Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
464/19.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: VENDA SOBRE DOCUMENTOS
DEVER DE BOA FÉ
NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217.º, 802.º E 937.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - É de qualificar como venda sobre documentos o contrato em que as partes acordaram que a entrega da coisa (feijão) à compradora era substituída pela entrega, por parte da entidade bancária mandatada para receber o preço, da documentação necessária para a compradora proceder ao levantamento da mercadoria depositada no porto de destino.

II - A circunstância de o representante do vendedor ter procedido, com a concordância do comprador, ao levantamento, junto da entidade bancária, da documentação que substituía a entrega da mercadoria, não é suficiente, só por si, para dela se extrair a vontade comum das partes de pôr termo à relação contratual que as unia.

III – Na venda sobre documentos, quando parte da mercadoria entregue for defeituosa, assiste ao comprador o direito de verificar a qualidade da restante mercadoria vendida antes de efectuar o pagamento do preço, ainda que o contrato não preveja tal verificação prévia.

IV – Se o vendedor não consentir tal verificação prévia da qualidade da mercadoria, incorre em incumprimento do contrato.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Como consta do relatório da decisão recorrida e, que aqui se transcreve, a Autora intentou a presente acção declarativa de condenação:
Peticionando que seja a R. condenada a pagar à A. a quantia global de € 74.101,10, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alega para tanto e em suma, que no âmbito da sua atividade comercial, a Ré comprou à Autora 22 contentores de feijão frade, distribuídos e enviados em três embarques distintos.
Já com a chegada do segundo lote, a Ré reclamou que a carga teria chegado com gorgulho vivo e grãos furados; porém, no seu entender, a Ré não seguiu o protocolo que decorria do contrato assinado entre ambas, limitando-se a enviar fotos não perceptíveis.
Posteriormente, em 9 de Maio de 2018, chega o terceiro lote.
A Ré não procedeu ao pagamento deste lote, tendo a R. dito à A., através de e-mail, que, em virtude do segundo lote ter gorgulho vivo e grãos furados, não podia comercializar o referido produto.
Com esse fundamento, peticionou a R. que pudesse proceder à analise do terceiro lote antes de proceder ao seu pagamento, algo com que a A. não concordou, remetendo para os termos do contrato assinado entre ambas e informando que os contentores não poderiam ficar tanto tempo no porto sem serem abertos, sob pena do seu conteúdo se estragar.
A A., depois de tentar contactar, sem sucesso, o sócio da Ré, decidiu enviar um funcionário do Brasil para Portugal para resolver a situação, suportando assim uma despesa de USD 6.929,20 (o equivalente a €1.645,10).
Na sua óptica, a Ré abandonou a carga no porto, servindo-se de um suposto prejuízo com o segundo lote para não pagar o terceiro, pretendendo com isso aproveitar-se da queda do preço do feijão no mercado.
Invoca assim ter ocorrido um incumprimento contratual definitivo da parte da Ré, peticionando indemnização pelos danos sofridos.

Regulamente citada, veio a Ré contestar.
Começa por reproduzir os termos do contrato por si celebrado com a A., destacando que o transporte corria por conta da A., sendo o pagamento efectuado contra entrega dos documentos.
Sustenta que já com o primeiro carregamento, de 6 contentores, foi detectada a presença de gorgulho, morto e vivo, em vários estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), pelo que a R. não descarregou tal carregamento, tendo solicitado, de imediato, à C..., Lda., que procedesse à análise desse feijão, dado que essa entidade possuía certificação de qualidade IFS (International Featured Standards), o que lhe permitia analisar e atestar as características de qualidade do referido feijão.
A entidade em causa veio a concluir, precisamente, que o carregamento se encontrava contaminado, o que foi comunicado à Autora.
Tendo a Ré apurado que o feijão apenas tinha sido fumigado com 2 g de fosfina por m2, durante 35 minutos, o que é manifestamente insuficiente para a erradicação de insectos – sendo a dose recomendada pela Direcção-Geral de Agricultura e Veterinária de 5,5 g de fosfina por m2.
De igual modo, chegado o segundo carregamento, que foi integralmente pago pela R. à A., este também se encontrava contaminado por gorgulho, facto que foi igualmente constatado pela C..., Lda. e comunicado à A.
Em face do estado em que se encontravam os dois primeiros carregamentos, a R., por email, afirmou junto da A. a sua pretensão de verificar o estado do terceiro carregamento no porto, o que não foi autorizado pela A., que exigiu pagamento antes da abertura dos contentores.
A 2/7/2018, sem prévia informação à R., um representante da A., AA, deslocou-se ao Centro de Empresas do M..., em ..., e solicitou o levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento, tendo o M... perguntado à Ré se o poderia fazer, no que a Ré anuiu.
Ficando, dessa forma, impossibilitada de pagar o preço do terceiro carregamento e de proceder ao levantamento da mercadoria em causa.
Assevera ainda a Ré que o referido AA – que estava em Portugal em trânsito para a Índia - apenas comunicou à Ré que estava em Portugal e se pretendia reunir com os representantes desta no próprio dia 2/7/2018, data em que o colaborador da R. que estava inteirado do assunto não se encontrava em Portugal, pelo que não pode reunir com aquele no dia em causa (2/7/2018).
Conclui a sua contestação pugnando pela total improcedência dos pedidos formulados e absolvição da R. dos mesmos.

Foi proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Nestes termos e pelo exposto, decide-se:
a) Julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção, condenando-se a Ré R..., LDA., a pagar à A. a quantia de USD 82.500,00, ou seja, €69.690,8322 (sessenta e nove mil, seiscentos e noventa euros e oitenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde à citação até efectivo e integral pagamento;
b) Absolver a Ré R..., LDA., do demais peticionado.

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 A Ré interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª- Pela douta sentença recorrida, foi a ação julgada parcialmente procedente, tendo a ré/recorrente sido condenada a pagar à autora/recorrida a quantia de € 69.690,83, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento, correspondente ao preço da terceira tranche de feijão que a autora vendeu à ré e esta comprou àquela por contrato comercial de compra e venda sobre documentos.
2ª- Atento o disposto no art. 5º, nº 1, do CPC, o facto dado como provado na douta sentença recorrida sob o nº 78 «[o] referido AA restituiu os documentos ao M... de ... no dia 4/7/2018» não podia tê-lo sido, dado que é nuclear pese embora, ainda assim, insuficiente de uma contra exceção relativamente à matéria invocada pela ré nos arts. 83º a 86º da contestação e não foi alegado nos autos, pelo que tal sentença padece da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), segunda parte, do CPC, devendo esse facto ser tido por não escrito.
3ª- Por outro lado, tendo a autora, no contexto descrito na factualidade provada, perante o impasse então existente, enviado a Portugal um funcionário seu para «desbloquear o problema», e tendo o mesmo solicitado o levantamento dos documentos referentes ao terceiro carregamento de feijão no M..., em ..., o qual, depois de ter perguntado à Ré se podia efetuar essa entrega e esta haver anuído, lhos entregou, o que inviabilizou o pagamento do preço do referido feijão, a obtenção dos aludidos documentos e o levantamento dessa mercadoria por parte da Ré nos termos contratuais, qualquer declaratário normal, colocado na posição desta, depreenderia que a Autora não mais pretendia que ele pagasse o preço, obtivesse os documentos e levantasse a mercadoria em causa, tendo-se desinteressado de manter o negócio nesta parte, o que representava uma desistência inequívoca, categórica e definitiva deste relativamente a essa parcela final.
4ª- Se alguma dúvida pudesse existir quanto a ser este o sentido a extrair do referido levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão no aludido contexto, atento o disposto no art. 237º do CC, sempre essa atitude deveria ser assim entendida, dado estar-se perante um negócio oneroso e tal entendimento conduzir ao maior equilíbrio das prestações, uma vez que a Ré já havia pago à autora mais de 72% (€ 182.617,48) do total do preço desse negócio, para nada, dado que o feijão que esta lhe fornecera estava estragado.
5ª- Por conseguinte, ainda que se considere que a Ré se encontrava em mora, o que, pelo que adiante se dirá, não se concede, tendo em conta quadro referido, não pode deixar de se concluir que a Autora, pese embora tacitamente, mas de forma clara e categórica, manifestou àquela que não mais pretendia que o contrato em causa fosse cumprido por qualquer das partes relativamente ao terceiro e último carregamento de feijão, não querendo que a Ré lhe pagasse o preço de tal carregamento, nem tencionando facultar a esta os respectivos documentos e, consequentemente, esse feijão, tendo assim ocorrido incumprimento definitivo do contrato, na modalidade de recusa antecipada ou, talvez melhor, de incumprimento definitivo ipso facto, por parte da autora, pelo que não assiste a esta o direito a haver da ré o montante do referido preço.
6ª- Foi justamente por isso que na contestação a Ré concluiu que, ante o incumprimento definitivo da Autora, não devia ser condenada a pagar a esta o preço do terceiro carregamento de feijão.
7ª- Mostrando-se inócuo, ainda que não seja tido por não escrito, o facto de o sobredito funcionário da autora, que esta enviou a Portugal para resolver o assunto, dois dias depois de ter levado do M... os documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão, ter tornado a entregá-los a este Banco, uma vez que não foi alegado pela Autora, nem ficou provado, que a ré tenha sabido dessa restituição e, portanto, que aqueles documentos voltaram a estar aí para serem pagos e levantados, podendo esta fazê-lo.
8ª- Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de considerar que, no descrito contexto, o referido comportamento da autora, conjugado com a anuência da Ré, manifestada a solicitação do M... e perante este, para que o funcionário daquela levasse os documentos referentes ao terceiro carregamento de feijão, representou uma revogação tácita, por mútuo acordo, do contrato em apreço, relativamente a este carregamento.
9ª- Consequentemente, deve a douta sentença recorrida ser revogada e a ré absolvida dos pedidos.
10ª- Ainda que assim não se entenda, o referido levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão no descrito contexto gerou na Ré a convicção de que a Autora não mais pretendia que ela recebesse esses documentos e, consequentemente, o respetivo feijão, nem que pagasse o preço de tal mercadoria, tendo-se desinteressado de manter o negócio em apreço e dando-o sem efeito no que concerne a essa (última) dimensão do mesmo, levando a Ré a não adotar quaisquer outras condutas, quer no âmbito da relação contratual com a Autora, quer já no presente processo, tendo-se defendido neste como se defendeu.
11ª- Destarte, a apresentação da presente ação sempre excederá manifestamente os limites da boa-fé, representando um clamoroso abuso de direito, na forma de venire contra factum proprium, a importar igualmente a revogação da douta sentença recorrida e a absolvição da ré dos mesmos.
12ª- Por outro lado, tendo a obrigação prazo certo, sendo a mora da Autora ex re e abrangendo essa mora mais de 72% do contrato, resulta incontornável, quer o desinteresse da ré no negócio, quer o caráter objetivo desse desinteresse, pelo que, atento o disposto na primeira parte do art. 808º, nº 1, do CC, esta tinha fundamento para considerar o contrato definitivamente incumprido pela Autora.
13ª- Consequentemente, nada obstava a que a Ré solicitasse à Autora a verificação do feijão do terceiro carregamento antes de pagar o respetivo preço.
14ª- Assim, também por este fundamento se impõe a procedência do presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e absolvendo-se a Ré dos pedidos.
15ª- Todavia, perante as circunstâncias do caso concreto, os deveres acessórios informação, lealdade e segurança, impostos pela boa-fé, exigida pelo art. 762º, nº 2, do CC, para mais sendo a cláusula CAD uma cláusula frágil, devendo ser interpretada e aplicada com parcimónia, obrigavam a Autora permitir que a ré verificasse o estado do feijão da terceira carga antes de o pagar e levantar.
16ª- Destarte, ao recusar essa verificação, a autora quebrou a boa-fé contratual, tendo cortado, pela base, o interesse da ré, pelo que o incumprimento definitivo foi inquestionável, tendo o art. 808º obtido satisfação.
17ª- Assim, igualmente por esta razão se impõe a procedência do presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e absolvendo-se a ré dos pedidos.
18º- Porém, ainda que se entenda que a autora apenas se encontra em mora quanto ao cumprimento do referido dever, importa ter-se presente o específico conteúdo deste: permitir que a ré verifique o estado do feijão do terceiro carregamento antes de o pagar e levantar, quer em virtude de interesses desta, quer para realização de interesses públicos.
19ª- Por conseguinte, a satisfação desse dever pela autora constitui um pressuposto do pagamento do preço do terceiro carregamento de feijão por parte da ré, pelo que, sendo imposto a esta o pagamento desse preço, a mesma deixará definitiva e incontornavelmente de poder verificar previamente o estado do referido feijão, saindo assim lesados, tanto interesses seus, como interesses públicos.
20ª- Destarte, a autora não pode exigir da ré o pagamento do preço do terceiro carregamento de feijão, o que igualmente importa a revogação douta sentença em crise e absolvição da ré dos pedidos.
21ª- De todo o modo, quer perante a autora, quer na contestação, a ré referiu expressa e reiteradamente que, em virtude do estado em que chegou o feijão dos dois carregamentos imediatamente anteriores, somente pagaria o preço correspondente ao feijão do terceiro carregamento se aquela lhe permitisse verificar previamente o estado do mesmo.
22ª- Na contestação, fê-lo ao longo de 11 artigos, do art. 69º ao art. 79º, encontrando-se a generalidade dessa matéria provada nos pontos 59 a 66 da douta sentença recorrida.
23ª- Ora, tal consubstancia, materialmente, a exceptio non rite adimpleti contractus.
24ª- Acresce que a própria autora, logo na p.i., sobretudo nos arts. 21º a 25º, 31º a 33º, 37º e 38º dessa petição, veio alegar que a ré, invocando a falta de qualidade do feijão da carga anterior, se escusava a pagar o preço da terceira carga de feijão enquanto aquela não lhe permitisse verificar o estado deste.
25ª- Também o Mmº Juiz que presidiu à audiência prévia assim entendeu a posição da ré, como resulta do douto despacho saneador, constante da ata dessa audiência, com a referência ....
26ª- Ora, como tem entendido o STJ, «[é] relativamente aos factos suscetíveis de a integrar [à exceptio] que se impõe o ónus de alegação, ficando depois sujeitos à qualificação jurídica que o tribunal considerar mais ajustada».
27ª- De resto, é pacífica na jurisprudência a consideração de pedidos implícitos.
28ª- Ademais, a exceptio é um minus relativamente à libertação definitiva do pagamento.
29ª- Assim, se o Tribunal entende que a pretendida libertação do pagamento do preço da terceira carga de feijão por parte da ré deve fundar-se na exceptio, tem nos autos todos os factos para assim decidir.
30ª- Tanto mais que na sentença considerou que «o cumprimento das obrigações a que ambas as partes estavam adstritas é ainda possível» e, bem assim, que «que a R. ainda terá interesse em receber da A. carregamentos de feijão livres de gorgulho (…) e a A. ainda terá interesse em receber o preço do terceiro carregamento».
31ª- Deste modo, a entender-se que inexistiu incumprimento definitivo por parte da autora e, bem assim, que a não satisfação por esta do dever de facultar à ré a verificação do estado do feijão do terceiro antes do pagamento do respetivo preço, atento o seu conteúdo, a impede de exigir esse pagamento, sempre o recurso deverá ser julgado procedente com base na exceptio, absolvendo-se a ré dos pedidos.
32ª- Todavia, ainda que também assim não se entenda, a conduta da autora, ao vir pedir a condenação da ré a pagar-lhe o preço do feijão da terceira tranche, depois de ter violado o contrato em quase ¾ do mesmo e não obstante estar em poder da parte do preço respeitante a essa violação (€ 182.617,48), bem como de, escudando-se na frágil cláusula CAD, não ter permitido que a ré verificasse o estado desse feijão antes de o pagar, o que representou nova quebra do contrato, consubstancia, incontornavelmente, um abuso de direito, na modalidade de tu quoque.
33ª- Por conseguinte, sempre a douta sentença recorrida deverá ser revogada, absolvendo- se a ré dos pedidos.
34ª- Por último, caso também assim não se entenda, o que somente por excessiva cautela se hipnotiza, a ré não deve ser condenada a pagar à autora o preço da terceira carga de feijão, como decidido na douta sentença em crise, mas antes a entregar o montante desse preço ao M..., contra a entrega dos documentos correspondentes por parte deste, devendo a douta sentença recorrida ser alterada em conformidade.
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré juntou parecer elaborado pelo Professor Doutor António Menezes Cordeiro.

Não foi apresentada resposta.

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1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, cumpre apreciar, num percurso subsidiário, as seguintes questões:
- A sentença é nula, ao considerar provado o facto sob o número 78?
- A Autora revogaram tacitamente o contrato que haviam outorgado no que respeita ao terceiro fornecimento de feijão?
- A Autora incumpriu definitivamente, por recusa e por falta de interesse, o contrato, no que respeita ao terceiro fornecimento de feijão?
- A exigência do pagamento do preço do terceiro fornecimento de feijão constitui um exercício abusivo desse direito?
- Deve ser reconhecido à Ré o direito à excepção de não cumprimento do contrato?

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2. Da alegada nulidade da sentença
A Ré alega que a sentença recorrida não poderia ter considerado provado o facto que consta do n.º 78 da lista de factos provada, dado que, sendo um facto nuclear, não foi alegado, constituindo uma contra excepção, relativamente à matéria alegada pela Ré nos artigos 83.º a 86º da contestação.
O vício invocado não constitui uma nulidade da sentença prevista no art.º 615º, n.º 1, d), do C. P. Civil, uma vez que não estamos perante a apreciação de uma questão que não tenha sido colocada pelas partes, mas sim uma eventual consideração de um facto não alegado pelas partes, o que integra uma violação dos limites aos poderes de cognição da matéria de facto pelo tribunal, com repercussão na decisão sobre a matéria de facto, a qual se mostra assim impugnada nos termos acima referidos.
Consta do n.º 78 da lista de factos provados que o referido AA restituiu os documentos ao M... de ... no dia 4.07.2018.
Esse facto não foi alegado por qualquer das partes nos articulados, sendo certo que a Ré articulou na contestação, nos art.º 83º a 86º, que em 02/07/2018, sem prévia informação à ré, um representante da autora, AA, deslocou-se ao Centro de Empresas do M..., em ..., e solicitou o levantamento dos referidos documentos, tendo o M... perguntado à ré se podia efetuar essa entrega, no que a ré anuiu, no seguimento do que, o referido representante da autora levantou os mencionados documentos do M..., levando-os consigo, tendo, por isso, nesse momento a ré ficado impossibilitada de pagar o preço do terceiro carregamento de feijão e de proceder ao levantamento dessa mercadoria.
Não é obrigatório que os factos julgados provados tenham de coincidir rigorosamente com a redação dos factos alegados pelas partes, podendo o tribunal, à semelhança do que sucedia com as respostas aos quesitos, no âmbito do Código de Processo Civil de 1961, considerar provados factos explicativos ou esclarecedores daqueles que foram alegados pelas partes, sendo essa a situação que ocorre na presente situação processual, em que, tendo a Ré alegado na contestação que a Autora levantou os documentos, o que a impossibilitou de pagar o preço, o tribunal esclarece, para melhor retrato da realidade, que o alegado levantamento de documentos realmente existiu, mas temporariamente, dado que o representante da Autora, dois dias depois, devolveu esses documentos à entidade bancária onde se encontravam depositados.   
Não estando nós perante o julgamento probatório de um facto novo não alegado pelas partes, mas sim perante um juízo de prova de facto alegado pela Ré, aditado de um esclarecimento, não existe qualquer vício que afecte o facto n.º 78 devendo o mesmo manter-se entre os factos provados.

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3. Os factos
Os factos provados são os seguintes:
1. A Autora dedica-se à indústria e comércio de cereais.
2. A Ré dedica-se à indústria de produtos alimentares.
3. No âmbito das respectivas actividades, Autora e Ré celebraram entre si acordo vertido em escrito denominado “contract no. 06P-2018”, datado de 12/2/2018, junto aos autos como doc. 1 com a p.i.
4. Através desse acordo, a Autora vendia à Ré, que comprava, 550 toneladas de feijão frade de olho castanho, com uma margem de tolerância de 5% relativamente a essa quantidade, em sacos de 50 Kg cada um, acondicionados em 22 contentores de 20 pés cada um, com as seguintes características de qualidade:
a. Máximo de 1% de feijões partidos ou fragmentados;
b. Máximo de 0,70% de matérias estranhas;
c. Máximo de 0,70% de misturas;
d. Máximo de 3,50% de defeitos;
e. Máximo de 14% de humidade;
f. Isento de gorgulho (“weevils”);
g. Limpo mecanicamente e seleccionado por cores;
5. Mais se obrigou aí a Autora a expedir 6 contentores em Março de 2018, 10 contentores em Abril de 2018 e 6 contentores em Maio de 2018.
6. Todos por via marítima.
7. Tendo as partes acordado, igualmente, que o transporte era por conta da Autora, que escolhia a empresa (armador) e pagava o respectivo preço.
8. Por sua vez, a Ré obrigou-se a pagar à Autora a quantia de USD 550,00, por cada tonelada de feijão.
9. Devendo o pagamento ser efectuado 100% CAD, ou seja, contra a entrega dos documentos.
10. Consta ainda do referido acordo que a modalidade de INCOTERM aplicável era CIF (Cost, Insurance and Freight).
11. Mais acordaram então as partes que:
a. A compradora devia verificar a qualidade do produto antes de o descarregar;
b. Caso verificasse alguma discrepância, a compradora devia contactar de imediato uma “empresa de classificação” (“classification company”) para proceder a uma análise da mercadoria;
c. Verificando-se que o produto estava fora dos parâmetros especificados no contrato, a compradora devia comunicar de imediato à vendedora, para serem tomadas as medidas apropriadas;
d. Qualquer reclamação devia ser efectuada antes da descarga;
e. A vendedora não aceitava reclamações futuras;
f. O não pagamento antes de o navio chegar, quando os documentos se encontrem no banco há mais de 5 dias, concede à exportadora o direito de alterar o destinatário e manter o carregamento seguinte ou retornar a carga ao Brasil.
12. O feijão encomendado pela Ré à Autora destinava-se a ser revendido para processamento em conserva em frasco de vidro e posterior consumo humano.
13. O que era do conhecimento da Autora aquando do sobredito acordo.
14. Os três carregamentos foram expedidos da seguinte forma:
a. Lote com 6 contentores, embarcados no navio ..., com a referência BB;
b. Lote com 10 contentores, embarcados no navio ..., V. 306EWN com a referência ... PO133P-2018 A&C;
c. Lote com 6 contentores, embarcados no navio ..., com a referência PO 133P-2018D.
15. O primeiro carregamento, composto dos referidos 6 contentores, com sacos de 50 Kg cada, num total de 150 toneladas, foi expedido pela Autora por via marítima para o porto marítimo de ....
16. Tendo sido a Autora que escolheu a empresa que realizou esse transporte (armador), negociou e acordou com essa empresa as condições de tal serviço e efectuou à mesma o pagamento do serviço.
17. O referido carregamento chegou ao porto de ... em 24/4/2018.
18. Sendo concedido à Ré pelo armador em causa (CM..) o prazo de 14 dias para proceder ao levantamento dos referidos contentores no porto.
19. A Ré pagou à Autora o preço do feijão desse carregamento, no montante de USD 82.500, correspondente (à data) a €68.481,18.
20. A Ré levantou os contentores no referido porto e procedeu ao transporte dos mesmos, sem os abrir, para as suas instalações, sitas na ..., ..., ..., no dia 9/5/2018.
21. A Ré abriu esses contentores pela primeira vez, nesse local e dia.
22. Aquando da abertura, de imediato a Ré verificou que o feijão que vinha nesses contentores se encontrava contaminado com insectos (gorgulho) morto e vivo, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos).
23. Pelo que a Ré não descarregou esses contentores.
24. Tendo pedido, nesse mesmo dia, à C..., Lda., que procedesse à análise desse feijão.
25. A referida C..., Lda. possuía certificação de qualidade IFS (“International Food Standards”).
26. E logo no dia 10/5/2018, pelas 08h00, a Ré enviou um e-mail à Autora, com o seguinte teor:
 “Bom dia, CC. Estamos com um grave problema de qualidade com os primeiros 6 fcls (gorgulho vivo). Favor verificar foto. CC, avisei várias vezes para esta situação!! Estou mesmo desiludido com a CC. Cumprimentos”.
27. Com este e-mail, a Ré enviou igualmente à Autora as fotografias que se mostram juntas ao doc. 11 com a contestação.
28. A esse e-mail, respondeu a Autora por e-mail enviado à Ré pelas 23h20 horas do dia 10/5/2018, com o seguinte teor:
“Não veio a foto, porem eu fico preocupada mesmo, porque esta carga já houve atraso do armador para chegar e daí também houve atraso para retirada de 18 dias ai no porto, pegando sol calor, frio a noite, sendo produto da safra velha, nos fizemos a fumigação antes da saída, e deve ser fumigada logo que chega no porto. Não pode ficar no porto. Então vejo ai o problema.”
29. Em face deste e-mail, no dia 11/5/2018, pelas 18h11m41s, a Ré remeteu novo e-mail à Autora, pelo qual reenvia as sobreditas fotografias.
30. Entretanto, a C..., Lda. apresentou “relatório de não conformidade”, datado de 14/5/2018, no qual conclui que o feijão acondicionado em todos os 6 contentores “estava contaminado com insectos vivos e mortos (gorgulho) em todos os seus estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), tornando-o impróprio para consumo humano.”
31. Os quais já se encontravam nesse feijão aquando do seu acondicionamento nos sacos e contentores em que foi transportado.
32. O feijão em causa havia sido fumigado a solicitação da Autora, a 2/3/2018, com 2 g de fosfina por m3, com tempo de exposição de 120h.
33. Para erradicação de todas as espécies de insectos (gorgulho) é necessária uma dosagem de, pelo menos, 5 a 10 g de fosfina por m3, durante período de exposição de 5-14 dias, tratando-se de fosfina de alumínio, ou 5,5 g de fosfina por m3, durante período de exposição de 2,5 a 5 dias, tratando-se de fosfina de magnésio.
34. Em virtude de se encontrar contaminado com insectos (gorgulho) mortos e vivos, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), o referido feijão estava já corroído, sendo impróprio para ser efectuada a conserva em frasco de vidro e destinado ao consumo humano.
35. Não tendo, por isso, a Ré podido vender esse feijão.
36. O qual permanece nas instalações desta.
37. Conforme foi comunicado pela Ré à Autora.
38. Entretanto, o segundo carregamento de feijão, composto por 10 contentores com sacos de 50 Kg cada, num total de 250 toneladas, foi igualmente expedido pela Autora, por via marítima, para o porto de ....
39. Tendo mais uma vez sido a Autora que escolheu a empresa que realizou esse transporte (armador), negociou e acordou com essa empresa as condições de tal serviço e efectuou à mesma o pagamento do respectivo preço.
40. Esse novo carregamento de feijão chegou ao porto marítimo de ... em 4/5/2018.
41. Sendo concedido à Ré, pelo mesmo armador (CGA-CGM) o prazo de 14 dias para proceder ao levantamento dos referidos contentores nesse porto.
42. A Ré também pagou à Autora o preço desse segundo carregamento de feijão, no montante de USD 137.500, correspondente (à data) a € 114.136,30.
43. Tendo levantado os mencionados 10 contentores no referido porto e procedido ao transporte dos mesmos, sem os abrir, para as suas instalações, sitas na ..., ..., ..., entre os dias 11/5/2018 e 16/5/2018.
44. A Ré começou a abrir esses contentores, pela primeira vez, nas suas instalações, em data não concretamente apurada, mas certamente antes de 21/5/2018.
45. Aquando dessa abertura, de imediato a Ré verificou que o feijão que vinha nos referidos contentores igualmente se encontrava contaminado com insectos (gorgulho), morto e vivo, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos).
46. Pelo que não descarregou esses contentores.
47. Tendo pedido à C..., Lda., no mesmo dia em que abriu os contentores, que procedesse à análise desse feijão.
48. Entretanto, a C..., Lda. procedeu à análise do referido feijão, tendo apresentado “relatório de não conformidade”, datado de 21/5/2018, no qual concluí que o mesmo se encontrava contaminado com insectos (gorgulho) mortos e vivos, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos).
49. Os quais já se encontravam nesse estado aquando do acondicionamento do mesmo nos sacos e contentores em que foi transportado.
50. Esse feijão havia sido fumigado, a solicitação da A., parte em 15/3/2018 e a outra parte em 17/3/2018, com 2g de fosfina por m3 e com tempo de exposição de 120h.
51. Em virtude de se encontrar contaminado com insectos (gorgulho) mortos e vivos, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), o referido feijão estava já corroído, sendo impróprio para ser efectuada a conserva em frasco de vidro e destinado ao consumo humano.
52. Não tendo, por isso, a Ré podido vender esse feijão.
53. O qual permanece nas instalações desta.
54. Conforme foi comunicado pela Ré à Autora.
55. Entretanto, a Autora expediu o terceiro carregamento de feijão, composto por contentores com sacos de 50 Kg cada, num total de 150 toneladas, por via marítima, para o porto de ...,
56. Tendo mais uma vez sido a Autora que escolheu a empresa que realizou o transporte (armador), negociou e acordou com essa empresa as condições de tal serviço e efectuou à mesma o pagamento do respectivo preço.
57. Tendo a Ré sido notificada de que esses contentores se encontravam disponíveis para levantamento em 25/5/2018.
58. Em 29/5/2018, com referência ao terceiro carregamento (no assunto do e-mail alude-se a “PO 133P-2018D”) o funcionário da Ré, DD, informa a A. por e-mail que o pagamento iria ser feito no final de semana.
59. No mesmo dia 29/5/2018, pelas 11h, a Ré enviou à Autora um e-mail com o seguinte teor:
“Preciso de verificar no porto estes 6 fcls, caso contrário não podemos levantar (gorgulho). Agradeço que envie autorização à CM.. para estes fcls serem abertos no porto. Tivemos problemas de gorgulho vivo no último embarque, cuja situação ainda não está resolvida. A CC prometeu-me que não iriamos ter problemas de feijão gorgulhado – CC não cumpriu com a qualidade. Obrigado.”
60. Em 30/5/2018, pelas 6h19, a Ré enviou um novo e-mail à Autora com o seguinte teor:
“Bom dia CC. Tenho um problema GRAVE, que o feijão tem gorgulho e não posso comercializar o produto com grãos com gorgulho. Como sabe a nossa empresa coloca este produto em frasco de vidro, não será possível com a mercadoria que a CC enviou. A CC não cumpriu o contrato! Só poderei pagar a mercadoria depois de fazer uma análise. Agradeço informação urgente como proceder?”
61. Em resposta, no dia 1/6/2018, pelas 12h28, a Autora enviou à Ré um e-mail com o seguinte teor:
“Bom dia EE. Tentei contato porém você não estava. Note os pontos abaixo; 133p- 2018B – Na solicitação do booking era para ter chego o conteiner dia 27/3/2018 porem só chegou dia 24/4/2018 atraso de 19 dd, sendo que estaria no limite para ser realizado nova fumigação deveria ter sido retirado do porto imediatamente porem, somente foi retirado dia 9/5/2018 (16 dias depois) no total da mercadoria dentro do container 62 dias, aqui na empresa temos a orientação das empresas fumigadora que fumigação deve ser realizada de 25 dd. Sempre ficamos preocupados e já comentamos com vocês sobre essa demora, ao qual mercadoria fica dentro do conteiner com respiros abertos e alta temperatura.
Tambem conforme nosso contrato assinado por você, a carga deve ser retirada imediatamente e qualquer problema ser realizado analise, neste caso EE sugiro duas maneiras; 1- acionar o seguro informando que houve infestação devido o atraso 2 – também vou tentar junto a CM.. uma resposta. Note que a segunda carga de 10 fcl, foram retiradas mais rápida e transito mais rápido, acredito que por conta disso não teve problema. Quanto terceira carga, não concordamos com você abrir conteiner antes do pagamento, sendo que nosso contrato informa que deve ser realizado o pagamento logo apos se constatado problemas, chamar empresa classificadora, então se houver problemas vamos tomar atitude, contra CM.., porem saiba que não pode ficar mais a mercadoria tanto tempo no porto sem o tratamento imediato, você sabe que o produto era safra velha. Contamos com ação imediata de remoção do porto e laudo logo depois. Obrigado.” (sic)
62. Posteriormente, por e-mail de 6/6/2018, pelas 15h31m11 segundos, a Ré envia e-mail com o seguinte teor:
“Bom dia, CC. Informei que tivemos problemas com gorgulho e grãos furados no último embarque, tenho prejuízos enormes. Favor informar o nosso banco que podemos levantar os fcls sem pagamento. Depois de levantarmos fazes uma analise e pagaremos depois (…)” (sic).
63. A Autora não permitiu que a Ré verificasse no porto marítimo de ... o estado do feijão do terceiro carregamento.
64. Tendo a partir daí a Ré insistido sucessivas vezes com a Autora para que esta permitisse que verificasse o estado do referido feijão antes de o pagar e levantar.
65. Ao que a Autora sempre manteve a recusa dessa autorização.
66. A Ré só poderia abrir os contentores no porto marítimo de ... de modo a verificar aí o estado do feijão que se encontrava no interior dos mesmos, se a Autora concedesse autorização e libertasse os documentos necessários para o efeito.
67. Os documentos emitidos pela Autora relativamente ao terceiro carregamento de feijão, identificados como remessa de importação n.º 976-03-1368975, foram remetidos para o M..., em ..., encontrando-se a aí aguardar que a Ré procedesse ao pagamento do preço desse carregamento.
68. Somente depois da Ré efectuar esse pagamento é que tais documentos lhe seriam entregues pelo M....
69. E só então, munida dos mesmos, poderia proceder ao levantamento do terceiro carregamento de feijão.
70. A Autora decidiu enviar um funcionário para conversar com o sócio gerente da Ré, pretendendo dessa forma desbloquear o problema.
71. Em 2/7/2018, esse funcionário da Autora, AA, deslocou-se ao M..., em ..., e solicitou o levantamento dos referidos documentos.
72. Tendo o M... perguntado à Ré se podia efectuar essa entrega, ao que a Ré anuiu.
73. No seguimento do que, o referido AA levantou os mencionados documentos do M..., levando-os consigo.
74. No mesmo dia 2/7/2018, pelas 08h10, o mesmo AA enviou um e-mail à Ré, a partir do endereço ..., pretendendo reunir com os representantes desta no mesmo dia.
75. Todavia, dado que o colaborador da Ré que estava incumbido de tratar do assunto em causa não se encontrava então em Portugal, nesse mesmo dia, pelas 10h49, a Ré enviou um e-mail à Autora e ao referido AA dizendo o seguinte:
“O Sr. EE encontra-se em viagem no estrangeiro, motivo pelo qual hoje e amanhã não se encontra nos escritórios de R... em .... Fomos contactados pelo nosso Banco em Portugal, que o Sr. AA, estaria nas suas instalações em ... a fim de levantar os originais da documentação, confirma essa informação?”.
76. Não obstante, o referido AA deslocou-se às instalações da Ré no mesmo dia 2/7/2018, tendo constatado que o referido EE não se encontrava.
77. Razão pela qual a referida reunião não teve lugar.
78. O referido AA restituiu os documentos ao M... no dia 4/7/2018.
79. O referido AA encontrava-se em trânsito para a Índia, para onde seguia nesse dia 4/7/2018.
80. Com os bilhetes de avião das seguintes viagens: ... – ...; ... – ... – ... – ... – ...; ... – ... e ainda com a sua hospedagem em ... e ... e aluguer de veículo do referido AA, a A. despendeu um total de USD 6.928,20.
81. O preço do terceiro carregamento de 6 contentores, de USD 82.500, não foi pago pela Ré.

                                               *
4. O direito aplicável
4.1. O contrato
A Autora, uma sociedade comercial dedicada à indústria e comércio de cereais, com sede no Brasil, e a Ré, uma sociedade comercial dedicada ao comércio de produtos alimentares, com sede em Portugal, em 2 de Fevereiro de 2018, acordaram no fornecimento, pela primeira à segunda, pelo preço de USD 550,00 por tonelada, de 550 toneladas de feijão frade de olho castanho, com uma margem de tolerância de 5% relativamente a essa quantidade, em sacos de 50 Kg cada um, acondicionados em 22 contentores de 20 pés cada um, com as seguintes características de qualidade:
a. Máximo de 1% de feijões partidos ou fragmentados;
b. Máximo de 0,70% de matérias estranhas;
c. Máximo de 0,70% de misturas;
d. Máximo de 3,50% de defeitos;
e. Máximo de 14% de humidade;
f. Isento de gorgulho (“weevils”);
g. Limpo mecanicamente e seleccionado por cores.
Acordou-se que seriam expedidos, por via marítima, 6 contentores em Março de 2018, 10 contentores em Abril de 2018 e 6 contentores em Maio de 2018.
O pagamento do preço deveria ser efectuado 100% CAD (cash against documents) e o transporte seria efectuado na modalidade Incoterm CIF (cost, insurance and freight).
Estamos, pois, perante um contrato de compra e venda internacional de mercadorias, em que a entrega dos bens é substituída pela entrega de documentos, e em que o vendedor fica obrigado a providenciar pelo transporte da mercadoria para o local de destino e a fazer o seguro da mesma contra os riscos da viagem, por conta e no interesse do comprador.

4.2. Os termos do litígio
Na execução do contratado, a Autora enviou as três partidas de contentores programadas, contendo feijão frade de olho castanho, tendo-se verificado, após entrega à Ré e respectivo pagamento, que o feijão expedido nas duas primeiras partidas se encontrava contaminado com insectos (gorgulho) mortos e vivos, em todos os estágios (adultos, larvas, pupas e ovos).
Aquando do envio da terceira partida, a Ré solicitou à Autora que esta permitisse que pudesse efectuar-se uma verificação do estado do feijão antes de o pagar e levantar, o que esta recusou, pelo que a Ré não levantou a terceira partida.
Com a propositura da presente acção a Autora pretende que a Ré lhe pague o preço desta última partida de feijão, acrescido do valor das despesas que teve com a tentativa de cobrança extrajudicial deste crédito, o que a Ré se recusa a fazer.
A sentença recorrida condenou a Ré a pagar esse preço, tendo-a absolvido do pagamento das alegadas despesas de cobrança.

4.3. A lei aplicável
Estamos perante uma relação plurilocalizada, uma vez que a Autora tem sede no Brasil e a Ré em Portugal, e a mercadoria vendida foi expedida pela vendedora do Brasil para Portugal, onde deveria ser entregue à compradora, pelo que a relação jurídica estabelecida tem conexões com mais do que uma ordem jurídica, importando averiguar qual  a lei aplicável a este contrato de compra e venda, de acordo com as normas de direito internacional privado, sendo certo que as partes não escolheram a lei aplicável.
Tendo em consideração a data em que as partes celebraram este contrato, e que estamos perante uma acção em matéria de responsabilidade contratual, proposta num tribunal português, são aplicáveis as normas de conflitos que constam no denominado Regulamento Roma I (artigos 1.º e 28.º deste Regulamento) [1], que denomina o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais.
Não tendo as partes escolhido previamente a lei aplicável, dispõem os art.º 4º, n.º 1, a), e 19º, n.º 1 e 3, do Regulamento Roma I, que a lei aplicável a um contrato de compra e venda é a do país em que o vendedor tem a sua residência habitual no momento da celebração do contrato, sendo certo que, para efeitos deste Regulamento, a residência habitual das sociedades é o local onde se situa a sua administração central.
Na presente acção, caso fosse adoptado este critério específico, a lei aplicável seria a lei brasileira, uma vez que a vendedora tem a sua sede no Brasil.
Contudo o n.º 3, do mesmo art.º 4º, do Regulamento Roma I, determina que, caso resulte claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do que resulta da aplicação daquele critério, é aplicável a lei desse país.
Apesar de, aparentemente, o disposto neste n.º 3 se apresentar como uma excepção à aplicação dos critérios definidos no n.º 1, é nele que se encontra a definição do critério geral de determinação da lei aplicável, funcionando os critérios específicos elencados nas alíneas do n.º 1, como meras indicações subsidiárias do elemento de conexão mais estreito para cada um dos tipos contratuais, baseadas num juízo presuntivo do legislador, às quais se deve recorrer apenas quando a dispersão dos elementos de conexão não permitem detectar com que ordenamento, efectivamente, se verifica a conexão mais estreita. A eleição do critério definido no n.º 3, do art.º 4º do Regulamento Roma I como critério primário atribui um peso decisivo à ligação efectiva do contrato à esfera económico-social de um país, tendo em conta os laços de qualquer natureza que, perante o litigio em causa, se revelam decisivos para determinar a lei aplicável, pelo que é esta a leitura que fazemos do art.º 4 do Regulamento Roma I [2].
Ora, no presente caso, verificamos que o litígio a solucionar na presente acção se situa no momento da entrega em Portugal da mercadoria que foi objecto da compra e venda, pelo que deve ser o local da entrega o elemento com o peso determinante na definição do regime legal a aplicar na resolução deste litígio.
Por esta razão deve aplicar-se a lei portuguesa, a qual foi, aliás, aquela a que ambas as partes recorreram para fundamentar as suas posições na presente acção, assim como a sentença recorrida.

3. A revogação do contrato
Nas alegações de recurso a Ré começa por sustentar que as partes revogaram tacitamente o contrato de compra e venda que haviam celebrado quando acordaram na entrega à Autora dos documentos que permitiam à Ré o levantamento da mercadoria da terceira partida, pelo que não lhe era exigível o pagamento da terceira partida.
O contrato celebrado pelas partes é um contrato de compra e venda sobre documentos, tipificada no art.º 937º do C. Civil, uma vez que, nos termos acordados, a entrega do feijão à Ré era substituída pela entrega, pela entidade bancária mandatada para receber o preço, da documentação necessária para a Ré proceder ao levantamento da mercadoria depositada no porto de destino.
Esta modalidade de venda visa reforçar a garantia do efectivo pagamento do preço da mercadoria por parte ao vendedor, fazendo-se intervir na operação um terceiro - aqui uma instituição bancária - a quem é entregue, como consignatário, o documento representativo da mercadoria, com a missão de obter o prévio pagamento do preço desta, concomitantemente com a entrega dos documentos representativos das mercadorias ao comprador e que lhe permitam, só depois de pago o preço, obter a entrega das mercadorias.
O contrato era de execução duradoura fraccionada, uma vez que a entrega da coisa vendida seria realizada em três partidas aprazadas para três momentos espaçados no tempo.
As circunstâncias apuradas, que resultam da matéria de facto provada e nas quais a Ré baseia a revogação tácita do contrato, são as seguintes:
 - a Ré solicitou à Autora que, antes de proceder ao pagamento e levantamento desta terceira partida de feijão, lhe fosse permitido examinar o estado da mercadoria, o que a Autora recusou, apesar das insistências da Ré;
- a Autora decidiu, então, enviar um funcionário para conversar com o sócio gerente da Ré, pretendendo dessa forma desbloquear o problema;
- em 2/7/2018, esse funcionário da Autora, AA, em trânsito para a Índia, deslocou-se ao M..., em ..., e solicitou o levantamento dos documentos que permitiam à Ré proceder ao levantamento da mercadoria, tendo o M... perguntado à Ré se podia efectuar essa entrega, ao que a Ré anuiu.
- no seguimento o referido AA levantou os mencionados documentos do M..., levando-os consigo.
- Por incompatibilidade de agendas não foi possível, nesse dia, uma reunião entre os representantes da Autora e da Ré, apesar de AA ter diligenciado nesse sentido.
- AA restituiu os documentos ao M... no dia 4/7/2018, tendo seguido viagem para a ....
É possível as partes procederem, por mútuo acordo, à revogação de um contrato em execução, a qual terá efeitos ex nunc [3].
Essa revogação pode ser tácita – art.º 217.º, n.º 1, do C. Civil –, devendo extrair-se a correspondente vontade concordante das partes de comportamentos concludentes das mesmas.
Num contrato de compra e venda sob documentos em posse de terceiro, a mera retirada por representante da vendedora da documentação que substituía a entrega da mercadoria, permitindo o seu levantamento do porto onde se encontrava depositada, com autorização da compradora, não é suficiente, só por si, para dela se extrair uma vontade comum das partes de por termo à relação contratual que as unia, sem que se procedesse à entrega da última partida.
Na verdade, a retirada pelo vendedor, com a autorização do comprador dos documentos da posse do terceiro a quem incumbia receber o preço e entregar a documentação que permitia o levantamento da mercadoria, não revela, só por si, o propósito das partes de porem termo ao contrato, já não se procedendo à entrega da terceira partida.
Pelo contrário, as circunstâncias que se seguiram a esse levantamento da documentação pela vendedora, revelam um propósito distinto, pelo menos da parte da Autora. Com efeito, o representante desta, já na posse da referida documentação, tentou contactar um representante da Ré, tendo-se, inclusive, deslocado às instalações desta para solucionar o litígio entre as partes. É de presumir que a disponibilidade da referida documentação permitiria negociar com a Ré o modo de ultrapassar o litígio, deixando as partes de estarem dependentes da posição necessariamente rígida da entidade bancária onde a documentação se encontrava depositada, pelo que ao seu levantamento, num juízo presuntivo, não terá presidido a vontade de por termo ao contrato, mas sim o de negociar os termos da sua execução.  Daí que, não tendo conseguido reunir-se com o representante da Ré, o representante da Autora tenha devolvido à entidade bancária a documentação necessária para a Ré proceder ao levantamento da mercadoria, o que confirma a inexistência de uma vontade revogatória.
Não se verificando, pois, a existência de atos concludentes da vontade mútua das partes de, naquele momento, porem termo ao contrato e compra e venda, revogando-o, improcede este fundamento do recurso.

4.4. O incumprimento definitivo do contrato
 No âmbito deste fundamento do recurso, a Ré, alega, numa primeira argumentação, que o levantamento pela Autora da documentação necessária à recolha da mercadoria objecto da terceira partida acordada, inviabilizou que a Ré procedesse a essa recolha, o que se traduziria num incumprimento definitivo do contrato.
Por um lado, recorde-se que esse levantamento não correspondeu à execução de uma vontade unilateral da Autora, tendo a Ré dado a sua autorização a tal acto, e, por outro lado, que o levantamento dos documentos da entidade bancária onde se encontravam depositados, aguardando a sua entrega à Ré, contra o pagamento do preço correspondente a mercadoria expedida, não impedia que o mesmo fosse entregue pelo próprio representante da Autora ou por terceiro à Ré.
Dois dias depois, os documentos foram restituídos pelo representante da Autora à mesma entidade bancária onde antes se encontravam depositados para serem levantados pela Ré, após se ter malogrado um encontro entre os representantes das duas partes. É certo que não se provou que a Ré tenha sido informada dessa restituição, mas também não se provou que a Ré tenha sido informada de que o levantamento dos documentos se tinha concretizado, pelo que não é possível extrair daquela falta de informação o incumprimento de um dever secundário ou acessório inviabilizador do cumprimento da obrigação de entrega da documentação necessária à recolha da mercadoria pela Ré.
Numa segunda linha de argumentação, a Ré alega que ocorreu um incumprimento definitivo da obrigação de entrega da mercadoria, por parte da Autora, devido ao facto de esta não ter autorizado a Ré a verificar o estado da mercadoria antes de proceder ao pagamento do preço e concomitante levantamento da documentação necessária à recolha da mercadoria.
Efectivamente, provou-se que ocorreu a seguinte factualidade:
- a Autora expediu o terceiro carregamento de feijão, composto por contentores com sacos de 50 Kg cada, num total de 150 toneladas, por via marítima, para o porto de ...;
- a Ré foi notificada de que esses contentores se encontravam disponíveis para levantamento em 25.5.2018.
- em 29.05.2018, a Ré invocando a existência de problemas com gorgulho no feijão nas anteriores partidas, solicitou à Autora autorização para verificar no porto o estado da mercadoria expedida na terceira partida, antes de proceder ao respetivo pagamento, tendo insistido por essa autorização no dia 30.5.2018.
 - em 1.06.2018 a Autora respondeu, negando dar essa autorização, invocando que, nos termos do contrato, a análise da mercadoria só podia ser feita após o pagamento do preço correspondente.
- em 6.06.2018 a Ré solicitou que a Autora instruísse a entidade bancária onde se encontrava a documentação necessária para a recolha da mercadoria que lhe entregasse essa documentação sem que a Ré procedesse ao pagamento do preço, sendo esse pagamento efectuado só após ser realizado o exame ao estado da mercadoria.
- A Autora recusou-se a dar qualquer autorização que permitisse à Ré verificar o estado da mercadoria antes de proceder ao seu pagamento.
Antes de apreciarmos as consequências desta recusa da Autora em permitir que a Ré verificasse o estado da mercadoria da terceira partida, antes de proceder ao seu pagamento, convém ter presente que se provou que o feijão expedido nas duas anteriores partidas se encontrava contaminado com insectos vivos e mortos (gorgulho) em todos os seus estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), tornando-o impróprio para consumo humano, o qual já se encontrava nesse estado aquando do seu acondicionamento nos sacos e contentores em que foi transportado, o que impediu a Ré de o vender a terceiros.
Também devemos ter presente que no contrato as partes tinham acordado o seguinte:
- A compradora devia verificar a qualidade do produto antes de o descarregar;
- Caso verificasse alguma discrepância, a compradora devia contactar de imediato uma “empresa de classificação” (“classification company”) para proceder a uma análise da mercadoria;
- Verificando-se que o produto estava fora dos parâmetros especificados no contrato, a compradora devia comunicar de imediato à vendedora, para serem tomadas as medidas apropriadas;
- Qualquer reclamação devia ser efectuada antes da descarga;
- A vendedora não aceitava reclamações futuras.
Os termos desta cláusula contratual não previam a possibilidade da verificação da qualidade da mercadoria poder ser efectuada num momento prévio ao pagamento do preço, uma vez que, tendo as partes acordado numa compra e venda sobre documentos, a Ré tinha que pagar o preço da mercadoria para lhe ser entregue a documentação necessária ao levantamento dessa mercadoria no porto de destino.
No entanto, tendo-se verificado que o feijão entregue nas duas anteriores partidas não se encontrava nas condições contratadas, uma vez que estava infestado com gorgulho, constata-se que ocorreu um cumprimento defeituoso do contrato nessas duas primeiras partidas. Se  o facto de não se ter provado que a empresa que procedeu ao exame da mercadoria satisfazia as exigências contratuais para realizar essa operação pode ter influência nas consequências desse incumprimento defeituoso, para o que aqui importa é que o tribunal da 1.ª instância considerou provado que o feijão entregue à Ré nas duas primeiras partidas já tinha gorgulho aquando da sua expedição e que o feijão cuja compra e venda se acordou não se devia encontrar nessas condições, pelo que estamos perante a entrega de uma mercadoria desconforme com aquela que foi contratada, ou seja perante uma venda de coisa defeituosa.
Face ao sucedido nas duas primeiras partidas, a solicitação efectuada pela Ré à Autora, no sentido de poder ser efectuada um exame ao feijão que integrava a terceira e última partida, antes que a Ré procedesse ao pagamento do preço correspondente era perfeitamente razoável, constituindo uma reacção justificada e adequada ao modo deficiente como o contrato vinha sendo cumprido pela Autora [4].
Esse exame satisfazia um interesse legítimo da Ré e constituía para a Autora um encargo de fácil cumprimento.
Devendo os contratos serem cumpridos, seguindo os ditames da boa fé  – art.º 762º, n.º 2, do C. Civil –, observando-se, nomeadamente, o dever de cooperação no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas, a Autora tinha a obrigação de aceder à solicitação da Ré, autorizando que fosse efectuado um exame à mercadoria em momento anterior ao pagamento do preço, de modo a permitir à Ré decidir sobre o cumprimento da sua prestação, só após verificar que a prestação oferecida pela Autora correspondia efectivamente ao contratado, atendendo ao que se tinha verificado nas duas primeiras entregas.
Este tipo de dever secundário acessório da prestação principal [5], nem sempre integra ab initio o plano contratual, constituindo-se à medida que se vão verificando as situações que põem em perigo a consecução do interesse no cumprimento das prestações principais do contrato.
A Ré, ao recusar-se repetidamente a autorizar esse exame da mercadoria previamente ao pagamento, violou o referido dever secundário acessório da obrigação principal de entrega da mercadoria, o qual se constituiu após o cumprimento defeituoso ocorrido nas duas primeiras partidas e à solicitação da Ré para que a Autora permitisse um exame da mercadoria antes do pagamento do seu preço.
Sendo a condição para o levantamento dos documentos exigida pela Ré – a realização de um exame prévio da mercadoria –  legítima e tendo a Autora recusado a realização dessa condição, verifica-se não só um incumprimento do respectivo dever secundário, como este se propaga à obrigação principal, uma vez que essa recusa impede que se concretize entrega dos documentos à Ré, que neste tipo de contrato equivalia à entrega da terceira partida da mercadoria vendida.
Tendo a recusa sido peremptória, estamos perante um incumprimento definitivo da obrigação de entrega daquela mercadoria, em resultado do incumprimento definitivo da obrigação secundária acessória daquela.
Uma vez que a compra e venda respeitava a mercadoria a ser entregue em três partidas aprazadas para três momentos espaçados no tempo e que as duas primeiras partidas foram entregues à Ré, encontramo-nos face a um incumprimento definitivo parcial da obrigação da Autora.
Dispõe o art.º 802º do C. Civil que se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação se for devida.
Nos termos deste dispositivo, verificado um incumprimento definitivo parcial da prestação, o credor pode optar pela manutenção do contrato, podendo reduzir a sua prestação na medida do valor da parte incumprida, pelo que, nas situações em que o credor ainda não efectuou definitivamente a prestação sinalagmaticamente correspondente à parte da prestação incumprida, a contraparte incumpridora não lhe pode exigir o cumprimento dessa prestação.
É precisamente esta situação que sucede no presente caso quando a Autora, tendo incumprido a obrigação de entrega da terceira partida da mercadoria vendida, pretende através da presente acção que a Ré lhe pague o preço dessa partida.  
Sendo legítima a recusa da Ré em satisfazer esse preço, a pretensão da Autora deve improceder.

4.5. Outras questões
Tendo nós verificado um incumprimento definitivo da obrigação de entrega da terceira partida da mercadoria por parte da Autora e a consequente desoneração da Ré pagar a parte do preço relativa a essa terceira partida, fica prejudicado o conhecimento das questões do abuso de direito e da excepção de não cumprimento do contrato também invocadas pela Ré nas suas alegações de recurso

                                               *

Decisão 
Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida, absolvendo-se a Ré do pedido formulado pela Autora.

                                               *
Custas da acção e do recurso pela Autora.

                                               *

                                                                                   8.3.2022


[1] Apesar do Brasil e Portugal serem actualmente subscritores da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias (CISG) ela só entrou em vigor no nosso país em 1 de Outubro de 2021, pelo que atenta a data de celebração deste contrato ela não é aplicável ao litígio exposto nesta acção (artigos 1.º, n.º 1 e 100.º, n.º 2, da CISG).
[2] Nesse sentido, Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. II, 4.ª ed., 2015, pág. 338-339, Eugénia Galvão Telles, Determinação do Direito Aplicável aos Contratos Internacionais. A cláusula Geral da Conexão Mais Estreita, em “Estudos de Direito Comercial Internacional”, vol I, Almedina, 2004, pág. 63 e seg.
[3] Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, 2005, pág. 427-428, e BRANDÃO PROENÇA, A Resolução do Contrato no Direito Civil. Do Enquadramento e do Regime, Separata do volume XXII do Suplemento do BFDUC, 1982, pág. 46-47.
[4] Note-se que em situações semelhantes, na execução de contratos duradouros, os tribunais têm permitido que o credor da prestação que vem sendo cumprida defeituosamente, possa inclusive resolver o contrato.  V.g. os seguintes acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
 - T. R. C. de 6.11.2007, relatado por Teles Pereira, confirmado pelo Acórdão do S.T.J. de 19.6.2008, , relatado por Serra Baptista , e seguido posteriormente pelos Acórdãos do T. R. P. de 14.4.2008, relatado por Isoleta, e do T. R. L. de 8.11.2011, relatado por Maria Amélia Ribeiro, constatando a existência de uma quebra de confiança na relação do dono da obra com o empreiteiro, com origem na existência de múltiplas deficiências da obra, admitiu a resolução do respectivo contrato por aquele, com fundamento nessa perda de confiança.

[5] Na doutrina e na jurisprudência nem sempre é nítida a catalogação e a destrinça deste tipo de deveres, a que Larenz chamou “deveres laterais de prestação”, dos denominados deveres acessórios de conduta. 
  Sobre os deveres secundários acessórios da prestação principal, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, pág. 337, Rui Alarcão, Direito das Obrigações, ed. pol., 1983, pág. 66-67, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, pág. 77, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., pág. 122, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, 2.ª ed., vol. I, pág. 157-160, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo I, Almedina, 2009, pág. 478-480.