Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/17.8T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CESSÃO DE QUOTAS
PREÇO
DECLARAÇÃO CONFESSÓRIA
PROVA
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.351, 352, 358, 374, 376, 394 CC
Sumário:
1. A declaração de recebimento do valor nominal das quotas, aposta no documento particular que formaliza uma cessão de quotas, pode ter outro significado que não o recebimento da prestação, podendo colocar-se um problema de interpretação da declaração.

2. A declaração de recebimento de certa quantia encontra-se, em regra, sujeita ao regime jurídico da confissão, constituindo prova plena contra o confitente.

3. Tal prova plena pode ser ilidida mediante a alegação e prova de que tal pagamento não ocorreu (ou não ocorreu na sua totalidade), com as restrições especialmente previstas nos arts. 351º e 394º (inadmissibilidade de prova testemunhal e por presunções), salvo se existir um princípio de prova escrito em contrário do facto confessado.

4. Se do respetivo contrato-promessa consta que a cessão seria feita, não pelo valor nominal, mas pelo valor de 40.000,00 € e que tal valor seria pago mediante a entrega de 8.000,00 € com a celebração do contrato promessa, 22.000, 00 com a celebração do contrato prometido e 10.000, 00, posteriormente, aquele documento – aliado à confissão do réu de que só pagou 30.000 € –, constituiu um princípio de prova por escrito que permite ao credor a prova de que o preço não ficou pago na sua totalidade aquando da celebração do contrato prometido.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

F (…) intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra D(…)
peticionando a condenação deste no pagamento à autora da quantia de 10.000,00€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento.

Para o efeito, alega, em síntese:
a 14 de agosto de 2015, a autora e (…) celebraram com o réu um contrato promessa de cessão de quotas, através do qual prometerem ceder ao réu e este prometeu adquirir-lhes as duas quotas na sociedade S (…),Lda., pelo preço global de 40.000,00€, sendo que o réu, até ao presente apenas pagou a quantia de 30.000,00€, permanecendo em dívida a quantia de 10.000,00€, correspondente ao remanescente do preço acordado e que deveria ter sido pago até 30 de Junho de 2016.
a 04 de Dezembro de 2015 veio a ser celebrado o contrato definitivo de cessão de quotas;
por contrato de cessão de crédito, datado de 21 de Setembro de 2016, a autora adquiriu a Ricardo Torrão todos os direitos emergentes do contrato promessa supra referido.

O réu veio apresentar contestação, alegando, em síntese:

o contrato promessa em causa nestes autos é ineficaz em relação ao réu, uma vez que é de nacionalidade francesa, não sabendo ler a escrita portuguesa;
tal contrato promessa deve ser anulado por ter existido erro na declaração, uma vez que o réu se encontrava convencido de que a faturação da firma era distinta (por superior) da que se veio a verificar, ao contrário do que lhe havia sido comunicado;
por esse motivo, as partes acordaram na redução do valor da cessão para a quantia de 30.000,000€, já paga;
no contrato definitivo de cessão de quotas, tanto a autora como (…) declararam já ter recebido do réu o respetivo valor da cessão em causa, pelo que tal declaração é tida como confessória, implicando o reconhecimento pela autora de que já recebeu a totalidade do preço.
Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Considerando disporem os autos de todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito o juiz a quo proferiu sentença a julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo o réu do pedido.

*
Inconformada com tal decisão, a autora dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

(…)


*
O Réu apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.

Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:

1. Se a ação dispunha de todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito:

a. valor da declaração emitida pela ré aquando da celebração da escritura de compra e venda de que havia recebido a totalidade do preço – impugnabilidade de tal declaração.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A 14 de agosto de 2015, a autora e R (…) celebraram com o réu um contrato-promessa de cessão de quotas, pelo qual declararam ceder ao réu e este prometeu adquirir-lhes duas quotas na sociedade S (…), pelo preço global de 40,000 €, sendo 8.000,00 € a titulo de sinal e princípio de pagamento com a assinatura do contrato promessa, 22.000,00 € a pagar com a celebração do contrato prometido, a formalizar até 15 de dezembro de 2015, e 10.000,00 € até 30 de junho de 2016.

Por contrato escrito datado de 4 de dezembro de 2015, a Autora e R (…) declararam ceder ao réu as duas referidas quotas – uma no valor nominal de 4.950 € e outra no valor nominal de 50,00 € –, declarando que cada uma dessas quotas “é cedida livre de quaisquer ónus e encargos e com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo seu valor nominal, que o cedente declara já haver recebido do cessionário”.

Com a presente ação, alegando que, do preço acordado no valor de 40.000,00 €, apenas recebeu 8.000 € na assinatura do contrato promessa e 22.000 € com a assinatura do contrato prometido em 04 de dezembro de 2015, a autora pretende exigir do réu o remanescente do preço ainda em falta, no valor de 10.000,00 €.

Por sua vez, o réu defende-se alegando nada dever por ter sido acordado que o valor do contrato prometido seria reduzido para a quantia de 30.000,00 €, como de resto foi, invocando a seu favor a declaração aposta no contrato prometido pela aqui autora e por Ricardo Fazendeiro, de já terem recebido do aqui réu o respetivo valor da cessão em causa.

O Juiz a quo deu como provados os seguintes os factos na sentença recorrida:

1. Por documento datado de 14 de Agosto de 2015, reduzido a escrito e denominado “Contrato Promessa de Cessão de Quotas”, a autora F (…) e R (…), promitentes cedentes, declararam prometer ceder ao réu D (…), promitente cessionário, que declarou prometer adquirir-lhes duas quotas na sociedade com a firma S (…)Lda., com o NIPC (…), uma com o valor nominal de 4.950,00€ e outra com o valor nominal de 50,00€, pelo preço global de 40.000,0€.

2. Nesse documento, os outorgantes declararam que o preço referido em 1) seria pago do seguinte modo: 8.000,00€ como sinal e princípio de pagamento no momento da assinatura do documento referido em 1), servindo este de quitação; 22.000,00€ com a celebração do contrato definitivo e 10.000,00€ até 30 de Junho de 2016.

3. Os outorgantes declararam, nesse documento, que o contrato definitivo seria realizado até ao dia 01/12/2015, em hora, dia e local a indicar pelo aqui réu.

4. Por documento datado de 04 de Dezembro de 2015, reduzido a escrito e denominado “Contrato Particular de Cessão de Quotas”, foi celebrado o contrato prometido, por F (…), primeira outorgante, R (…), segundo outorgante, D (…), terceiro outorgante e C (…), quarta outorgante.

5. No documento referido em 4), na cláusula terceira, consta que: “A quota é cedida livre de quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo seu valor nominal, que a cedente (primeira outorgante) declara já haver recebido do cessionário, dando assim terminada a presente cessão de quotas”.

6. No documento referido em 4), na cláusula quinta, consta que: “Declara o segundo outorgante que a sua quota é cedida livre de quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo seu valor nominal, que o cedente declara já haver recebido da cessionária e quarta contratante, dando assim terminada a presente cessão de quotas”.

7. Por documento datado de 21 de Setembro de 2016, reduzido a escrito e denominado “Contrato de Cessão de Crédito e Direitos” R (…), primeiro outorgante, declarou ceder a F (…), segunda outorgante, todos os direitos, de qualquer natureza, sobre D (…) emergentes do contrato promessa de cessão de quotas, aludido em 1).

Com base em tais factos, o juiz a quo veio a julgar a ação, desde logo, improcedente, apoiando-se na seguinte argumentação: tendo os promitentes-compradores confessado no contrato prometido terem recebido o valor da cessão, à autora apenas lhe seria facultada a prova do contrário caso alegasse a falsidade do dito contrato ou invocasse qualquer falta ou vício de vontade na formação da vontade que tivesse inquinado a declaração constante desse contrato; por outro lado, também não existe qualquer princípio de prova que ponha em questão o montante do preço ou o seu pagamento, não existindo outros elementos que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento.

Não podemos concordar com a análise jurídica da questão feita pelo juiz a quo na sentença recorrida.

É certo que no documento através do qual celebraram o contrato prometido de cessão de quotas, os cedentes declararam que as quotas são cedidas “pelo seu valor nominal”, que os cedentes declaram “ter recebido”.

Aceitamos poder configurar uma declaração confessória A jurisprudência atribuiu em regra natureza confessória à declaração de recebimento do preço inserta em documento formalizador de um contrato – cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 02-03-2011, relatado por João Bernardo, de 17-12-2015, relatado por Abrantes Geraldes, e de 17-03-2016, relatado por Salazar Casanova, disponíveis in www.dgsi.pt. , enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (artigo 352º do Código Civil).
A força probatória da confissão extrajudicial depende da forma porque tenha sido feita: sendo verbal, aplicar-se-ão as regras relativas à prova testemunhal; sendo escrita, as relativas à prova por documentos (artigo 358º, ns. 2, 3 e 4, CC).
Constando as declarações em apreço de um documento particular simples (sem reconhecimento notarial das assinaturas), e não provando estes, por si só, a sua autenticidade, antes de mais, a sua genuinidade há de ser aferida nos termos previstos no artigo 374º do Código Civil (CC).
No caso em apreço, junto aos autos o documento em causa pela própria autora, em simultâneo com outros documentos, nenhuma das partes/intervenientes no negócio, impugna a sua autoria ou o respetivo teor, considerando-se, assim, reconhecida a sua autoria, ou seja que o documento foi efetivamente emitido e assinado pelos seus subscritores.
O documento particular cuja autoria seja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (nº1 do artigo 376º, CC).
Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº2 do artigo 376º).
Tratando-se de declarações dirigidas à parte contrária, tais declarações fazem prova plena contra o confitente (nº2 do artigo 358º do CC).
A força probatória plena atribuída por lei à confissão judicial e a certas confissões extrajudiciais, é independente da intenção do confitente e funda-se na regra da experiência de que quem reconhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe ser ele verdadeiro Entre outros, Adriano Vaz Serra, “Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 111, pág. 16, e José Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, Coimbra Editora, p. 187..

Resumindo, o documento particular cuja autoria seja reconhecida faz prova plena de que as afirmações nele constantes foram efetivamente emitidas.

Quanto à veracidade das afirmações nele constantes, ter-se-ão igualmente como plenamente provadas A este respeito, a doutrina distingue três tipos de prova: prova livre ou prova bastante, que cede mediante a mera contraprova (consistente em criar a dúvida no espirito do julgador a dúvida ou a incerteza acerca do facto questionado), prova plena, que cede mediante a prova do contrário, por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto; prova pleníssima, que não admite a prova do contrário, e que só pode ser destruída mediante a impugnação dos pressupostos dessa mesma prova – J. M. Gonçalves Sampaio, “A Prova por documentos particulares”, 3ª ed., Almedina 2010, pp. 53-61. se forem desfavoráveis ao emitente, já não em resultado da força probatória do documento, mas do regime da confissão.

A força probatória plena que advém da confissão extrajudicial não impede a impugnação da veracidade da declaração confessória, através de qualquer um dos seguintes meios:

1. falta ou vício na formação da vontade capazes de a invalidarem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 332. – não restringindo a lei o uso de qualquer meio de prova relativamente aos factos integradores de tal vício Como salienta José Lebre de Freitas, a prova do vício da confissão pode ser feita por qualquer meio – “A Confissão no Direito Probatório”, Coimbra Editora, p. 758., a não ser no caso de simulação em que, quando invocada pelos próprios simuladores, não será admissível nem a prova testemunhal nem a prova por presunções (artigo 351º do CC). De qualquer modo, mesmo nos casos de simulação invocada pelos próprios simuladores, a jurisprudência e a doutrina admitem afastar tais restrições sempre que exista um princípio de prova escrita relativamente aos factos integrantes de tal vício.

2. pode ainda alegar e demonstrar não ser verdadeiro o facto confessado, nos termos previstos no artigo 347º do Código Civil, ou seja, mediante a prova do contrário, voltando a colocar-se aqui a restrição relativa à prova testemunhal e de presunções judiciais (arts. 393º, nº2 e 351º, ambos do Código Civil).

Voltando ao caso em apreço.

Tal como é sustentado pela Apelante nas suas alegações de recurso, da leitura dos articulados da ação resulta existir neles acordo entre as partes quanto à seguinte factualidade:

- aquando da celebração do contrato promessa, as partes acordaram em que o preço da cessão das quotas seria de 40.000,00 €;

- mais acordaram em que o preço seria pago pela seguinte forma: 8.000,00€ como sinal e princípio de pagamento no momento da assinatura do documento referido em 1), servindo este de quitação; 22.000,00€ com a celebração do contrato definitivo e 10.000,00€, posteriormente e até 30 de Junho de 2016;

- o contrato definitivo foi celebrado a 04 de dezembro de 2015 e por conta do preço de tal cessão o réu apenas pagou as seguintes quantias:
a quantia de 8.000,00 € aquando da assinatura do contrato-promessa;
a quantia de 22.000,00 €, aquando da assinatura do contrato de cessão.

Com efeito, da leitura atenta da contestação apresentada pelo réu resulta que não só este não impugna os factos alegados pela autora, dos quais resulta que o réu só terá pago a quantia de 30.000,00 € por conta do pagamento do preço da cessão de quotas, como tal facto se tem de ter por expressamente confessado quando, nos arts. 13º e 14º da sua contestação alega que “o réu, quando teve conhecimento que o volume de negócios da firma não era aquele que lhe havia sido comunicado, quis desistir do negócio, e só não o fez por ter ficado acordado que o valor do contrato prometido seria reduzido, como de resto, o foi, para a quantia de 30.000,00 €”.

Relativamente a tal questão de facto, o réu aceita e confessa ter procedido ao pagamento unicamente da quantia de 30.000,00 €, fazendo assentar a sua defesa num outro plano. O que ele alega para obstar à obrigação de pagamento dos restantes 10.000,00 €, é que, posteriormente à celebração do contrato-promessa – no qual haviam acordado em que o preço da cessão seria de 40.000,00€, sendo que os últimos 10.000,00 seriam pagos em momento posterior ao previsto para a celebração do contrato definitivo –, teria sido acordado entre as partes que o valor da cessão seria reduzido para a quantia de 30.000,00 €.

E este é o único facto controvertido nos autos relativamente a tal matéria – se foi, ou não, acordada a redução do preço inicialmente acordada.

Os factos de que o preço acordado era de 40.000,00 € e de que o réu só pagou 30.000,00 € encontram-se assentes, desde logo, por confissão do réu inserida no respetivo articulado.

E, não se tratando de factos relativamente aos quais a lei proíba a confissão (factos relativos a direitos indisponíveis ou só provados documentalmente ou facto impossível ou notoriamente inexistente – artigo 354º do Código Civil), e tendo a confissão judicial escrita força probatória plena – artigo 358º do Código Civil –, tais factos ter-se-ão de ter por plenamente provados.

Assim sendo, não se colocará a questão de saber se o réu procedeu ou não ao pagamento da última tranche de 10.000 € (que, segundo o acordado entre as partes aquando da celebração do contrato promessa, haveria de ser paga precisamente em momento posterior ao da celebração do contrato prometido de cessão de quotas), uma vez que se encontra provado por confissão do réu que tal valor não foi pago.

Face à confissão judicial de tais factos por parte do réu, a invocação que o mesmo faz da declaração efetuada pelo aqui autor no contrato de cessão de quotas, no sentido de que cada um das quotas “é cedida pelo seu valor nominal, que a cedente declara já haver recebido do cessionário”, não pode ter o efeito por si pretendido, de a autora não poder mais discutir se recebeu, ou não, os 10.000,00 € que, segundo o acordado inicialmente, haveria de ser pago precisamente em momento posterior à celebração do contrato prometido.

Reconhecendo o réu expressamente que a declaração aí imputada aos cedentes, pelo menos em parte, não é verdadeira – a cessão não foi efetuada pelo valor nominal e o réu pagou já ao autor um valor muito superior ao valor nominal de cada uma das quotas – não se pode pretender fazer valer apenas de parte dela, e que a mesma tenha o valor de força probatória plena contra a aqui autora.

A força probatória plena da declaração confessória contida no documento que formaliza a celebração do contrato prometido – de que a cessão das quotas seria feita pelo seu valor nominal, valor este já recebido pelos cedentes – fica seriamente abalada quando o réu, na sua contestação, aceita o alegado pela autora de que, segundo o acordado aquando da celebração do contrato-promessa, as quotas seriam cedidas, não pelo seu valor nominal (4.950,00 €), mas pelo valor global de 40.000 € e que o preço seria pago nos termos referidos em tal contrato-promessa: 8.000,00 € no momento da celebração do contrato, 22.000,00 € no momento da celebração do contrato prometido e os últimos 10.000,00 €, posteriormente e até 30 de junho de 2016.

Aliás, neste contexto – face à prova de tais factos relativamente ao acordo existente relativamente ao montante do preço e termos do seu pagamento –, poder-se-á mesmo questionar se a declaração de que “é cedida pelo seu valor nominal, que a cedente declara já haver recebido do cessionário”, conterá efetivamente um reconhecimento por parte dos cedentes de que lhes foi pago o preço acordado, ou seja, tornar-se-á discutível a atribuição de valor confessório a tal declaração.

Ou seja, colocar-se-á inclusivamente um problema de interpretação do sentido de tal declaração – os cedentes estão a reconhecer que receberam o valor nominal das quotas (os 4.950,00 € e os 50 € que valia cada uma das quotas, interpretação para a qual aponta o seu sentido mais literal)? ou, estão a reconhecer que receberam o valor pelo qual as quotas efetivamente foram cedidas, abstraindo do seu montante? ou a declaração teve um outro qualquer significado, por. ex. uma quitação prestada antecipadamente, na previsão de que o pagamento viesse a ocorrer?

Por outro lado, em nosso entender, é perante a posição assumida pelas partes nos respetivos articulados que se coloca a questão de determinar quais os factos que terão se ser objeto de instrução.

Assim sendo, face à configuração da relação jurídica, resultante da posição assumida pela autora e pelo réu nos respetivos articulados da ação – encontrando-se de acordo em que, do valor de acordado para a cessão – de 40.000,00 € –, aquando da celebração do contrato promessa, o réu só entregou a quantia de 30.000,00 €, haverá que apurar se ocorreu a alegada redução do preço, pois, só assim, o preço se poderá considerar liquidado na sua totalidade.

E, se considerarmos que a alegação da autora (aliás aceite pelo réu) de que o preço acordado foi diferente do declarado e que uma parte do mesmo havia de ser paga em momento posterior à celebração do contrato prometido e não o foi, o que importará uma simulação de um dos elementos integrantes do negócio Deduzindo-se que, com vista à efetivação do registo da cessão, a efetuar nos termos do artigo 46º do CRC, e à diminuição do valor dos impostos a pagar., à autora ser-lhe-ia facultada a respetiva prova sem as restrições do artigo 351º (proibição da prova testemunhal e por presunções).

Como sustenta José Lebre de Freitas, “ao confessar-se um pagamento falso, quer-se perante terceiros a aparência de um facto extintivo, isto é, o efeito reflexo, mas não o direto, da extinção da obrigação. Provado que o pagamento não teve lugar, a lei trata a declaração confessória como uma declaração confessória simulada (e já não como uma declaração de ciência) e, atendendo a que, por efeito do acordo simulatório, as partes não quiseram o efeito que normalmente decorre das declarações de vontade negociais, como tal a considera nula. “A Confissão (…), p. 651.

E à autora ainda lhe seria permitida a simples prova do seu contrário – ou seja, de que efetivamente, aquando da celebração do contrato de cessão, o respetivo preço não ficou pago na totalidade – ao abrigo do disposto no artigo 347º do CC, agora com as restrições relativamente à prova testemunhal e de presunções judiciais. Ou seja, nesta hipótese ainda lhe seria possível, por ex. o recurso à prova por confissão judicial, requerendo o depoimento de parte do réu. E, ainda nesta situação, a jurisprudência dominante admite igualmente a admissibilidade da prova testemunhal e por presunções, enquanto prova complementar, desde que exista um princípio de prova por escrito que provenha daquele a quem é oposto e torne verosímil o facto alegado, já que nessa situação o perigo da prova testemunhal se encontrar atenuado com a existência do documento Neste sentido, Acórdão do STJ de 09-07-2017, relatado por Paulo Sá, Acórdão do TRL de 27-04-2010, relatado por Tomé Gomes, e Acórdão do TRC de 23-06-2015, relatado por Henrique Antunes, disponíveis in www.dgsi.pt. .
Quando há um começo de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, justificando-se a exceção por, então, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento Adriano Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107º, p. 312..

Segundo Vaz Serra Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 101, p.272, dando como ex., que, se a declaração constante do documento foi feita na previsão de uma futura entrega, a prova de que os declarantes não receberam a quantia indicada na sua declaração não envolve a prova de uma “convenção” contrária ao conteúdo do documento, não lhe sendo aplicável o artigo 394º CC., sendo a declaração de quitação, em regra, não uma declaração contratual, mas uma mera declaração unilateral confessória – uma declaração de ciência – o artigo 394º do Código Civil (que proíbe a prova testemunhal para prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou particular) não lhe é aplicável, pelo que, se a maior parte das vezes será de considerá-la como prova plena, é de admitir a contraprova.

Assim sendo, torna-se claro que os autos não dispunham de todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito, havendo de prosseguir, não só para apuramento de tal facto – que o preço não se encontrava integralmente pago –, mas, ainda, para apuramento dos factos que integram a restante defesa do réu (relativos à sua falta de compreensão relativamente aos documentos que assinou, bem como ao exagero do valor acordado para as quotas que o réu só terá aceitado por não lhe ter sido facultada a faturação da firma e o imobilizado).

A apelação será de proceder, impondo-se o prosseguimento dos autos para instrução dos factos controvertidos.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos.

Custas a suportar pelos apelados.


Coimbra, 8 de maio de 2018


Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral