Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
124/14.7TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
PASSIVO
DÍVIDAS
CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - TONDELA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1689, 1697 CC, 1336 CPC/61
Sumário: A aprovação do passivo e do seu valor na conferência de interessados em inventário para separação de meações, constitui caso julgado e vincula definitivamente, salvo causa impeditiva excecional a provar, o respetivo interessado, não podendo ele invocar novo ou maior quantum quer no inventário, quer em ação autónoma.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

J (…) instaurou contra T (…), ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

Seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de €6.903,87, acrescida de juros legais desde a citação até integra pagamento.

Alegou:

Autor e ré foram casados, em primeiras núpcias dos mesmos, no regime da comunhão de adquiridos, desde 28 de Novembro de 1987 até 8 de Outubro de 2008, data em que foi decretado o divórcio na ação nº 386/08.9TBTND, tendo a ação sido proposta em 18-07- 2008.

Na constância do casamento autor e ré contraíram, conjuntamente, vários empréstimos bancários, que se destinaram a despesas do casal, pelo que as dívidas a eles atinentes são comuns.

 Tais empréstimos (dívidas)  foram relacionadas na relação de bens do  inventário  para separação de meações que correu sob ação nº 386/08.9TBTND –A.

Ainda casados, mas já separados e já depois da propositura da ação de divórcio e até à data de hoje, o autor pagou 2.043,74 euros de um empréstimo e 11.764,00 de outro.

A ré está obrigada a pagar metade de tais quantias.

Contestou a ré, dizendo:

Os créditos bancários foram usados pelo então casal na realização de obras de reconstrução/beneficiação da casa de morada de família, que na partilha foi adjudicada ao autor, e que essa casa foi declarada como 2/8 como bem próprio do autor.

O autor desde a separação do casal ficou a usufruir a casa em causa sem que nunca tenha procedido ao pagamento de qualquer quantia.

A ré deixou a casa de família e foi viver com a filha de ambos, menor, para uma casa arrendada, pagando €200,00/mês de renda.

Em sede de conferência de interessados autor e ré, por terem chegado a acordo quanto ao passivo, do qual faz parte a quantia ora pedida, eliminaram-no.

Realizado o mapa de partilhas não houve reclamações ao mesmo.

Foi homologado o mesmo por sentença.

Conclui pela improcedência da ação.

Mais deduziu reconvenção pedindo que seja o autor condenado a pagar-lhe a quantia de €6.000,00 decorrente da adjudicação a si de um veículo automóvel que nunca lhe foi entregue.

Procedeu-se à audiência prévia frustrando-se o acordo.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual se decidiu:

«Por tudo o exposto o tribunal conhece a excepção de caso julgado e consequentemente absolve a ré da instância.».

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes, nucleares, conclusões:

1ª As dívidas alegadas foram contraídas por ambos os cônjuges na constância do matrimónio, pelo que a sua responsabilidade e pagamento recai sobre ambos – artº 1691º nº1 al. a) do CC.

2ª – Os efeitos patrimoniais do divórcio retroagem à data da propositura da ação.

3ª  Pelo que o cônjuge que a partir daí pagar com o seu dinheiro divida comum, tem, no momento da partilha, o direito de ser compensado em metade do que haja pago – artº 1697º nº1 do CC.

4ª - Na conferência de interessados apurou-se um passivo do casal, mas se o autor não tivesse pago no período que medeia entre a propositura da ação de divórcio e a conferencia de interessados, esse passivo seria muito maior.

5ª – Assim tem direito a ser compensado por metade do valor que despendeu.

6ª – Os documentos juntos permitem provar os factos da pi e, assim, devia ser a ação ser julgada procedente.

7ª –Se assim não se entendesse, deveria a ação prosseguir para julgamento.

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Condenação da ré a satisfazer metade das quantias alegadamente pagas pelo autor.

5.

Apreciando.

5.1.

Estatui o artº 1689º do Código Civil:

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.

2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.

3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

E prescreve o artº 1697º:

1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.

2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.

O inventário, extrajudicial, ou judicial, é o modo/processo próprios para os ex cônjuges verem dilucidados e decididos, de um modo, pelo menos tendencialmente, definitivo, todos os aspetos atinentes às suas relações patrimoniais: bens, créditos e dívidas.

Na verdade: «Além de dar lugar à conferencia das dívidas ao património, a partilha é também o momento de os cônjuges se exigirem recíprocamente o pagamento das dívidas entre si» - Lopes Cardoso, in  Administração dos Bens do Casal, 380.

Ademais: «A grande inovação introduzida neste ponto pelo código vigente (artº 1697º nº1) é que esse crédito só pode ser exigido  no momento da partilha dos bens do casal…a não ser que entre os cônjuges vigore o regime da separação.» - Pires e Lima e A. Varela, CC Anotado, 1975, 4ª, 126, em anotação ao mencionado artº 1697º.

Nesta conformidade, se no inventário os interessados chegam a acordo quanto à definição/liquidação da sua situação patrimonial, vg. quanto à aprovação do passivo tal situação torna-se, pelo menos por via de regra, e tendencialmente, definitiva.

Desde logo no próprio processo de inventário, pois que a partilha apenas pode ser emendada e anulada nos estritos e apertados termos previstos no artº 70º e sgs. do  regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março.

E depois, e muito menos, em processos diversos, pois que, como se viu, a questão patrimonial pós cessação do casamento em que haja bens a partilhar e/ou dívidas a assumir, tem de ser escalpelizada no inventário.

Sendo de chamar aqui à colação os princípios da suficiência processual  e da preclusão do direito invocado.

Veja-se, o decidido no Ac.do STJ de 24.04.2013, p. 156/06.9TBCNT.C1.S1, aqui aplicável, mutatis mutandis:

«I - Por efeito da preclusão dos meios de defesa, a relacionação de um prédio em inventário como integrante da herança sem que seja deduzida reclamação contra essa relacionação, obsta a que um interessado nesse inventário venha ulteriormente em acção declarativa invocar a aquisição por usucapião desse mesmo imóvel que já se teria consumado à data da inventariação.

II - O acordo de todos os interessados no processo de inventário na adjudicação de certo imóvel em comum e em partes iguais a certos interessados envolve a renúncia tácita destes à ulterior invocação da aquisição a seu favor por usucapião que já se teria verificado à data da relacionação em inventário da parte do imóvel que lhes foi adjudicado.».

Mostra-se, assim, acertada a argumentação do Sr. Juiz a quo, a saber:

«não pode deixar de se ter em conta o estatuído na versão em vigor do Código de Processo Civil à data da partilha que as dívidas aprovadas por todos os interessados consideram-se judicialmente reconhecidas – artigo 1354º, nº 1 do Código de Processo Civil.

Por outro lado resulta do processo de inventário que não houve reclamações quanto aos bens que compunham a universalidade do património comum do casal, pelo que tal questão se encontra definitivamente decidida entre os interessados – artigo 1336º do Código de Processo Civil.

Acresce que nas operações de partilha, como resulta da certidão junta, o passivo foi um dos elementos que ponderaram a mesma, pois caso assim não fosse a aqui ré teria a receber de tornas de valores diverso…

Ora, encontrando-se a questão decidida no inventário em que houve imputação de valores a cada um dos interessados, que relacionaram ou não reclamaram os bens a questão encontra-se decidida.

Pelo que o tribunal pronunciar-se sobre o pedido, irá implicar uma nova partilha e relacionamento de bens no inventário que se encontra findo com trânsito em julgado da sentença, e consequentemente uma ofensa ao caso julgado.»

E, de facto e de direito, assim é.

Tanto assim é que: «face ao disposto no nº1 deste artigo (1336 do CPC pretérito), devem os interessados no inventário usar da maior cautela no acompanhamento do inventário por forma a evitar que sejam tomadas decisões implícitas…e tornadas definitivas…ou de não ter sido ressalvado o direito às ações competentes» - Abílio Neto in Breves Notas ao CPC, 2005, p.317.

Nesta conformidade, tendo os interessados do caso vertente, rectius o ora recorrente, anuído e definido, na conferência de interessados, qualitativa e quantitativamente, o passivo, tendo-o aprovado, é evidente que tal posição o vinculou, quer por reporte ao que já àquela data tinha apenas ele  pago, quer relativamente ao que viria a pagar no futuro.

Efetivamente, e perante tal declaração de vontade, tem de concluir-se, desde logo quanto às prestações já pagas, que ele aceitou, pelo menos implícitamente, estar de acordo quanto ao valor ali aprovado, renunciando,  pois, a maior quantum que ora diz ter solvido, e, consequentemente, a qualquer crédito sobre a ex esposa; e, no atinente a pagamentos futuros, que ele os assumiria exclusivamente.

Assim tendo agido, vinculou-se definitivamente, pelo que, se mal andou, sibi imputet.

Improcede, brevitatis causa,  o recurso.

6.

Sumariando.

A aprovação do passivo e do seu valor na conferência de interessados em inventário para separação de meações, constitui caso julgado e vincula definitivamente, salvo causa impeditiva excecional a provar, o respetivo interessado, não podendo ele invocar novo ou maior  quantum quer no inventário, quer em ação autónoma.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2015.12.01.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos