Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
802/20.1T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: LEI DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE JOVENS EM PERIGO
LPCJP
SEU OBJETO
CONFIANÇA JUDICIAL PARA ADOÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 3º E 4º DA LEI 147/99, DE 01/09 (LPCJP); 1978º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – A LPCJP (Lei nº 147/99, de 1 de Setembro), que tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, prevê a intervenção quando o representante legal ou quem tenha a guarda de facto da criança ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento (arts. 1º e 3º).

II – Essa intervenção deverá pautar-se pelos princípios orientadores enunciados no artº 4º, referenciando-se, desde logo, na al.a), o interesse superior da criança.

III – Na aplicação de uma medida de promoção e proteção deve também observar-se o princípio da proporcionalidade, contemplado no art. 4º, al.e), da LPCJP.

IV – É pressuposto genérico da medida de confiança judicial com vista a futura adoção a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação” (corpo do nº 1 do art. 1978º do C.Civil) e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas do mesmo nº 1.

V – A situação tipificada na d) deste último normativo – que os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor – exige que o mencionado perigo seja “grave”, na medida em que de outra forma se não compreenderia o uso deste adjetivo.

Decisão Texto Integral:                









Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                1 - RELATÓRIO

O Ministério Público instaurou em 03.07.2020 o presente processo judicial com vista à aplicação de medida de promoção e proteção em benefício da menor L..., nascida em 26.06.2020, natural da freguesia de ..., concelho de ..., filha de G... e de C... (paternidade esta apurada já no decurso dos autos), menor essa que se encontrava então no centro de acolhimento temporário da Santa Casa da Misericórdia de ....

Em benefício da menor foi aplicada, provisoriamente, por despacho de 03.07.2020, a medida de acolhimento residencial, uma vez que se levantavam fundadas suspeitas de que a mãe da criança, que vivia com o seu pai adotivo, teria engravidado deste. Mais se indiciava então que a progenitora padecia de mutismo seletivo e de comportamento obsessivo.

Esse despacho determinou igualmente a realização de exames periciais psicológicos e psiquiátrico à progenitora, a incidir, além do mais, na apreciação das suas patologias ou distúrbios, capacidades, competências e valências parentais, funcionamento emocional, estrutura de personalidade, bem como no relacionamento mantido com a menor, a realizar pelo gabinete médico-legal do INML.

Esse despacho, notificado, não foi objeto de qualquer oposição.

                                                                               *

Em 20.07.2020 o ISS juntou relatório social em que sugeriu a aplicação da medida de acolhimento residencial.

No dia 21.07.2020 procedeu-se a inquirições. No final dessa diligência foi proferido douto despacho, que em parte se transcreve:

«Conforme se constata da douta decisão de fls. 70 a 72, em especial a fls. 70 frente e verso, um dos fundamentos para a aplicação da medida cautelar vigente foi a de haver suspeita de que o avô materno (adotivo) da criança L..., fosse também ele próprio o pai desta.

Como a menor já foi registada no registo civil sem paternidade averbada, é assim muito importante para o prosseguimento deste processo determinar quem é efetivamente o pai da L...

No douto requerimento inicial o Ministério Público promoveu a fls. 9 al. f) "se determine a realização, pela Delegação de Coimbra do INMLCF, de perícia tendente à determinação da probabilidade de a L... ser filha de C...".

Relativamente a esta douta promoção ainda não recaiu qualquer despacho judicial, o que se faz de seguida.

Uma vez que a L... foi registada sem paternidade averbada, é obrigatório instaurar processo de Averiguação Oficiosa da Paternidade (AOP).

Segundo agora tive conhecimento, já se encontra instaurado nos serviços da Procuradoria de Família e Menores de ... a referida AOP, que tem o nº ...

Muito provavelmente, nessa AOP ir-se-á proceder à determinação da perícia para apurar a paternidade da L..., também requerida no presente processo de promoção e proteção.

Como a sede própria para a realização do referido exame final será a AOP, e não tanto o presente processo de promoção e proteção, antes de mais, oficie o referido processo solicitando que seja informado se já foi determinado ou se irá ser determinado em breve a realização do exame pericial também requerido nos presentes autos, e ainda que se informe o estado deste processo.

Obtidas as informações do processo de AOP com o n.º ..., decidir-se-á então se haverá necessidade de neste processo de promoção e proteção se realizar exame pericial tendente à determinação da probabilidade da menor L... ser filha do avô materno C...

Conforme se verifica da douta decisão de fls. 70 a 72, em especial a fls. 70 frente e verso, está aplicada e vigente a medida de promoção e proteção, cautelar e provisória, de acolhimento residencial urgente, pelo período de 3 meses.

Analisando a prova produzida depois dessa decisão, conjugando-a com tal decisão, o Tribunal não vê motivos, de momento, para alterar a medida cautelar vigente uma vez que da prova produzida posterior a essa decisão, nomeadamente a produzida no dia de hoje, não ficaram abalados os fundamentos de facto que estiveram na base da prolação da decisão cautelar.

Mantendo-se assim a execução da medida cautelar decretada, está inviabilizada a parte da mesma em que determinou permitir à mãe que acompanhasse a menor para a casa de acolhimento residencial (CAR) indicada pelo ISS, estando assim subjacente que a mãe poderia e deveria permanecer em tal CAR, para assim poder cuidar da menor, embora com a ajuda e supervisão do pessoal técnico da CAR.

Conforme resulta, nomeadamente de fls. 82, a mãe recusou-se a permanecer com a menor na primeira CAR, Centro de Apoio à Vida (CAV) " K ...", sito em ....

Decorre nomeadamente do depoimento da senhora técnica do ISS hoje ouvida que a citada CAV tem condições logísticas, materiais e humanas que permitiriam que a mãe aí vivesse com a menor L... e dela cuidasse.

O mesmo já não sucede na atual CAR, " W ...", sita em ..., para onde foi a menor conduzida pelo ISS na sequência da recusa da mãe em permanecer com a filha no citado CAV " K ...".

Decorre da decisão cautelar vigente que não há inconvenientes, antes pelo contrário, em que a mãe tenha contactos e prive com a filha L....

Segundo nomeadamente o hoje declarado pela avó materna, a mãe da L... tem disponibilidade para visitar a L... todos os dias.

Face a todo o exposto e sendo conveniente que a mãe G... prive com a filha bebé, inclusive amamentando-a com o leite materno, se ainda o tiver, devem permitir-e as visitas da mãe na casa de acolhimento, o mesmo ocorrendo com outros familiares, permitindo-se assim também as visitas à bebé de outros familiares da mesma que com ela têm, ou possam vir a ter, relação afetiva profunda.

Pelo exposto decide-se, nos termos do disposto no artigo 37. º, n.ºs 1 e 3 e 53.º, n.ºs 3 e 4, ambos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo:

1. º Mantém-se vigente a medida cautelar de acolhimento residencial decretada a fls. 70 frente e verso, pelo período de 03 meses já consignado nessa decisão, devendo a menor permanecer acolhida na CAR onde já se encontra presentemente - Casa de Acolhimento Residencial " W ...", da Santa Casa da Misericórdia de ..., sita em ...;

2. ° Permitir visitas diárias, na referida CAR, à criança L... por parte da sua mãe, supervisionadas e acompanhadas pela equipa técnica da CAR, em horários e moldes concretos a combinar com a equipa técnica e a mãe, também em articulação com a avó materna da criança (M...) uma vez que será esta a transportar a filha (G...) à CAR;

3. ° Permitir visitas à criança L... na CAR por parte dos avós maternos e tio materno, em horários e termos a articular entre estes familiares e a equipa técnica dessa CAR;

4. ° Informe de imediato a CAR do atrás decidido em 2.° e 3.º, para que as visitas atrás determinadas, especialmente da mãe à L..., se iniciem o mais breve possível;

5. ° Solicite ainda à CAR que, no prazo de 30 dias, elabore e junte aos autos informação detalhada sobre as visitas atrás permitidas, especialmente no que se refere à mãe da L..., e abordando, designadamente, a interacção da mãe com a criança e a capacidade demonstrada pela mãe para tomar conta da filha;

6. ° Remeta cópia da presente acta ao ISS e à CAR, bem como à AOP atrás identificada (processo n...), remetendo ainda neste último caso cópia da gravação das declarações e depoimentos hoje prestados;

7. ° Informe ainda o ISS que este Tribunal, na sequência das audições hoje efectuadas, nomeadamente à mãe da L..., reafirma a necessidade premente de lhe ser prestado apoio psicológico, pelo que o ISS deverá tomar as providências necessárias para a implementação prática desse apoio, devendo para tanto articular-se, quer com a mãe da menor L..., quer com a avó materna da menor, uma vez que é esta ultima que presta apoio logístico à filha, nomeadamente o transporte».

Esse douto despacho também não foi questionado, tendo a progenitora, em 26.07.2020, declarado que "entende a importância da realização das perícias médicas e quer realizá-las", requerendo que não fossem feitas pelo Centro Hospitalar do Oeste.

                                                                               *

Por despacho de 24.09.2020, tendo sido constatado que, no seio do processo que corria termos no Ministério Público, não fora ordenada a prova pericial, e atendendo à situação que desencadeou a propositura destes autos, que reclamava esclarecimento urgente, determinou-se a realização de prova pericial, a qual teve por desiderato ou finalidade aferir se C... (pai adotivo da progenitora G...) era pai da menor L..., através de exames hematológicos ou de DNA.

                Em 09.10.2020 o ISS juntou novo relatório social, sugerindo a aplicação da medida de acolhimento residencial.

Essa medida, aplicada a título cautelar, foi prorrogada em 15.10.2020, sob promoção do Ministério Público.

Dessa prorrogação, que por lapso foi feita sem que se notificassem antes as partes do teor do relatório para efeito de exercício do contraditório, recorreu a progenitora. Esse recurso, a que respeita o apenso A, foi julgado procedente em 06.01.2021, uma vez que se decidiu «anular o despacho recorrido, determinando que o tribunal a quo proceda previamente à audição da progenitora/mãe da menor - notificando-a para o efeito - (o mesmo sucedendo em relação ao patrono nomeado à menor, caso tal antes não tenha também sucedido), a fim de se pronunciar sobre a prorrogação da medida cautelar aplicada, sem prejuízo de tal diligência se vir a mostrar inútil ou ficar prejudicada por eventual decisão que venha a ser, entretanto, tomada pelo tribunal a quo».

                                                                               *

Entretanto, nestes autos principais foi junto o relatório do INML, que concluiu, quanto à paternidade da L... ser atribuída ao avô C..., por uma probabilidade apurada de W=99,999999999998%.

O Ministério Público sugeriu, além da sujeição da progenitora a perícias (já ordenadas em 03.07.2020), a realização de perícias psiquiátricas e de personalidade à avó materna e a C..., o que foi deferido por despacho de 08.01.2021.

Do despacho de 08.01.2021 recorreu a progenitora em 27.01.2021, sem cumprir o disposto no art° 2210 do CPC e sem pagar a multa do art° 139º do CPC. Esse recurso, entretanto admitido após o cumprimento, pela progenitora, das mencionadas exigências legais, subiu ao Tribunal da Relação de Coimbra em 24.05.2021 com efeito devolutivo.

É exatamente em 29.01.2021 que a progenitora alega não querer submeter-se às perícias antes determinadas, por não ver nelas interesse e alegando razões de saúde pública decorrentes da pandemia.

Em 01.02.2021 C... informou e comprovou documentalmente ter perfilhado, em 26.01.2021, a L...

Entretanto, em 02.02.2021 o ISS juntou nova informação social, com o seguinte parecer técnico:

«Da avaliação que vem sendo operacionalizada resulta que existem condições económicas e habitacionais da parte do agregado familiar para asseverar os cuidados da criança em apreço.

Contudo, denota-se ao longo da avaliação realizada, que G... estabelece uma relação fusional com a progenitora, dependendo desta para orientar e tomar decisões referentes à sua vida. M... aparenta estabelecer uma postura de híper proteção relativamente a G..., promovendo todos os meios para dela cuidar e proteger.

Aparenta a mesma postura relativamente ao irmão de G..., disponibilizando uma enfermeira para dele cuidar diariamente. No período noturno a própria ou G..., asseveram o acompanhamento do jovem D..., partilhando o quarto com o mesmo, de molde, segundo referem, a conseguirem asseverar contenção e o apoio necessário em situação de crise.

A atitude hiperprotetora e ausência de sentido critico relativamente à gravidez e paternidade de L... suscitam dúvidas quanto à qualidade da dinâmica familiar e competências, pelo que é parecer, salvo melhor entendimento, que importa melhor avaliar como se estrutura a referida dinâmica entre os elementos do agregado familiar e se estabelecem as fronteiras entre os papeis parentais e filiais, a fim de definir, com a maior brevidade, o melhor projeto de vida de L... Nesta sequência, é ainda parecer deste serviço que importa conhecer o resultado das perícias médico-legais já requeridas por esse douto Tribunal, relativamente à avó materna, C... e G...

Face ao exposto, é entendimento deste Serviço, salvo melhor entendimento desse douto Tribunal, que até que sejam conhecidos os resultados das referidas perícias médico-legais, se encontram reunidos pressupostos para ser decidida a prorrogação da medida de promoção e proteção aplicada a L..., de "Acolhimento residencial"».

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O recurso a que se refere o apenso A, supra mencionado, baixou à primeira instância em 29.01.2021.

Estando junto o relatório mencionado no ponto 13, atualizado, foi notificado o seu teor à progenitora e ao progenitor (tendo-se apurado que a perfilhação da L... foi averbada ao seu assento de nascimento em 26.01.2021) para se pronunciarem, querendo, em dez dias. Foram pedidos esclarecimentos pela progenitora, deferidos em 25.02, juntos pelo ISS em 03.03 e determinada a sua notificação às partes.

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Por despacho de 25.02, determinou-se, além do mais, o seguinte: «Resulta dos autos (exames periciais e subsequente perfilhação averbada ao assento de nascimento da menor) que a L... é filha de G... e do pai adotivo desta, C...

Os mesmos defendem que essa conceção não resultou de trato sexual mantido entre ambos, mas antes da circunstância de a progenitora, que tem o hábito de "se limpar por dentro" (sic), o ter feito com uma toalha onde se encontrava sémen do progenitor.

A prova dessa tese exige rigor científico, que não se basta com alegações e consultas de sites da ‘Internet'.

Destarte, defere-se à douta promoção que antecede, pelo que, com cópia dos doutos requerimentos juntos em 19.01 (pelo progenitor) e em 04.01 e 25.01 (pela progenitora), oficie ao INML que se digne informar, em cinco dias, se é cientificamente viável essa forma de fecundação».

Atenta a oposição manifestada pela progenitora à realização das perícias, foram proferidos despachos, em 03.02 e em 11.03, esclarecendo que às perícias compareceria quem o quisesse fazer, não podendo ninguém ser obrigado à sua realização, sem prejuízo de, não sendo apresentada justificação bastante que não a mera discordância ou oposição, o Tribunal ter oportunamente que tomar uma decisão sem um elemento de prova que considerou essencial. Mais foram os intervenientes esclarecidos de que, nada os impedia, caso não pretendessem submeter-se ao exame pericial, disso informarem desde já os autos, naturalmente com as consequências já expressas.

Os progenitores e a avó materna da L... declararam então não pretender submeter-se às perícias, tendo o INML sido informado em conformidade, com o prosseguimento dos autos.

A progenitora arguiu nulidades decorrentes de ter sido ultrapassado o prazo de quatro meses previsto para a instrução e de ter sido ultrapassado o prazo máximo da medida cautelar, o que viu indeferido.

Por expediente entrado em 22.03.2021, na sequência da solicitação a que se refere o ponto 15. deste relatório, o INML informou que «das pesquisas efetuadas, utilizando nomeadamente termos como "semen / sperm viability" e posterior correlação com "tissues / towel", não foi conseguida localização de bibliografia em contexto científico; por outro lado, a pesquisa em motor de busca mais abrangente (Google) nos concretos termos "can get pregnent from towel" fornece vários resultados, porém não se trata de literatura científica, o que inviabiliza a resposta à informação solicitada».

Concluiu o INML que «não se nos afigura cientificamente viável aquela "forma de fecundação"» .                                                                            *

Por despacho de 23.03.2021 determinou-se a prorrogação da medida cautelar de acolhimento residencial por mais seis meses.

Do despacho de 23.03.2021 recorreram ambos os progenitores, em articulado conjunto, tendo o recurso subido ao Tribunal da Relação de Coimbra em 21.05.2021 com efeito devolutivo.

Nestes autos, mais exatamente em 15.12.2020 e 15.04.2021, a progenitora apresentou requerimentos de suspeição da Juiz titular dos autos, relatora do subsequente acórdão do Tribunal Misto, que foram julgados improcedentes pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra (cfr. apensos B e D)

Foi declarada encerrada a instrução e, mostrando-se improvável qualquer solução negociada, determinou-se, como prevê o art° 110°, nº 1, al. c), da LPCJP, que as partes fossem notificadas para apresentarem alegações. Foi igualmente solicitado ao ISS relatório atualizado sobre a situação da menor, as condições dos progenitores e o seu agregado familiar e o modo como vêm decorrendo os contactos na instituição.

Foi marcado o debate judicial por despacho de 14.06.2021.

Ministério Público e progenitores apresentaram alegações, concluindo o Ministério Público pela aplicação da medida de confiança com vista a adoção. Já os progenitores alegaram, em síntese útil, que o processo está repleto de ilegalidades e irregularidades, que se prendem com a retirada da menor à família e à ultrapassagem de prazos, com a não audição do progenitor, por entenderem que o acórdão da Relação de Coimbra não foi cumprido, que se avançou para debate sem se tentar uma solução negociada e que apenas o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem lhes poderá valer.

O ISS juntou relatório atualizado em 15.06.2021, pugnando pela aplicação da medida de apoio junto dos pais, com o apoio da avó materna, o que foi notificado às partes.

Dois dias antes do início do debate judicial, ambos os progenitores requereram o impedimento da Exma. Senhora Procuradora da República que tem tido intervenção nos autos por contra a mesma ter sido apresentada queixa crime pelo progenitor/avô e pela avó materna, por aquela defender a confiança para adoção da L... nas suas alegações. A Digna Magistrada não se declarou impedida e foi proferido despacho desatendendo a pretensão dos progenitores.

                                                                               *

Teve lugar o debate judicial, dentro do legal formalismo.

Em 07.07.2021, já depois do encerramento do debate, o INML juntou parecer que, dado a conhecer às partes, os progenitores requereram fosse tido em consideração no acórdão a proferir. O Ministério Público declarou nada ter a opor a que fosse considerado esse parecer, ainda que faça dele uma interpretação diferente da dos progenitores. Face ao requerido e à ausência de qualquer oposição, determinou-se que tal parecer fosse acolhido no acórdão do Tribunal Misto.

Antes da leitura do acórdão, e como consta da ata respetiva, deu-se a oportunidade aos presentes para, querendo, complementarem as suas alegações orais.

Foi na sequência proferido acórdão que decidiu:

«V - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Misto em:

1. Aplicar, em benefício da menor L..., nascida em 26.06.2020, natural da freguesia de ...., concelho de ..., filha de G... e de C..., a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a adoção, prevista no artigo 35. º, n. ° 1, alínea g) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n. º 147/99, de 01/09, na redação dada pela Lei n.º 142/2015, de 08/09 (LPCJP);

2. A criança manter-se-á na instituição onde se encontra, ou seja, centro de acolhimento temporário da Santa Casa da Misericórdia de ...;

3. A referida medida de promoção e proteção durará até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão, nos termos do artigo 62.º-A, n.º 1 da LPCJP, sem prejuízo da eventual revisão da medida a título excecional nos termos previstos no n.º 2 do mesmo artigo;

4. Competirá ao Instituto da Segurança Social, nos termos dos 125.º e 59.°, n.º 3 da LPCJP, acompanhar a execução da medida agora aplicada;

5. Após o trânsito em julgado da presente decisão, o Instituto da Segurança Social deverá remeter trimestralmente (sem prejuízo de ser caso de remessa em prazo inferior) informação sobre as diligências efetuadas para promover o efetivo encaminhamento da criança para candidato selecionado  (cfr. alínea h) do artigo 8.° do Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015, de 08/09 (RJPA);

6. Decreta-se a inibição do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança por parte dos seus pais biológicos, e determina-se a cessação das visitas à criança por parte da família biológica desta (artigos 1978.º·A do Código Civil e 62.º-A, nº 6, da LPCJP;

7. Nomeia-se, como curador provisório à criança, o Exmo. Diretor da instituição onde a mesma se encontra acolhida, independentemente da pessoa concreta que em cada momento desempenhar tais funções, de acordo com o disposto nos artigos 62.º-A, n.os 3 a 5 da LPCJP e 51.° do RJPA;

8. Após trânsito em julgado, notifique a presente decisão à casa de acolhimento e ao Instituto da Segurança Social, enviando a este certidão (cfr. artigos 8.°, alíneas c) a f) e h) e 39.°, n.º 2 do RJPA);

9. Após trânsito em julgado, conclua para se agendar o compromisso de honra do curador provisório;

10. Após trânsito em julgado, os pais biológicos da menor deixam de ser notificados para os ulteriores termos processuais - vide art° 88°, nº 8, da LPCJP;

11. Nos termos do artigo 122.º·A da LPCJP, informe os pais da criança e a criança (sendo esta representada pela sua Ilustre Patrona) que a presente decisão é passível de recurso, podendo os mesmos recorrer da decisão, devendo os recorrentes estar obrigatoriamente representados por advogado e devendo o recurso e as respetivas alegações ser apresentados neste tribunal no prazo de 10 dias, sendo o efeito do recurso suspensivo (vide artigos 100,°, 123.°, n.os 1 e 2, 124.° e 126.° da LPCJP e 986.°, n.º 4 do Código de Processo Civil);

12. Custas a cargo dos progenitores;

13.Valor da causa: € 30.000,01 (artigos 296.°, n.os 1 e 2, 303.°, n.º 1 e 306.°, n.os 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 126.° da LPCJP);

14. Notifique.».

                                                                                              *

Inconformados, interpuseram recurso os progenitores [G... e C...], a fls. 651-681, sendo que os mesmos formularam as seguintes conclusões:

...

Contra-alegou o Ministério Público, sustentando a manutenção da sentença recorrida, sendo que apresentou as seguintes conclusões:

                ...

                De referir que, já nesta instância de recurso, foi comunicado aos autos pelos Progenitores/Recorrentes que «tendo em conta o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido a 29 de Junho de 2021 que se junta como doc. 1 e, notificado ao Recorrentes a 30 de Junho de 2021, com referência aos recursos de 27 de Janeiro de 2021 e de 03 de Abril de 2021, foi decidido declarar cessada a medida cautelar de promoção e proteção aplicada à menor, tendo o Tribunal de Caldas da Rainha cumprido o decidido pelo Venerando Tribunal da Relação e ordenado a entrega da menor à família, o que aconteceu no passado mês de Julho de 2021, conforme despacho cuja cópia se junta como doc. 2.».

                Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil)[2], por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil

                - desacerto da decisão sobre a matéria de facto;

                - incorreção da medida de promoção e proteção aplicada a título definitivo à menor L... (de confiança a instituição com vista a futura adoção).

                3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO (factos provados descritos na sentença, parcialmente impugnados em sede de recurso)

                               ...

3.1 – questão do desacerto da decisão sobre a matéria de facto

Trata-se aqui da apreciação sobre o factualismo em que assentou o acórdão final proferido nos autos, constante de fls. 607-649, a saber, que decretou a medida de promoção e proteção aplicada à menor L... (de confiança a instituição com vista a futura adoção).

De referir que os progenitores recorrentes invocam mais concretamente o desacerto da decisão no que aos pontos “provados” sob “4”, “5.”, “6.”, “7.”, “8.”, “9.”, “17.”, “27.” e “46.” diz respeito, sendo que, como é bom de ver, se reportam basicamente a factos respeitantes à falta/deficiente competência parental da progenitora e/ou do outro progenitor.

Vejamos, então, um por um esses pontos de facto, sem prejuízo da sua apreciação conjunta sendo disso caso.

Sendo certo que o vamos fazer sempre tendo presente a redação literal respetiva.

                                                                               ¨¨

«4. Aquando do nascimento da L..., e ainda no hospital, a progenitora e a sua mãe indicaram como pai pessoa que aquela teria conhecido através da internet e com quem vivia à data, de seu nome C..., o qual mais tarde também se apresentou no hospital nessa qualidade.»

Os progenitores/recorrentes discordam da redação deste ponto de facto, mormente porque foi por eles impugnado que a progenitora e a sua mãe tivessem dito no Hospital o que o ponto de facto afirma, sendo que prova não foi feita no sentido constante do que se encontra consignado.

Que dizer?

Quanto a nós, que é possível constatar que o visado na redação deste ponto de facto teve origem no Relatório inicial de “sinalização da recém-nascida L...”, constante de fls. 28-31, elaborado pela Técnica Superior de Serviço Social no CHO, A..., a qual foi arrolada como testemunha pelo MºPº mas não prestou qualquer depoimento no Debate Judicial, por ter sido prescindida.

Assim sendo, porque não se deteta que tenha sido efetivamente produzida prova por outra via quanto ao que está em causa, procedendo à reapreciação dos meios de prova de que o Tribunal a quo dispôs, importa concluir que assiste razão aos progenitores/recorrentes quanto ao suscitado neste particular, donde se operar a reformulação da redação deste ponto de facto, o qual passa doravante a figurar pela seguinte forma:

«4. Aquando do nascimento da L..., e ainda no hospital, C... apresentou-se como pai da mesma.»

                                                                               ¨¨

«5. Por a progenitora aparentar dificuldades de compreensão, ter estado sujeita a acompanhamento psicológico/psiquiátrico no CHO entre 2007 e 2019, padecer de mutismo seletivo, ter historial de comportamentos obsessivos, ser ainda muito jovem e não haver pai registado, a situação da L... foi sinalizada à CPCJ de ....»

Os progenitores/recorrentes insurgem-se quanto ao constante deste ponto de facto, com a argumentação de que o mesmo contém informação, relativamente à progenitora, provinda de um Relatório médico da própria de quando era menor, «logo à luz da LPCJP e do RGPD, aquele relatório deveria ter sido destruído no momento em que a Apelante atingiu a maioridade e, nunca poderia ter sido utilizado neste processo.»

Será assim?

Começaremos por dizer que o punctum saliens deste ponto de facto é a razão de ser ou o que deu origem à elaboração do Relatório inicial de “sinalização da recém-nascida L...” a que já se aludiu na análise do ponto anterior, isto é, o motivo para tal ter sucedido.

Ora, quanto a isso, está fora de discórdia que o foi o historial e condições médicas da progenitora (que foram consignados), a que foi possível aceder por quem o elaborou, nada se indiciando ou permitindo concluir que em tal tenham sido utilizados quaisquer dados constantes de processos das comissões de proteção ou de processos tutelares que tenham tido instaurados em benefício dessa progenitora.

Em todo o caso, reconhece-se que a redação deste ponto de facto não é muito clara quanto ao salientado, donde se decidir pela sua reformulação, o qual passa doravante a figurar pela seguinte forma:

  «5. A situação da L... foi sinalizada à CPCJ de ..., por a progenitora aparentar dificuldades de compreensão, ter estado sujeita a acompanhamento psicológico/psiquiátrico no CHO entre 2007 e 2019, nomeadamente por registo de padecimento de mutismo seletivo, e de ter historial de comportamentos obsessivos, ser ainda muito jovem e não haver pai registado.»

                                                                               ¨¨

«6. Aquando do início da intervenção da CPCJP, as suas técnicas aperceberam-se que aquele que era indicado como pai da L... era afinal C..., pai (adotivo) da jovem G...»

«7. Não tendo sido dado consentimento para a intervenção da CPCJ, pelo indicado progenitor, o processo, entretanto aberto, relativamente à situação da bebé L..., com o nº ..., foi remetido ao Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Caldas da Rainha.»

Os progenitores/recorrentes insurgem-se quanto ao uso da expressão “aperceberam-se” no primeiro desses pontos de facto, por não poder ser acolhido uma qualquer “percepção”.

Que dizer?

Não deixa de se lhes reconhecer alguma razão, pois que a redação respetiva inculca uma conclusão fundada sobre a matéria, que o então conhecido certamente não autorizava, sendo certo que não se pode aqui dar acolhimento a um qualquer “achismo”.

Nesta ordem de ideias, e por resultar que o que estava em causa era uma “desconfiança”, no deferimento parcial da impugnação, reformula-se a redação desse dito ponto de facto “provado”, o qual passa doravante a figurar pela seguinte forma:

«6. Aquando do início da intervenção da CPCJP, as suas técnicas desconfiaram que aquele que era indicado como pai da L... era afinal C..., pai (adotivo) da jovem G...»

                                                                               ¨¨

«8. Em benefício da L... foi aplicada, provisoriamente, por despacho de 03.07.2020, a medida de acolhimento residencial, uma vez que se levantavam fundadas suspeitas de que a mãe da criança, que vivia com o seu pai adotivo, teria engravidado deste.»

Relativamente a este ponto de facto, os progenitores/recorrentes discordam de o mesmo figurar no elenco dos “provados”, tecendo considerações sobre a “normalidade” do sucedido.

O que é certo é que se bem se compulsar o despacho de 03.07.2020 não pode deixar de se constatar que o que determinou a aplicação da medida em causa foi precisamente a existência de “fundadas suspeitas” da paternidade da menor L... ser do pai (adotivo) da progenitora daquela, estando o dito casado com a mãe da recém-nascida, e sendo todos conviventes na mesma casa, situação que não era considerada “normal”.

Ora se assim é, improcede a impugnação, porque, independentemente da discordância que os progenitores/recorrentes apresentam, tal não invalida que outra tivesse sido a interpretação e ponderação do Tribunal a quo, aquando da prolação do despacho em causa, sendo isso que o ponto de facto transmite.

                                                                               ¨¨ 

«9. Não obstante a possibilidade dada de permanecer junto da filha, a jovem G..., após conversa com a sua progenitora, esposa do referido C..., recusou-se a acompanhar a L... e regressou para casa, continuando a residir com a mãe, o irmão e o pai.»

Os progenitores/recorrentes insurgem-se quanto à redação deste ponto de facto, por dela resultar que a progenitora teria mostrado menor interesse ou carinho pela recém-nascida, o que seria “anormal”, contrapondo que houve razões válidas para assim ter sucedido.

Que dizer?

Não pode deixar de se reconhecer que o uso da expressão “recusou-se” no contexto em causa, confere uma marca negativa ao comportamento da progenitora, quando, ao invés, a conjugação de todos os dados de facto conhecidos não permitem legitimamente fazer uma tal linear apreciação, pelo que, no acolhimento parcial desta impugnação, reformula-se a redação desse dito ponto de facto “provado”, o qual passa doravante a figurar pela seguinte forma:

«9. Não obstante a possibilidade dada de permanecer junto da filha, a jovem G..., após conversa com a sua progenitora, esposa do referido C..., optou então por não acompanhar a L... e regressou para casa, continuando a residir com a mãe, o irmão e o pai.»

                                                                               ¨¨

«17. O pai da L..., em douto requerimento de 04.03, acrescentou que «ainda que existisse um relacionamento sexual entre pai adoptivo e filha, do qual tivesse ocorrido a gravidez, qual a norma legal que os impedia de poderem guardar e cuidar da filha?»» 

Relativamente a este ponto de facto, os progenitores/recorrentes discordam de o mesmo figurar no elenco dos “provados”, dizendo que está a ser usada como “arma de arremesso” contra o progenitor uma pergunta que o mesmo tinha toda a razão para formular face à tramitação que aos autos apresentavam.

Que dizer?

Salvo o devido respeito, é incontornável que a questão foi feita pelo progenitor nos termos que o ponto de facto transcreve, pelo que os considerandos que ora apresenta não nos merecem acolhimento.

                                                                               ¨¨

«27. A L... foi concebida na sequência de relacionamento sexual mantido entre a sua mãe e o seu pai / avô.»

Os progenitores/recorrentes insurgem-se quanto à redação deste ponto de facto, por o negarem desde sempre e não existirem certezas absolutas sobre tal, nem do ponto de vista científico.

Que dizer?

Entendemos que não lhes assiste razão.

É que um perito do INML [consultor em medicina legal], a este propósito, e designadamente quanto ao modo de fecundação defendido pelos pais da Luna, elaborou parecer no sentido de “que o mesmo não se lhe afigura cientificamente viável” [cf. facto “provado” sob “25.”], o que, conjugado com o parecer do Conselho Médico-Legal do INML [proferido por unanimidade dos seus membros], no sentido de que “somos de parecer que a possibilidade de ter ocorrido fecundação e gravidez acidental. na sequência da utilização de uma toalha conspurcada com esperma, é muitíssimo improvável” [cf. facto “provado” sob “26.”] e bem assim com a circunstância de haver um exame pericial científico [exames periciais hematológicos ou de DNA] que conclui ser o padrasto o pai, com 99,9999998% de probabilidade [o que corresponde a paternidade “praticamente provada”, sendo de sublinhar que com esta percentagem procedem todas as ações de investigação de paternidade], e, finalmente, que o pretenso pai, na sequência desse exame, perfilhou a menor L..., o que, pelo menos em certa medida, constitui confissão quanto à paternidade [cf. facto “provado” sob “14.”], as regras do direito probatório, da lógica e da experiência comum, apontam inequívoca e insofismavelmente no sentido de que se mantenha tal ponto de facto no elenco dos factos “provados”.

Atente-se que ficar judicialmente reconhecido que o progenitor C... teve relações sexuais com a filha (adotiva) G..., que originaram a conceção, é relevante e tem interesse para a boa apreciação e decisão do mérito da questão, como melhor se aprofundará infra.

Nesta linha de entendimento, mantém-se no elenco dos factos “provados” o dito ponto de facto “27.”.

                                                                               ¨¨¨

«46. Desconhece-se familiar ou terceiro que possa e queira acolher a L... e dela cuidar.»

Relativamente a este ponto de facto, os progenitores/recorrentes discordam de o mesmo figurar no elenco dos “provados”, tecendo considerações sobre a situação.

Sucede que não afirmam ou comprovam eles que o constante deste ponto de facto não represente a realidade, donde, sem necessidade de maiores considerações, improceder a impugnação no que a este particular diz respeito.

                                                                               *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
            De referir que começam por pretender os progenitores/recorrentes a declaração de cessação da medida provisória de acolhimento residencial da menor L... «em consonância com o douto acórdão da Relação de Coimbra datado de 30.06.2021 e, em consequência, ordenar a entrega da criança aos pais, aqui recorrentes».
Sucede que, relativamente a tal, já foi supra reafirmado que se considerava prejudicado tudo o que se encontrava suscitado quanto ao despacho de 23/03/2021 (que prorrogou a dita medida cautelar e urgente de Acolhimento Residencial à menor L...), por já ter sido objeto de recurso autónomo, cuja decisão transitada em julgado já se mostrava cumprida pelo Tribunal de 1ª instância, que no passado mês de Julho de 2021 já procedeu à entrega da menor L... à família.
Assim sendo, passemos diretamente ao que releva e subsiste com interesse para decisão nesta sede recursiva, a saber, a questão da incorreção da medida de promoção e proteção aplicada a título definitivo à menor L... (de confiança a instituição com vista a futura adoção).
Sustentam, muito em síntese, os progenitores/recorrentes o desacerto da decisão recorrida, porquanto «não foi feita prova cabal de que a menor corre perigo junto da família de origem», mormente que não se mostrava preenchido o requisito legal para se poder validamente considerar quebrados os “vínculos afetivos próprios da filiação”, mormente a situação descrita na al. d) do nº 1 do art. 1978º do C.Civil, assim descrita:
«d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança».
Donde pugnarem os progenitores/recorrentes no sentido de que «deve ser revogado a douto acórdão e proferido douto acórdão em que decrete a entrega da criança aos pais, aqui Recorrentes, não haver motivos ou fundamentos legais para manter a medida».
Será então de revogar a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção e sua substituição pela de entrega da menor L... aos pais?
A nossa resposta é apenas de sentido afirmativo à primeira parte da questão, isto é – e releve-se o juízo antecipatório! – entendemos ser de revogar a medida de “confiança a instituição com vista a futura adoção”, mas já não decretar a entrega da menor L... aos seus progenitores, antes substitui-la pela medida de “acolhimento residencial”.
Vejamos porquê e como.

Não sem antes vincarmos as seguintes ideias.
            Como decorre do disposto no artigo 1º da  Lei nº 147/99 de 1 de Setembro[3], «A presente lei tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem estar e desenvolvimento integral».
            Refere o art. 3º, nº1 do mesmo diploma, que “A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo». E no seu nº 2 lê-se que «Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo, quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
                a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
                b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
                c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
                d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;  
                e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
                f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.”.
            Nos termos do artigo 4º da dita LPCJP são princípios orientadores da intervenção:
a) interesse superior da criança e do jovem;
b) privacidade;
c) intervenção precoce;
d) intervenção mínima;
            e) proporcionalidade e atualidade;
            f) responsabilidade parental;
            g) primado da continuidade das relações psicológicas profundas;
            h) prevalência da família;
            i) obrigatoriedade da informação;
            j) audição obrigatória e participação; e,
            k) subsidiariedade.
            Visam as medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo, nos termos do artigo 34º da aludida LPCJP:
            a) afastar o perigo em que estes se encontram;
b) proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso. 
            Consabidamente, as medidas previstas no artigo 35º do mesmo diploma, são as seguintes:
a) apoio junto dos pais;
            b) apoio junto de outro familiar;
            c) confiança a pessoa idónea;
            d) apoio para a autonomia de vida;
            e) acolhimento familiar;
            f) acolhimento residencial;
g) confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção.
            Ora, face à matéria apurada, dúvidas não podem legitimamente subsistir quanto à conclusão de que a menor L... se encontrava efetivamente numa situação de perigo em Julho de 2020, face à então indiciada situação de padecer a progenitora G... de mutismo seletivo e de comportamento obsessivo, acrescendo que, a confirmar-se as suspeitas, a mãe da menor teria engravidado de pessoa que a adotou e que com ela vivia, partilhando casa também com a mãe da G..., donde ser «manifesto que a menor está em perigo caso retorne à casa de origem, não tendo a mãe condições psicológicas para providenciar a satisfação das suas necessidades.».
            Tal situação de aplicação de medida de promoção e proteção a favor da menor L..., logo na imediata sequência do seu nascimento e estadia ainda na maternidade, não foi seguramente estranha à intervenção da CPCJ de ..., na sequência do Relatório inicial de “sinalização da recém-nascida L...”, [elaborado pela Técnica Superior de Serviço Social no CHO] validamente constante dos autos…
            Mas será que esse quadro de perigo se pode considerar superado/removido com a instrução que teve lugar nos autos, prova produzida no Debate Judicial, e mais concretamente no momento da prolação do acórdão sob recurso?
            Sustentam os progenitores/recorrentes que nunca houve “perigo” para a menor L... junto da família de origem, enfatizando ter o próprio Tribunal a quo (paradoxalmente, na sua versão!), sublinhado que «os progenitores disponham de todas as condições, económicas, habitacionais e sociais».
            Salvo o devido respeito, a questão não se resumia nem pode resumir a os progenitores terem condições, económicas, habitacionais e sociais (ou não).
            Na verdade, mais importante e decisivo era aferir e certificar se a integração da menor L... no agregado familiar formado pelos seus progenitores e demais familiares, se podia concludentemente perspetivar como conveniente e adequada – mormente em função das condições psico-sociais de todos e cada um dos membros desse agregado familiar.
            Mas antes de mais importa assegurar se efetivamente é legítima e incontestável a afirmação inicial de que não se podia nem pode concluir no sentido de que in casu se consideravam quebrados os “vínculos afetivos próprios da filiação”, em ordem a optar validamente pela “confiança com vista a futura adoção”, no quadro do previsto no art. 1978º do C.Civil.
            É nosso entendimento que não pode insofismavelmente concluir-se quanto a essa interrogativa de forma diversa da negativa da verificação dos pressupostos em causa.
            Senão vejamos.
            Na argumentação da decisão recorrida, «Os valores e os padrões de comportamento dos seus familiares fazem perigar a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional. O encarar-se, por todos os membros da família (pai/avô, mãe e avó materna) esta paternidade com naturalidade, sem qualquer desconforto ou incómodo, sem contrição ou sem qualquer oposição ou sentido crítico demonstra estarem comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, no sentido do respeito, por um pai, do corpo e da pessoa da filha e de esse respeito ser um valor a transmitir em sede de educação para a vida».
            Salvo o devido respeito, e não obstante o que se dirá infra, onde é que o exposto configura a verificação de um perigo grave para a «segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança», quando está em causa uma menor recém-nascida, que nunca viveu com os seus progenitores, nem nunca integrou o agregado familiar deles?
            O que é que pode fundamentar a qualificação de uma tal situação como sendo de perigo “grave”?
Não o vislumbramos de todo.
            Por outro lado, a nosso ver não cobra grande sentido invocar-se para este efeito que o perigo é “grave” na hipótese virtual de a menor vir a ser entregue sem mais aos progenitores, integrando-se então no agregado familiar que os mesmos formam, pois que isso não releva para efeitos do art. 1978º, nº1, al.d) do C.Civil.
            Nem de outra forma se compreenderia o uso do adjetivo “graveno dito art. 1978º, nº1, al.d) do C.Civil...[4]
            Isto independentemente de o “perigo” resultar amplamente definido pelo nº3 desse mesmo normativo[5]...
            Face ao que, revertendo ao elenco do já anteriormente citado art. 3º, nº1 da LPCJP, supra transcrito, não vislumbramos como considerar existente/verificado o dito “perigo” no caso ajuizado…
            Na verdade, temos presente que a segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento, são os interesses que poderão ser lesados quando existe perigo para a criança.
            Assim, a criança pode ser lesada na sua segurança quando é colocada numa situação de incerteza física ou psicológica sobre o seu bem-estar[6].
            Quanto à saúde, o perigo que é criado coloca em risco o equilíbrio físico ou psíquico da criança, a sua capacidade de resistência e o seu próprio equilíbrio mental e social, diminuindo por exemplo, o seu sentido de auto-estima, o sentimento do seu valor e da sua utilidade como membro da comunidade[7].
            Já no perigo para a formação da criança, tem-se em conta as situações que podem fazer distorcer o desenvolvimento integral da personalidade e a sua possibilidade de autorealização[8].
            O perigo em relação à educação nasce da circunstância de existir uma educação incompleta e carente, bem como de a mesma ser fonte de incapacidade de a criança se poder afirmar com todo o seu potencial[9].
            Por fim, o desenvolvimento da criança não é mais do que todo o conjunto de fatores anteriormente referidos.
            Acresce que não poderíamos nunca neste quadro afirmar, inequívoca e consistentemente, a não existência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.
            Posto que «é requisito autónomo comum, de todas as situações tipificadas no nº 1 do art. 1978º, a não existência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, vistos tanto na perspectiva dos pais para com os filhos como na dos filhos para com os pais, não bastando a verificação e prova de qualquer das circunstâncias tipificadas, sendo, pois, condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou se encontrarem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, não bastando, igualmente, que o estejam os vínculos, por assim dizer, económico-sociais próprios dela (vide P. Coelho, D. Família, Vol. 2, T. 1, pág. 278).»[10]
            Sucede que, no caso vertente, compulsando a factualidade apurada, designadamente o que se extrai dos pontos de facto “provados” sob  “37.” a “41.”, só se nos afigura legítimo concluir pela existência de laços efetivos e reais entre a progenitora G... e a menor L...
            E nem se argumente que este é um caso de prognose, isto é, que esse perigo resultaria afinal de o julgador atender, numa perspetiva preventiva, ao historial familiar dos progenitores.
            Parece-nos que tal seria perfeitamente legítimo numa situação de uma família completamente desestruturada, sem quaisquer capacidades parentais, designadamente por consumo diário de drogas, alcoolismo, violência doméstica, maus-tratos, abusos sexuais [e em que por todos esses motivos, porventura já tivessem sido retirados outros filhos], determinar logo à nascença de uma criança, que ela seja imediatamente retirada aos pais e encaminhada para uma instituição com vista a futura adoção.
Contudo essa não é de todo a situação dos autos: no caso vertente, ainda que se possa falar de um certo “disfuncionalismo vivencial subsequente ao nascimento[11], os progenitores tinham de ser efetivamente avaliados em termos objetivos e rigorosos para se extrair a probabilidade séria de colocação em perigo da criança, isto é, era indispensável que resultasse de uma tal avaliação a prognose de que o comportamento disfuncional não se inverteu nem existe a probabilidade de se inverter num futuro próximo.
            Ora se assim é, dada a ausência de uma qualquer avaliação, mormente que fosse  consistente e concludente, cremos que a resposta a uma tal pergunta terá de ser inapelavelmente negativa!
            Dito isto, vejamos agora do porquê de também não se poder concluir por uma entrega da menor L... aos seus progenitores.
            Aliás, cremos que uma tal resposta já se adivinhava face a tudo o vindo de explicitar.
            Com efeito, essa entrega estaria dependente de se ter apurado que ela não representava qualquer perigo para a menor e, sob outro prisma, que esta menor poderia alcançar um desenvolvimento são e harmonioso junto do agregado familiar que os mesmos formavam, nele se integrando.
Ora, salvo o devido respeito, não se encontra seguramente apurada uma tal situação.
Quanto à progenitora G..., atente-se que, ab initio, isto é, em Julho de 2020, estava indiciado padecer ela de mutismo seletivo e de comportamento obsessivo, acrescendo que, a confirmar-se as suspeitas, a mãe da menor teria engravidado de pessoa que a adotou e que com ela vivia, partilhando casa também com a mãe da G..., donde ser «manifesto que a menor está em perigo caso retorne à casa de origem, não tendo a mãe condições psicológicas para providenciar a satisfação das suas necessidades.».
Ora, só um exame pericial psicológico e psiquiátrico à progenitora [a incidir, nomeadamente, na apreciação das suas patologias ou distúrbios, capacidades, competências e valências parentais, funcionamento emocional, estrutura de personalidade], exame esse a realizar por gabinete médico-legal do INML, permitiria elucidar a situação com a segurança e certeza imprescindível.
Exame esse que mesma se recusou a fazer!
Sendo certo que não está obviamente em causa que a progenitora G... tenha laços afetivos reais e autênticos com a menor L... sua filha; o que está em causa é basilar e mais primariamente se a mesma tem condições psicológicas saudáveis e equilibradas para cuidar, proteger e educar a menor L... – perspetivando e assegurando um desenvolvimento saudável e harmonioso para a mesma.
Atente-se que tendo a menor L... sido concebida em situação cuja explicação dada pelos progenitores é, no mínimo, insólita[12], mas em que o pai (adotivo) da progenitora é indiscutivelmente o pai biológico da criança[13], não se nos afigura à partida como sadio e equilibrado que a progenitora G... tenha a vontade inabalável de levar a menor L... para aquele agregado familiar e nele a integrar, para ser por todos cuidada e acompanhada.
            Por outro lado, quanto ao progenitor C..., releva decisivamente que vivendo a progenitora da menor (sua filha adotiva) na mesma casa e integrando o agregado familiar de que faz parte também a avó da menor recém nascida, com quem aquele se encontra casado e que é a mulher dele, tendo o ocorrido tido lugar neste contexto vivencial, não evidencia ele qualquer auto-censura, contrição ou penalização sobre o sucedido, antes procura colocar a situação num patamar de normalidade, quando se permite a interrogativa feita em requerimento entrado nos autos[14], a saber, «ainda que existisse um relacionamento sexual entre pai adoptivo e filha, do qual tivesse ocorrido a gravidez, qual a norma legal que os impedia de poderem guardar e cuidar da filha?».
            A este propósito consta positivamente do elenco dos factos “provados sob “44.” que «Os progenitores e a avó encaram com naturalidade a ocorrida gravidez de que nasceu a L..., sem qualquer indício de desconforto ou contrição pela situação verificada ou da sua não aceitação, desvalorizando de todo o sucedido.»
            Sucede que, independentemente de qualquer moralismo, de matriz judaico-cristã ou outra, uma jovem de 18 anos engravidar do pai (adotivo) que se encontra casado e que é o marido da mãe dela, vivendo todos na mesma casa e em aparente harmonia, não é uma situação com a qual a nossa sociedade, no patamar civilizacional em que encontra, possa qualificar de “normal” ou tolerável acriticamente.
            Antes, salvo o devido respeito, importa aferir e certificar rigorosa e objetivamente o equilíbrio e saúde psico-social de todos os membros desse agregado familiar, avó incluída, quer individualmente considerados, quer na sua correlação e necessária convivência entre si, nos papéis que apresentam enquanto tal no núcleo familiar que formam, e designadamente para nele acolher e ser integrada a menor L...[15]
            Daí ter sido ordenada também a realização de perícias psiquiátricas e de personalidade à avó materna (M...) e a C..., os quais igualmente os recusaram.
            Neste conspecto, estamos reconduzidos a uma situação em que só a efetivação desse conjunto de exames periciais permitiria uma avaliação completa e concludente sobre a situação.
            Passando a concretizar melhor o vindo de afirmar, no caso vertente o Ministério Público requereu a realização do conjunto das ditas perícias psicológicas/psiquiátricas e de personalidade (a ambos os progenitores da menor L... e à avó materna).
            Consabidamente, o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respetiva produção, atuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417º do n.C.P.Civil.
            Tenha-se ainda presente que a perícia é um meio de prova técnico/científica que visa a comprovação por pessoa, com reconhecida competência e idoneidade na matéria em causa, conforme expressa previsão do artigo 467º, nº 1, do mesmo n.C.P.Civil.
            Sucede que, no quadro dos autos, estando em causa a proteção duma criança recém-nascida, que foi provisoriamente objeto da medida de acolhimento residencial, por se levantarem “fundadas suspeitas” de que a mãe da mesma, que vivia com o seu pai adotivo, teria engravidado deste, mais se indiciando então que essa mesma progenitora padecia de mutismo seletivo e de comportamento obsessivo, sendo certo que inquestionavelmente a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde da criança, obviamente que a situação de saúde da mãe é essencial para apurar da sua capacidade parental e, nessa medida, da possibilidade de a filha lhe ser novamente entregue, se necessário, após tratamento prévio que seja considerado adequado, pelo que só com a devida avaliação médico-legal o tribunal teria o necessário enquadramento para uma tomada de decisão consciente sobre a situação de vida familiar em presença, já que somente as provas são o substrato da formação da respetiva convicção quanto à base factual do litígio.
            Aqui estando obviamente incluída a avaliação dos avós (pai adotivo e mãe da G...), pois que estava em causa a integração da menor recém-nascida no agregado familiar dos mesmos…
            Não obstante, todos eles se recusaram a fazer os ditos exames.
Ora, a justificação apresentada para tanto, a saber, de que não podiam ser impostos exames médicos aos próprios, sem consentimento destes, por constituírem uma violação dos seus direitos de personalidade[16], não se nos afigura gozar de uma proteção absoluta.
Na verdade, para além do já supra expendido em termos do direito à prova, contrapõe-se ainda ao invocado pelos progenitores/recorrentes, o direito à proteção efetiva da criança recém-nascida, L..., consagrado no artigo 69º da CRP, cujo nº 2 estabelece que «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições».
            A esta luz, está em causa o direito que a criança tem de ser protegida da própria família, ainda que transitoriamente.
            Assim, não se posterga, o que a respeito da tutela da vida privada estabelecem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cujos artigos 12º e 8º regem sobre esta matéria, estatuindo respetivamente que «ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada» e que «toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada», não podendo «haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito».
            Posto que, logo ali se refere também «senão tanto quanto esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades dos outros» [com sublinhado nosso].
Dito de outra forma: estando devidamente protegida a vida privada dos indivíduos mesmo da ingerência das autoridades públicas, a lei, a constituição e os instrumentos internacionais ressalvam a possibilidade de intromissão na mesma, quando for necessária, para o que ora importa, à proteção dos direitos de outros, no caso, à proteção da criança em perigo.
            Efetivamente, à semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
            O que tudo serve para dizer que, à partida, nem se podia configurar como absolutamente líquida e inquestionável a recusa aos exames em causa.
            Em todo o caso, temos para nós que o quadro fáctico dado como “provado” nos autos aponta com suficiente certeza e segurança para uma situação de perigo da menor L..., em função das condições psico-sociais de todos e cada um dos membros desse agregado familiar.
Atente-se que, não obstante o indiciado e que presidiu ao decretamento provisório, apenas se apurou ademais que a progenitora G... mantinha consultas ao nível das especialidades de psiquiatria e neurologia [cf. facto “provado” sob “36.”] e bem assim que havia uma aparência ou imagem pública de normalidade e equilíbrio de todos e cada um dos sujeitos em causa [cf. factos “provados sob “37.” a “45.”].
O que, quanto a nós, não é convincente e concludente de que isso corresponda à realidade.
Mas mesmo que assim se não entenda, cremos que é caso de invocar para este efeito a diretriz resultante da circunstância de os interessados/investigados, com a sua recusa ilegítima – de se submeterem às preconizadas perícias psicológicas/psiquiátricas e de personalidade – inviabilizaram a prova do perigo em causa [face à incontornável falência de qualquer outro meio de prova (indireta)], pelo que deve, por aplicação do art. 344º, nº 2, do C.Civil, inverter-se o ónus da prova, isto é, deverá aplicar-se o preceituado no nº 2 do art. 344º do C.Civil, presumindo-se esse perigo e passando a incumbir aos recusantes o ónus de criar “dúvidas sérias” sobre ele…
O que não cremos poder considerar-se feito, ao apenas resultar, como já exposto, a já citada aparência ou imagem pública de normalidade e equilíbrio de todos e cada um dos sujeitos em causa.
            Consequentemente, se é de revogar a medida de “confiança a instituição com vista a futura adoção”, já não é de decretar a entrega da menor L... aos seus progenitores, antes cumprindo substituir aquela medida ora revogada pela medida de “acolhimento residencial” dessa menor.
Com isto não se olvida que a institucionalização da menor recém-nascida, como de qualquer menor, é a última ratio, e deve ser perspetivada como provisória e excecional.
Aliás, não é por acaso que a própria legislação que estabelece o regime de execução do acolhimento residencial, medida de promoção dos direitos e de proteção das crianças e jovens em perigo [constante do Decreto-Lei nº 164/2019 de 25 de outubro], sublinha no seu preâmbulo que «Enquanto medida de colocação, o acolhimento residencial assenta no pressuposto do regresso da criança ou do jovem à sua família de origem ou ao seu meio natural de vida (…)».
Donde, essa institucionalização que se decreta por ora nem será definitiva – posto que desde logo legalmente sujeita à revisão periódica, nunca superior a 6 meses (cf. art. 62º, nº1 da LPCJP, sem prejuízo do previsto no nº 2 dessa mesma norma).
Estando, assim, acessível à progenitora G... demonstrar a breve trecho que outra pode e deve ser a conclusão sobre as suas condições psico-sociais, o que igualmente se aplica relativamente ao progenitor C..., sendo disso caso.
Em todo o caso, a separação física diária entre a progenitora G...  e a menor L... não será forçosa e necessária, posto que existem unidades especializadas onde as duas poderão ficar juntas, ao estarem vocacionadas para as jovens mães (mormente as adolescentes) que não têm condições económico-sociais para viverem com autonomia, situação que deverá ser ponderada mais uma vez na 1ª instância[17], atendendo a que, em cumprimento do decidido por acórdão do TRC de 29 de Junho de 2021, no passado mês de Julho de 2021 já teve lugar a entrega da menor L... à família.
Procede nestes termos o recurso.

                                                                               *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A LPCJP (Lei nº 147/99, de 1 de Setembro), que tem por objeto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, prevê a intervenção quando o representante legal ou quem tenha a guarda de facto da criança ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento (arts. 1º e 3º).

II – Essa intervenção deverá pautar-se pelos princípios orientadores enunciados no artº 4º, referenciando-se, desde logo, na al.a), o interesse superior da criança.

III – Na aplicação de uma medida de promoção e protecção deve também observar-se o princípio da proporcionalidade, contemplado no art. 4º, al.e), da LPCJP.

IV – É pressuposto genérico da medida de confiança judicial com vista a futura adoção a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação” (corpo do nº 1 do art. 1978º do C.Civil) e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas do mesmo nº 1.

V – A situação tipificada na d) deste último normativo – que os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor – exige que o mencionado perigo seja “grave”, na medida em que de outra forma se não compreenderia o uso deste adjetivo.

                                                                                              *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto decide-se, a final, julgar parcialmente procedente o recurso e revogar a decisão recorrida de “confiança a instituição com vista a futura adoção” decretada à menor L..., substituindo-a pela medida de “acolhimento residencial” dessa menor, a ser operada em concretas condições de tempo e lugar a definir na 1ª instância.

Sem custas.

                                                                                               Coimbra, 26 de Outubro de 2021

                                                                       Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] De referir que já por despacho liminar, subscrito singularmente pelo ora Relator, foi decidido que nesta instância de recurso não se ia conhecer do objeto do recurso quanto ao despacho de 03/07/2020 [nas partes em que decretou a medida cautelar e urgente de Acolhimento Residencial à menor L... e em que determinou a realização de exames periciais psicológicos e psiquiátricos à progenitora], por renúncia e intempestividade na dedução de um tal recurso, e que se considerava prejudicado tudo o que se encontrava suscitado quanto ao despacho de 23/03/2021 [que prorrogou a dita medida cautelar e urgente de Acolhimento Residencial à menor L...], por já ter sido objeto de recurso autónomo, cuja decisão transitada em julgado já se mostrava cumprida.
Por outro lado, não se vai considerar nesta sede o que foi suscitado sob o enquadramento de “Processo cheio de irregularidades e nulidades”, por completamente vago e generalista…

[3] “Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”, doravante “LPCJP”.
[4] Também assim se sustentou no acórdão do TRC de 02.10.2012, proferido no proc. nº 732/10.5TBSCD, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] No qual se encontra preceituado o seguinte: «3. Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.» [sublinhados nossos]
[6] Assim BEATRIZ MARQUES BORGES, in “Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”, Livª Almedina, 2011, 2ª ed., Coimbra, a págs. 38.
[7] Idem nota antecedente.
[8] Idem nota antecedente.
[9] Idem nota antecedente.
[10] Citámos novamente o acórdão do TRC de 02.10.2012 aludido na precedente nota, proferido no proc. nº 732/10.5TBSCD, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[11] Expressão utilizada por PAULO GUERRA, “Confiança Judicial com vista à adopção – Os difíceis trilhos de uma desejada nova vida, in “Revista do Ministério Público”, n.º 194, Ano 26, Out-Dez 2005, a págs. 89.
 
[12] Está-se a aludir à versão da toalha conspurcada com sémem do pai a que a progenitora se limpou…
[13] O teste de ADN é perfeitamente conclusivo [probabilidade de paternidade de W=99,999999999998%], acrescendo que o próprio nunca o questionou como tal, até operando uma perfilhação voluntária na imediata sequência ao conhecimento do resultado desse teste.
[14] É o facto “provado” sob “17.”
[15] «importa melhor avaliar como se estrutura a referida dinâmica entre os elementos do agregado familiar e se estabelecem as fronteiras entre os papeis parentais e filiais», como pertinazmente em momento anterior foi preconizado pelos serviços do ISS.
[16] Ao que nos é dado perceber, está a ser invocado o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26º, nº 1, da CRP.
[17] Cf. facto “provado” sob “9”, na redação que lhe foi conferida na apreciação da impugnação à decisão sobre a matéria de facto a que se procedeu supra.