Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
482/09.5TACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO SEM DESCRIÇÃO DE FACTOS E CRIMES IMPUTADOS
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CASTELO BRANCO
Legislação Nacional: ARTIGO 287º CPP
Sumário: É de rejeitar, por inadmissibilidade legal, a instrução requerida pelos assistentes, se estes não descreverem no requerimento os factos e as consequências jurídicas que imputam aos arguidos, que possam possibilitar a prolação de um despacho de pronúncia.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.

Nos autos supra identificados, DD... e MM..., assistentes constituídos, vieram requerer a abertura de instrução, após notificação do despacho proferido pelo Ministério Público de arquivamento de inquérito.
A instrução não foi admitida pelo senhor Juiz de instrução, por legalmente inadmissível.
Os assistentes vêm agora recorrer deste despacho que não admitiu a instrução.
Nas suas alegações os recorrentes concluem a sua motivação nos seguintes termos:
A)- Os assistentes deduziram nos presentes autos queixa-crime contra FF... e BB..., nos termos e com os fundamentos expressamente reproduzidos e reiterados no requerimento de abertura de instrução.
B)- Os recorrentes juntaram, com a queixa, quatro documentos, que então e no requerimento de abertura de instrução foram dados por inteiramente reproduzidos.
C) No mesmo requerimento de abertui de instrução, os recorrentes expressamente indicam os tipos de crime indiciados.
D) No requerimento de abertura de instrução os recorrentes ainda requerem a consideração de elementos probatórios produzidos, que entendem ter sido desconsiderados pelo Dm° Sr Procurador, pedindo ainda a realização de concretas diligências probatórias não realizadas;
E) Sendo certo que parte dos denuí ios factos careciam de melhor investigação, devendo aqui claramente separar-se os que consubstanciaram a falsificação de documentos e assinatura no âmbito de uma manobra para excluir outros concorrentes (suficientemente indiciados), dessa própria manobra como um todo (insuficientemente indiciada), e que, quanto mais não fosse, tais falsificações deveriam ter sido objecto de acusação, também é certo que os assistentes estavam legalmente impedidos de em simultâneo ter deduzido instrução (quanto a parte do denunciado) e intervenção hierárquica (quanto a outra parte), como muito Doutamente refere o Acórdão do STJ de 17.01.2007 - Processo 06P4597, in (base de dados jurisprudencial do ITIJ), entre outros.
F) Assim, o requerimento de abertu dL instrução é, no presente caso, o único meio idóneo de garantir tutela simultaneamente quanto aos crimes suficientemente indiciados e aos crimes que, embora denunciados, carecem de diligências de prova não realizadas. Entender o contrário constitui, sempre salvo o devido respeito e melhor opinião, denegação de justiça.
G) Em qualquer caso, do requerimento de abertura de instrução dos autos, quer pela expressa reprodução da queixa e documentos, quer pelo demais ali articulado, constam todos os elementos de facto, devidamente circunstanciados quer em termos de conteúdo —a precisa enunciação dos ilícitos praticados- quer em termos espacio-temporais -a data de assinatura dos documentos e o procedimento concursal, bem como o município que o instaurou estão identificados-, e ainda todos os elementos de direito, que devem constar de urna acusação, em respeito do disposto nos art°s 287°, n° 2, e 283°, n° 3, b) e c), ambos do Código de Processo Penal.
H) No entanto, o douto despacho recorrido rejeitou a abertura da instrução com fundamento em não terem sido narrados os factos concretos, individualizados no espaço e no tempo, integradores da prática dos crimes denunciados, de uma forma concreta, lógica que fundamente a aplicação de uma pena.
I) Assim, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução com tal fundamento, violou o douto despacho recorrido o disposto nos art°s 287°, n° 2, e 283°, n° 3, b) e e), ambos do Código de Processo Penal, sendo que se impunha decisão diversa, a de admitir a abertura de instrução requerida.
O Ministério Público respondeu, manifestando-se pela sua improcedência, essencialmente pelas mesas razões do decidido.
De igual forma os arguido vieram responder manifestando-se pela improcedência do recurso.
O Exmo. Senhor Procurador Geral adjunto neste Tribunal pronunciou-se pelo indeferimento do recurso.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, consubstancia-se apenas na admissibilidade da instrução.

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Tendo em conta o objecto do recurso importa atentar no requerimento de abertura de instrução efectuado e no despacho recorrido.
Requerimento de abertura de instrução
«DD... e MM..., assistentes nos autos á margem referenciados e nos mesmos já melhor identificados, vêm requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto nos art°s 286° e ss. do Código de Processo Penal, e com os seguintes fundamentos:
l0 Os assistentes deduziram nos presentes autos queixa-crime contra FF... e BB..., nos termos e com os seguintes fundamentos:
“(..
1°- Os participantes acabaram de tomar conhecimento, através da consulta de um processo administrativo concursal, lançado pela Câmara Municipal de ..., para o fornecimento de árvores, 1° Fase, Zona de Lazer de ..., que houve usurpação da sua identidade e falsificação de documenios, pelo menos por parte de dois concorrentes àquele concurso, dos quais são sócios gerentes o Eng° FF… e BB.... 2. Concorreram àquele concurso 5 sociedades, a saber:
-a V..., Lda, com sede em …, e que tem como gerentes os referidos FF... e BB... (doc° n° 1);
-a Sociedade …, com sede em …
-a São …, Lda, com sede no monte …, da qual é gerente, pelo menos, o identificado BB...;
-a Sociedade Agrícola…, Lda, com Sede em …, da qual também é gerente, o identificado BB...; e
-A Sociedade …, Lda, com sede em …, da qual são gerentes os referidos FF... e BB… .
2. O referido concurso foi lançado ao abrigo do Dec-Lei n° 197/99, de 8 de Junho que estabelecia o regime de realização de despesas públicas com locação e aquisição de serviços, bem como a contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços.
3. De acordo com o art° 33° n°2 daquele diploma os concorrentes juntamente com a sua proposta estavam obrigados a apresentar uma declaração, cujo modelo constituía o anexo 1 do Dec-Lei n° 19 7/99, e que visava comprovar que não se ver relativamente a eles nenhum dos impedimentos previstos no n° 1 do dispositivo legal citado.
4.Revelava-se que segundo o modelo da dita declaração os concorrentes eram obrigados a dizer que tinham pleno conhecimento de que a prestação de falsas declarações implicava a exclusão da proposta apresentada, bem como a participação à entidade competente para efeitos de procedimento penal.
5. Para além do facto estanho de todas as sociedades concorrentes terem gerentes comuns, o que, desde logo, levanta sérios suspeitas quanto a um conluio entre elas na apresentação das respectivas propostas, a verdade é que as declarações apresentadas pelos concorrentes T... Investimentos Imobiliários e Paisagísticos, Lda e Sociedade Agrícola do U..., Lda, para instruir a proposta são falsas.
6. Com efeito, o participante DD... aparece como representante legal do concorrente Sociedade Agrícola do U..., Lda e presentemente a assinar como gerente da referida sociedade, não só a declaração do art°33°, n°2, do Dec-Lei n°197/99, bem como a declaração de eleição de foro, que se juntam, respectivamente, como documento n°1 e 2.
7. A verdade é que o participante nunca assinou ou viu aquelas declarações, não foi nem é gerente da Sociedade Agrícola de U..., Lda, e nem foi nem é mandatário ou procurador da mesma sociedade.
8. A rubrica/assinatura feita nas referidas declarações não pertencem ao ora participante DD… .
9. Ou seja, a proposta da Sociedade Agrícola de U..., Lda bem como aquelas declarações têm toda a aparência de terem sido forjadas pelos gerentes da mesma, ou a mando destes, os ora participados, provavelmente para criar a aparência que se estaria perante uma sociedade que nada tinha a ver com as outras sociedades concorrentes, uma vez que a decisão de concorrer a este concurso só podia vir da própria gerência da sociedade.
10. Acresce, que a própria denominação social da sociedade está faiscada, pois tanto quanto os participantes se recordam, uma vez que são sócios minoritários da mesma, aquela foi modificada em inícios do ano de 2006 para “Sociedade Agrícola Quinta da G..., Lda “, o que quer dizer que em 22 de Outubro desse ano, data em que foram pretensamente subscritas pelo participante DD…, as declarações juntas a verdadeira designação da sociedade já era a segunda e não a primeira.
11. Por outro lado, naquelas declarações o participante DD...foi, também, falsamente, dado como residente na casa da …, a qual é propriedade do participado F… .
12. Ainda no mesmo concurso, a sociedade T... investimentos Imobiliários e Paisagísticos, Lda, da qual é gerente o participado BB..., apresentou também a declaração do art° 33°, n° 2 do Dec-Lei n° 19 7/99 e a declaração de eleição de foro, datadas de 18 de Outubro de 2006, as quais, contra a verdade, teriam sido feitas e assinadas pela participante V....
13. Ora, também neste caso nunca assinou ou viu aquelas declarações, não foi nem é gerente da sociedade T... Investimentos Imobiliários e Paisagisticos, Lda e nem foi nem é mandatária ou procuradora da mesma sociedade.
14. A rubrica/assinatura feita nas referidas declarações não pertencem à ora participante.
15. Deste modo e a exemplo do que sucedera com as declarações da concorrente “Sociedade Agrícola do U..., Lda “, aquelas declarações também têm toda a aparência de ter sido forjadas, pelo menos, pelo participado BB..., ou a seu mando, uma vez que a decisão de concorrer a este concurso só podia vir da própria gerência da sociedade.
16. Releva-se que a participante V..., naquelas declarações, foi dada como residente no local de residência do participado BB....
17. As referidas actuações são graves, consubstanciam, pelo menos e de forma imediata, uma manifesta fals de documentos, na dupla vertente de fazer constar do mesmo qualidade legal que os parlicipantes nunca tiveram, facto juridicamente relevante, e defals de assinatura e de rubrica.
18. Comportamentos esses tanto mais graves quanto se tratam de documentos apresentados num concurso público, sob compromisso de honra, e com vista à habilitação das suas sociedades.
19. Importa, também, dizer que a apresentação de uma proposta no concurso por parte daquelas duas sociedades tem toda a aparência de ter sido articulada com a sociedade X…, que acabou por ser a adjudicatária e que, como se disse acima, tem como únicos gerentes os ora participados.
20. Vêm, assim, os ora participantes dar conhecimento desses factos a Vü Ex° para que os mesmos possam ser devidamente apurados e investigados e aqueles que se vierem a revelar como os falsificadores morais e /ou materiais daqueles documentos sejam penalmente punidos, também manifestam, desde já, para se tal for entendido necessário, prestarem as necessárias e devidas declarações.
2°- Os ora requerentes juntaram, com a queixa, quatro documentos, aqui dados por inteiramente reproduzidos.
3°- Da queixa e dos documentos juntos resultam os seguintes factos:
a)-No processo administrativo concursal, lançado pela Câmara Municipal de … ao abrigo do Dec-Lei 11° 197/99, de 8 de Junho, para o fornecimento de árvores, 1 Fase, Zona de Lazer de …, concorreram cinco sociedades, sendo que as respectivas sedes sociais e, eventualmente, sócios são, aparentemente, coincidentes, sendo os respectivos gerentes também sócios das mesmas. b) Que o concurso foi adjudicado a uma das referidas sociedades;
c) Que, no caso de pelo menos duas das sociedades concorrentes, a T... Investimentos Imobiliários e Paisagísticos, Lda e a Sociedade Agrícola do U..., Lda, a declaração a que alude o art° 330 n° 2 daquele diploma, cujo modelo constituía o anexo 1 do Dec-Lei no 197/99 e que visava comprovar que não se verificava relativamente a eles nenhum dos impedimentos previstos no n° 1 do dispositivo legal citado, foi falsificada quer no seu teor quer na sua assinatura, quer quanto à efectiva morada dos seus alegados subscritores, quer quanto à sua própria qualidade de gerentes, quer ainda, numa delas, quanto à própria denominação da sociedade, tudo sem conhecimento de quem alegadamente teria assinado;
d) Que no próprio modelo legal de declaração, anexo ao referido Dec-Lei, consta expressamente que os concorrentes são obrigados a dizer que têm pleno conhecimento de que a prestação de falsas declarações implicava a exclusão da proposta apresentada, bem como a participação à entidade competente para efeitos de procedimento penal.
e) Que, no caso dessas duas sociedades, as declarações de eleição de foro também não foram assinadas pelos queixosos, que dela não tiveram também conhecimento.
f) Que, a queixosa MM... nem sequer é sócia da sociedade 5. T....
3° Tais factos, por si só, levantam suspeitas da eventual prática DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO ACTIVA E PASSIVA PARA ACTO LÍCITO OU ILÍCITO consoante se venha a apurar em sede de investigação e/ou PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA EM NEGÓCIO e/ou BURLA, bem como da eventual prática de crimes de falsificação de documento, assinatura e prestação de falsas declarações, todos p. ep. Pelos art°s respectivamente 3740, 3730 372°; 3770 e 217°, todos do Cód. Penal.
4°- E suscitam, também, indícios que os últimos dos crimes referidos —os de natureza semi-pública-, serão eventualmente actos de execução dos primeiros -estes de natureza pública-, sobre os quais também existem indícios.
5° Assim, a queixa apresentada impunha, no entender dos assistentes, a realização de
diligências posteriores, a saber, entre outras:
a) A averiguação da titularidade de quotas, da vigência de gerências e, em geral, todos os elementos relevantes das sociedades concorrentes, constantes ou não dos respectivos registos comerciais.
b) A investigação do procedimento concursal referido, designadamente quanto aos valores em causa e, bem assim, quanto à modalidade de concurso e demais elementos relevantes;
c) A inquirição, quer dos queixosos quer dos arguidos quer, ainda, de todos os demais intervenientes do procedimento concursal, a respeito das reais circunstâncias em que o mesmo ocorreu, designadamente quanto ao eventual convite das sociedades e respectivas motivações.
d) A investigação dos procedimentos concursais respeitantes a concursos abertos pela Câmara de Lisboa nos quais tenham participado alguma ou algumas das sociedades identificadas, com vista a apurar se o tipo de concurso, a forme de convite de empresas e apresentação de propostas foi, ou não, efectuada nos mesmos moldes e termos que os do procedimento concursal da Câmara de ...;
5°- Nos termos do disposto no art.° 1° da Lei n.° 36/94 de 29 de Setembro, tal investigação é da competência da Polícia Judiciária.
6°- Porém, o Dm° Sr Procurador titular do Processo não só não remeteu a investigação para essa autoridade policial como tampouco procedeu a qualquer diligência instrutória no sentido referido em 4°, tendo-se limitado a inquirir os denunciantes, os denunciados e uma testemunha, e apenas quanto à eventual prática de um crime de falsificação de assinatura, restringindo o âmbito do inquérito a uma ínfima parcela da factualidade descrita.
7°- Para mais, o inquérito foi orientado apenas para o apuramento da prática dos crimes, denunciados, p.p. nos art°s 256° do C.P, ignorando totalmente os demais identificados e contextualizados, ignorando ainda que aqueles se encontravam, ou poderiam encontrar, consumidos, enquanto actos preparatórios desses actos criminosos que não investigou,
8°- Isto apesar de entretanto os assistentes terem junto aos autos os seguintes elementos probatórios:
- Quatro documentos referentes a quatro procedimentos concursais, apresentados junto da Câmara Municipal de Lisboa, em que a entidade adjudicatária é a mesma, os concorrentes idem e houve recurso ao mesmo modo de proceder, isto é, errónea identificação dos gerentes das sociedades que se apresentam a concurso, falsificação de documentos e assinaturas dos denunciantes e recurso ao mesmo tipo de concurso - convite; -Dois documentos que denunciam a existência de contas não declaradas contabilisticamente e para onde, alegadamente, eram desviados fundos da sociedade que venceu todos os concursos;
90 - Assim como, ignorado foi o facto de o Assistente DD...ter afirmado, aquando da prestação de declarações junto dos serviços do Ministério Público, que teve conhecimento da existência de outros procedimentos concursais efectuados nos mesmos moldes, junto da mesma entidade - Câmara Municipal de ..., no período compreendido entre os anos de 2002 a 2007;
10°- No esteio desse vício de entendimento, o Dm° Sr Procurador não se pronunciou, sequer, no despacho em crise, sobre a eventual prática, ou não, dos crimes, denunciados, p.p. nos art°s 3740, 3730 372°, 377° e 217°, todos do Cód. Penal.
110 Mas, mesmo no que respeita aos crimes sobre os quais o Dm° Procurador se pronunciou, as declarações da testemunha AA…, aqui dadas por inteiramente reproduzidas, não só corroboraram a pertinência do teor integral da queixa, mas também indiciam que não se está apenas ante meros crimes de falsificação de assinatura, mas também de falsificação de documentos e de prestação de falsas declarações, pelo que face aos próprios indícios existentes, a decisão deveria, a esse respeito, ter sido diversa.
12° - Mais: resulta dos documentos e declarações acima referidos e oportunamente juntos aos autos, que se estará perante uma eventual prática reiterada, em sede de concursos públicos, o que por si só justifica a investigação de todos os concursos públicos em que as referidas sociedades participaram, e não apenas do referenciado nestes autos, o que desde já expressamente se requer.
13°- Os denunciantes constituíram-se assistentes tendo, nos termos do disposto nos art°s 68 n.° 1 ai a) e e) do Código de Proc. Penal, legitimidade para intervir nessa qualidade, quer quantos aos crimes de natureza semi-pública, quer quanto aos crimes de natureza pública em apreço.
14°- Assim, impunha-se, por banda do MP, que realizasse as diligências instrutórias acima referidas, que não realizou e, mesmo quanto á matéria insuficiente que apurou, que retirasse diversa consequência jurídica acusando não só pela prática de crimes de falsificação de assinatura mas também crimes de falsificação de documento e de prestação de falsas declarações, caso não fossem consumidos pelos crimes não investigados, o que desde já expressamente se invoca para todos os efeitos.
15°- Impunha-se ainda uma não adesão à tese apresentada pelos arguidos. Na verdade, nesta fase, o princípio do ‘in dúbio pro reo” não pode, nem deve ser, ponderado.
16° - Ao Ministério Público compete fazer a investigação da prática de ilícitos, no caso os arguidos confessaram a prática do tipo objectivo, os denunciantes negaram a existência de qualquer consentimento, pelo que se impunha o recurso a outros meios de prova.
17° - Em sede de inquérito a dúvida deve refinar a investigação e não gerar despachos de arquivamento. Nestes termos, vem requerer a V° Ex’ se digne ordenar a abertura de instrução, dignando-se proceder, para além das demais que tiver por pertinentes, às seguintes diligências:
a) Conhecer da relevância dos factos não apreciados no despacho em crise, da necessidade da correspondente realização de diligências instrutórias adicionais, bem como da fixação de competência da Polícia Judiciária para a sua realização, designadamente no que respeita a:
-Averiguação da titularidade de quotas, da vigência de gerências e, em geral, todos os elementos relevantes das sociedades concorrentes, constantes ou não dos respectivos registos comerciais.
-Investigação do procedimento concursal referido, designadamente quanto aos valores em causa e, bem assim, quanto à modalidade de concurso e demais elementos relevantes;
-Investigação da contabilidade de todas as sociedades referenciadas e respectivas contas bancárias, nomeadamente as que foram identificadas nos documentos já juntos aos autos, para apurar, designadamente, da eventual existência de pagamentos não reflectidos contabilisticamente e identidade de quem os recebeu;
-Inquirição, quer dos queixosos quer dos arguidos quer, ainda, de todos os demais intervenientes do procedimento concursal, para apurar das reais circunstâncias em que o mesmo ocorreu, designadamente quanto ao eventual convite das sociedades e respectivas motivações.
-Investigação de todos os demais procedimentos concursais em que todas as sociedades identificadas participaram, quer junto da Câmara de … quer junto de quaisquer outras instituições, nomeadamente junto à Câmara Municipal de Lisboa, pelos mesmos moldes que os acima pedidos, e apreciação comparativa do respectivo “modus operandi”
b) Conhecer da eventual consumpção dos factos já indiciados nos ilícitos não investigados ou,
c) Subsidiariamente, alterar a sua qualificação jurídica como acima referido

Despacho recorrido.
Nos termos do disposto no art. 286º n.° 1 do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, sendo, pois, essa a função do juiz de instrução: comprovar a decisão de acusar ou arquivar o processo
Estatui, depois, o art. 2870 n.° 1 b) do mesmo Código que a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação. Dispõe ainda o art. 287.° do Código de Processo Penal, no seu n.° 2, que tal requerimento não está sujeito a formalidades especiais mas “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação” bem como, sendo caso, “a Indicação dos actos de instrução que o requerente pretenda que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e dos factos que através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 288°n.°3b)ec)d0CPP’.
Nestas alíneas b) e o) do n.° 3 do art. 283.° do Código de Processo Penal, estabelece-se, como requisito cuja não observância implica a nulidade da acusação, que esta deve conter — e bem assim o requerimento para instrução formulado pelo assistente — “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada “, e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Finalmente, dispõe o art. 309.° n.° 1 do Código de Processo Penal que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido (qualidade assumida por todo aquele contra quem for requerida instrução - art. 572.° do Código de Processo Penal) por factos que constituam alteração substancial dos descritos (...) no requerimento de abertura da instrução.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva em “Do processo penal preliminar”, fis. 254, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, unia acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação decididos pelo M.°P.°)”, acusação que, “dada a divergência com a posição assumida pelo M. °P.° — vai necessariamente ser sujeita a comprovação judícíal”. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido.
São assim lógicas e compreensíveis as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima consignados, impostas pela evidente premência, num tal contexto, de demarcar os factos concretos susceptíveis de integrar o ilícito que o assistente pretende indiciado. Com efeito, regendo- se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, — um inerente ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e — outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo urna garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
Olhando, ora, para o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes DD... e MM... temos de concluir por que o mesmo não obedece aos requisitos legais, omitindo a descrição dos concretos factos, localizados no espaço e no tempo, que imputa aos arguidos, e narração dos elementos objectivos e subjectivos que integram a prática dos crimes que a seu ver foram cometidos por aqueles, por referência aos respectivos tipos legais incriminadores.
Em tais termos, a instrução torna-se inexequível.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 7/2005, iii DR 1 SÉRIE- A n.° 212 de 4 de Novembro de 2005 fixou a seguinte jurisprudência obrigatória: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287°, n.° 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração smtética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Assim sendo, tm vez que no requerimento de instrução requerida pelos assistentes, esta não narra os factos integradores, do crime pelo qual pretende a proniíncia dos arguidos, de forma concreta, lógica e coerente, que fundamentem a aplicação de urna pena ou medida de segurança, por legalmente inadmissível, rejeito a presente instrução
Custas pelos assistentes que se fixam em 2 UC - S para cada um — artigo 84° do Código das Custas Judiciais.
Notifique.
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A questão em apreciação no presente recurso prende-se tão só com a questão de saber se o requerimento de abertura de instrução formulado pelos assistentes está de acordo com o dispositivo legal referido no artigo 287º do CPP.

Conforme referimos, em obra publicada, «sendo a instrução necessariamente requerida por alguém, que pretende ver judicialmente declarado (através de uma decisão judicial) quer o arquivamento quer a acusação de um inquérito conduzido pelo Ministério Público, assume particular relevo o requerimento inicial ao juiz de instrução onde expõe as suas razões.

Importará sublinhar que a instrução só pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação – artigo 287º nº 1 alínea a) e b).

Ou seja a situação passível de ser objecto de apreciação jurisdicional, na instrução já foi anteriormente objecto de apreciação judicial através do inquérito, mas não jurisdicional, ou seja por um juiz»- cf. José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Proceso Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 74.

Nesse sentido o artigo 287º n.º 2, ao referir que «o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação (…) dos factos que (…) espera provar(…)», mais não quer que impor ao assistente, nos casos em que seja ele o requerente da instrução, que «narre, sinteticamente os factos que imputa ao arguido e que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, nos termos estabelecidos para a acusação e ainda as disposições legais aplicáveis, ou seja a qualificação jurídica dos factos», ob. cit. p. 74.

Conforme referimos na obra citada, p. 75, «é notória a pretensão de vincular desde logo o juiz de instrução a um determinado “objecto do processo” sobre o qual terá de se pronunciar, quando proferir o seu despacho - recorde-se que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução, conforme estabelece o artigo 309º.

Não se limitando os poderes de investigação do juiz de instrução na sua actuação, terá no entanto no caso concreto em apreciação jurisdicional uma vinculação à acusação do Ministério Público ou do assistente ou ao requerimento de abertura de instrução. O modelo acusatório em que assenta a estrutura processual do Código além de se manter incólume, sai mais do que isso, notoriamente reforçado, com a alteração agora imposta». Neste sentido se tem aliás pronunciado este Tribunal da Relação como é visível no recente Acórdão de 30.03.2011, processo 443/08, relator Eduardo Martins (cf. www.dgsi.pt).
Efectuadas estas considerações é bem de ver que no caso concreto os recorrentes e assistentes não cumpriram no seu requerimento nem a forma nem o conteúdo exigível ao requerimento da abertura da instrução.
Limitando-se, por um lado, a replicar o que constava na participação que fizeram e, por outro lado a tecer criticas à investigação efectuada, não concretizaram, como lhes é devido, o objecto do processo indicando os factos minimamente precisos e as suas consequências jurídicas que imputavam aos arguidos, assim concretizando o objecto do processo. E Isso, como se referiu é sua obrigação, face ao modelo processual vigente.
Daí que bem andou o senhor juiz em rejeitar o requerimento nos termos em que o fez.
Assim sendo o recurso agora interposto é de rejeitar.
III. DISPOSITIVO.
Pelo exposto decide-se negar provimento ao recurso mantendo-se a decisão proferida.
Fixa-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra 1 de Junho de 2011.