Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
239/11.3 TBVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
LIMITES
CONSTRUÇÕES E EDIFICAÇÕES
FRESTA
JANELAS GRADADAS
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ART.º 1344.º, 1305.º, 344.º, 1363. E 1364.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. Face a uma moderna concepção do direito de propriedade, que rejeita a ideia de um interesse individual fundado em razões meramente egoísticas, não é de reconhecer terem os AA, na sua qualidade de proprietários, um interesse relevante, actual e atendível em impedir a ocupação de 13 cm de espaço aéreo do seu prédio, se tal invasão se ficou a dever à necessidade de reforço da impermeabilização e do reboco da parede exterior do prédio confinante e não se demonstrou que a existência de tal filete perturbe de algum modo a exploração agrícola do prédio, sua actual afectação.

II. A pretensão restitutória formulada é de recusar atento o disposto no n.º 2 do art.º 1344.º do CC ou, no limite, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 1305.º, sua parte final, e 344.º do mesmo diploma legal.

III. Encontram-se subtraídas ao regime de tolerância consagrado nos artigos 1363.º e 1364.º do Código Civil as aberturas do tipo das previstas naquele primeiro preceito ou, como é o caso, de janelas gradadas, num e noutro casos sem observância das dimensões e altura em relação ao solo (ou sobrado) ali prescritas -aberturas irregulares portanto.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No Tribunal Judicial de Vouzela, A... e mulher, B... , residentes no lugar e freguesia de (...), Vouzela, vieram instaurar acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, contra C... e mulher, D..., residentes na (...) Azeitão, pedindo a final a condenação dos demandados a:

a) recuarem a parede poente da sua habitação para a estrema que é a parede de pedra do r/c e que foi respeitada aquando da construção inicial;

b) taparem a janela que abriram na parede poente;

c) reconhecerem que o prédio dos AA., “ V(...)”, não deve aos seus “ H(...)” e “ (...)” qualquer servidão de estilicídio, a retirarem a caleira e a recolherem todas as águas dos seus telhados no seu (deles) próprio prédio;

d) absterem-se de danificar, como danificaram, as árvores que os autores plantaram e plantam no seu prédio “ V(...)”;

e) pagarem aos autores os prejuízos – no terreno e nas culturas – causados pela água da caleira, deliberadamente lançada por sobre o “ V(...)”;

f) pagarem o valor da figueira que “secaram” ambos danos patrimoniais ressarcíveis e a liquidar em execução de sentença.

Em articulado aperfeiçoado alegaram, em síntese, que são os donos do prédio rústico denominado V(...), sito nos limites do lugar de (...), inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 0(...).º, o qual adquiriram por usucapião que expressamente invocam.

Os RR, por seu turno, são donos do prédio composto de casa de habitação e quintal, sito nos mesmos limites, inscrito na matriz sob o art.º 2(...), e ainda do prédio rústico denominado (...), composto de casa de habitação antiga, eira e rocio pegado, inscrito na matriz sob o art.º 1(...).º, ambos a confinar do poente com o identificado prédio dos demandantes.

Mais alegaram que há menos de dois anos (tendo por referência a data da propositura da acção), os RR decidiram ampliar a casa de habitação (dito art.º 2(...).º) prolongando a parede poente, mas ao fazê-lo ultrapassaram a linha divisória, tendo invadido o espaço aéreo do prédio dos AA. Nessa mesma parede poente levaram a efeito a abertura de uma janela, que gradaram, a qual deita directamente sobre o prédio denominado “ V(...)”, não observando as medidas impostas pela lei, e procederam ainda à colocação de uma caleira metálica que recolhe as águas pluviais que escorrem dos beirados da casa de habitação e da barraca pegada, encaminhando-as directamente para aquele prédio. A queda das águas vem abrindo regos e arrancando a vegetação do prédio dos AA, nomeadamente o azevém e duas árvores de fruto, no valor de € 5,00 cada, prejuízos carecidos de reparação.

Finalmente, procederam os RR ao despejo de um qualquer produto sobre uma figueira implantada no prédio dos demandantes, provocando a secagem do ramo atingido e afectando toda a árvore, dano cuja reparação igualmente reclamam.

As condutas descritas são violadoras do direito de propriedade dos demandantes, tendo-lhe provocado danos, cuja liquidação remetem para execução da sentença, justificando-se a procedência dos pedidos formulados.
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Regularmente citados, os RR contestaram nos termos da peça que consta de fls. 46 a 53, na qual reconhecem terem levado a efeito no ano de 1995 obras de reconstrução/ampliação no prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 2(...), o qual teve origem no prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3(...), obras executadas de harmonia com a licença emitida pela CM de Vouzela. Tais obras impunham-se devido ao estado de ruína em que se encontrava a habitação e, se é verdade que se prolongou o filete da parede para fora da estrema a todo o comprimento e numa largura de 13 cm, tal foi motivado pela necessidade de reparação da parede do prédio “A (...)” com revestimento isolante, pois apresentava fissuras e graves infiltrações causadas pelos AA devido a rebentamentos de TNT que efectuavam no prédio contíguo.

Reconhecem igualmente ter sido alterada a janela antes existente, que agora se encontra a 1,80 mt do solo, apresentando menores dimensões, caindo assim sob a alçada do art.º 1363.º, n.º 1 do CC. Mais alegam que, existindo tal janela desde 1946, sempre com a finalidade de receber ar e luz, constituiu-se por usucapião uma servidão de vistas, ar e luz, onerando o prédio vizinho pertencente aos AA, o que deve ser reconhecido.

Finalmente, e no que respeita à caleira, alegam que desde 1946, encaminhadas por duas caleiras, as águas escorriam já para o prédio dos demandantes, pelo que, existindo actualmente apenas uma, se verificou na realidade um desagravamento da servidão de estilicídio, inexistindo prejuízo para o prédio “O V(...)”.

Impugnando a demais factualidade alegada e com os aludidos fundamentos, concluem pela improcedência da acção.

Os AA responderam, sublinhando a irrelevância da invocada conformidade administrativa das obras realizadas pelos contestantes e impugnando a matéria exceptiva por estes alegada.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foram os RR absolvidos da instância quanto aos pedidos formulados sob as als. e) e f), com fundamento no facto de se verificar a excepção dilatória atípica de formulação ilegal de pedidos genéricos. Do assim decidido interpuseram os AA recurso, o qual não foi admitido, por prematuro.

Foram seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória. Desta última peça reclamaram os AA, com êxito parcial, como se alcança do despacho de fls. 136 e 137.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta, tendo o Tribunal respondido à matéria de facto controvertida pela forma constante de fls. 214 a 216 (com a rectificação ordenada a fls. 218), sem reclamação das partes.

Na devida oportunidade foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, declarou que o prédio dos AA não se encontrava onerado com qualquer servidão de estilicídio em favor do prédios dos RR, devendo estes procederem ao reencaminhamento da caleira de forma a que a recolha das águas dos telhados se faça no seu prédio, absolvendo-os quanto ao mais que vinha peticionado.

Inconformados, os AA interpuseram o presente recurso e, tendo apresentado as pertinentes alegações, remataram-nas com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª- O Tribunal, perante a prova testemunhal produzida pelos AA. – os RR. não fizeram qualquer prova e nem sequer infirmaram a prova aduzida pelos AA.– deveria ter dada resposta diversa aos quesitos 1º e 2º da base instrutória;

1.1- As testemunhas dos AA. falaram com conhecimento directo e pessoal dos factos da causa, e a sua razão de ciência advém do facto de trabalharem, desde há anos, o prédio dos AA.

2.ª- É manifestamente contraditória a resposta dada ao facto 5) da matéria assente perante a resposta dada ao facto 9) da mesma matéria;

3.ª- O Julgador iniciou por essa contradição um raciocínio deliberado de subversão da própria norma substantiva do art.º 1364.º CC que trata das “janelas gradadas”, afastando essa medida!

4.ª- E esse erro, ostensivo e deliberado, levou à legitimação ou legalização de uma janela aberta de forma ilegal por quem (os RR.) tinha consciência dessa ilegalidade, como é fácil de intuir.

5.ª- Do mesmo modo e pela mesma óptica, o Julgador legitimou a ocupação, pelos RR., do espaço aéreo do prédio dos AA., ultrapassando com a sua construção a linha da estrema em 13 centímetros, considerando que estes não sofreram, em consequência, qualquer lesão, e deveriam… no seu (do Julgador) d. entendimento, ter-se abstido de levar o caso a Juízo!

6.ª- Uma má decisão, um claríssimo erro na apreciação das provas e uma errada aplicação do direito aos factos, eis no que se traduziu a d. sentença”.

Indicando como violadas as normas constantes dos arts. 1305.º, 1308.º, 1310.º, 1360.º, 1363.º e 1364.º, todos do CC, requerem a revogação da sentença proferida, na parte em que absolveu os RR. dos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da p.i., e sua substituição por outra que os condene nos pedidos assim formulados.
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Assente que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso, são questões a decidir:

i. do erro de julgamento: da alteração das respostas dadas aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória e da contradição entre as respostas dadas aos artigos 5.º e 9.º;

ii. do erro de julgamento por errada interpretação e aplicação dos artigos 1305.º, 1308.º, 1310.º, 1360.º, 1363.º e 1364.º, todos do Código Civil.                   
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I. do erro de julgamento: da alteração das respostas dadas aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória e da contradição entre as respostas dadas aos artigos 3.º e 8.º (factos constantes da sentença sob os n.ºs  5.º e 9.º);

Invocaram os apelantes erro de julgamento no que respeita às respostas dadas aos art.ºs 1.º e 2.º da base instrutória que, tendo sido negativas, pretendem ver alteradas em sentido contrário, indicando para tanto os testemunhos prestados por E..., F...e G...., havendo ainda que atender ao teor do registo fotográfico junto no decurso da audiência e que consta de fls. 206.

Perguntava-se nos artigos em questão:

1.º Foi há menos de dois anos, considerada a data de interposição da acção, que os RR efectuaram a obra referida em D)?[1]

2.º- Os RR abriram uma janela, que gradaram, no prédio descrito em B a), que deita directamente sobre o prédio descrito em A)?[2]

Tendo respondido negativamente ao perguntado, a Mm.ª juíza “a quo” justificou do seguinte modo as respostas dadas: “Para julgar a matéria de facto nos termos supra expostos, quanto aos quesitos 1º e 2.º, o Tribunal atendeu à circunstância de nenhuma testemunha se ter referido, em concreto, ao aludido em D) dos factos assentes e ter mencionado o teor de 2.º”.

Ora, ouvidos os depoimentos produzidos em sede de audiência (cuja integral e fidedigna transcrição foi, aliás, junta pelos apelantes), afigura-se não poderem subsistir as respostas dadas.

Com efeito, tratando-se de testemunhos merecedores de credibilidade -as testemunhas apontaram com precisão a sua razão de ciência, o E... por residir próximo desde o ano de 2004, o casal F... e mulher por amanhar o prédio dos AA, por tolerância destes, desde há 17/18 anos- não subsistiu dúvida quanto ao facto de há cerca de 3-4 anos, não mais, tendo por referência a data da realização da audiência de discussão e julgamento (que teve lugar em Junho de 2013), os RR terem levado a cabo nova intervenção na casa de habitação descrita em 2.a), que consistiu no reforço do isolamento e execução de novo reboco, trabalhos em consequência dos quais o filete avançou por sobre o prédio dos RR, conforme as aludidas testemunhas asseveraram. Aliás, isso mesmo foi confirmado pela testemunha indicada pelos próprios RR, I..., engenheiro civil de profissão e autor do projecto de reconstrução da casa daqueles, obra concluída no ano de 1996, conforme referiu e resulta corroborado pelo teor dos documentos de fls. 122 (este subscrito pelo próprio) e 123. Tendo de forma espontânea declarado ter efectuado uma visita em data recente “para constatar efectivamente as condições em que se estava a verificar o motivo desta presença” (sic) declarou ter verificado que foi feito um reforço no isolamento da parede que faceia com o terreno do vizinho, isolamento que disse encontrar-se “ligeiramente saliente em relação à fachada”, sem prejuízo de ter assinalado o carácter irregular do revestimento ao nível do rés do chão, aspectos estes, aliás, em relação aos quais a análise dos registos fotográficos de fls. 35 e 206 não deixam lugar para dúvidas.

No que concerne à janela, foi igualmente determinante o depoimento desta mesma testemunha que, confrontado com o registo de fls. 120, não teve dúvida em reconhecer a casa dos RR antes da intervenção que teve lugar em 95/96 na execução do projecto da sua autoria, confirmando aquilo que o confronto do aludido registo com os antes mencionados já evidenciava: que a janela então aberta apresenta diferenças em relação à original, quer quanto à sua localização, quer em termos de dimensão, agora menor. De todo o modo, o seu depoimento, seguro e conhecedor, permitiu fixar sem dúvida a data de abertura desta janela, a qual se manteve inalterada aquando dos trabalhos efectuados cerca do ano de 2009/2010 o que, em todo o caso, as testemunhas F... e mulher, em especial esta última, tinham também confirmado.

Face a tais depoimentos, conjugados com os documentos a que se fez referência e ainda com o registo fotográfico de fls. 206 -que, temos para nós, respeita aos últimos trabalhos efectuados, o que se infere da circunstância de a fachada lateral e a chaminé se encontrarem pintadas, em contraste com a fachada poente, apenas em reboco- não subsistiu dúvida quanto à realização desta intervenção, consensualmente destinada a reforçar o isolamento, e que implicou a realização de novo reboco, com o consequente avanço do filete por sobre o prédio dos demandantes, bem como o momento em que teve lugar, a saber, 3-4 anos antes da audiência. Todavia, e ao contrário do que pretendem os AA, a janela já se encontrava aberta desde a realização das obras de restauro e ampliação iniciadas em 1995 e concluídas no ano de 1996, tendo naturalmente sido removidas as grades para reforçar o isolamento e proceder a novo reboco, as quais foram depois recolocadas. Não obstante, o que também resultou apurado foi a diferente localização e dimensionamento da abertura agora existente, quando confrontada com a original, o que os RR, aliás, tinham confessado na sua contestação (cf. art.sº 19.º e 20.º desta peça).

Assim sendo, logo se vê que as impugnadas respostas não podem subsistir. Aliás, não pode deixar de se assinalar que a Mm.ª juíza, tendo respondido negativamente ao perguntado no art.º 2.º -sendo certo que o art.º 3.º, respondido positivamente, estava na dependência daquele-  veio depois a repescar parte do facto ali vertido, que deixou consignado no ponto 5) da sentença.

Por outro lado, e no que respeita à acusada contradição entre o teor das respostas dadas aos art.ºs 3.º e 8.º (pontos 5. e 9. da sentença), é a mesma patente, uma vez que, depois de se afirmar que a janela se encontra a menos de 1,80 mt do soalho do compartimento em que se insere, o que resultou da prova pericial efectuada nos autos, declarou-se que na sequência do processo de reconstrução e ampliação da moradia a janela foi levantada para 1,80 mt da altura. Acresce que, se não há dúvida que existia desde data anterior a 1993 -sendo este o ano de elaboração (que não de execução) do projecto, o seu autor asseverou a anterior existência da janela, o que o registo fotográfico de fls. 120 corrobora-, a verdade é que a alteração se verificou nos anos de 1995/1996, como resulta do depoimento prestado pelo já referido Eng.º I... e também mencionados documentos de fls. 122/123, sendo assim de manter a este respeito a referência que constava do artigo a que se respondia.

Deste modo, e procedendo nesta parte as alegações recursivas, determina-se a alteração das respostas dadas aos artigos 1.º, 2.º e 8.º, que passarão a ter o seguinte teor:

Art.º 1.º- Provado que a obra referida na al. D) foi executada cerca do ano de 2009/2010, com o esclarecimento de que consistiu no reforço do isolamento e execução de novo reboco na fachada poente do prédio ali identificado.

Art.º 2.º- Provado que os RR executaram uma abertura na fachada poente do prédio identificado em 2.a), que gradaram, a qual deita directamente para o prédio descrito em A).

Art.º 8.º- Provado que desde data não apurada mas anterior a 1993, existia uma janela aberta na fachada poente do prédio identificado em 2.a), tendo sido modificada na sequência das obras de reconstrução/ampliação levadas a cabo nos anos de 1995/1996, encontrando-se desde então a 1,685 mt de distância do soalho do compartimento em que se insere, e sendo menores as suas dimensões.
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II. Fundamentação

De facto

Agora definitivamente fixada a matéria de facto, são os seguintes os factos a atender:

1. Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio “ V(...)”, rústico, culto, com a área de 200m2, nos limites do lugar de (...), inscrito na matriz predial rústica do serviço de Finanças de Vouzela sob o artigo 0(...), de onde constam as seguintes confrontações: a norte com caminho, sul com (...), nascente com (...) e poente com (...) (al. A).

2. Os RR. são proprietários dos prédios:

a) Descrito na Caderneta Predial Urbana do Serviço de Finanças de Vouzela sob o artigo 2(...), sito no Lugar de Quintais, composto de casa de habitação formada de rés do chão amplo, 1º andar com 3 divisões, 1 cozinha, casa de banho e quintal, com as seguintes confrontações: a norte, sul e nascente com caminho e a poente com o A.

b) Descrito na Caderneta Predial Urbana do Serviço de Finanças de Vouzela sob o artigo 1(...), sito no Lugar da (...), composto de casa de habitação com dois andares, tendo 3 lojas no 1.º e 4 divisões no 2.º, eira e rocio pegado, com as seguintes confrontações, norte e nascente com caminho, sul e poente com o proprietário (al. B).

3. O prédio descrito em 1. confina com os prédios descritos em 2. pelo lado poente (al. C).

4. No prédio descrito em 1. a) os RR. efectuaram uma obra que prolongou parte da parede por 13 cm do prédio dos autores (al. D).

5. A obra referida em 4. foi executada cerca do ano de 2009/2010 e consistiu no reforço do isolamento e execução de novo reboco na fachada poente do prédio ali identificado (resposta ao art.º 1.º).

6. Os RR executaram uma abertura na fachada poente do prédio identificado em 2.a), que gradaram, a qual deita directamente para o prédio descrito em 1. (resposta ao art.º 2.º).

7. A janela gradada que existe no prédio descrito em 2. a), virada para o prédio aludido em 1., está colocada a menos de 1,80 metros do soalho do compartimento em que se insere (resposta ao art.º 3.º).

8. Desde data não apurada mas anterior a 1993, existia uma janela aberta na fachada poente do prédio identificado em 2.a), tendo sido modificada na sequência das obras de reconstrução/ampliação levadas a cabo nos anos de 1995/1996, encontrando-se desde então a 1,685 mt de distância do soalho do compartimento em que se insere, e sendo menores as suas dimensões (resposta ao art.º 8.º).

9. A janela sempre foi usada de forma pública e pacífica, tendo a sua existência, por referência às obras aludidas em 8., sido devidamente licenciada (resposta ao art.º 9.º).

10. Das obras efectuadas pelos RR. resultou que do telhado da habitação dos mesmos, as águas pluviais apanhadas por caleira lá colocada encaminham-se directamente para o prédio descrito em 1. (resposta ao art.º 4.º)

11. Antes do facto referido em 10., e desde data não concretamente apurada, mas anterior a 1993, as águas pluviais eram apanhadas e escorriam pela parede do prédio aludido em 2.a) abaixo, sendo que até então existiam duas caleiras e passou apenas a haver uma (resposta aos artigo 5.º, 10.º e 11.º).

12. A pedra original da casa aludida em 2. a) é rugosa (resposta ao art.º 7.º).
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De Direito

Do erro de julgamento, por errada interpretação dos artigos 1305.º, 1308.º e 1310.º do Código Civil.

Como se vê das conclusões, mostram-se excluídos do objecto do recurso a decisão proferida em sede de despacho saneador que absolveu os RR da instância quanto aos pedidos ali formulados sob as als. e) e f) -tendo embora interposto então recurso do decidido, o qual não foi admitido, os AA não repristinaram a questão no âmbito desta apelação, assim se mostrando tal decisão transitada-, nem tão pouco o segmento da sentença que julgou procedente a pretensão dos demandantes no que respeita à caleira colocada no prédio dos RR, uma vez que estes com tal se conformaram.

Deste modo, em causa está a invocada violação do direito de propriedade dos demandantes no que respeita à demonstrada ocupação de 13 cm do espaço aéreo contido no prédio identificado em A), e a ilegalidade da abertura existente na fachada poente do prédio identificado em 2.a), este pertença dos RR, e que deita directamente para aquele.

No que se refere ao pedido formulado em a), a presente acção vem estruturada como uma típica acção de reivindicação, tal como prevista no art.º 1311.º do Código Civil,[3] nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. Com efeito, tendo invocado o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado em A) e a ocupação, pelos RR, de 13 cm do espaço aéreo desse prédio, concluíram os AA pelo pedido de restituição do espaço ocupado (outro não é o efeito útil do pedido de recuo da parede poente do prédio dos demandados, responsável pela ocupação).

Consoante preceitua o n.º 2 daquele preceito “Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

No caso que nos ocupa, a Mm.ª juíza “a quo”, tendo reconhecido o direito de propriedade dos demandantes sobre o prédio em questão, não questionado pelos RR, recusou, ainda assim, o pedido restitutório, por entender que se estava perante um exercício abusivo daquele direito, segmento impugnado da decisão. Vejamos, pois, da pertinência dos argumentos a propósito trazidos aos autos pelos apelantes.

Nos termos do disposto no art.º 1305.º, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (é nosso o destaque).

Face ao dispositivo em referência, logo em 1966 o Prof. Antunes Varela assinalava ser muito significativo “(…) o facto de o Código, ao descrever o conteúdo que tem o direito de propriedade, haver incluído na definição, como elemento normal, e não a título de excepção encravada no poder absoluto do dominus, os limites resultantes da lei para o gozo do proprietário”[4].

E prosseguia com os seguintes considerandos: “Dir-se-á que, na essência, se trata de um aspecto demasiado subtil arrancado a uma pura noção geral, mas à observação é fácil retorquir que tal subtileza chega para revelar já um espírito muito diferente do que anima os clássicos postulados do individualismo, traduzindo uma outra concepção da propriedade, que é, como a experiência demonstrará, susceptível de desentranhar-se em muitas soluções práticas”[5].

Já então se notava a evolução de uma concepção absolutista e individualista do direito de propriedade para uma noção onde pontificava a sua função social, a constituir, também ela, um limite ao exercício daquele direito.

Temos assim, por um lado, a consagração de limites genericamente assinados ao exercício do direito de propriedade, aqui avultando o art.º 334.º, que define o abuso de direito e, por outro, restrições impostas por lei, que podem resultar do direito público, de que a expropriação por utilidade pública, pela sua relevância, constitui o expoente máximo, ou de normas do direito privado, como aquelas que se destinam a regular as relações de vizinhança (cf. art.º 1344.º e seguintes)[6].

Dispondo sobre os limites materiais dos prédios, estabelece, por seu turno, o n.º 1 do art.º 1344.º que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico", acrescentando o seu n.º 2 que "o proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir".

Temos, pois que, à semelhança do que se verifica em relação ao direito de propriedade -de que a lei não nos dá uma noção, antes surgindo densificado por apelo ao respectivo conteúdo (cf. art.º 1305.º)- renunciou igualmente o legislador a fixar os limites superiores do direito de propriedade privada sobre um imóvel, com determinação do ponto a partir do qual cessa o direito do proprietário (ou superficiário) e se inicia o domínio público aéreo. De todo o modo, não deixou de afastar a expansão objectiva do direito de propriedade quando não corresponda a nenhum interesse efectivo do seu titular (cf. o transcrito n.º 2).

No que ao caso “sub judice” diz respeito, resultou demonstrado nos autos que, por via das mencionadas obras de reforço da impermeabilização e consequente execução de novo reboco levadas a cabo da parede poente do prédio dos RR identificado em 2 a), o filete ocupou 13 cm de espaço aéreo. Embora não venha apurada a altura a que ocorre tal ocupação, estando em causa uma construção com dois andares (cf. ponto 2b) da matéria de facto assente), estamos sem dúvida dentro dos limites do direito de propriedade privada do prédio dos AA, remanescendo a questão de saber se estes têm um interesse relevante e atendível no recuo da mesma parede, a fim de recuperarem o espaço aéreo assim ocupado.

A questão coloca-se ao nível da interpretação a dar ao n.º 2 do transcrito artigo 1344.º, que consagra inequivocamente um limite ao exercício do direito de propriedade, atendendo à função social da propriedade. Com efeito, e conforme hoje se reconhece sem dificuldade, “A doutrina foi assim avançando uma intenção funcional aos limites objectivos da propriedade, devendo a coisa ser submetida aos poderes do proprietário (ou do superficiário) unicamente e na exacta medida em que se revele necessária para preservar a utilidade ordinariamente proporcionada pelo bem imóvel em causa.

(…) A função social não interfere apenas ao nível do conteúdo do direito de propriedade privada, mas também contribui para traçar os limites objectivos (extensivos) do mesmo”[7]. 

Face a esta moderna concepção, que rejeita a ideia de um interesse individual fundado em razões meramente egoísticas, cumpre, pois, indagar se os AA, na sua qualidade de proprietários, têm interesse relevante e atendível em impedir -neste caso remover- a conduta dos terceiros invasiva do aludido espaço aéreo, sendo certo que este interesse, enquanto condição do regular exercício do direito que se arrogam, é facto cujo ónus de alegação e prova sobre eles impende (cf. n.º 1 do art.º 342.º).[8]

E a resposta a esta questão é, a nosso ver, negativa. Com efeito, por um lado estamos perante um filete que ocupa 13 cm do espaço aéreo do prédio dos RR, ao longo de toda a parede -cuja dimensão se desconhece-, invasão determinada pela necessidade de proceder ao reforço do isolamento e subsequente realização de novo reboco naquela fachada poente; do outro lado temos um terreno com a área de 200 m2, rústico, que vem sendo cultivado, sem que se tenha demonstrado que tal filete perturba de algum modo a exploração agrícola do prédio, ou seja, aquela que é a sua normal e produtiva afectação. E nada mais se apurou.

É certo que já em sede de alegações de recurso vieram os apelantes invocar que:

- temos por assente que os RR. estenderam o seu prédio, em cerca de 13 cms e ao longo de 20 ms (extensão da parede), numa área portanto de 2m260.

- essa ocupação do espaço aéreo do prédio dos AA., ainda que exígua (pouco mais de 2 m2!) acarreta limitações ao exercício e ao próprio direito de propriedade dos AA. que, desde logo, e v.g. se quiserem construir ou levantar construção até à e na linha da estrema não o poderão fazer em toda a extensão da confinância.

- e essa “área limitada”, perante a possível e previsível construção dos AA., apesar de “diminuta”, impõe uma diferente implantação no terreno perante e conjugada com a “servidão non aedificandi” de uma faixa de 4m50 /6m00 que onera o prédio (dos AA.) na confinância com o caminho público!

- assim, o dano emergente da violação do direito de propriedade dos AA., embora não actual, é um dano potencial, razoável e futuro perante a concretização do “animus aedificandi” que os AA. conservam”.

A propósito desta argumentação, tendo a mesma sido trazida aos autos apenas e só em sede de recurso não poderá, como é óbvio, tratando-se de questão nova, aqui ser atendida, tanto mais que toda a construção assenta em factos que, por não terem sido sequer alegados, se encontram, todos eles, por demonstrar (com ressalva da ocupação). É pacífico que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais, visando a contestação do que foi decidido, estando assim vedado ao recorrente nele suscitar questões novas.

De todo o modo, sempre se dirá que, tal como acentua De Martino,[9] “O interesse do proprietário deve ser considerado como categoria objectiva ou económico-social, e não meramente subjectiva; o interesse abstracto, potencial e eventual, não pode excluir a actividade de outrem que seja economicamente relevante. Mas se, posteriormente, o interesse potencial se tornar efectivo, não poderá impedir-se o proprietário de fazer valer o seu direito de propriedade.”.

Face a tal entendimento, que aqui se perfilha, nada obstará portanto a que os AA, pretendendo tornar efectivo potencial interesse em edificar no terreno em causa (sendo certo que não está demonstrada nos autos a aptidão edificativa do prédio), façam então valer o seu direito de propriedade em toda a sua plenitude.

Por outro lado, temos igualmente por improcedente a objecção de que a solução perfilhada pelo Tribunal “a quo”, consubstanciando na verdade uma expropriação por utilidade particular, deixou contudo os apelantes sem qualquer indemnização.

Corolário lógico do reconhecimento de que as restrições ao direito de propriedade, quer as de direito público, quer as de direito privado, se encontram sujeitas ao princípio dos «numerus clausus», consagrado no artigo 1306.º, tem o proprietário lesado a garantia constitucional de que tais limitações, ainda que lícitas, dão lugar a uma justa indemnização (cf. o art.º 62.º da CRP e artigos 1308.º e 1310.º, invocados pelos apelantes como normas violadas, por inaplicadas). Sendo tal indiscutido, a verdade é que os AA não a peticionaram nestes autos, ainda que subsidiariamente, estando por isso vedada ao Tribunal a sua atribuição (cf. n.º 1 do art.º 609.º do NCPC), sendo igualmente questão arredada do objecto deste recurso. Daí que se não verifique a invocada violação dos citados normativos.

Em suma, não tendo os AA logrado fazer prova de interesse efectivo, actual e relevante na proibição da invasão perpetrada pelos RR, à luz do disposto no n.º 2 do art.º 1344.º fica sem cobertura legal a pretensão que deduziram em a).

Coadjuvantemente, sempre se referirá que, ainda a não ser entendido conforme se expôs, sempre se chegaria a idêntica solução por intervenção do instituto do abuso de direito, tal como se considerou na sentença apelada.

No interior da assinalada função social do direito de propriedade projecta-se o instituto do abuso do direito. Preceitua o art. 334.º que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Em tese geral, como sabido, a doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas a que poderia levar, na espécie, a aplicação de determinações abstractas da lei” a um caso concreto.[10]

Considerou-se na decisão apelada, citando o Prof. Menezes Cordeiro que: “O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar. Um dos casos tipo de aplicação do princípio da boa fé, em que se desdobra o abuso de direito, é constituído pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, nomeadamente, em caso de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto a outrem, de modo a que, ultrapassados certos limites, esse exercício se revele abusivo, por afrontar a boa fé. Esta variante do abuso de direito desenvolve-se através de um exercício jurídico, aparentemente, regular, embora desencadeie resultados, totalmente, alheios ao que o sistema poderia admitir, traduzindo um puro desequilíbrio objectivo, que pode fazer apelo ao princípio da materialidade subjacente”.[11]

O desequilíbrio das posições jurídicas na referida modalidade de manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem faz apelo à ideia -mesmo para quem defenda um carácter mais individualista do direito de propriedade, em que o não uso é ainda uma emanação da faculdade de usar- “de que há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem- inerente a todos os direitos, enquanto direitos sociais e a pressuporem intersubjectividade” [12].

Conforme se ponderou na sentença recorrida, “analisados os factos provados e a alegação constante da P.I., constata-se que os AA. nenhum dano específico invocam decorrente da invasão de 13 cm do seu espaço aéreo (facto assente). Assim, atenta a diminuta parte invadida, acrescendo a circunstância de o prédio dos AA. ter natureza rústica e aquela parte da parede não causar qualquer dano directo (porque não alegado), resulta manifestamente desproporcional impor aos RR. os custos de recuo da parede em contraposição com o benefício que isso iria causar aos AA. (que não se vislumbra qual seria). Ou seja, o pedido dos AA não está assente em qualquer interesse próprio dos mesmos atendível -objectivamente- inserindo-se no conceito de abuso de direito por manifesta desproporcionalidade, tutela que não se encontra salvaguardada pela Lei e que conduzirá à improcedência do pedido respectivo”[13].

Tal argumentação que aqui se acolhe, conduz igualmente à paralisação do direito invocado pelos AA, desta feita por acção do instituto do abuso de direito, não merecendo assim censura, nesta parte, a sentença recorrida.

                                                                      *

Do erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação dos artigos 1360.º, 1363.º e 1364.º do CC.

Os AA peticionaram a condenação dos RR na tapagem da janela aberta na fachada poente com base na seguinte alegação:

- há uns meses (tendo por referência a data da propositura da acção), os RR. decidiram ampliar a sua casa de habitação (artigo 2(...).º), e abriram uma janela que gradaram;

- tal janela, deitando directamente sobre o “ V(...)”, não respeita as medidas previstas nos arts. 1363º e 1364º CC, pois [encontra-se] colocada a menos de 1m80 do sobrado ou soalho do compartimento em que se insere;

- constituindo uma abertura irregular que, a manter-se pelo período usucapiente, pode levar à constituição de servidão de vistas por usucapião – art. 1362.º, n.º 1 do CC.

Os RR, na contestação, impugnaram as medidas indicadas pelos AA e, invocando a conformidade administrativa da obra executada, defendem encontrar-se a dita janela submetida ao regime do n.º 1 do artigo 1363.º do Código Civil mais alegando que, tendo embora sido alterada em 1995, existe desde 1946, tendo-se assim constituído por usucapião uma servidão de vistas, ar e luz que onera o prédio dos demandantes.

Sendo estas as teses em confronto, interessam à decisão os factos enunciados de 6. a 9., dos quais resulta que os RR executaram uma abertura na fachada poente do prédio identificado em 2.a), que gradaram, a qual deita directamente para o prédio descrito em 1.; tal janela gradada encontra-se colocada a menos de 1,80 metros do soalho do compartimento em que se insere; desde data não apurada, mas anterior a 1993, existia uma janela aberta na fachada poente do prédio identificado em 2.a), tendo sido modificada na sequência das obras de reconstrução/ampliação levadas a cabo nos anos de 1995/1996, encontrando-se desde então a 1,685 mt de distância do soalho do compartimento em que se insere, e sendo menores as suas dimensões. Tal janela sempre foi usada de forma pública e pacífica, tendo a sua existência, por referência às obras levadas a cabo em 1995/1996, sido devidamente licenciada.

Ora, irrelevando em absoluto a conformidade da obra com o licenciamento administrativo, posto que não se ocupam as câmaras municipais de questões de vizinhança, a verdade é que estamos perante uma abertura que não respeita o interstício imposto pelo artigo 1360.º, n.º 1 dado que, conforme se apurou, deita directamente sobre o prédio vizinho (ou seja, a sua linha de abertura coincide com a linha divisória dos prédios).

Como ensina Henriques Mesquita (in Direitos Reais, 1967, pág. 149), “o objecto das restrições é evitar que sobre os prédios vizinhos se façam despejos e, sobretudo, que sejam devassados com a vista”. Trata-se, pois, de limitação que obedece a uma dupla finalidade: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos e impedir que seja devassado com o arremesso de quaisquer objectos.

Encontram-se contudo excluídas das restrições impostas pela lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, sendo seus caracteres próprios a localização a pelo menos 1,80 mt de altura, a contar do solo ou sobrado, não podendo ter, numa das suas dimensões, mais de 15 cm, e ainda as outras aberturas, “quaisquer que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a 1 cm2 e cuja malha não seja superior a cinco centímetros” (cf. art.º 1364.º). Estas aberturas estão subtraídas à obrigatoriedade de guardarem do prédio contíguo o intervalo de 1,5 mt consagrado no n.º 1 do art.º 1360.º, embora possam, a todo o tempo, ser vedadas pela casa ou contramuro que o vizinho entenda levantar. Tal é o regime que claramente resulta do disposto no art.º 1363.º.

Pois bem, atendendo ao demonstrado facto da abertura em causa -dita janela gradada- se encontrar a menos de 1,80 mt do sobrado do compartimento em que se insere, não pode obter o tratamento favorável a que aludem os artigos 1363.º e 1364.º, conforme pretendem os apelados. Aliás, a invocação destes preceitos pelos próprios AA, ao contrário do que parece ter sido entendido pela Mm.ª juíza “a quo”, visou precisamente sublinhar que estas permitidas excepções à proibição legal genericamente consagrada no n.º 1 do art.º 1360.º, não são, “in casu”, aplicáveis. Deste modo, lograram os AA fazer prova de que estamos perante uma abertura ilegal.

Não obstante a proibição legal, o art.º 1362.º prevê que a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes em contravenção da lei possa importar a constituição de servidão de vistas por usucapião, caso em que o proprietário do prédio vizinho -e serviente- terá de salvaguardar a prescrita distância de 1,5 mt entre eventual nova edificação e as obras pré-existentes em que a servidão se materializa, em toda a extensão destas.

Invocaram os RR, ainda que de forma deficiente, a aquisição, por usucapião de uma servidão de vistas, ar e luz, onerando o prédio dos demandantes, prescrição aquisitiva que aqui funcionaria como matéria exceptiva -excepção peremptória impeditiva do reconhecimento do direito invocado pelos AA- recaindo inequivocamente sobre os contestantes o ónus da prova respectiva, como resulta do critério legal de repartição consagrado no n.º 2 do art. 342.º. E, antecipando a conclusão, desde já se afirma a insuficiência da prova produzida em ordem a alcançar tal pretendido desiderato.

Resulta do preceituado no art.º 1287.º que a usucapião se traduz na faculdade de adquirir um direito pela posse e exercício desse direito, quando mantidos durante certo lapso de tempo. Assim, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé tenha durado 10 anos contados do registo, ou 15, no caso de ser de má fé; não havendo registo do título nem da mera posse, o prazo eleva-se para 15 ou 20 anos, consoante estivermos perante posse de boa ou má fé, respectivamente (cf. artigos 1294.º, 1295.º e 1296.º).

Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real (art.º 1257º). A actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor constitui o “corpus”, resultando ainda da lei a exigência do “animus” ou intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Todavia, no exercente do poder de facto presume-se o “animus”, como firmado no Ac. do STJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144 de 24/6/96.

Revertendo ao caso em apreço, resulta do acervo factual apurado nos autos que desde data não apurada mas, em todo o caso, anterior ao ano de 1993, existia no prédio dos RR uma janela. No entanto, tal janela sofreu uma modificação aquando da realização das obras levadas a cabo em 1995/1996, quer quanto à sua localização, quer quanto às suas dimensões, agora menores. Deste modo, não tendo os RR logrado fazer prova da aquisição por usucapião, até à data da alteração, de uma servidão de vistas (caso em que teriam que ter mantido a janela, com a mesma localização e idênticas -ou menores- dimensões, a despeito da realização das obras o que, como vimos, não sucedeu) cabe indagar se tal aquisição se deu face à abertura agora existente, atentas as suas apuradas características, considerando o período temporal que se iniciou em 1995/1996.

A este respeito, primeira nota a destacar é a de que não estamos perante uma janela, na acepção consagrada no n.º 1 do art.º 1360.º, de modo que a sua abertura e subsistência, em contravenção do interstício ali imposto, importasse, nos termos gerais, uma constituição de vistas por usucapião.

Com efeito, e conforme se apurou, a dita “janela” foi, pelos RR, gradada, não permitindo a sua abertura por sobre o prédio dos demandantes, sendo certo que “o conceito “janela”, para efeitos do artigo 1360.º, n.º 1 do Código Civil, reconduz-se a aberturas que permitam, não só a entrada de luz e ar, mas também a devassa sobre o prédio vizinho, por só este conceito se adequar à dupla finalidade da restrição estabelecida no aludido preceito legal - evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos, e impedir que ele seja facilmente devassado”[14], o que não é obviamente o caso de uma janela gradada. Aliás, bem se pode afirmar que ao terem aplicado grades na janela, revelaram inequivocamente os RR não se encontrarem convictos, antes pelo contrário, de serem os titulares do direito real de servidão aqui invocado.

Questão diversa desta é saber se a manutenção de aberturas do tipo das previstas no artigo 1363.º ou, como é o caso, de janelas gradadas, num e noutro casos sem observância das dimensões e altura em relação ao solo (ou sobrado) ali prescritas -aberturas irregulares portanto- podem conduzir à aquisição pela via da usucapião de uma servidão atípica.

O problema assim enunciado tem merecido respostas desencontradas por banda da doutrina e jurisprudência. Assim, a par de quem entende que a manutenção de tais aberturas pode conduzir à aquisição, por usucapião, de uma servidão de vistas[15], outros há que, arrimando-se no carácter taxativo dos direitos reais, recusam tal possibilidade, reconhecendo por isso ao proprietário do prédio vizinho o direito de, a todo o tempo, pedir em juízo a tapagem ou harmonização com a lei de tais irregulares aberturas.

Finalmente, posição que tem vindo a colher adeptos, vem sendo entendido que, prevendo o art.º 1544.º que a servidão predial tenha por objecto quaisquer utilidades susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, está aberto o caminho para o reconhecimento da admissibilidade de servidões atípicas -de ar e de luz- como aquela a que conduziria a abertura e permanência, pelo tempo necessário, de uma fresta ou janela gradada irregular, se reunidos os demais caracteres da posse boa para usucapir.[16] O conteúdo de tal servidão consistiria na faculdade de manter tais aberturas em condições irregulares, impedindo o proprietário do prédio vizinho de exigir a sua modificação em conformidade com a lei, mantendo embora a possibilidade de construir junto à linha divisória, tendo eventualmente como resultado a tapagem daquelas[17].

Sucede, porém, que mesmo a defender-se esta tese, não lograram os RR fazer prova de que a sua posse seja boa para usucapir. Vejamos:

A posse, conforme se deixou já dito, pode ser de boa fé ou má fé: diz-se de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem - art. 1260.º, n.º1.

O conceito de boa fé acolhido na nossa lei é, assim, de natureza psicológica: possui de boa fé quem ignora que está a lesar os direitos de outrem, sem que a lei mande indagar se a ignorância do possuidor é ou não censurável[18]. A ignorância de que se lesa o direito de outrem "resulta, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem precisamente, os vícios da aquisição. Mas a lei não exige que assim seja sempre. O possuidor pode saber que o direito não é seu e estar convencido, apesar disso, de que, exercendo-o, não prejudica o verdadeiro titular. Ou pode mesmo estar convencido de que não existe nenhum direito de terceiro que seja lesado com a sua posse"[19] . O momento em que deve existir a boa fé é o da aquisição da posse (cf. art.º 1260.º, n.º 1).

No caso dos autos, uma vez que os RR não têm título (nem registo) da invocada servidão, a sua posse presume-se de má fé. E por não ter sido ilidida tal presunção -a factualidade apurada é, no concernente à íntima convicção dos RR, completamente omissa- o prazo para uscapir é de 20 anos, o qual não se tinha ainda completado tendo por referência a data da propositura da acção, em 23 de Setembro de 2011. Aliás, mesmo a entender-se ser aplicável o prazo mais curto de 15 anos, não se teriam desincumbido os RR do ónus da prova de que tal prazo se tinha completado, por não ter ficado inequivocamente demonstrado, como se impunha, que as obras consistentes na abertura da nova janela com aposição das grades que a equipam, estava concluída à data de 23 de Setembro de 1996, não bastando para tanto quanto se deu por assente em 8. Deste modo, falecendo a prova da invocada excepção, subsiste a irregularidade da abertura existente.

Por último, e quanto ao pedido formulado, peticionaram os AA a tapagem da janela. A este respeito, haverá que atender ao facto de a adequação da abertura em causa ao prescrito na lei ocorrer, não só com a sua tapagem, mas também quando se proceda à sua elevação em relação ao sobrado da divisão em que se insere -o que, em todo o caso, redunda na sua tapagem, pelo menos parcial- e colocação de grades com as características definidas no art.º 1364.º. Esta última solução, acautelando ainda o direito dos demandantes, afigura-se menos gravosa para os RR, dirimindo de igual modo o conflito de vizinhança e promovendo a harmonia das relações entre os vizinhos que os convocados normativos visam, em última análise, salvaguardar.[20]

Tal solução, tê-mo-la por não violadora do disposto no art.º 609.º do NCPC, uma vez que se contém ainda no pedido formulado.

Procedem assim, em parte, e no que respeita à segunda questão enunciada, ainda que não totalmente, as alegações dos recorrentes.
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III Decisão

Em face a todo o exposto, e na parcial procedência do recurso, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação em revogar parcialmente a sentença recorrida, substituindo-a por outra que, na parcial procedência da acção, condena os RR a procederem à tapagem parcial da abertura efectuada na parede poente do prédio identificado em 2 a), de modo a que a sua distância em relação ao sobrado da divisão não seja inferior a 1,80 mt, devendo as grades nela apostas observar as características prescritas no art.º 1364.º do Código Civil, mantendo-se, quanto ao mais, quanto vem decidido.

As custas nesta e na primeira instância ficam a cargo de AA e RR, na proporção de 3/4 para os primeiros e ¼ para estes.
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Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] Com o seguinte teor: “No prédio descrito em 2.a) os RR efectuaram uma obra que prolongou parte da parede por 13 cm do prédio dos AA.”
[2] Assinala-se que a redacção inicial do artigo foi alterada, tendo sido eliminada a proposição inicial “Há menos de dois anos, considerada a data de interposição da acção…”, o que ocorreu precisamente na sequência de reclamação apresentada pelos AA (cf. despacho de fls. 137), o que estes parecem ter olvidado.
[3] Disposição legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser mencionadas sem menção da sua origem.
[4] Prof. A. Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de Novembro de 1966, no BMJ n.º 161, citado no CC anotado, vol. III, 2.ª ed. revista e actualizada, reimpressão, págs. 92/93.
[5] Idem.
[6]  No reconhecimento de que “O âmbito plenissímo do direito de propriedade está sujeito a limitações de interesse público resultantes de uma função social, tal como as limitações de interesse privado elencadas exemplificativamente no Código Civil”, cf. o aresto do STJ de 28/10/2008, processo n.º 08 A3005,acessível em www.dgsi.pt.
[7] Cf. o acórdão do STJ de 14/2/2013, processo n.º 806/07.0 TBTND.C1.S1, em www.dgsi.pt, com tratamento muito aprofundado da questão e que aqui acompanharemos de perto.
[8] Neste preciso sentido, acórdão desta mesma Relação de 10/12/2013, processo n.º 361/11.6 T2AND.C1, e citado aresto do STJ, acessíveis no identificado sítio.
[9]Della Proprietá”, no Comm. De Scialoja e Branca, citado por Pires de Lima e A. Varela, no Comentário cit., pág. 174.
[10] Cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, Coimbra, 1958, a págs. 63, 64.
[11] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T1, 2ª edição, 2000, 265 e 266.
[12] Cf. citado aresto do STJ.

[13] No sentido de que existe abuso do direito, por manifesto desequilíbrio ou intolerável desproporção entre o  exercício do direito e os efeitos práticos dele derivados, no caso de se exigir a um proprietário uma demolição custosa para propiciar a outro uma pequena vantagem, decidiu o mesmo STJ em aresto de 29 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 926/07.0 TBPRG.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
[14] Do acórdão da Relação de Lisboa proferido em 20/11/2008, no processo n.º 8157/08-2, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido, o aresto da Relação de Guimarães de 6/12/2011, proferido no processo n.º 512/09.0 TBPUL.G1, disponível em www.dgsi.pt
[16] Assim, os acórdãos da Relação de Lisboa citado na nota 14. e desta mesma Relação de Coimbra de 9/2/2010, processo n.º 1506/03.5TBPBL.C1, ainda no identificado sítio.
[17] Conforme com clareza se refere no aresto da relação de Lisboa já citado, invocando a doutrina do prof. Henrique Mesquita, em anotação ao acórdão do STJ de 03.04.91, RLJ 128º, 126-154 “(…) o conteúdo do direito de servidão de vistas que, em princípio, consiste na manutenção das janelas e na fixação de uma zona “non aedificandi” (não permissão de edificar no espaço de metro e meio, medido a partir dos limites do prédio), no caso das frestas e janelas que não obedeçam aos requisitos legais, sendo atípica tal servidão, decorrido que seja o prazo da usucapião, não cria uma zona non aedificandi. É que, a restrição legal, criando essa zona non aedificandi, só é estabelecida, por lei, em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º do CC, que apenas se aplica se estiverem em causa janelas, e já não frestas irregulares ou janelas gradadas que não obedeçam aos requisitos estabelecidos no artigo 1364º do CC.
E, é só a existência de janelas, entendidas como aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para disfrutar as vistas e das outras aberturas mencionadas no art. 1.362º, nº 1 do C.C. que pode conduzir à aquisição de servidão de vistas por usucapião – v. Henrique Mesquita, citada RLJ, 152. Daí que a existência de frestas ou janelas gradadas em condições não permitidas, por não poderem ser consideradas janelas para os efeitos do nº 1 do artigo 1360º do CC, pois não deitam directamente sobre o prédio alheio e não permitem a sua devassa, não podem fundamentar a servidão de vistas por usucapião”.
[18] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., pág. 20.
[19] Idem, pág. 21.
[20] Assim se considerou no acórdão da Relação do Porto de 11/7/2005, proferido no processo n.º 0552584, disponível em www.dgsi.pt, tendo-se adoptado idêntica solução.