Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
792/19.3T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PRINCÍPIOS DA IMEDIAÇÃO E ORALIDADE
APRECIAÇÃO DA PROVA
COLISÃO ENTRE DIREITOS PESSOAIS E PATRIMONIAIS
CONSTRUÇÃO DE GALINHEIRO E POCILGA JUNTO DA HABITAÇÃO DE TERCEIROS
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 607, N.º 5 E 640.º DO CPC.
ARTIGOS 334.º, 335.º, 2 E 483.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Considerando, vg., que a imediação e a oralidade fornecem ao juiz da 1ª instância um plus na apreciação da prova, a censura da sua convicção, máxime quando está em causa prova pessoal, apenas pode ser censurada, se os elementos probatórios ou a exegese operada pelo recorrente, não apenas sugerirem mas antes impuserem,  - vg. por erro lógico ou crasso do juiz a quo -, tal censura.

II - No confronto entre direitos de jaez meramente patrimonial e de cariz pessoal, devem, por via de regra, prevalecer estes.

III - Assim, construído um barraco, para galinhas e porcos, com aproveitamento de parede de casa de habitação de outrem, por debaixo de duas janelas suas, do qual emanam maus cheiros e barulhos, e não se provando que ele não possa ser construído noutro local, nem que os animais sejam estritamente necessários para a alimentação, deve ele deixar de ser usado para aquele fim.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: João Moreira do Carmo
2.º Adjunto: Fonte Ramos




ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA e mulher BB, intentaram  contra CC e mulher DD, todos com os sinais dos autos, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediram que os réus sejam condenados a:

a) Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam.

b) Demolirem as infraestruturas construídas para abrigo dos animais ou, subsidiariamente, a retirarem dali os animais, deixando de utilizar essas instalações.

c)  Retirarem todas as construções que invadem o prédio dos AA., nomeadamente as vigas cravadas na parede norte da sua habitação.

d)  Pagarem aos AA., a quantia de €1.500,00 euros, a titulo de danos não patrimoniais.

Alegaram , em suma:

Usam o prédio urbano registado a seu favor para sua habitação, após nele terem feito diversas obras.

Há cerce de  3, 4 anos os RR construíram encostado à sua casa um galinheiro e curral de porcos, onde mantém um número elevado de animais, que provocam um cheiro pestilento e nauseabundo e atraem moscas e mosquitos que os impede, em especial no verão, de arejar a sua casa e de a utilizar normalmente.

Para além disso o ruido dos animais impede o sono e descanso.

A sua qualidade de vida e o valor do imóvel estão diminuídos e sofrem danos de natureza não patrimonial.

Além disso as construções dos RR violam o direito de propriedade dos AA, já que invadem a linha divisória das propriedades, por terem encostado as mesmas à casa dos AA, por baixo do beiral que serve de limite e cravaram as vigas do telhado na sua parede.

Contestam os RR.

Por exceção (ilegitimidade passiva, já que não são os proprietários do prédio confinante ao dos AA) e por impugnação.

Disseram que o prédio urbano dos AA está descrito como sendo estábulo e as obras que eles levaram a cabo não foram licenciadas para habitação, pelo que é ilegal a sua utilização para habitação.

A sua casa de habitação é em ... e só esporadicamente estão em ..., cerca de um mês por ano.

O EE é o dono do galinheiro, mas são os RR que usam o espaço e lá têm apenas uma pequena capoeira com uma dúzia de galinhas.

Esse galinheiro existe há mais de 60 anos tendo sido construído pelos pais dos RR.

Não existe qualquer parecer ou ordem de qualquer entidade sanitária que proíba a criação de galinhas, e existem outros na redondeza, como é habitual na zona rural, sendo forma de auto-sustento familiar.

Não é verdade que tenham sido cravadas vigas de suporte nem violação dos limites de propriedade, uma vez que a construção já existe assim há mais de 60 anos.

Pediram a improcedência da ação.

Foi requerida e deferida a intervenção principal provocada de EE

 que contestou, em moldes idênticos aos dos primitivos RR.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, decide este tribunal julgar a ação totalmente não provada e improcedente, absolvendo os RR dos pedidos.»

3.

Inconformados recorreram os autores.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

Dos factos erroneamente considerados provados e não provados:

1ª Na douta sentença ora recorrida foram julgados provados os factos descritos nos pontos 18), 21), 22), 24), 25), 26).

2ª Tendo, por conseguinte, sido julgado como não provado os factos descrito nas alíneas b), c), d), e), f), g) e h).

3ª Conforme consta da fundamentação da matéria de facto, o Tribunal a quo refere que formou a sua convicção com base na análise crítica, à luz das regras da experiência comum e critérios de normalidade, conjugada com as declarações de parte e com os depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em julgamento e que, quanto à prova documental, relevaram os documentos juntos aos autos.

4ª Analisando a sentença proferida, verificamos que existem duas versões, (a maior parte das vezes até coincidente com a versão dos AA.) contraditórias acerca dos mesmos factos (a dos AA. e dos RR.), mas verificamos que, na apreciação da prova, o Tribunal recorrido não explicita quais foram as testemunhas que mereceram uma maior credibilidade, assim, podemos concluir que a convicção formada pelo Tribunal a quo, quanto à decisão de facto, padece de erro manifesto ou grosseiro.

5ª Todavia, consideramos que existiu uma incorreta decisão da matéria de facto que, de acordo com as provas documentais existentes nos autos (fotografias) e, designadamente, os depoimentos das testemunhas e ainda apelando às regras da experiência comum, impunham uma decisão diferente. Porquanto,

6ª Relativamente ao ponto 18 dos factos dados como provados, a Mma Juiz a quo não deveria ter dado como provado este ponto, nomeadamente, da forma que consta da sentença proferida e, muito menos, deveria partir deste ponto para motivar a sua convicção, pois, tal como resulta da prova produzida, não é esta a realidade dos autos!

7ª Na verdade, pese embora as certidões de registo predial e matricial juntas aos autos – que têm por fito maior a prova da propriedade -, o certo é que atualmente o prédio urbano dos AA. não corresponde a nenhum estábulo, pelo contrário, pois, atualmente corresponde a uma casa de habitação com dois pisos, no piso de cima possui uma cozinha, uma sala, um quarto e uma casa de banho, enquanto que, no piso de baixo, possui uma cozinha com despensa – tal como resulta até dos factos dados como provados.

8ª Porquanto, ao contrário daquilo que foi dado como provado neste ponto 18), deveria sim constar que “o imóvel dos AA. identificado no facto 1) não se encontra licenciado para habitação e nem foi apresentado, até hoje, pedido de licenciamento ou de autorização junto das entidades administrativas para a realização das obras no prédio, contudo, pese embora esta situação e as certidões de registo predial e constantes dos autos, atualmente os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano destinado a habitação”.

9ª E nesse sentido, deveria ter sido dado como provado o facto constante da alínea h) dos factos não provados:

“h) Os RR. ao construírem o barraco que alberga a pocilga e galinheiros em questão não respeitaram os limites do prédio dos AA. pois cravaram várias vigas de suporte do telhado na casa dos AA”.

10ª Não faz qualquer sentido o Tribunal a quo equacionar que a casa dos Recorrentes tivesse sido expendida até ao barracão pré-existente dos Recorridos, pois, tal como acima referimos a casa foi reconstruída em cima de uma antiga parede de pedra, pelo que não havia ali qualquer galinheiro.

11ª Se verificarmos, a reconstrução feita pelos Recorrentes foi ao encontro do que ali existia antigamente, pois, tal como foi dito pelas partes e mesmo pelas testemunhas, o imóvel dos Recorrentes sempre esteve virado para o imóvel dos Recorridos, tendo para ali virada uma janela e uma porta – cfr. consta das transcrições feitas.

12ª Na verdade foram os Recorridos que decidiram encostar as várias chapas da cobertura do galinheiro à sua casa – tal como se pode perceber nas fotografias juntas aos autos, aliás, atendendo ao estado de conservação e tais chapas, facilmente se verifica que esta foram ali colocadas recentemente.

13ª Também os pontos nºs 21 e 22, não deveriam ter sido dado como provados pela Mma Juiz a quo, porquanto, tal como resulta dos depoimentos das testemunhas, a mãe do CC e do EE trazia ali duas ou três galinhas, naquele espaço ao ar livre e na terra, mas que estas tinham poleiro noutro sítio, na casa que hoje é pertença do EE, o galinheiro que ali existe atualmente não existia, não foi construído nem utilizado pelos pais do CC e do EE e nem foi depois utilizado pelos Recorrido desde há vários anos.

14ª Mesmo que se admitisse a existência de um alegado telheiro, construído pela mãe do Recorrido, o certo é que este nunca se destinou a galinheiro, antes pelo contrário. Pois a mãe do Recorrido chegou a guardar ali as suas arcas com os cobertores e até tinha lá cobertores pendurados – tal como referiu FF, filho dos Recorridos, é da experiencia comum e das regras da normalidade que ninguém guarda cobertores ou pendura cobertores num galinheiro.

15ª Deste modo, a alínea b) dos factos não provados, segundo a qual, “O galinheiro dos RR. foi construído há 3 ou 4 anos desde a data da propositura da acção”, deveria ter sido considerada provada.

16ª Porque na realidade, tal como acima afirmamos, os Recorridos só construíram e passaram a utilizar o galinheiro em apreço depois que a filha começou a construir uma casa no terreno que estes utilizavam para a criação das galinhas.

17ª Relativamente aos pontos 24, 25 e 26, pese embora se aceite que não existe qualquer parecer ou ordem emitida por qualquer entidade sanitária, o certo é que, tal como resulta das regras da normalidade e da experiência comum, a existência de um galinheiro, com cerca de oito galinhas e dois patos, fechado, sem qualquer limpeza e arejamento, encostado a uma casa de habitação, afeta claramente a saúde pública de quem ali reside, porquanto, tal galinheiro origina maus odores e diversos ruídos emitidos por aqueles animais – tal situação colide, claramente, com direitos de personalidade dos Recorrentes.

18ª Por outro lado, pese embora existam mais galinheiros com galinhas perto do prédio urbano dos Recorrentes, verificamos que nenhum destes galinheiros se encontra encostado às casas de habitação, designadamente, à habitação dos Recorrentes Realmente – situação que também colide com o direito de propriedade dos Recorrentes, designadamente, com uso e fruição da sua casa de habitação.

19ª Mais, acresce que, como se sabe as autoridades administrativas (Delegação de Saúde) ou policiais (GNR), só têm o condão de impor coimas e não impedir a ilicitude do comportamento dos RR. – que cabe essencialmente nas competências dos Tribunais. Também não é obrigatório nem constitui precedente, que antes do recurso ao Tribunal, que se faça queixa nessas ditas autoridades (obrigatório, por imperativo moral e decorrente das regras da boa vizinhança, foi que os AA. falaram com os RR. e estes foram autistas aos seus pedidos – V. factos provados)

20ª Os Recorrentes não se opõem à criação das galinhas por parte dos Recorridos, o que realmente os perturba é a emissão dos maus cheiros deste galinheiro, que põe em causa a sua saúde, sossego e bem-estar e os impede de usar e fruir devidamente da sua casa de habitação. Mesmo que, tendenciosamente se tenha deixado exarado que os Recorrentes só passam aqui férias, esquecendo a Sentença que dentro dos limites do seu direito de propriedade, os Recorrentes são soberanos e podem cá vir mais vezes ou os seus filhos, ou ainda emprestar ou arrendar a casa – tudo poderes/direitos que ficam prejudicados com a presente Sentença.

21ª A este propósito e entre muitos outros, veja-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 28/05/2015, processo nº 2372/12.5TBVCT.G1:

“I – À emissão de maus cheiros e a produção de ruídos que afetem substancialmente o uso e fruição da casa de habitação, provindo de prédio vizinho, pode opor-se o proprietário do imóvel. II – Tal “prejuízo substancial”’ é apreciado objectivamente, atendendo-se à natureza e finalidade do prédio.

 III – A defesa dos direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao conforto, a um ambiente sádio e ecologicamente equilibrado, prevalece, em caso de colisão, sobre a tutela do direito ao exercício de uma actividade laboral, de natureza agrícola”.

22ª Ademais, com interesse para o caso em apreço e para a boa decisão da causa, veja-se teor do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2019.10.03, processo nº 2722/16.0T8BG.G1.s1, segundo o qual:

“(…) III. Não obstante a vivência nos meios rurais, impor que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, a verdade é que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram.

IV. Assim, demonstrado que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,395 metros da casa dos autores, impõe-se ter por prevalecente o referido direito dos autores, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre o direito de propriedade dos réus e os interesses destes em fazer criação de galinhas e galos”. - (sublinhado nosso)

23ª Tal como acima demonstramos, o Tribunal a quo deveria sim ter acrescentar um novo facto aos factos provados, nomeadamente: “que os Recorridos são donos e legítimos possuidores de outros prédios rústicos, afastados de casas de habitação, onde poderiam construir um novo galinheiro e continuar a dita criação de galinhas”.

24ª Tal como resulta das declarações de parte do Recorrido CC, este possui outros prédios rústicos aptos à criação de galinhas, podendo desta forma, garantir a continuidade da sua subsistência. Acresce ainda dizer que naqueles locais (praticamente despovoados e desertos), há inúmeros locais /terrenos/casas antigas (do conhecimento comum), onde estes senhores Recorridos podem ter as galinhas, sem os prejuízos decorrentes da situação aqui em apreço.

25ª Ao acrescentar este novo facto, o Tribunal a quo garantia a solução para o caso sub judice, pois, verificamos que com a alteração da localização do dito galinheiro era possível salvaguardar os direitos de ambas as partes, designadamente, os direitos de personalidade e de propriedade dos Recorrentes e os direitos de iniciativa privada dos Recorridos.

26ª Neste sentido, verificamos ainda que os factos não provados, constantes das alíneas c), d), e), f) e g), foram incorretamente julgados, até em confronto os pontos 12, 13, 14 e 15 da Sentença e ainda de acordo com as regras da normalidade e da experiência comum, pois, não se olvida que um galinheiro, no concreto circunstancialismo apurado nos autos, designadamente, em sede de audiência de julgamento, prejudica substancialmente o uso e fruição de habitação dos Recorrentes, comprometendo seriamente os seus direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao conforto, a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

27ª É evidente que o cheiro é nauseabundo e insuportável. Ao contrário daquilo que consta da sentença de que se recorre, tais cheiros não dependem do clima (calor, chuva ou vento), na verdade, é um cheiro pestilento, empesta todo o ambiente, e tem carácter regular, os Recorrentes estão claramente impedidos de utilizar, condignamente, a sua habitação, para além da afetação dos seus direitos de personalidade.

28ª Feitas todas estas considerações, verificamos que existiu um erro notório na apreciação e decisão da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sendo manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos.

29ª A decisão proferida assenta em factos arbitrários, visivelmente violadores do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum. As respostas dadas não têm base sólida face aos elementos da prova trazidos ao processo, estando profundamente desapoiadas face às provas recolhidas.

30ª Resulta evidente que o Tribunal recorrido não valorou corretamente a prova produzida, decidindo, de forma desacertada, a matéria de facto, ocorrendo flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão proferida, o que posteriormente se refletiu na decisão proferida.

31ª Efetivamente, o Tribunal a quo ao dar como provados os factos acima descritos, nas versões que constam da fundamentação da sentença, apoiando-se apenas na versão dos factos relatados apenas e só dos RR., ora Recorridos, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova – a apreciação do tribunal é livre mas não arbitrária, porque deve ser motivada, controlável e está condicionada pelo princípio da persecução da verdade material.

32ª Em suma, verificamos que existiu uma incorreta decisão da matéria de facto e que existiu uma violação do disposto na alínea b) e c) do nº 1 do art. 615º do CPC.

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Procedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Por outro lado, nesta senda e com este fito, estatui o artº 640º do CPC:

«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

Nesta vertente urge ter presente que não basta a indicação do inicio e fim do depoimento no respetivo suporte magnético.

Certo é que o cumprimento destes requisitos formais  deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ -  que o não cumprimento,  nas conclusões, do requisito da al. a) do nº2 – indicação com exatidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório.

Porém, já  é comummente  defendido que os outros requisitos do nº1 – porque as alegações definem o objeto do recurso e por razões de cooperação para a celeridade -  devem nestas constar.

Assim:

«Para efeitos do disposto nos artigos  640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir,  previstas nas alíneas a), b)  e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por  função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.

E, por outro lado, a exigência da  indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada  na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um  ónus secundário, tendente a possibilitar  um acesso mais ou menos  facilitado aos meios de prova gravados relevantes  para a apreciação da impugnação deduzida.

Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c)  do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso…» - Ac. do STJ de  21.03.2019, p. 3683/16.6T8CBR.C1.S2.

A rejeição do recurso quanto à decisão de facto deve verificar-se, para além do mais, nas situações de falta «de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados», tal como de falta «de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação», constituindo, aliás, exigências que «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.» - A . Geraldes  in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, ps. 126 /128.

(sublinhado nosso)

E mesmo que, benevolentemente e no limite, se entenda que nem todos estes requisitos devam ser exigidos como presentes, com rigor e perfeccionismo, nas conclusões, pelo menos um, qual seja o da al. a) – indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados -  deve nelas constar, adrede e inequivocamente.

É esta, tanto quanto alcançamos, a posição jurisprudencial uniformizada, aliás no seguimento do entendimento da doutrina nesta matéria.

Assim:

«A rejeição do recurso de apelação a respeito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto apenas pode radicar, atendo-nos propriamente ao conteúdo das conclusões, na falta de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados. Todos os demais elementos legalmente mencionados, em especial no art. 640.º, n.º 1, do CPC – especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, menção sobre o sentido da decisão pretendido e indicação exacta das passagens da gravação em que o recurso de funda –, apenas se faz indispensavelmente mister que constem da motivação – corpo alegatório – de tal recurso.» - Ac. do STJ de 19.06.2019, p. 7439/16.8T8STB.E1.S1.

De notar que a falta da indicação dos pontos factuais impugnados nas conclusões não admite convite ao seu aperfeiçoamento- cfr. vg., Ac. do STJ S 27.10.2016, p. 110/08.6TTGDM.P2.S1 e Henrique Antunes, ob. e loc. cits.

De tudo o referido decorre que  o recorrente não pode limitar-se a invocar, mais ou menos abstrata, genérica e indiferenciadamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

Antes ele devendo efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

Se assim não for, e:

«Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC.

 Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.» - Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.(sic).

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– Cfr. Ac, do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz e não a parte, e atento o supra aludido em 5.1.1, a  lei  apenas permite a censura da convicção do julgador  se os meios probatórios invocados impuserem (não basta  apenas que sugiram) decisão diversa da recorrida.

5.1.3.

O caso vertente.

Pretendem os autores a alteração/não prova dos pontos 18, 21, 22 e 24 a 26 e a prova dos factos não provados das alíneas b) a h).

Têm eles o seguinte teor:

18) O imóvel dos AA. identificado no facto 1) não se encontra licenciado para habitação e nem foi apresentado, até hoje, pedido de licenciamento ou de autorização junto das entidades administrativas para a realização das obras no prédio, tornando o estábulo em habitação com a realização e apresentação de projeto de arquitetura e outros – confessado em declarações de parte.

21) .Este galinheiro já existe há vários anos, desde data não apurada, mas foi construído e utilizado pelos pais do CC e do EE.

22) E depois pelos RR, desde há vários anos.

24) Não existe qualquer parecer ou ordem emitida por qualquer entidade sanitária (delegado de saúde), relativamente a este caso concreto, que impeça ou impossibilite a criação de galinhas por afetar a saúde pública.- declarações de parte.

25) A existência de uma capoeira num espaço rural, incluindo nesta aldeia de ..., é uma situação comum e vulgar, fazendo parte dos usos e costumes ou até da tradição dos aldeões como forma de auto-sustento familiar – facto notório e prova por declarações e por testemunhas.

26) Perto do prédio urbano dos AA, nos seus arredores e vizinhanças existem mais galinheiros com galinhas. – declarações das partes e das testemunhas.

b) O galinheiro dos RR foi construído há 3 ou 4 anos desde a data da propositura da ação.

c) os cheiros são de tal modo pestilentos que impedem a utilização da casa e seu arejamento

d) e o ruído de cacarejos de tal forma intenso, e sempre às primeiras horas da madrugada, que impede o descanso dos AA.

e) E já não conseguem passar aqui um mês inteiro de férias por causa desta situação.

f) Por força de tais cheiros e odores, já várias vezes, sentiram más disposições físicas, dores de cabeça, náuseas e sensações de vómito.

g) Ambos os AA. vivem num estado de grande nervosismo, ansiedade e depressões anímicas, provocadas pelo cheiro, odores, ruídos, existência de moscas e mosquitos oriundos do prédio dos RR..

h) Os RR. ao construírem o barraco que alberga a pocilga e galinheiros em questão não respeitaram os limites do prédio dos AA. pois cravaram várias vigas de suporte do telhado na casa dos AA

A Srª Juíza entendeu que, quanto aos factos sobre a data da construção do galinheiro, se antes se depois da reconstrução do urbano pelos réus, não se fez prova, dadas as discrepantes posições das pessoas que verbalizaram em audiência.

Expendendo que: «não é impossível que a casa dos AA (que antes tinha apenas 16m2 e agora se ignora quantos tem e para onde se expandiu) tivesse sido ampliada até ao barracão pré-existente dos RR e que o beirado dessa casa só depois ultrapassasse o limite do barracão, como salientou o Il Mandatário dos RR nas doutas alegações. Como é possível o inverso, como sustentam os AA.

Pode até ter sido reconstruído o barracão pelo R. CC, por exemplo com a colocação de novas chapas de zinco, o que ele nega (porque diz que ainda foi a mãe) o que explicaria que estejam no estado razoável de conservação que se vêm nas fotos, mas acreditou o tribunal que o barracão original já existia há vários anos naquele local e que foi ainda construído pelos pais do R., em data não apurada.

Ficou-se, todavia, com a convicção segura de que as obras no prédio dos AA ocorreram há quase 20 anos, contados na data da sentença já que o próprio R. confessa que quando regressou à terra, em 2003, já tinham sido feitas - e que tais obras transforam um antigo estabulo ou curral em casa de habitação, com cozinha, sala, quartos e casas de banho, pela prova coincidente nesta parte.

Como se acreditou, com base na prova por declarações e testemunhal, que ali sempre houve galinhas, embora antes fossem da mãe do R e deixando-as por ali à solta, e só depois, as dos RR, que por ali existem também há vários anos.

No que concerne aos cheiros, é por demais evidente que existem e não são agradáveis, como os cheiros das flores e das árvores que também existem nos meios rurais.

Mas não se pode dar por assente que o cheiro é nauseabundo e insuportável, já que isso depende também do clima (calor e vento), da limpeza que é feita ao galinheiro e até da sensibilidade de cada um. Não é com uma ida ao local que se pode dar por assente uma realidade continua e que depende de vários fatores.

O mesmo se diga quanto ao ruído, que dependerá também de outros fatores e da hora do dia.»

Já os recorrentes pugnam pela alteração nos termos plasmados no corpo alegatório e  nas conclusões.

As quais, em abono da verdade jurídica, são algo deficientes no que tange ao cumprimento das exigências legais formais previstas no artº 640º do CPC, pois que, vg, não reportam cabalmente os concretos meios probatórios aos concretos pontos de facto impugnados.

Porém, dada a relativa simplicidade do caso, dilucidar-se-á de fundo.

Foi apreciada a prova.

A alteração proposta ao ponto 18, a saber: « contudo, pese embora esta situação e as certidões de registo predial e constantes dos autos, atualmente os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano destinado a habitação”, é desnecessária.

Tal já resulta dos pontos 1, na parte em que alude a um prédio «urbano» e dos pontos 4 e 5.

Não é pela fundamentação aduzida pelos autores na conclusão 9ª, a saber:

«9ª E nesse sentido, deveria ter sido dado como provado o facto constante da alínea h) dos factos não provados:

“h) Os RR. ao construírem o barraco que alberga a pocilga e galinheiros em questão não respeitaram os limites do prédio dos AA. pois cravaram várias vigas de suporte do telhado na casa dos AA”.

Mas este facto tem de ser dado por provado desde logo considerando as fotografias juntas aos autos, as quais o demonstram claramente.

Efetivamente, o barraco que encerra o galinheiro não podia sustentar-se se não tivesse vigas cravadas em parte da parede da casa dos autores e algumas são visíveis nas fotografias.

Quanto aos pontos 21 e 22 e à al. b) atinente a quem primeiro construiu o galinheiro e há quantos anos, a prova, como disse a julgadora, foi contraditória.

Porém, as testemunhas dos autores foram assertivas  no sentido de que o barraco foi construído já após a ampliação do urbano, há cerca de 20 anos.

As fotografias dos autos demonstram que este barraco está parcialmente suportado na casa dos autores, com vigas que entram na parede da mesma na parte já  rebocada e pintada..

Ora isto demonstra que o barraco, pelo menos na sua atual configuração, já foi erigido após a ampliação da casa.

Assim, e no parcial deferimento da pretensão dá-se a esta al. b) a seguinte redação: O galinheiro dos RR foi construído, na sua atual configuração, já depois da ampliação/reconstrução  pelos autores do prédio urbano.

A prova e a exegese dela operada pelos  recorrentes, de cariz essencialmente pessoal,  não tem força  bastante para impor a censura da convicção da Srª Juíza.

Logo, neste aspeto, nada pode ser censurado à mesma.

Mais os recorrente dizem que:

«Relativamente aos pontos 24, 25 e 26, pese embora se aceite que não existe qualquer parecer ou ordem emitida por qualquer entidade sanitária, o certo é que, tal como resulta das regras da normalidade e da experiência comum, a existência de um galinheiro, com cerca de oito galinhas e dois patos, fechado, sem qualquer limpeza e arejamento, encostado a uma casa de habitação, afeta claramente a saúde pública de quem ali reside, porquanto, tal galinheiro origina maus odores e diversos ruídos emitidos por aqueles animais – tal situação colide, claramente, com direitos de personalidade dos Recorrentes.».

Ora tal argumentação não tem o cariz de verdadeira impugnação  factual,  com invocação de meios probatórios, mas antes é meramente opinativa sobre as consequências do galinheiro, o que apenas pode ser efetivado em sede de interpretação e subsunção jurídica.

Relativamente aos factos das als. c), d), e), eles, na sua essencialidade relevante,  correspondem a uma intensificação/exacerbação dos factos já provados nos pontos 12 a 15.

Ora, mais uma vez aqui, os argumentos probatórios esgrimidos pelos recorrentes não  permitem concluir para além do dado  como provado naqueles pontos, vg, pelas razões aduzidas na  fundamentação decisão factual, pois que tal exacerbação sempre dependerá da sensibilidade de cada um e das condições de tempo, modo em que os cheiros  emirjam e se desenvolvam.

No tangente  aos factos das als. f) e g) relativos às consequências dos cheiros para os autores cometem o erro já mencionado quanto aos pontos 24 a 26.

Finalmente, a pretensão quanto ao aditamento do facto novo, a saber: “que os Recorridos são donos e legítimos possuidores de outros prédios rústicos, afastados de casas de habitação, onde poderiam construir um novo galinheiro e continuar a dita criação de galinhas”.

Tal prova não pode ser concedida desde logo por razões formais: é que ele não foi alegado.

Assim, a sua prova violaria os princípios do dispositivo, da substanciação, da defesa do contraditório, e da auto responsabilidade das partes.

Mesmo que assim não fosse, a prova invocada pelos recorrentes mais uma vez não tem força bastante para impor, a censura da convicção da julgadora, em função do supra expendido em 5.1.1. e 5.1.2.

5.1.4.

Decorrentemente, e na parcial procedência desta pretensão, os factos a considerar são os seguintes, indo a negrito o ora aditado:

1) Mostra-se registado a favor dos AA, através da Ap ... de 1995/06/05, o seguinte prédio urbano: “ Casa de dois pavimentos para estábulo, sita no lugar ... - ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 16 m2 que confronta do lado norte com GG (ora R.), do sul e poente com caminho público e do nascente com HH, inscrita na respetiva matriz predial sob o art. ...56º e descrita na CRP ... sob o nº ...02 – confrontar certidões de registo predial e matricial juntas sob doc.s 1 e 2 da petição inicial.

2) Tal prédio veio à posse dos AA. por doação feita pelos doadores II e mulher JJ, feita por escritura pública lavrada n cartório Notarial ... em 6/7/1994, exarada de fls. 30v a 32, do L. 180-B – V. Doc. nº 3 da petição.

3) Desde a data da referida doação - ano de 1994 - e até hoje, os AA. tomaram posse do prédio urbano acima identificado, à vista de toda a gente – prova testemunhal.

4) Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2003 (confessado pelo R em declarações), os AA fizeram obras nesse prédio, com vista a habitação, dotando-a de cozinhas, casas de banho, quartos, etc

5) E desde então, pelo menos no mês de agosto e por vezes esporadicamente, noutras alturas, ali dormem, comem, recebem amigos, etc.

6) Vivendo a maior parte do tempo em ... – confessado.

7) Quer os AA., quer os anteriores transmitentes, sempre atuaram assim, sem autorização ou consentimento de terceiros, convictos que agiam por direito próprio e que não estavam a lesar o de ninguém, sempre reconhecidos e respeitados como verdadeiros donos por todas as pessoas da aldeia.

8) O prédio acima identificado dos AA., confina do seu lado norte com um prédio dos RR. .

9) Este prédio dos AA. em relação ao prédio dos RR., do lado onde confinam, situa-se a um nível ligeiramente superior.

10) Encostada à parede norte do prédio urbano dos AA está implantado um galinheiro pertencente aos RR.

11) Onde possuem um número não apurado de galinhas, por volta de 10 , e dois patos e onde em tempos tiveram um porco - confessado

12) Os animais ali criados produzem urinas e excrementos e libertam cheiros e odores, sobretudo nos meses de verão, de mais calor – regras da experiência comum e da normalidade.

13) E, nesses meses, os referidos excrementos atraem mosquitos e moscas. – idem

14) Tais animais fazem ainda os ruídos habituais de carcarejos. – idem

15) Tais cheiros, quando mais intensos, tornam desagradável e incómoda a utilização dos AA do seu prédio, incluindo o arejamento da casa e a utilização do barbecue que instalaram no logradouro para aí virado.- idem e restante prova testemunhal.

16) Os RR. não moram naquele prédio onde está o galinheiro.

17) Os AA., antes desta ação, contactaram os RR pedindo-lhes para dali retirarem os animais.- confessado.

18) O imóvel dos AA. identificado no facto 1) não se encontra licenciado para habitação e nem foi apresentado, até hoje, pedido de licenciamento ou de autorização junto das entidades administrativas para a realização das obras no prédio, tornando o estábulo em habitação com a realização e apresentação de projeto de arquitetura e outros – confessado em declarações de parte.

19) O prédio urbano composto de casa de dois pisos destinada a armazém e atividade industrial, sita no Lugar ... – ..., inscrito na freguesia ..., concelho ... sob o artigo 255, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., da freguesia ..., aí registada a aquisição, na proporção de um/terço a favor de KK pela inscrição Ap.dezoito de 14/09/2007 e na proporção de dois/terços a favor de EE, pela inscrição Ap.dois, de 10/04/2008 – docs 1 e 2 da contestação

20) O referido galinheiro é pertença do R EE, contudo são os demais RR. que usufruem daquele espaço e criam as galinhas mediante consentimento/autorização do proprietário (o EE é irmão do ora R. CC).

21) .Este galinheiro já existe há vários anos, desde data não apurada, mas foi construído e utilizado pelos pais do CC e do EE.

22) E depois pelos RR, desde há vários anos.

23) Paralelamente ao galinheiro também existe um pequeno barraco onde os pais do EE e do CC guardavam a colheita resultante das suas atividades agrícolas e as suas alfaias agrícolas

24) Não existe qualquer parecer ou ordem emitida por qualquer entidade sanitária (delegado de saúde), relativamente a este caso concreto, que impeça ou impossibilite a criação de galinhas por afetar a saúde pública.- declarações de parte.

25) A existência de uma capoeira num espaço rural, incluindo nesta aldeia de ..., é uma situação comum e vulgar, fazendo parte dos usos e costumes ou até da tradição dos aldeões como forma de auto-sustento familiar – facto notório e prova por declarações e por testemunhas.

26) Perto do prédio urbano dos AA, nos seus arredores e vizinhanças existem mais galinheiros com galinhas. – declarações das partes e das testemunhas.

Mais se prova, da instrução da causa (depoimentos e declarações de parte e factos do conhecimento funcional deste tribunal) que

27) O agregado familiar é composto por ambos os RR e por uma sobrinha deficiente profunda de quem a Ré foi nomeada acompanhante de maior, neste Tribunal, no processo de acompanhamento de maior com o nº 885/21.... - declarações de parte e conhecimento funcional deste tribunal.

28) O R CC tem uma doença oncológica devendo evitar comer carnes que não sejam carnes brancas (peru, galinha, pato) – declarações de parte e experiência comum.

29) A mulher está desempregada e vivem da reforma do Réu (417€) e da sobrinha, sua acompanhada. – idem.

30) O galinheiro dos RR foi (re)construído, na sua atual configuração, já depois da ampliação/reconstrução  pelos autores do prédio urbano.

31)  Os RR. ao construírem o barraco que alberga a pocilga e galinheiro não respeitaram os limites do prédio dos AA. pois cravaram várias vigas de suporte do telhado na casa dos AA.

5.2.

Segunda questão.

A causa foi decidida, de jure, com invocação do seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«Seja com fundamento na violação do direito de propriedade, seja na violação de direitos de personalidade, sempre caberia aos AA o ónus da prova dos factos constitutivos da responsabilidade extra-contratual dos RR, a que se alude no art.º 483º do CC (ilicitude, culpa, danos e causalidade adequada), porque isso nos ensinam as regras básicas do art.º 342º desse diploma civilista.

No que concerne à violação do direito de propriedade, não tendo sido demostrado o limite entre os prédios - nem qual foi construído ou reconstruído em primeiro lugar ou que existia desde sempre - entendemos não ter ficado demostrado a prática, pelos RR, de qualquer ato ilícito.

Se é certo que atualmente o barracão está encostado à casa dos AA, e por baixo do beirado, nalguns centímetros, não se pode ignorar que tal casa não existia antes e foi ampliada e alteada, não se sabendo o que existia anteriormente, podendo ser o beirado dos AA que passou a invadir o espaço dos RR.

Como também se não demonstrou se o galinheiro tem cravadas vigas na parede dos AA.

Assim, e sem prejuízo do que infra se dirá a propósito do abuso de direito, não vemos demostrada a violação, pelos RR, do direito de propriedade dos AA.

Mais complexa é a questão da violação dos direitos de personalidade a uma habitação salubre, ao bom ambiente e ao sossego e sono.

Não se ignora que a maioria da jurisprudência, no confronto ou colisão de direitos de personalidade com a propriedade e a iniciativa privada, faz prevalecer, em princípio, os primeiros, por ser isso que decorre do nº 2 do art. 335º do C.C.

Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física; à proteção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana.

Em caso de colisão entre o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade, num ambiente ecologicamente equilibrado, e o direito de propriedade (direito ao uso e fruição que o proprietário tem sobre a coisa que lhe pertence) ou o direito da livre iniciativa privada (direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial), deve prevalecer o primeiro, pois que aquele direito, implicando com a integridade física e moral do indivíduo, isto é, afetando os direitos de personalidade de uma pessoa, deve preponderar sobre o direito de propriedade ou direito da livre iniciativa privada.

Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias", não sujeitos a reserva da lei restritiva, com outros direitos fundamentais (direitos económicos, sociais e culturais, v.g.) devem prevalecer os primeiros.

Sucede que, no caso em apreço, há contornos específicos que terão e ser analisados e que se passarão a enumerar:

a) Em primeiro lugar, a criação das galinhas pelos RR não se resume a um direito à livre iniciativa privada, de cariz económico.

Face às manifestas insuficiências económicas do agregado familiar, que resultam ou se concluem de apenas viverem de duas reformas e serem 3 pessoas, sendo uma deficiente profunda e outro doente oncológico, a criação de galinhas e dos seus ovos é vital para a sua subsistência, alimentação e saúde (o R. não deve comer carnes que não sejam brancas), como os mesmos referiram em declarações.

b) Em segundo lugar, os AA vêm a tribunal reclamar um direito a dormir sossegados, sem o ruido das galinhas e a poderem abrir as janelas e arejar a casa e a usar o churrasco sem sentirem o mau cheiro. Só que:

-Pretendem que outros cumpram a lei quando eles próprios não o fizerem, transformando o estábulo ou curral numa casa sem qualquer parecer ou aval de quem de direito para aferir se o podiam fazer. Querem fazer prevalecer direitos sobre uma habitação que, em termos jurídicos não existe e, quiçá, até poderia não existir, se cumprissem com a lei, na sua globalidade, ou seja, com a ordem jurídica no seu todo, através do licenciamento por parte da Câmara Municipal.

Com efeito, em termos de direito os AA são proprietários de um estábulo e estão importunados com o barulho e cheiro das galinhas do vizinho.

Querem arejar os quartos (ilegais) através de janelas que possivelmente nunca existiram para ali viradas, sendo que grande parte das testemunhas recorda-se dali de uma única abertura mas que não era usada porque aquilo era um estábulo.

No limite, pode dar-se a situação de terem aberto janelas novas, em espaços que são agora quartos, para o galinheiro vizinho para depois exigirem a retirada das galinhas para poderem arejar a casa e não terem de as ouvir nem sentir o cheiro.

c) Atualmente – e é só isso que revela e não intenções futuras que podem nunca concretizarse – o prédio dos AA, como casa, é usado, sobretudo, no mês de agosto.

Mas os RR precisam de alimentar-se diariamente, e as galinhas, patos e ovos são vitais para a sua subsistência..

d) Nas aldeias do País, como nesta, é habito ainda haver a criação de animais para consumo próprio, por ser algo cultural, geracional e fundamental para o sustento das famílias.

Com a crise e inflação crescentes, cada vez mais famílias, até em meios urbanos, estão a apostar na agricultura e pecuária biológicas.

e) Os cheiros podem ser mais intensos em agosto, quando os AA vêm à terra, onde em tempos tiveram um estabulo. Mas a sua intensidade, tal como o ruido, e falta de higiene terá sempre de ser aferida pelas autoridades administrativas competentes.

f) O ruido das 8 ou 10 galinhas não é pior que os sinos da igreja das aldeias, nem que o ruido dos carros, das ambulâncias, dos camiões da recolha do lixo, dos cães dos vizinhos, das crianças que habitam outras frações dos prédios das cidades.

E, em férias, em pleno agosto, sem haver a necessidade de despertar para o trabalho, tudo é mais suportável e bucólico.

g) Não se demostra que os RR tenham outro espaço que seja apto e funcional para poderem criar os animais, não sendo lícito impor a terceiros, ainda que familiares dos RR, que aceitem as galinhas naquilo que é deles.

Perante isto, e salvo devido respeito e melhor opinião, entendemos que, seja por desproporção intolerável do direito dos RR à propriedade, à iniciativa privada, à subsistência ou sobrevivência ou à saúde,

Seja por manifesto abuso de direito (art.º 334º do CC),

Não pode a ação proceder.

Questionamos, desde logo se os AA podem gozar de um direito ao sossego e sono e a uma habitação salubre e arejada quando a casa que existe fisicamente não existe para a ordem jurídica, ou seja, não têm um direito válido.

Mas ainda que se entenda que o têm, o seu exercício, cremos, é abusivo.

Uma modalidade de abuso de direito é o Desequilíbrio- O desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé.

Ele comporta diversos subtipos; podemos apontar três: - o exercício danoso inútil; - dolo agit qui petit quod statim redditurus est; - desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.

Ora, um casal que vem passar um mês de ferias de verão e um ou outro fim de semana esporádico à casa de férias que construíram ilegalmente, impor aos vizinhos que deixem de ter as galinhas e patos, essenciais para o seu sustento e saúde, afigura-se-nos consubstanciar um desequilíbrio gritante que não podemos aceitar.

As obras da casa dos AA foram feitas há anos, pelo que os mesmos já tinham tempo de cumprir as normas legais para as legalizarem e, depois, poder exercer os seus direitos de forma válida.

E esse exercício, cremos, passará por solicitar previamente às autoridades policiais e sanitárias competentes que afiram do cumprimento, pelos RR, das regras de vizinhança no que concerne ao ruído e à higienização do espaço.

No que concerne aos RR, entendemos ser um dever básico dos mesmos manter limpo o espaço em especial no verão, de modo a evitar a acumulação de excrementos com a libertação de odores inerentes.»

Apreciemos.

Sdr não se corrobora esta exegese.

Ela assenta em vários vetores fundamentais, a saber: i) O facto de a casa de habitação não estar licenciada; ii) A estrita necessidade dos galináceos para os réus, vg. por motivos de saúde, iii)  A insalubridade do barraco não ter sido verificada pelas autoridades competentes; iv) Não se ter provado os réus terem outro sítio para colocar o galinheiro; v) Existir abuso de direito  na modalidade do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.

Tais argumentos não convencem face aos factos dados como provados, máxime considerando os aditados nesta Relação.

A (i)legalidade administrativa da casa é inócua.

Ela não está aqui em discussão nem condiciona a decisão, como, no entendimento da sentença, determinantemente, condicionou.

É um problema meramente de cariz administrativo que terá de ser dilucidado em sede própria.

Nesta nossa sede de cariz legal civilística, mister importa apenas apurar se a casa é de habitação e nela, os réus, habitam.

E tal provou-se.

Certo é que ao que parece eles apenas nela pernoitam, ao menos por via de regra e por enquanto, aquando das suas férias no Verão, cerca de um mês.

Mas tal é o qb.

O período de férias  deseja-se um período de recuperação  de forças, físicas e anímicas, dos trabalhos  e dos afazeres tidos ao longo do ano.

Destarte, quer-se, e  é suposto que assim seja, que constitua um período de paz e sossego.

Ora perante os factos apurados -  vg. os cheiros desagradáveis do galinheiro que se situa mesmo debaixo das janelas, e dos barulhos e cacarejares das galinhas e dos galos, os quais, como é consabido, ocorrem desde logo por volta do nascer do sol – tal paz e sossego são certamente prejudicados.

O segundo argumento outrossim assume-se relativamente inócuo.

A prova aponta apenas para a conveniência, não para a proibição, de o réu comer carnes brancas, evitando as vermelhas.

Ora mesmo sem galinheiro, ou, muito menos,  mesmo sem o galinheiro no local em causa, ao réu não estará vedado seguir tal regime alimentar.

Afinal, criar galinhas também dá trabalho e despesa, e se não se criarem, a aquisição de carne branca ainda é mais fácil do que adquirir carne vermelha, simplesmente porque é mais barata.

Quanto ao terceiro argumento reitera-se o já aduzido quanto ao primeiro.

Nesta ação irrelevam défices de cariz meramente administrativos ou burocráticos.

O que releva é se, real e efetivamente, se provam factos que possam, ou não possam, em termos jure civilistas, consubstanciar/alicerçar  as pretensões impetradas pelas partes.

O mesmo se dirá no tangente ao 4º argumento.

Certo é que não se provou que os réus tivessem outro lugar para o galinheiro. Mas também não se provou que o não tivessem.

E este facto é que seria relevante.

Aliás por algumas testemunhas até foi verbalizado que os réus tinham o galinheiro noutro prédio e que o  mudaram para o local em causa.

E é consabido, pelas experiência comum, que, em zonas rurais como a presente, e em termos de uma certa normalidade, é sempre possível, com maior ou menor dificuldade e/ou acessibilidade, encontrar um local para erigir galinheiros  de sorte a que estes  não afetem, ou afetem o menos possível, os vizinhos.

Finalmente o abuso de direito.

A figura do abuso de direito constitui uma válvula de escape do sistema, ditada pela consciência jurídica para obtemperar a algumas das consequências de injustiça clamorosa e iniquidade num certo caso concreto, advenientes da pura perspetivação e aplicação, formal e rígida, de  estritas normas legais.

O abuso de direito assume-se, pois, como um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.

Pelo que há abuso de direito quando este, atento o circunstancialismo do caso concreto, é exercido de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto excesso ou desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade, de tal modo que o sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, impõe a retirada do mesmo ou a responsabilização do titular.

Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

Nesta conformidade dispõe o artigo 334º do CC:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.

Importa é que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei- cfr.”- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao referido artigo 334º

São várias as situações que podem fundamentar uma atuação em abuso de direito.

De entre as quais se destacam, paradigmaticamente:

a) exceptio doli; b) venire contra factum proprium; c) inalegabilidade de nulidades formais; d) supressio e surrectio; e) tu quoque; g)  o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.- cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 717.

Na sentença entendeu-se existir abuso de direito na modalidade  do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Este pode definir-se como:« o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).»  - Ac. RC de 09.01.2017, p. 102/11.8TBALD.C2, in dgsi.pt.

Na sentença concluiu-se pelo exercício em abuso de direito por banda dos autores, atenta a valoração/valorização dos argumentos alicerçantes supra referidos.

Mas já se viu que aos mesmos não deve ser dada a importância que lhe foi atribuída pela Srª Juíza.

Releva ainda, neste conspeto específico, o facto provado nesta instância de que:

30) O galinheiro dos RR foi (re)construído, na sua atual configuração, já depois da ampliação/reconstrução  pelos autores do prédio urbano.

Ou seja, quando os réus, ou os seus antecessores, erigiram ou, ao menos, reconstruiram/melhoram o galinheiro, a casa dos autores, na sua atual configuração, já estava edificada.

Tanto assim que as vigas dos mesmo estão incrustadas na parede da casa já melhorada, o que apenas poderia acontecer após o primitivo urbano ter sido alterado/melhorado.

Ora estando o galinheiro debaixo das janelas da casa, os réus ou os seus antecessores tinham conhecimento, ou, o que é o qb., era-lhes exigível que tivessem, que os ruídos dos galináceos e dos porcos e os maus cheiros daí advenientes certamente que seriam sentidos pelos habitantes da casa.

Assim sendo, entre o direito dos réus a criarem umas galinhas para ajudar na sua alimentação e o direito dos autores a não terem, permanentemente, maus cheiros consabidamente intensos  - e, até, vg., perante as condições climáticas, nauseabundos e insuportáveis,  e que, assim, afetam intoleravelmente a sua qualidade de vida - , não se antolha como é que pode existir um intolerável desequilíbrio em favor dos autores e em desfavor dos réus, na sua pretensão de verem eliminado o galinheiro.

Antes  pelo contrário, esse desequilíbrio pode até conceder-se à pretensão dos réus.

Na verdade, estão em confronto direitos de jaez diversos; meramente patrimoniais por banda dos réus, e já pessoais por parte dos autores.

E como bem se diz na sentença, por via de regra a jurisprudência hodierna mais valoriza, sobreleva e protege estes últimos.

Pois que, estando na atual conjuntura económico social, por via de regra, assegurada a satisfação das necessidades materiais básicas/primárias, importa, para   se alcançar uma almejada, plena e adequada, qualidade de vida, relevar e proteger aspetos necessários à consecução de tal desiderato, como sejam, vg., a higiene - necessária ao evitamento de certas doenças - , o sossego e a paz de espírito.

Inexiste, pois, abuso de direito por banda dos autores.

Porém, certo é que as consequências prejudiciais do galinheiro advêm apenas do facto de os réus ali criarem animais.

Se ele for utilizado for, vg. usado para outros fins não prejudiciais, vg. arrecadação, tais prejuízos, em princípio, não advirão.

Assim, em vez do pedido principal dos autores na demolição do galinheiro, deve ser apenas concedido o seu pedido subsidiário de retirarem dali os animais, deixando de o utilizar para esse fim.

Finalmente, e quanto à pretensão da retirada de todas as construções que invadem o prédio dos AA., nomeadamente as vigas cravadas na parede norte da sua habitação, ela deve ter acolhimento  na exata medida do ora provado, ou seja, considerando que com o incrustamento de algumas das vigas na parede da casa dos autores, os réus  violaram o direito de propriedade destes e, assim, devendo tais vigas serem retiradas da parede – artºs 483º e 1305º do CC.

Se sem elas o galinheiro – mas sem galinhas – se mantiver erigido, tudo bem; se não, uma de duas: ou fica demolido, ou têm de fazer parede de suporte autónoma para as vigas de sorte a que o espaço – sem animais – continue erigido, porventura para outros fins não barulhentos e/ou que emanem maus cheiros.

Procede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença, e, agora, condenar os réus a:

a) Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam.

b) Retirarem os animais do barraco em causa que lá se encontram e, abstendo-se, no futuro de  o utilizar para tal finalidade.

c)  Retirarem todas as vigas cravadas na parede norte da habitação dos autores na parte e na medida em que entrem na mesma.

Custas recursivas pelos réus.

Coimbra, 2023.02.07.