamente, não é factual. O assistente não alega factos integradores da intenção inicial de provocar engano, não alega que (…) sabia dos defeitos do veículo e omitiu-os deliberadamente ao assistente, com a intenção de o enganar. Também não alega factualidade integradora de astúcia no provocar desse engano, alegando meras garantias verbais que, na sua tese, se mostraram não corresponderem à realidade. […] Finalmente, sem preocupações de exaustão, note-se que no RAI não se descreve que os “participados” (ou qualquer deles) agiram com consciência da ilicitude, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal, sendo que «(…) a consciência da ilicitude – conhecimento e consciência de que a conduta é proibida e punida por lei – deve constar do RAI apresentado pelo assistente, sob pena de não ser admissível a instrução (…) Tal falta não é suprível pelo juiz (…)”.

Com efeito, o dito requerimento (RAI) apresenta “lacunas”, as quais, pelos motivos invocados a propósito do respetivo conteúdo se apresentado pelo assistente na sequência do arquivamento decretado pelo titular da ação penal, não podem ser colmatadas pelo juiz de instrução.

Contudo, no caso em apreço suscita-se a questão de saber se ocorre a nulidade insanável, por conseguinte de conhecimento oficioso, resultante da falta de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do CPP).

Na verdade, compulsados os autos constata-se que entre a apresentação da denúncia (registada como inquérito em 15.03.2019) e o despacho de arquivamento não foi realizada qualquer diligência; mais concretamente a primeira intervenção do Ministério Público no processo, enquanto titular da ação penal, materializou-se no arquivamento, decretado em 27.03.2019.

É, em princípio, de concluir pela falta de inquérito, situação que se verifica perante a inexistência de facto ou de direito dessa fase processual – [cf. acórdão do STJ de 11.07.2007 (proc. n.º 07P1610)], quando o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem que seja realizada qualquer diligência. Dizemos em princípio pois, conforme se vem entendendo semelhante “regra” não há-de colher aplicação nos casos em que for evidente, manifesto, em face da denúncia, não serem os factos denunciados – cuja qualificação não se impõe ao denunciante – suscetíveis de integrar qualquer crime ou, sendo-o, a prossecução da ação penal revela-se, em função v.g. da extinção do direito de queixa, da prescrição do crime, de amnistia, inquestionavelmente, comprometida. Já quando, como refere o acórdão do TRC de 16.03.2011 (proc. n.º 3664/09.6TACBR.C1) “estamos perante factos (…) que nos oferecem dúvidas pela sua complexidade, pelos valores em causa, pelos contornos da situação que não são tão simples como se desenham na denúncia (…), significa que estão reunidos todos os pressupostos do dever de investigar a começar pelo interrogatório do arguido.”

Ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, compete investigar sobre a existência do crime, a identidade dos seus agentes, a respetiva responsabilidade, recolhendo provas, levando a cabo o conjunto de diligências tendentes a apurar tais elementos – [cf. artigos 262.º e 267.º do CPP]. Constituindo o inquérito uma fase obrigatória do processo, legalmente atribuída ao Ministério Público, impõe-se-lhe a realização pelo menos dos atos de inquérito obrigatórios, como seja, caso se revele possível, o interrogatório do arguido – [cf. artigo 272.º do CPP].

Significa, pois, que a “falta de inquérito” a que se reporta a alínea d), do artigo 119.º do CPP, ocorre quando se verifique ausência absoluta (total) de inquérito ou de atos de inquérito – [cf. Souto de Moura, inJornadas de Direito Processual Penal”, pág. 118; Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal”, Anotado, 1996, pág. 250]; situação que não se confunde com a “insuficiência do inquérito”, reconduzindo-se esta à nulidade relativa prevenida na alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP, traduzida não já na ausência total da fase processual em questão, mas tão só na omissão de certos atos legalmente obrigatórios. Aqui “existe” inquérito, não obstante se revele insuficiente por via de terem ficado por praticar atos da natureza assinalada.

Retomando o caso em apreço importa, assim, ajuizar se a detetada “falta de inquérito” conduz à nulidade insanável da alínea d) do artigo 119.º do CPP ou se, pelo contrário, encontramo-nos perante uma daquelas situações em que, logo em face da denúncia, resulta evidente, à margem de qualquer dúvida, que a investigação, v.g. as diligências de inquérito, se traduziriam, fosse qual fosse a perspetiva/posição adotada, em pura inutilidade, consubstanciando uma oneração, a todos os níveis injustificada, de meios humanos e materiais.

Quais foram, então, as razões que surgem a fundamentar o despacho de arquivamento?

A inadmissibilidade legal do procedimento, sustentada na falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, em consequência da renúncia ao direito de queixa por parte do ofendido, ora assistente.

Com efeito, tendo, exclusivamente, por referência a denúncia considerou o titular da ação penal que os factos, na mesma, relatados apenas seriam suscetíveis de configurar o crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal, isto em função de o valor do prejuízo patrimonial não exceder as 50 unidades de conta, e, em consequência, dada a natureza semi-pública do ilícito em questão (cf. n.º 3 do artigo 217.º do C. Penal), a prévia dedução do pedido de indemnização perante o tribunal civil, conforme disposto no artigo 72.º, n.º 2 do C. Penal valeria como renúncia ao direito de queixa.

Perscrutando a denúncia constata-se haver o ora assistente referido que, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que a conduta dos denunciados lhe causou, deu entrada da competente ação cível de condenação (proc. n.º 758/19.3T8LRA, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Cível de Leira, J1), havendo, contudo, computado os prejuízos sofridos em € 6.808,48 (seis mil, oitocentos e oito euros e quarenta e oito cêntimos).

Porém, o montante (cálculo) do prejuízo patrimonial referido na denúncia eventualmente causado pelos factos imputados aos denunciados, não mereceu a concordância do Ministério Público que antes os considerou, como já referido, em valor inferior a 50 unidades de conta, donde a decisão de arquivamento, sustentada na natureza semi-pública do crime conjugada com o n.º 2 do artigo 72.º do CPP.

E foi precisamente por divergir do entendimento do titular da ação penal quanto ao montante do prejuízo patrimonial relevante à configuração do ilícito em questão, pretendendo vê-lo “discutido”, com as consequências daí decorrentes que o assistente requereu a abertura da fase da instrução.

Não merecendo, a nosso ver, dúvida que o RAI não observa os requisitos do n.º 3, do artigo 283.º, ex vi do n.º 2, do artigo 287.º, ambos do CPP e, como tal, nos termos sobreditos, a instrução se revela inexequível, também não temos qualquer hesitação em considerar que, perante as circunstâncias, se verifica a nulidade insanável de falta do inquérito, a qual, sendo de conhecimento oficioso, podia e devia ter sido declarada (artigo 119.º, alínea d), do CPP).

É que para além de não se tratar de questão incontroversa, bastando para tanto concluir atentar na divergência entre o cômputo do prejuízo patrimonial apresentado pelo denunciante/assistente e o considerado no despacho de arquivamento, a qualificação do crime de burla não opera exclusivamente em função da qualificativa “valor elevado” (cf. artigo 218.º do C. Penal), cabendo ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, perante a denúncia apresentada proceder de facto à realização do inquérito - não sufragando nós a aposição de quem defende bastar para tanto o respetivo registo e autuação enquanto tal – com a realização das diligências de prova, designadamente as indicadas pelo denunciante e todas as que, por força da lei, constituem sua atribuição, por forma a permitir-lhe tomar posição, nomeadamente, no sentido de afastar, ou não, à luz das diferentes circunstâncias qualificativas contempladas no artigo 218.º do Código Penal, a existência de suficientes indícios de um crime de natureza púbica, sendo certo que a denúncia não tem de qualificar jurídico penalmente os factos, tão pouco, através da mesma, se opera qualquer vinculação temática, que apenas ocorre com a acusação ou o requerimento de abertura da instrução.

Em suma, verifica-se a nulidade da falta de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do CPP).

III. Dispositivo

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar verificada a nulidade insanável da falta de inquérito (artigo 119.º, alínea d) do CPP) e, em consequência declaram nulo o despacho que determinou o arquivamento do inquérito, bem como todos os atos subsequentes, à exceção do despacho que admitiu o denunciante a intervir nos autos como assistente.

Sem tributação

Coimbra, 5 de Fevereiro de 2020  

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)

[1] Processo n.º 321/15.8PAPTM.E1, Relator Desembargador Gomes de Sousa. 

[2] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/02/2017, Processo n.º 2407/16.2T9PRT.P1, Relatora Desembargadora Maria Deolinda Dionísio.