Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
402/12.0TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
NULIDADE DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
SANEAMENTO DO PROCESSO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
JULGAMENTO
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE LEIRIA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 311.º DO CPP
Sumário: I - Uma eventual nulidade, qua tale, da acusação só pode ser apreciada na fase da instrução ou aquando do despacho a que se reporta o artigo 311.º do CPP.

II - Por sua vez, uma eventual nulidade, qua tale, do requerimento de abertura da instrução apenas pode ser conhecida durante a instrução, com termo final na decisão instrutória, ou no momento do artigo 311.º do CPP, ao abrigo do seu n.º 1 e não já do n.º 2, mostrando-se, naturalmente, excluída a possibilidade de rejeição do requerimento de abertura da instrução já anteriormente admitido.

III - Ultrapassada a fase de controlo da acusação ou do requerimento de abertura da instrução, por efeito da preclusão, a consequência da deteção de um vício congénito naquelas peças processuais há-de conduzir, em sede de sentença, a veredicto de absolvição.

Decisão Texto Integral:


Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 402/12.0TAPBL da Comarca de Leiria, Leiria – Inst. Local – Secção Criminal –J1, foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, pronunciado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 09.02.2015, depositada na mesma data, o tribunal decidiu:

«Pelo exposto, nos termos das disposições legais supra referidas, julgo totalmente provada e procedente a pronúncia e, consequentemente, condeno o arguido A... pela prática, em autoria material na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 € (cinco euros), o que perfaz o montante global de 900,00 € (novecentos euros).

(…)»

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. O Sr. Juiz não deveria ter dado como provado os factos provados na sentença 1 a 36, por não se ter feito prova da mesma em audiência e julgamento.

2. Com base nas declarações da assistente e arguido, obtém-se uma versão, de que a sua conduta nunca foi dolosa, que a assistente manteve inscrição fiscal durante dez anos e omitiu rendimentos, não fazendo declarações.

3. Além de que o Tribunal ultrapassou os limites na livre apreciação da prova testemunhal e documental, nos termos do art. 128º, 129º e 355º do CPP, devendo ter dado como provado o inexistir de intenção dolosa do arguido em falsificar.

4. Os restantes documentos não foram confirmados na audiência, não tendo qualquer valor probatório, nos termos do n.º 1 do art. 355º do CPP.

5. Em nome do princípio in dubio pro reo o arguido deveria ter sido absolvido por falta de prova, nos termos do art. 32º nº 2 da CRP, 14º, n.º 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art.º 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia para proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e art.º 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

6. Além de que o Tribunal ultrapassou os limites da livre apreciação da prova testemunhal e documental, nos termos do art.º 128º, 129.º e 355º do CPP.

7. O tribunal violou os artigos 3º e 32º, n.º 2 da CRP, n.º 1 do art.º 355º do CPP, art. 128.º, nº 1 do CPP, art.º 129º, nº 1 e n.º 2 do CPP, n.º 2 do art.º 374.º do CPP, art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia para a proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e art.º 14º, n.º 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

8. Deveria o Tribunal, como único silogismo e corolário lógico objetivo acordado em absolver o arguido, face à falta de prova e presunção da sua inocência.

9. Deveria o Tribunal aplicar ao arguido uma pena diferente, nomeadamente, mais reduzida, atento o inexistir de precedentes, quanto ao mesmo.

Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada, absolvendo-se o arguido.

Assim se fará a devida Justiça!

4. Em simultâneo com a interposição do recurso da sentença requereu o arguido ao tribunal «a transcrição de toda a audiência e julgamento».

5. Requerimento, esse, indeferido por despacho judicial de 19.03.2015.

6. Uma vez mais inconformado, recorreu o arguido, concluindo:

III.1- Do requerimento do arguido de transcrição de gravação de prova e recusa do Juiz:

2. Foi requerido pelo arguido transcrição escrita da audiência e julgamento, que o Meritíssimo Juiz indeferiu, indevidamente.

3. Deveria o Meritíssimo juiz ter aceite conforme Assento/acórdão do Supremo Tribunal com o n.º 2/2003, de 16-01-2003 – “Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal” – D.R. I-A, n.º 25, de 30-01-2003.

III.2 - Da inconstitucionalidade e violação da legalidade do despacho do Meritíssimo Juiz:

3. O despacho viola claramente regras constitucionais, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º, da CRP.

III.3 - Das disposições legais violadas:

4. Foram violados os artigos 609.º, 615.º do CPC; artigos 116.º, nº 1 e 117-B, n.º 1 e 2 do CRP, 2078º do C.C., art. 30º, nº 3 do CPC, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º, da CRP.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos legais.

Assim se fará a devida justiça!

7. Em 08.04.2013, invocando uma nulidade insanável do requerimento para abertura de instrução, veio o arguido requerer «a inadmissibilidade legal da instrução e sua consequente extinção, anulando-se todo o processado a posteriori, por ser uma nulidade insanável.

8. Sobre o assim requerido incidiu o despacho judicial de 22.05.2015, que procedeu ao indeferimento da arguida nulidade.

9. Recorreu, então, o arguido, formulando as seguintes conclusões:

IV.2 - Da recusa na apreciação da nulidade do requerimento de abertura de instrução:

1. Veio o arguido alegar nulidades no requerimento de abertura da instrução, o requerimento de abertura de instrução não contém a identificação do arguido, o assistente limita-se a imputar os factos ao arguido, não sendo percetível no requerimento de abertura de instrução a identificação do arguido, e se pode reportar a alguns deles ou a todos.

2. Ora de acordo com o artigo 311º, n.º 3 a) do CPP, a acusação considera-se manifestamente infundada e, como tal, deverá ser rejeitada, quando não contenha a identificação do arguido, o que era o caso e deveria ter sido indeferida.

3. Assim, o requerimento de abertura de instrução, valendo como acusação, por ter sido requerido pelo assistente e não tendo a identificação do arguido é inexequível.

4. Pode ler-se no acórdão do Tribunal da relação de Évora de 27 de janeiro de 2011, em CJ, www.coletaneajurisprudencia.com, que o requerimento de abertura de instrução deve ter estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objetivos e subjetivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no art. 287º, n.º 3 do CPP.

IV.3 - Da inconstitucionalidade e violação do despacho do Meritíssimo Juiz

5. O despacho viola claramente regras constitucionais, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º, da CRP.

IV. 4 - Das disposições legais violadas:

6. Foram violados os artigos 609º, 615º do CPC; artigos 116º, nº 1 e 117-B, nº 1 e 2 do CRP, 2078º do C.C., art. 30º, nº 3 do CPC, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º, da CRP, e, artigos 8º, 311º, nº 3 a) do CPP, 302º, nº 1, 292º, 299º, do CPP.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos legais.

Assim se fará a devida justiça!

10. Por despacho exarado em 13.04.2015 foram os recursos interpostos da sentença e do despacho de 19.03.2015, admitidos.

Também, em 18.06.2015, veio a ser admitido o recurso interposto do despacho de 22.05.2015.

11. Ao recurso interposto da sentença respondeu o Ministério Público, concluindo:

Neste termos, deverá ser mantida a douta sentença recorrida, devendo ser julgado improcedente o recurso ora interposto pelo recorrente, tendo o Tribunal a quo apreciado corretamente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e subsumido a mesma ao direito aplicável, bem como a medida da pena se mostra adequada e proporcional ao caso, assim se fazendo a tão costumada Justiça!

12. Reagiu, igualmente, o Ministério Público ao recurso interposto do despacho de 19.03.2015, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

13. Por fim, respondeu o Ministério Público ao recurso interposto do despacho de 22.05.2015, pronunciando-se pela respetiva improcedência por não ocorrer qualquer nulidade, designadamente a invocada pelo recorrente.

14. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido dos recursos não merecerem provimento.

15. Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do CPP nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

16. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos

 Delimitando as conclusões o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento das questões de natureza oficiosa, cumpre decidir:

(i) Recurso do despacho de 22.05.2015:

Se ocorre a nulidade do requerimento de abertura da instrução.

(ii) Recurso do despacho de 19.03.2015:

Se deveria o tribunal a quo ter determinado a transcrição da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

(iii) Recurso da sentença:

Se,

- Incorreu o tribunal em erro de julgamento;

- Foi valorado depoimento indireto;

- Ocorreu violação do artigo 355º, nº 1 do CPP;

- Foi preterido o princípio in dúbio pro reo;

- A pena deveria ter sido diferente.

2. As decisões recorridas

Ficou a constar das decisões em crise:

A. Sentença [transcrição parcial]:

A – FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A assistente D... é natural da Ilha da Madeira, mais concretamente de (...) .

2. No início do ano de 2003, a assistente decidiu refugiar-se no continente em virtude de ser vítima de violência doméstica por parte do então marido, o que foi causa de perturbações emocionais propícias ao desenvolvimento de um quadro psiquiátrico com intensidade grave, que exigiu acompanhamento médico psiquiátrico e tratamento através de medicamentos antidepressivos, que lhe determinou incapacidade para o trabalho.

3. Desesperada, a assistente a partir de um anúncio publicado, numa revista contacta o arguido e este ajuda-a a vir para o continente, para com ele passar a residir.

4. De início a relação da assistente com o arguido aparentava alguma normalidade, sendo certo que apenas podia sair de casa na companhia deste e somente conhecia as pessoas que o arguido lhe apresentava, sem que deixasse, contudo, de desenvolver qualquer relação com terceiros.

5. Era o arguido quem efetuava e controlava todos os movimentos da conta bancária de que a assistente era titular junto do Banco Banif com o n.º (...) , porquanto lhe havia exigido a entrega do respetivo cartão de débito, assim controlando os atos da sua vida.

6. Antes da vinda da assistente para Portugal Continental, o arguido dedicava-se à atividade de prestação de serviços de assistência em viagem, de pronto socorro e de reparação automóvel, sob a designação comercial “ Z (...) de A...” nas instalações, junto da sua residência sitas na Rua (...) concelho de Pombal.

7. Em virtude do arguido ter dívidas e ser parte em processos judiciais, na sequência dos quais podiam ser penhorados bens, o mesmo evitava ter qualquer bem registado em seu nome, não exercia qualquer atividade declarada e não era titular de quaisquer contas bancárias.

8. O arguido, aproveitando-se do estado de doença da assistente e do ascendente que exercia sobre a mesma convenceu-a a contrair um empréstimo bancário, no valor de 10.000,00 € para aquisição de um veículo de pronto socorro, marca Toyota, Hyno, com a matrícula Q (...) , cujas prestações liquidou mas do qual nunca veio a ser possuidora.

9. E, prevalecendo-se da fragilidade da assistente, bem como do facto desta se encontrar coletada nas finanças desde o ano 2000, o próprio arguido requisitou livros de faturas de modo a que pudesse continuar com a atividade descrita em 6), sob a designação de “ K... de D...”.

10. A requisição das faturas pese embora em nome da assistente, encontra-se rubricada pelo próprio arguido, por ter sido este a solicitar a respetiva emissão.

11. Contudo, por diversas vezes, o arguido exigia à assistente que esta preenchesse as faturas aludidas em 9), de acordo com orientações dadas pelo mesmo, para serem apresentadas aos clientes.

12. Para a prossecução da atividade o arguido utilizava a conta bancária da titularidade da assistente, a qual não tinha acesso à mesma, desconhecendo totalmente os valores nela debitados ou creditados, durante o período em que viveu com aquele.

13. O clima de tensão entre arguido e assistente foi-se acentuando, agudizado com a circunstância de as filhas daquele terem passado a viver na mesma casa e o controlo da vida da assistente ser cada vez mais intenso, acompanhado de ameaças de agressões.

14. Todas as atividades diárias da assistente eram controladas pelo arguido, vendo-se aquela forçada a justificar tudo o que fazia, vivendo amedrontada pelo temperamento e reação deste a qualquer movimento que fizesse, o que se refletia no seu estado psíquico.

15. No ano de 2004, em data não concretamente apurada, a assistente, muito revoltada, informou o arguido que estava saturado da situação e que era sua pretensão regressar à Madeira.

16. Nessa altura, o arguido abriu uma conta bancária em nome da filha mais velha B... junto do Banco Banif, com o n.º (...) , para a utilizar no exercício da atividade comercial a que se dedicava.

17. A assistente foi para a Madeira, mas o arguido telefonava-lhe constantemente a fazer chantagem emocional, suplicando-lhe o seu regresso e prometendo-lhe alteração de comportamento.

18. A assistente, ainda psiquicamente muito débil, acaba por regressar ao Continente, erroneamente convencida de que as coisas iam mudar, o que não se veio a verificar.

19. Em Julho de 2004, a assistente começou a trabalhar por conta de outrem, mas o salário que auferia era transferido para a conta bancária descrita em 5).

20. O arguido com frequência agredia verbal e fisicamente a assistente que vivia coartada na sua autodeterminação, e em constante receio de concretização dos males anunciados.

21. Na véspera de Natal do ano de 2004 e 15 de Abril de 2005, data do aniversário da assistente, o arguido agrediu-a, desferindo-lhe um murro no nariz.

22. A 17 de Abril de 2005 o arguido voltou a agredir a assistente desferindo-lhe uma pancada no queixo, de baixo para cima, o que lhe provocou cortes na língua, lesões relativamente às quais recebeu tratamento hospitalar.

23. Contudo, em face do descrito em 1) a 22), com receio de represálias, a assistente não desvendou a real a real causa das lesões e não denunciou o arguido pelas agressões de que foi vítima.

24. A 26 de Abril de 2005 a assistente decide abandonar a casa do arguido, nessa noite dormiu na rua e no dia seguinte refugia-se na casa de uma colega de trabalho a qual lhe presta auxílio, de modo a ser alojada no dia 28 de Abril na Casa Abrigo pertencente à “ (...) ”.

25. Desde então que a assistente não teve mais qualquer tipo de relacionamento com o arguido.

26. Sucede que no ano de 2012, a 02 de Maio, quando se preparava para preencher e entregar a declaração de IRS referente ao ano de 2011, a assistente deparou-se com o pré-preenchimento de anexo B da declaração no qual constava o valor de 18,94 €, a título de retenção efetuada pela entidade com o NIF (...) .

27. Apurada a identificação da entidade retentora – Companhia de Seguros H (...) , SA – a assistente entrou em contacto com o respetivo departamento financeiro, cujo responsável, a seu pedido procedeu ao envio de uma segunda via da declaração que havia sido remetida para a morada “Rua (...) ”, em cumprimento do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 119º do CIRS, conjugado com o artigo 120º do CIRC, da qual resulta que foram colocados à disposição da assistente rendimentos sujeitos a retenção na fonte no valor de 164,70€ e com o imposto retido no valor de 18,94€.

28. Porque a assistente não exerceu qualquer atividade ou obteve rendimentos da categoria B, sujeitos ou não a retenção na fonte, desde Julho de 2002, solicitou aos serviços da Companhia de Seguros H (...) , SA, uma cópia da fatura e/ou recibo que titulasse a prestação de serviços adjacentes à sua emissão e respetivo pagamento.

29. Indagada a Direção Financeira da Seguradora, a assistente obteve a informação de que o pagamento dos valores titulados na fatura e recibo foi efetuado por transferência bancária para a conta com o NIB (...) da titularidade da filha do arguido C....

30. A fatura utilizada pelo arguido sugere a intervenção da assistente na operação comercial adjacente à respetiva emissão, quando na verdade a mesma não exerce a atividade associadas às transações comerciais e não prestou os serviços constantes dos documentos de fls. 46 e 47 dos autos, razões pelas quais não entregou a declaração de IRS referente ao ano de 2011 com a inserção de tais valores.

31. O número de telemóvel indicado na fatura e recibo emitidos pertence ao arguido, revelador de que foi mesmo quem prestou os serviços e já depois do ano de 2006.

32. O arguido ao emitir faturas em nome da assistente e com o número de identificação fiscal desta, a saber, 188.816.526, e ao cobrar IVA em benefício próprio, não entregando o montante do imposto liquidado à Administração Fiscal, colocou a assistente numa posição indevida de sujeito passivo de IVA, fazendo recair sobre esta a responsabilidade de declarar os rendimentos e pagamento do IVA, respeitantes a operações realizadas por aquele.

33. As faturas emitidas pelo arguido, pese embora em nome da assistente, não foram conhecidas, nem controladas pela Administração Tributária.

34. O arguido, pese embora, tivesse conhecimento de que não era titular do número de identificação fiscal aludido em 32), fez uso de faturas nas quais aquele elemento consta incorporado, emitindo as faturas por serviços por ele prestados, e dos quais arrecadou os respetivos valores, mas fê-lo em nome da assistente e sem que os tivesse declarado à administração fiscal.

35. Ao exercer atividade em nome da assistente e fazendo uso do número de identificação fiscal da mesma, apropriando-se dos rendimentos e do imposto liquidado no âmbito de transações comerciais, o arguido agiu notoriamente com intenção de enriquecimento ilegítimo, à custa da ora assistente, que desconhecia em absoluto a emissão daquela fatura descrita em 30).

36. Atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

37. O arguido encontra-se reformado por invalidez, auferindo pensão de reforma em valor não concretamente apurado.

38. O arguido vive em casa própria.

39. O arguido padece de vários problemas de saúde.

40. O arguido é considerado pelos seus amigos como pessoa respeitadora e amiga, bem integrado.

41. Do certificado de registo criminal do arguido não consta averbada qualquer condenação.

Os demais factos alegados configuram juízos conclusivos de facto e/ou direito.

B – FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultaram provados os seguintes factos:

a. Decorridos cerca de três meses após a vinda da assistente para o continente, o arguido revelou-se pessoa muito violenta, maltratando verbalmente a assistente.

C – MOTIVAÇÃO

Na formação da sua convicção o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi apreciada segundo a livre convicção da entidade competente e regras da experiência comum.

O arguido prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados, falando sobre as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que conheceu a assistente D..., a forma com esta se mudou para o continente, o que nem sempre se mostrou coincidente com o depoimento prestado pela própria assistente (uma vez que esta refutou que o arguido a tivesse conhecido por intermédio de familiares, apenas do anúncio colocado na revista “Q...”). Ora, o arguido, em suma, negou a prática dos factos que lhe são imputados, refutando que tivesse procedido à emissão da fatura e recibo de fls. 46 e 47 dos autos sem a autorização, consentimento, conhecimento da assistente. Mais declarou que, efetivamente, após a saída da assistente da sua casa, sita na Rua (...) concelho de Pombal, no ano de 2005, permaneceu, em seu poder, com os livros de faturas referentes à K... de D..., por si criada para esta, tendo em vista a resolução de problemas pendentes, incluindo a descrita nos autos, e das quais ia dando conhecimento atempado à assistente.

Sucede que, tais declarações mostraram-se frontalmente contrariadas pelas declarações prestadas em audiência pela assistente, D..., a qual apresentou um discurso lógico, descomprometido, espontâneo, sem reservas, seguro, consistente, coerente, conforme às regras da experiência, tanto mais que se coaduna com o teor da extensa prova documental junta aos autos, a saber:

- relatório clinico médico-psiquiátrico datado de 16 de Junho de 2013 referente à assistente – cfr. fls. 7 a 9;

- folha com o logotipo “ Z (...) de A..., Serviço (...) horas, Oficina de reparações auto”, com sede na Rua (...) Pombal, telemóvel (...) – cfr. fls. 10;

- plano de amortização ativo no sistema do BANIF, agência Camacha – cfr. fls. 11 a 12;

- Cópia da requisição de 5 livros de faturas à “ W (...) , Lda” – cfr. fls. 13, assinado pelo arguido conforme foi por este anuído em audiência;

- extrato integrado da conta de B... no Banco Banif – cfr. fls. 14 a 16;

- declaração do Centro Hospitalar de Leiria-Pombal datada de 17 de Abril de 2005 – cfr. fls. 17,

- declaração (2.ª via) emitida pela H (...) em cumprimento do disposto no artigo 119.º nº 1, al. b) do CIRS referente a rendimentos/retenções de 2011 do contribuinte com o n.º (...) , enviada para “ K...”, Rua (...) – cfr. fls. 18;

- cópia da fatura n.º 0293 de “ K..., serviços de apoio à assistência em viagem serviços de pronto socorro e reparações auto de D...”, Rua (...) Pombal, telefone (...) , contribuinte n.º (...) , emitida em Agosto de 2011, a favor da H (...) – cfr. fls. 19 e fls. 46 e recibo – cfr. fls. 20 e fls. 47;

- comprovativo de pagamento da fatura n.º 0293por transferência bancária para o NB (...) – cfr. fls. 21;

- informação de cadastro referente à assistente – cfr. fls. 22;

- missivas enviadas pela assistente – cfr. fls. 23 e 24-25;

- relatório de avaliação do veículo S (...) , marca Audi, requisitado pela H (...) SA, tendo sido indicado como local da intervenção a “ K... de D..., contacto Sr. A... com o n.º 934331872 – cfr. fls. 28-29 e fls. 48;

- documentação clínica – cfr. fls. 32 a 33;

- informação da autoridade tributária respeitante a A..., com o NIF (...) , com domicílio fiscal na Rua (...) , Pombal, da qual decorre que entre os anos de 2003 e 2011 foi emitida apenas uma declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2004 – cfr. fls. 40 a 42;

- informação do pagamento da fatura n.º 0293 por transferência bancária para o NIB (...) ; da referida informação resulta ainda que o tomador do seguro é B... – cfr. fls. 49;

- informação da Vodafone da qual decorre que o n.º telefone (...) é de A..., residente na Rua (...) e foi ativado em 11 de Agosto de 2006 e desativado em 08 de Março de 2012 – cfr. fls. 56;

- informação da autoridade tributária da qual resulta que o sujeito passivo com o n.º (...) não foi alvo de qualquer inspeção tributária entre 2004 a 2011 – cfr. fls. 59;

- extrato bancário – cfr. 65;

- cópia de bilhete de avião – cfr. fls. 66;

- informação da autoridade tributária referente às declarações de rendimentos dos anos de 2007 a 2011 em nome da assistente – cfr. fls. 70 a 85;

- declaração de inscrição no registo/início de atividade da assistente em 02 de Maio de 2000 – cfr. fls. 156 a 158;

- extrato de remunerações da assistente – cfr. fls. 159 a 163;

- informação da H (...) quanto à forma de pagamento da fatura em apreço – cfr. fls. 164;

- cópia do despacho de arquivamento proferido no inquérito n.º 683/05.5TAPBL que correu termos nos serviços do Ministério Público junto deste Tribunal – cfr. fls. 165 a 168;

- informação da H (...) da qual decorre que o sinistro ocorreu no dia 03 de Agosto de 2011 e foi participado no dia 5 de Agosto de 2011; a peritagem foi marcada para o dia 10 de Agosto de 2011 e a fatura e o recibo da oficina foram enviados no dia 18 de Agosto de 2011 – cfr. fls. 210 a 216, 218 a 220, 222-224;

- informação da “ W (...) . Lda” – cfr. fls. 225 a 227;

- informação do arguido de que não tem faturas em seu poder – cfr. fls. 228;

- declaração de fls. 262;

- certidão da conservatória do registo civil – cfr. fls. 263 a 264;

- fotocópia do bilhete de identidade da assistente – cfr. fls. 265 e 266;

- requisição do cartão de cidadão datado de 6 de Abril de 2009 – cfr. fls. 267;

- fotocópia do cartão de cidadão da assistente – cfr. fls. 268-269;

- declaração emitida pela autoridade tributária referente à cessação de atividade de trabalho independente da assistente em 11 de Maio de 2012 – cfr. fls. 270.

Com efeito, da conjugação das declarações da assistente com a prova documental supra descriminadas resultou claro para o Tribunal que efetivamente, após um período conturbado da sua vida pessoal, a assistente, psicologicamente extremamente debilitada, veio para Portugal, após conhecer o arguido através de um anúncio numa revista, tendo-se refugiado na casa do arguido sita na Rua (...) , Pombal, relacionamento que findou no ano de 2005. Arguido que se dedicava à prestação de serviços de assistência em viagem, de pronto socorro e reparações sob a designação de Z (...) de A..., que funcionava junto da referida habitação. Sucede que a relação entre a assistente e arguido apresentava-se como conturbada porquanto à assistente era vedado o convívio ou conhecimento de terceiras pessoas para além do arguido e círculo de amigos/familiares deste, sendo os seus passos controlados pelo arguido, o qual ficou inclusive com o cartão de débito da sua conta bancária. Relação essa que se foi desenvolvendo em clima de tensão e de ameaças, em que o arguido surgia como uma figura controladora, da qual a assistente declaradamente demonstrava receio, conforme as testemunhas E... e F..., amigas e colegas de trabalho da assistente, denotaram sempre que este lhe ligava para o telemóvel, relatando o desconforto com que esta ficava após cada telefonema. Aliás, tais testemunhas, juntamente com o colega de trabalho G..., permitiram dar como provado que efetivamente o relacionamento do arguido e da assistente terminou no ano de 2005, após episódios de maus tratos físicos e verbais perpetrados pelo arguido na pessoa da assistente, tendo avistado, mais de uma vez, as mazelas que esta evidenciava na face em virtude da atuação daquele, consentâneas com os relatos de agressão pela mesma, a muito custo, na altura, relatados.

Ora, tal vivência dada como provada, permitiu, de facto, alcandorar a convicção de que, foi no âmbito de um quadro de fragilidade da assistente, que, no ano de 2003 foram requisitados 5 livros de faturas em nome de “ K... de D...”, NIF (...) , com a morada de Rua (...) , Pombal, apartado 158, pelo próprio arguido. Assim, o arguido, conforme já vinha fazendo continuava a prestar serviços de apoio à assistência em viagem, de pronto socorro e reparações autos, enquanto a assistente procedia ao preenchimento das faturas, ainda que de acordo com aquilo que lhe fosse transmitido pelo arguido quanto ao tempo despendido, o material utilizado, os quilómetros, o que se coaduna com as funções por aquele exercidas.

Ou seja, durante a vivência em comum do casal a assistente, ainda que contrariada, mas por não dispor e, ou melhor, na altura não lograr conseguir perceber que outra alternativa existia (como verificou depois, ao sair de casa, refugiando-se numa casa abrigo), consentiu, ainda que tacitamente que o arguido utilizasse o seu nome e número de contribuinte para exercer a sobredita atividade profissional, nunca aquela tendo retirado qualquer rendimento da atividade em causa. Posteriormente, recusou-se inclusive a fazer tal preenchimento de faturas, o qual veio a ser realizado pela filha mais velha do arguido, B....

Contudo, na perspetiva da assistente, tudo mudou após a rutura abrupta da relação, tanto mais que declarou que procurou rasurar todos os livros de faturas que ainda ficaram na residência do arguido, de forma a que evitar o seu preenchimento pelo arguido, o que, pelos vistos, não surtiu efeito. Mais declarou a assistente, de forma perentória, que não mais falou com o arguido ou com este se cruzou, o que se mostra consentâneo com os maus tratos físicos e psíquicos que conduziram ao fim do relacionamento e com as regras da experiência comum.

Daí que se nos afigurou perfeitamente como crível a versão dos factos apresentada pela assistente quando afirmou a sua perplexidade ao constatar que no ano de 2012, a 02 de Maio, quando se preparava para preencher e entregar a declaração de IRS referente ao ano de 2011, deparou-se com o pré-preenchimento de anexo B da declaração no qual constava o valor de 18,94 €, a título de retenção efetuada pela entidade com o NIF (...) . Surpresa essa que foi testemunha pela colega de trabalho F..., que estava junto da assistente.

E, com efeito, a assistente descreveu todas as diligências por si levadas a cabo junto da H (...) , SA, tendo em vista indagar do motivo de tal pré-preenchimento, da sua origem.

Destarte, a prova produzida, incluindo documental, de forma inequívoca, permitiu demonstrar que foi o arguido quem em Agosto de 2011 procedeu ao preenchimento da fatura n.º 0293 de “ K..., serviços de apoio à assistência em viagem serviços de pronto socorro e reparações auto de D...”, Rua (...) (fls. 19 e fls 219) e recibo (fls. 20 e fls. 220) a favor da H (...) . E, não o fez, até pelo supra expandido, a pedido e com o consentimento da assistente, bem pelo contrário.

Ora, tal fatura e respetivo recibo reportam-se a trabalhos que seriam e foram efetuados pelo arguido, no estabelecimento que confina com a sua habitação e onde já explorou outro estabelecimento com o mesmo objeto, a (...) , no veículo de matrícula S (...) , que foi interveniente num acidente de viação ocorrido no dia 3 de Agosto de 2011. O tomador do seguro do referido veículo é B..., filha do arguido.

Ou seja, o arguido, contra a vontade da assistente, com a qual estava de relações cortadas há vários anos, procedeu ao preenchimento das fatura e recibo de fls. 46 e 47, usando o número de contribuinte desta, para o qual sabia que não tinha autorização ou o consentimento da assistente. Aliás se tal consentimento existisse o arguido escusava de ter justificado o preenchimento da fatura e recibo em questão com a resolução de problemas pendentes após o fim do relacionamento. Aliás, questões pendentes volvidos que se mostravam cerca de sete anos após o fim do relacionamento do casal não se mostram minimamente críveis de acordo com as regras da experiência comum, tanto mais que o sinistro que motivou a emissão da fatura é muito posterior ao fim do relacionamento, ou seja, não se trata nem nunca se tratou de solucionar uma questão já existente à data do fim do relacionamento (2005).

Note-se que a assistente esclareceu ainda, de forma crível, que o documento de fls. 262 foi efetivamente assinado por si mas quando estava em branco; na verdade, o seu nome não é Maria “de” D... e desde que se divorciou em 2009 não escreve o sobrenome “ Y...”, nunca tendo o arguido lhe efetuado a entrega de o quer que seja, o que motivou, até pelo ocorrido, que a mesma operasse a cessação da sua atividade como trabalhadora independente.

Temos então, assim que a prova documental e testemunhal produzida permitem formar a convicção segura de que o arguido com a conduta descrita, o arguido narrou um facto falso e juridicamente relevante, pois que, a declaração por si aposta na fatura e correspondente recibo derem origem à constituição de uma relação jurídica não só com a companhia de Seguros H... mas também com o Estado Português. Ademais, com a conduta descrita, o arguido não só causou prejuízo ao Estado Português – pois exerce (u) uma atividade sem o ter declarado e sem apresentar rendimentos desse trabalho, uma vez que há muitos anos que não apresenta qualquer rendimento declarado, nem atividade -, mas também prejudicou a assistente – que viu inscrita na sua declaração anual de IRS rendimentos do trabalho independente quando efetivamente não os teve – e obteve para si benefício ilegítimo – pois que, sem a emissão de uma fatura a companhia de seguros não procederia ao pagamento.

As testemunhas arroladas pelo arguido, a saber, O... , P... , nada de relevante trouxeram à discussão da causa, tendo estado apenas com a assistente uma vez, desconhecendo o relacionamento entre arguido e assistente.

O arguido prestou ainda declarações quanto às suas condições económicas, pessoais e sociais.

O Certificado de registo criminal de fls. 325 permitiu dar como provada a sua ausência de antecedentes criminais.

B. Despacho de 19.03.2015:

Vem o arguido requerer a transcrição integral da prova gravada produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo em vista a instrução do seu recurso da sentença condenatória proferida, a versar sobre matéria de facto, sustentando o requerido em jurisprudência datada de 2002.

Contudo, no que diz respeito ao paradigma do recurso sobre matéria de facto e respetivo regime, a reforma do Código de Processo Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, procedeu, entre as mais relevantes, às seguintes alterações:

a) As declarações prestadas oralmente em audiência passaram a ser obrigatoriamente documentadas, sob pena de nulidade (art.º 363º n.º 3);

b) Havendo gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ficar consignado na ata o início e o fim de cada declaração (art.º 364.º n.º 2);

c) Exige-se que a especificação seja feita em relação: x. aos concretos pontos de facto e x às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. E quando as provas tiverem sido gravadas, as especificações das provas concretas fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (art.º 412º nº 3/a) e b) e nº 4);

d) Eliminou-se a transcrição (sublinhado nosso), que por razões de fidedignidade era antes um encargo do tribunal;

e) Elevou-se para 30 dias o prazo de interposição do recurso se este tiver por objeto a reapreciação da prova gravada (art. 411.º, n.º 4).

Note-se que, com a Lei 20/2013, de 21.02 igualmente se estipulou que “Sempre que for utlizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior” – artigo 101º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

Assim sendo, inexiste, atualmente, fundamento legal para o requerido, o qual, naturalmente vai indeferido.

Notifique.

Sem custas atenta a simplicidade do incidente».

C. Despacho de 22.05.2015

Da nulidade invocada pelo arguido do requerimento de abertura de instrução

Vem o arguido A... invocar a nulidade do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente D..., aduzindo para o efeito que tomou agora conhecimento do teor daquele e do mesmo não consta a identificação do arguido, pelo que, requer a inadmissibilidade legal da instrução e a sua consequente extinção, anulando-se todo o processado a posteriori, por ser uma nulidade insanável.

O Ministério Público e a assistente pugnam pelo indeferimento na nulidade alegada, por não verificada.

Apreciando

Em primeiro lugar temos de atentar que o arguido vem invocar a nulidade em apreço após a realização de audiência de discussão e julgamento e prolação de decisão, tendo apresentado o competente recurso da sentença condenatória proferida, o qual já foi admitido.

O requerimento de abertura da instrução a que o arguido faz referência deu entrada em juízo em 03 de Julho de 2013 – cfr. fls. 146 e seguintes. Ao longo daquele requerimento e, desde logo, no seu artigo 1.º, a assistente faz referência à queixa - crime que apresentou contra A... (e na qual o identificou com todos os elementos identificativos – cfr. fls. 1), tendo sido notificada do despacho de arquivamento do qual discorda. Contudo, no rosto da primeira página do requerimento de abertura de instrução, não consta a identificação completa do arguido, apenas o seu nome consta de vários artigos do articulado.

A... foi inquirido em sede de inquérito, na qualidade de denunciado – cfr. fls. 89 e juntou procuração forense a fls. 105.

Em sede de instrução foi constituído arguido, prestou termo de identidade e residência, tendo-se procedido ao seu interrogatório judicial em 17.06.2014 – fls. 246, 247 e 248.

Em 03.07.2014 teve lugar debate instrutório, com a presença do arguido – cfr. fls. 271.

Em 09.07.2014 foi feita a leitura do despacho de pronúncia – cfr. fls. 276 a 290, no qual o arguido se encontra identificado com o seu nome, filiação, data de nascimento, residência, profissão, estado civil.

Nos termos do artigo 283.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal por remissão do artigo 287º, n.º 2 do referido diploma, o requerimento de abertura de instrução pelo assistente deve conter sob pena de nulidade as indicações tendentes à identificação do arguido.

Uma vez que tal nulidade não encontra contemplada no elenco do artigo 119º do C.P.P. (nulidades insanáveis), constitui, portanto, uma nulidade sanável, e, consequentemente, dependente de arguição – artigo 120.º do C.P.P.

No caso, a existir nulidade a mesma teria de ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, no qual, como vimos, o arguido e defensor estiveram presentes – artigo 120.º, n.º 3, alínea c) e n.º 1, alínea d) do C.P.P.

Não tendo sido invocada naquele prazo, quando o podia e devia ter feito, a nulidade considera-se sanada, nos termos do artigo 121º do CPP por não ter sido atempadamente invocada, tanto mais, que ao não interpor recurso do despacho de pronúncia (conforme podia – artigo 310.º a contrário) aceitou expressamente os efeitos do ato anulável.

Para além disso, subscrevendo o entendimento plasmado pela assistente no requerimento que antecede, também entendemos que do requerimento de abertura de instrução constam elementos suficientes tendentes à identificação da pessoa do arguido, inexistindo dúvidas que os atos aí vertidos são imputados à sua pessoa, sendo certo que o facto de aí constar expressamente o seu nome completo e até residência, permitem obter a sua identificação cabal.

Assim a Jurisprudência tem assumido que:

- “I – A acusação não pode ser rejeitada com o fundamento de que não contém a identificação do arguido, se nela se indica o nome e a morada deste …” in Ac. R.P. de 15/10/2007 in www.dgsi.pt/jtrp Des. Elia São Pedro;

- “A identificação da arguida pelo seu nome e complementada pelos “sinais dos autos” que essencialmente vem referidos na acusação do MP. Permite considerar minimamente satisfeita a exigência constante da al. a) do n.º 3 do art. 283.º do CPP, não devendo por isso ser rejeitada a acusação particular” in Ac. RP de 2/4/2008 www.dgsi.pt/jtrp Des. Leonor Esteves;

Sendo que:

- “É lícita a identificação do arguido na acusação, por remissão para auto constante do processo.

Só a total omissão da identificação do arguido é causa de rejeição da acusação.” – Ac. R.Lx 7/3/2001 www.dgsi.pt/jtrl Des. Cotrim Mendes, e “1 – Só a ausência total de identificação ou a indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do arguido pode desencadear a rejeição da acusação por manifesta improcedência. 2 – A simples indicação do nome do cidadão, que prestou TIR e foi interrogado no processo, não é motivo de rejeição da acusação, pois não ficam quaisquer dúvidas sobre a pessoa a quem ela se dirige.” – Ac. R.C. 14/6/06 www.trc.pt.

1 – Constando da acusação e como identificação do arguido, unicamente o seu nome, verifica-se uma insuficiência das indicações tendentes à identificação do arguido, que deve ser suprida, nomeadamente através de consulta de outros elementos dos autos.

2 – Pelo que não é motivo de rejeição da acusação, por falta de identificação do arguido. Apenas se deve rejeitar a acusação, quando não há arguido, ou seja, a omissão completa da sua identificação” in Ac. R.C 3/12/2003 www.trc.pt.

Nos termos e com os fundamentos expostos, seja por entendermos que a nulidade não se verifica, seja por se considerar a extemporaneidade da sua arguição, encontrando-se sanada (a entender-se por verificada), sempre será de indeferir a nulidade arguida por A..., o que se decide.

Notifique.

3. Apreciação

Os eventuais reflexos que a procedência de um dos recursos pode ter sobre os demais leva a que, em detrimento da ordem da respetiva interposição, se inicie pelo recurso interposto do despacho de 22.05.2015, seguido, sendo o caso, do conhecimento daquele outro que incide sobre a decisão proferida em 19.03.2015, deixando para final, caso não resulte prejudicado, o recurso da sentença.

a. Recurso do despacho proferido em 22.05.2015

Insurge-se o recorrente contra a decisão que incidindo sobre a arguida nulidade do requerimento abertura da instrução a não declarou, antes a indeferiu.

Vejamos.

Após a publicação da sentença, depois de contra esta haver reagido, recorrendo, alegando não conter o requerimento de abertura de instrução a identificação do arguido, em requerimento dirigido ao tribunal a quo (cf. fls. 415/416) invocou o recorrente uma nulidade insanável, convocando, então, os artigos 311.º, n.º 3, alínea a) e 287.º, n.º 3, ambos do CPP, requerendo a anulação de todo o processado posterior por inadmissibilidade legal da instrução.

Entendeu o tribunal a quo não lhe assistir razão, quer por, a verificar-se, não estar em causa nulidade prevista no artigo 119º do CPP, mostrando-se por ocasião da respetiva arguição sanada (artigo 120.º, n.º 3, alínea c) do CPP), quer por resultar do requerimento de abertura de instrução elementos suficientes tendentes à identificação do arguido, nenhuma dúvida se suscitando de que os factos no mesmo narrados são a si imputados, «sendo certo que o facto de aí constar expressamente o seu nome completo e até a residência» permitiriam «obter a sua identificação cabal», sustentando semelhante posição em diversos elementos jurisprudenciais, tais como os acórdãos do TRP de 15.10.2007 e de 02.04.2008, ambos disponíveis in www.dgsi.pt/jrtp, do TRL de 07.03.2001, disponível in www.dgsi.pt/jtrl, do TRC de 14.06.2006 e de 03.12.2003, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrc.

O que contrapõe, então, o recorrente?

Centrando-nos nas respetivas conclusões, sobressai a alegação, a qual, perante o teor do despacho recorrido, não colhe o mínimo de fundamento, de recusa da apreciação da arguida nulidade, sendo por demais evidente haver o decisor, debruçando-se sobre a matéria, concluído pela sua não verificação e mesmo admitindo o contrário pela respetiva sanação.

Seguida da invocação, com o devido respeito a despropósito, da alínea a), do n.º 3, do artigo 311.º do CPP, sabido como é que a norma em causa vê o seu âmbito de aplicação reservado aos casos em que o processo é introduzido em juízo (remetido para julgamento) sem que tenha havido instrução, o que não aconteceu.

Terminando, fazendo apelo ao acórdão do TRE de 27.01.2011, sem que, contudo, do mesmo nada se extraia em abono da sua tese, uma vez que o requerimento de abertura da instrução não consente qualquer dúvida, como, com total acerto, vem referido no despacho recorrido, acerca da identidade da pessoa contra quem é dirigido.

Não merece, assim, censura a decisão recorrida, não encerrando qualquer violação às normas (constitucionais e de direito ordinário) pelo recorrente convocadas, certo, porém, que nunca o mesmo cuidou de esclarecer em que dimensão teriam sido aquelas violadas, circunstância que sempre impediria, nesta parte, o conhecimento do recurso.

Explicitando o nosso pensamento:

(i) Uma eventual nulidade, qua tale, da acusação só pode ser apreciada na fase da instrução ou aquando do despacho a que se reporta o artigo 311.º do CPP;

(ii) Do mesmo modo uma eventual nulidade, qua tale, do requerimento de abertura da instrução apenas pode ser conhecida durante a instrução, com termo final na decisão instrutória, ou no momento do artigo 311.º do CPP, ao abrigo do seu n.º 1 e não já do n.º 2, mostrando-se, naturalmente, excluída a possibilidade de rejeição do requerimento de abertura da instrução já anteriormente admitido;

(iii) Isto porque ultrapassada a fase de controlo da acusação ou do requerimento de abertura da instrução, por efeito da preclusão, a consequência da deteção de um vício congénito nos mesmos, há-de conduzir, em sede de sentença, à absolvição, como sucede, designadamente, com a acusação que versa factos vagos/genéricos, cuja consequência, conforme tem sido defendido pacificamente pela jurisprudência dos tribunais superiores, é a de tê-los por não escritos, daí decorrendo a respetiva improcedência e não já a declaração de nulidade (da acusação);

(iv) Sem prejuízo do que se deixa dito, como decorre do artigo 287.º, n.º 2 do CPP, as nulidades previstas no artigo 283.º, n.º 3 do mesmo diploma legal apenas são extensivas ao requerimento de abertura da instrução, apresentado pelo assistente, no caso alíneas b) e c) do seu n.º 3, onde não se incluem as «indicações tendentes à identificação do arguido»;

(v) Indicações, essas, que na situação em apreço, como bem considerou a decisão recorrida, se mostram suficientemente concretizadas no RAI e, após, no despacho de pronúncia;

(vi) Pelos motivos expostos nunca, no caso que nos ocupa, seria de declarar a arguida nulidade com as consequências do artigo 122º do CPP.

Improcede, pois, o recurso.

b. Recurso do despacho de 19.03.2015

Não se conforma o recorrente com a decisão que indeferiu a transcrição da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

Não lhe assiste, porém, razão.

Com efeito, como bem realça a decisão recorrida, com as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29.08 foi posto termo às divergências relativamente à transcrição do teor da respetiva gravação nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, situação em que a mesma se tornou desnecessária.

Logo na Exposição de Motivos da PL 109/X se diz que «A audiência de julgamento passa a ser sempre documentada, não se admitindo que os sujeitos processuais prescindam de tal documentação, seja qual for o tribunal materialmente competente (artigos 363.º e 364.º)».

Significa, pois, que com a revisão de 2007, a documentação, como garantia dos poderes de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, quer se trate de audiência perante tribunal singular, coletivo ou de júri, é sempre obrigatória, independentemente da vontade dos sujeitos processuais, tendo perdido acuidade as divergência que a propósito se faziam sentir, designadamente no seio da jurisprudência [cf. vg os acórdãos do STJ de 08.02.2001 (proc. n.º 3414/00-5.ª), 14.03.2001 (proc. n.º 254/01-3.ª), 24.05.2001 (CJ, ASTJ, IX, T. II, 207), de 30.05.2001 (proc. n.º 1422/01-3.ª), 17.01.2002 (CJ, ASTJ, X, T. I, 173)].

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 364.º do CPP, «O novo regime de documentação das declarações prestadas na audiência pretende resolver em definitivo a questão, concluindo o processo iniciado em 1998. A solução articula-se com a cessação do dever de transcrição dos registos gravados e o novo regime de impugnação da matéria de facto. Com efeito, pretendeu-se que toda a prova prestada oralmente na audiência fosse sempre registada na íntegra de modo a permitir o recurso amplo da matéria de facto em qualquer caso. (…).

Assim, no caso “regra” de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual, a prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso proceder ao controlo desta prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4), sendo para esse efeito postas à disposição dos sujeitos processuais que o requeiram cópias da gravação (artigo 101.º, n.º 3).

Fica assim prejudicada a jurisprudência do assento do STJ n.º 2/2003, que impunha ao tribunal recorrido o dever de transcrição oficiosa do artigo 412.º, n.º 4, quando houvesse recurso da matéria de facto» - [cf. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 945].

Entendimento que encontra sustentação no regime concebido no artigo 412.º, n.º 4 do CPP para a impugnação da matéria de facto, enquanto dispõe que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

Nenhuma censura merece, assim, o despacho recorrido quando defende a não aplicação, ao caso, do Assento n.º 2/2003, através do qual, no âmbito do complexo normativo que precedeu a Revisão de 2007 ao Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que: «Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal», pois que, perante as alterações introduzidas na matéria pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, se assistiu a uma mudança de paradigma, sucumbindo, agora, os pressupostos normativos que conduziram à sua fixação.

A decisão recorrida não viola nenhuma das normas indicadas pelo recorrente, desde logo as de natureza constitucional, relativamente às quais - acrescente-se – se fica sem saber qual a dimensão normativa em causa, pois que da mesma não se ocupa o recurso, o mesmo sucedendo quanto às demais de direito ordinário.

Impõe-se, naturalmente, decidir pela improcedência do recurso.

c. Recurso da sentença

a. Da impugnação da matéria de facto

Dissente o recorrente do que vem dado por assente nos pontos 1. a 36. dos factos provados, pois que, aduz: «Com base nas declarações da assistente e arguido, obtém-se uma versão, de que a sua conduta nunca foi dolosa, que a assistente manteve inscrição fiscal durante dez anos e omitiu rendimentos, não fazendo declarações» (cf. pontos 1. e 2. das conclusões).

Requerida ao tribunal de recurso a sindicância da matéria de facto, dois procedimentos, cujo denominador comum apenas assenta na almejada sindicância, são suscetíveis de ser desencadeados.

Um deles, que se convencionou denominar por sindicância alargada da matéria de facto, faz recair sobre o recorrente os ónus previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, cujo cumprimento demanda: (i) a indicação dos concretos pontos de facto objeto de erro de julgamento; (ii) a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (iii) a especificação, por referência ao consignado em ata, das passagens em que funda a impugnação.

O outro, tão-somente com recurso ao texto da decisão recorrida (por si ou conjugado com as regras da experiência), dirigido à deteção de lacunas, omissões relevantes comprometedoras da decisão, de factos ou juízos, entre si, contraditórios, que se anulam reciprocamente ou cuja fundamentação conduziria precisamente a uma diferente decisão, de juízos notoriamente irrazoáveis, extraídos ao arrepio das mais elementares regras da experiência de tal sorte que aos olhos do comum cidadão transpareçam como erro patente, logo ostensivo.

Anomalias, estas, relativas à confeção técnica da decisão, as quais, a par da valoração de prova proibida, da preterição de prova vinculada e da violação da presunção de inocência, na vertente do pro reo, são de conhecimento oficioso.

Isto dito, é tempo de indagar da pretensão.

E aqui, lidas articuladamente as conclusões e a motivação donde emergem, resulta que não se dispensou o recorrente (em sede de motivação) de remeter para o teor integral de declarações e depoimentos prestados no decurso da audiência de julgamento, seguido de comentários, a propósito da respetiva credibilidade (ou falta dela), das contradições (nos depoimentos), e da natureza indireta do depoimento das testemunhas E..., F... e G..., colocando-se, assim, no domínio da impugnação de que se ocupa o artigo 412.º do CPP, norma, aliás, nessa sede invocada.

Contudo, é patente, a inobservância por parte do recorrente, na dimensão legalmente exigida, dos ónus de impugnação que sobre si recaíam, os quais não se satisfazem com a remissão em bloco para a factualidade vertida (no caso, exceção feita aos pontos que versam sobre a sua situação sócio económica e, bem assim, à ausência de antecedentes criminais, todos os demais) na decisão de facto, tão pouco com a referência ao teor integral de declarações e depoimentos, exigindo-se, antes, a indicação dos concretos pontos de facto e das concretas provas que, na relação com cada um daqueles, imporia decisão diversa da recorrida.

Panorama que surgindo transversal às conclusões e respetiva motivação, compromete irremediavelmente a sindicância alargada da matéria de facto, o que conduz, nesta parte, à rejeição do recurso.

b. Da valoração de depoimento indireto

Sinteticamente por via da evidente falta de sustentação da alegação, basta determo-nos na fundamentação da convicção da decisão de facto enquanto se reporta ao depoimento das testemunhas E..., F... e G... para concluir não se assistir à valoração de depoimento indireto e muito menos fora dos casos consentidos no artigo 129.º do CPP.

Com efeito, a propósito da relação conturbada entre arguido e assistente, refere o julgador: «Relação essa que se foi desenvolvendo em clima de tensão e de ameaças, em que o arguido surgia como uma figura controladora, da qual a assistente declaradamente demonstrava receio, conforma as testemunhas E... e F..., amigas e colegas de trabalho da assistente, denotaram sempre que este lhe ligava para o telemóvel, relatando o desconforto com que esta ficava após cada telefonema. Aliás, tais testemunhas, juntamente com o colega de trabalho G..., permitiram dar como provado que efetivamente o relacionamento do arguido e da assistente terminou no ano de 2005, após episódios de maus tratos físicos e verbais perpetrados pelo arguido na pessoa da assistente, tendo avistado, mais de uma vez, as mazelas que esta evidenciava na face em virtude da atuação daquele, consentâneas com os relatos de agressão pela mesma, a muito custo, na altura, relatados».

E mais adiante, relativamente à reação da assistente no confronto com os factos, ficou a constar: «Daí que se nos afigurou como crível a versão dos factos apresentada pela assistente quando afirmou a sua perplexidade ao constatar que no ano de 2012, a 02 de maio, quando se preparava para preencher e entregar a declaração de IRS referente ao ano de 2011, deparou-se com o pré-preenchimento de anexo B da declaração no qual constava o valor de 18,94 €, a título de retenção efetuada pela entidade com o NIF (...) . Surpresa essa que foi testemunhada pela colega de trabalho F..., que estava junto da assistente».

É, pois, de todo apreensível haver sido nos depoimentos em questão valorada a perceção das testemunhas sobre o estado de desconforto revelado pela assistente, sobre as marcas físicas de que era portadora, sobre a perplexidade que, quando confrontada com os factos, de si se apoderou.

Nenhuma violação resulta aos artigos 128.º e 129.º do CPP.

c. Da violação do artigo 355.º do CPP

Surge a alegação ancorada na circunstância de não ter sido a prova documental [Os restantes documentos - cf. ponto 4. das conclusões -, quais sejam não cuida de esclarecer!], reproduzida na fundamentação da decisão de facto, confirmada em sede de audiência de julgamento.

Também nesta sede a razão não está com o recorrente.

Com efeito, há muito que se firmou a interpretação, não considerada inconstitucional (cf. v.g. os acórdão do TC de 87/99 (DR, II Série, de 01.07.99) e 110/2011 (DR, II Série, de 06.04.2011), no sentido de que o artigo 355.º do CPP, encontrando-se os documentos no processo, tendo os sujeitos processuais integral acesso aos autos na fase do julgamento, ainda que não lidos ou examinados em sede de audiência, não obsta a que os mesmos possam servir para formar a convicção do tribunal – [cf. v.g. os acórdãos do STJ de 23.02.2005, CJASTJ, XIII, T. 1, pág. 210, 31.05.2006 (proc. n.º 06P1412), 17.09.2009 (proc. n.º 169/07.3GCBNV.S1)].

E o motivo de assim ser é bem sintetizado no acórdão do STJ de 17.09.2009 enquanto refere: «Conforme jurisprudência estabilizada do STJ, a exigência do art. 355º, n.º1, do CPP prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas em audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constante (…) Se as provas, nomeadamente as provas documentais, já constam do processo, tendo sido juntas ou indicadas por qualquer dos sujeitos processuais e tendo os outros sujeitos delas tomado conhecimento, podendo examiná-las e exercer o direito do contraditório em relação a elas, não se vê razão para que elas tenham de ser obrigatoriamente lidas ou os sujeitos processuais obrigatoriamente confrontados com elas em julgamento para poderem concorrer para a formação da convicção do tribunal».

Interpretação, esta, que, como se adiantou, não colide com nenhuma das normas convocadas pelo recorrente de direito internacional e/ou interno, designadamente constitucionais, como é o caso das que asseguram o direito de defesa ao arguido (artigo 32.º da CRP).

d. Da violação do princípio in dúbio pro reo

Diz o recorrente haver a sentença violado a presunção de inocência na vertente do in dubio pro reo.

A derrogação do pro reo, princípio que respeita à matéria de facto, relevando na apreciação e valoração da prova, só pode ser afirmado quando seguindo o processo decisório evidenciado na motivação da convicção for de concluir que o tribunal tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, «… ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja de forma suficiente quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção … Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não tem por fundamento uma inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resulta do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º n.º 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32.º n.º 1 da CRP» - [cf. Acórdão do STJ de 14.10.2009, Proc. n.º 101/08.7PAABT.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]

No caso em apreço, seguindo o processo decisório refletido na sentença não se deteta ter sido o julgador invadido por qualquer dúvida no que respeita ao acervo factual, dúvida, essa, que este tribunal de recurso, debruçando-se sobre a fundamentação da decisão de facto, com referência à prova pessoal e documental produzida e analisada em sede de audiência de discussão e julgamento, à forma como foi a mesma, entre si, articulada e apreciada no seu conjunto, sem descurar a análise crítica que sobre ela incidiu – exercício que reflete um cabal cumprimento do artigo 374.º, n.º 2 do CPP - também não tem, cabendo aqui relembrar que «A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido» - [cf. Acórdão do STJ de 14.04.2011, Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]

Conclui-se por não resultar desrespeitado o princípio em questão, tão pouco qualquer das normas, a propósito, invocadas, sendo certo que – uma vez mais – se eximiu o recorrente de concretizar em que medida o teriam sido.

Em suma, a sentença transparece devidamente sustentada, refletindo a dimensão correta do princípio da livre convicção, procedendo a uma interpretação ajustada das regras da experiência comum, em harmonia, portanto, com o artigo 127.º do CPP, sem que se detete violação do princípio em referência, ademais compatível com juízos de inferência, fundados em presunções naturais, não transparecendo omissões relevantes, juízos inconciliáveis, arbitrários ou uma apreciação irrazoável, ostensivamente infundada, sem que se alcance haja sido valorada prova proibida, sendo, pois, de considerar definitivamente fixada a matéria de facto.

e. Da pena

No ponto 9. das conclusões aborda o recorrente a matéria concernente à pena, o que faz nos seguintes termos: «Deveria o Tribunal aplicar ao arguido uma pena diferente, nomeadamente mais reduzida, atento o inexistir de precedentes, quanto ao mesmo». Já em sede de motivação, no que a tal respeita, lê-se: «O arguido não tem vida económica» pelo que «deveria ter sido aplicada (…) pena mais baixa».

Não será por certo o montante diário correspondente à pena de multa encontrado, que se quedou pelo mínimo legalmente admissível (artigo 47.º, n.º 2 do C. Penal), que suscita a reação do recorrente.

Malgrado a ambiguidade da alegação poderemos, então, concluir que é o tempo de multa, fixado em 180 (cento e oitenta) dias, o objeto da discórdia.

Contudo, neste seu ensaio, assaz incipiente, não aduz circunstâncias, que não hajam sido já ponderadas pelo tribunal a quo, capazes de ser aproveitadas em seu benefício, tão pouco evidencia uma eventual consideração indevida de qualquer delas e/ou a sua sobrevalorização ou subavaliação.

Significa, pois, que uma vez mais o recorrente passa ao lado dos preceitos legais que nesta parte se lhe impunham observar (cf. o n.º 2 do artigo 412.º do CPP), isto quer nas conclusões, quer na respetiva motivação, comprometendo, desta forma, também neste domínio, o conhecimento do recurso, o que conduz à sua rejeição.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal:

a. Julgar improcedente o recurso interposto do despacho de 22.05.2015;

b. Condenar o recorrente nas custas, fixando-se em 3 (três) UCs a taxa de justiça (artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III);

c. Julgar improcedente o recurso interposto do despacho de 19.03.2015;

d. Condenar o recorrente nas custas, com 3 (três) UCs de taxa de justiça (artigos 513.º e 514º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III);

e. Julgar improcedente o recurso interposto da sentença.

f. Condenar o recorrente nas custas, com 4 (quatro) UCs de taxa de justiça (artigos 513.º e 514º do CPP e 8º do RCP, com referência à Tabela III).

Coimbra, 7 de dezembro de 2016

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relator)

(Isabel Valongo - adjunta)