Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1615/06.9TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EFEITO SUSPENSIVO
RECURSO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
OBRIGAÇÕES
MANDATÁRIO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 06/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 692º, Nº 2, AL. B), DO CPC; 1161º, AL. E), 1180º A 1184º, 1198º E 1311º DO CC
Sumário: I – A fixação de efeito suspensivo a um recurso de apelação, nos termos do artº 692º, nº2, al. b), do CPC, ocorre sempre que da eventual procedência da acção possa resultar o desapossamento ou a desapropriação, relativamente a quem ocupa a posição de réu, da respectiva casa de habitação, mesmo que não permanente.

II – A situação em que, por acordo entre A e B, o primeiro se obriga a adquirir – adquirindo efectivamente – uma fracção predial, à partida destinada a esta última (neste sumário referida como B), mesmo que tal situação seja conhecida do vendedor (do vendedor A) dessas fracções, corresponde a uma situação de mandato sem representação (artºs 1180º/1184º do CC), sendo B o mandante e A o mandatário.

III – Este último (A, o mandatário) adquire o direito de propriedade dessas fracções, assumindo, em função do mandato, a obrigação de as transmitir para o mandante (artº 1161º, al. e), do CC).

IV – Esta obrigação de transmissão (de entrega ao mandante do que recebeu em execução do mandato) paralisa, enquanto excepção obrigacional, o exercício da reivindicação pelo mandatário (não obstante a aquisição da propriedade por este, nos termos do artº 1180º do CC), actuando tal excepção como “caso previsto na lei”, que obsta à reivindicação (artº 1311º, nº 2, CC).

V – O exercício da reivindicação por parte do mandatário – não obstante este ter adquirido o direito de propriedade da coisa visada pela outorga do mandato – pressupõe, quanto à entrega dessa coisa, a prévia resolução do contrato.

VI – Constituindo obrigação do mandante fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato (artº 1167º,al. a), do CC), pode o mandatário suspender a respectiva execução, designadamente não transmitindo a coisa para o mandante, face à mora deste último no cumprimento dessa obrigação (artº 1198ºCC), configurando-se assim, por parte do mandatário, uma situação relevante de exercício da excepção de não cumprimento.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em Agosto de 2006[1], A... (A/Reconvindo e aqui Apelante) demandou B... e C... (RR./Reconvintes e Apelados[2]), formulando contra estes, num quadro argumentativo correspondente a uma “acção de reivindicação”, os seguintes pedidos:


“[…]
[O de]
a) Ser reconhecida a propriedade do A. nos termos dos artigos 1311º e 1316º do Código Civil [CC],
[O de]
b) Condenar-se os RR. a abandonar o andar, restituindo-o ao A., de imediato, livre e desocupado de pessoas, nos termos do artigo 1311º do CC.
[O de]
c) Condenar-se os RR. a pagar ao A. uma indemnização a título de danos patrimoniais, nunca inferior a €37.000,00.
[…]”
[transcrição de fls. 9, com sublinhado acrescentado, enfatizando o único aspecto da Sentença que estará em causa no presente recurso]

            Alicerçou o A. tal pretensão na circunstância de, no intuito de ir transmitir essas fracções (como tal referiremos doravante o andar e o lugar de estacionamento objecto da reivindicação) aos RR., lhes ter permitido (é esta a versão do A.) a respectiva ocupação e utilização, situação que se mantém, sem que essa compra se concretize[3].

            1.2. Os RR. contestaram, impugnando alguma da factualidade aduzida e reconvindo. Invocam que o apartamento em causa (ou seja, as fracções aqui reivindicadas) foi adquirido pelo A. a pedido e “por conta” da R. e que, “[…] embora juridicamente propriedade do A.[,] é na realidade pertencente à R.” (fls. 64)[4], concluem os RR. o respectivo articulado nos termos seguintes:


“[…]
[D]eve:
a) a presente acção ser julgada improcedente por não provada;
b) serem os RR. absolvidos do pedido;
c) ser o A. reconvindo condenado a reconhecer o direito de propriedade [dos RR.] sobre os imóveis descritos nos artigos 3º e 4º da p.i. ou, em alternativa.
d) ser o A. reconvindo condenado a outorgar a escritura  por forma a transferir a titularidade sobre o direito dos imóveis descritos nos artigos 3º e 4º da p.i. para [a] R.
[…]”
            [transcrição de fls. 65]

            1.2. Findo o julgamento (a culminar este foram fixados os factos provados por referência à base instrutória[5]) foi proferida a Sentença de fls. 260/279esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, cujo pronunciamento decisório foi o seguinte:


“[…]
1. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:
1.1. Reconhece-se o direito de propriedade do A., relativamente à fracção autónoma designada pela letra «X», correspondente ao 4º andar esquerdo, destinado a habitação e a 2/15 da fracção autónoma designada pela letra «A», correspondente a cave destinada a garagem colectiva, do prédio urbano sito na ...., nº ...., freguesia e concelho da ...., sob o nº ...., afecto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz sob o artigo .....
1.2. Absolvo os RR. do pedido relativamente ao remanescente que era reclamado pelo A.[[6]].
2. Julgo a reconvenção improcedente e, em consequência, absolvo o A. dos pedidos a esse título deduzidos.
[…]”
            [transcrição de fls. 279]

            Inconformado interpôs o A. o presente recurso, admitido (conjuntamente com o dos RR. posteriormente julgado deserto por falta de alegações, v. a nota 3, supra) a fls. ....[7], motivado a fls. 305/310, rematado pelo Apelante com as seguintes conclusões:


“[…]
1 – O presente recurso deve ter efeito meramente devolutivo pois os presentes autos não respeitam à posse ou propriedade da casa de habitação dos apelados, conditio sine qua non para ser aplicável o art. 692.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil[[8]].
2 – A sentença recorrida violou o disposto no artigo 1311º, nºs 1 e 2 do CC ao não condenar os Réus na restituição imediata das fracções de que o Apelante é proprietário.
3 – Com efeito, este alegou e provou ser o proprietário das fracções.
4 – Alegou e provou ainda que os RR. ocupavam as suas fracções.
5 – Dispõe o artigo 1311º, nº 1 do CC que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
6 – Como pacificamente é aceite pela mais elevada jurisprudência e doutrina portuguesa, aliás, como bem estabelece o artigo 1311º, nº 2 do CC, só assim não será se havendo reconhecimento do direito de propriedade a restituição esbarrar numa das situações em que a lei admite tal recusa.
7 – Os RR. não alegaram nem lograram provar ocupar a fracção com base nalgum modo legítimo, designadamente um qualquer direito real ou obrigacional que tornasse legítima a recusa da restituição.
8 – «Nas acções de reivindicação (artigo 1311º do CC) incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem. Provados esses requisitos, a restituição da coisa será uma consequência directa, a não ser que o seu ou seus detentores demonstrem possuir direito real ou obrigacional, que servirá de obstáculo ao exercício pleno da propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória, nos termos do artigo 493º, nº 2 do Código de Processo Civil.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/12/1986 in BMJ, 362,537).
 9 – Inexistindo [prova de] qualquer modo legítimo de ocupação, tal utilização é ilegítima e não consentida pois que, ainda que de uma mera liberalidade se tratasse, com a citação judicial há lugar a uma interpelação de entrega do bem que apenas poderia soçobrar perante um direito real, pessoal de gozo ou creditício.
10 – Não tendo os RR. logrado provar qualquer direito que permita uma legítima recusa de entrega das fracções, deve a sentença recorrida ser parcialmente anulada e substituída por uma outra que condene os RR. à imediata restituição das fracções livres e devolutas de pessoas e bens.
[…]”
            [transcrição de fls. 309/310]


II – Fundamentação


            2. Apreciando o recurso, importa ter presente que as conclusões formuladas pelo Apelante (A. e Reconvindo) operaram a delimitação temática do respectivo objecto [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)]. Dessas conclusões (procedemos à respectiva transcrição no item antecedente) resulta não pretender o Apelante rediscutir nesta instância qualquer aspecto do acervo fáctico fixado pelo Tribunal a quo, no sentido em que não indica, na construção temática do respectivo recurso, factos que considere incorrectamente julgados e provas erradamente valoradas relativamente à fixação de qualquer desses factos (v. as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 690º-A e 712º, nºs 1 e 2 do CPC). Entende o Apelante, pois, que a simples consideração dos factos que o Tribunal considerou provados é suficiente para alicerçar a sua pretensão de restituição das fracções detidas pelos RR. É esta questão, aliás, que corresponde tematicamente ao recurso.

            Assim, os factos a considerar neste Acórdão, definitivamente fixados que se encontram eles por não impugnação (e por não sofrerem dos desvalores previstos no nº4 do artigo 712º do CPC), são os seguintes (indicamo-los aqui para facilitar a compreensão autónoma da situação através da simples leitura deste Acórdão):


“[…]
1. Por escritura pública celebrada no dia 01/10/1998, no Cartório Notarial da ...., D... e esposa, E..., na qualidade de primeiros outorgantes, e A..., casado com F..., na qualidade de segundo outorgante, declararam os primeiros que pelo preço global já recebido de [10.630.000$00/€53.022,22] vendiam ao segundo, que declarou aceitar, livre de ónus ou encargos:
Número um: Pelo preço de [10.000.000$00/€49.879,79], a fracção autónoma designada pela letra «X», correspondente ao ..., virado para a Estrada da ...., destinado a habitação, com o valor patrimonial correspondente à fracção de 3.257.055$00 (€ 16.246,12);
Número dois: Pelo preço 630.000$00/€ 3.142,43, 2/15 da fracção autónoma designada pela letra «A», correspondente a ..., com o valor patrimonial correspondente à fracção de 623.573$00/€3.110,37; ambos do prédio urbano sito na ...., n.º ...., freguesia e concelho da ...., descrito na Conservatória do Registo Predial da ...., sob o n.º ...., afecto ao regime da propriedade horizontal, conforme inscrição F-1, com a aquisição registada a seu favor, pelas inscrições G-1 e G-12, respectivamente, prédio esse inscrito na matriz sob o artigo .... – vide documento de fls. 10 a 14; alínea A) da especificação.
2. A aquisição das fracções descritas nos números um e dois da alínea A), encontra-se registada a favor do A. A..., mediante as inscrições G-2 e G-15, através da Apresentação n.º 39/261098 – vide documentos de fls. 15 a 23 e 24 a 37; alínea B) da especificação.
[São estas – as descritas em 1. e registadas em 2. – as fracções prediais reivindicadas pelo Apelante]
3. No ano de 1995, a primeira R. negociou com a sociedade «G...», através do seu sócio gerente (H...) a aquisição de um apartamento na ...., correspondente ao primeiro andar esquerdo e respectiva garagem – alínea C) da especificação.
4. Na sequência de tal negócio, a primeira R. pagou à referida sociedade o preço do dito apartamento, que passou a ocupar, mas a escritura de compra e venda não chegou a ser outorgada – alínea D) da especificação.
5. Após o referido em D), a R. [mulher] foi habitar uma moradia de rés-do-chão, sita na .... – alínea E) dos factos assentes.
6. Na moradia mencionada em E) foram efectuadas obras de reparação – alínea F) dos factos assentes.
7. Em 1997, após o referido em E), a R. [mulher] foi trabalhar para a ...., onde passou a residir – alínea G) dos factos assentes.
8. A R. [mulher] solicitou ao A., enquanto mediador imobiliário, para providenciar pela venda da moradia mencionada em E), pelo valor de [12.000.000$00/€59.855,75] – alínea H) dos factos assentes.
9. A R. [mulher] solicitou ao A. que adquirisse em nome dele a fracção «X» e a quota-parte na fracção «A» [identificadas na alínea A) dos factos assentes], para posterior transmissão para [ela] a R. [mulher] – resposta ao quesito 1.º.
10. Desde Abril de 1998, os RR. vivem nas fracções descritas na alínea A) dos factos assentes – resposta ao quesito 4.º.
11. A utilização das ditas fracções pelos RR. impede o A. de as arrendar – resposta ao quesito 6.º.
12. Em Junho de 1996, o segundo R. sofreu lesões na sequência de um acidente de viação – resposta ao quesito 13.º.
13. A R. [mulher] foi informada que o R. [seu filho] iria ficar completamente dependente de terceiros para actividades diárias simples – resposta ao quesito 14.º.
14. Perante tal quadro, a R. (B...) tratou de procurar uma casa de rés-do-chão para viver com o R. [seu filho] – resposta ao quesito 15.º.
15. Nessa ocasião, a R. [mulher] acordou com o A. a troca, através de I...., do apartamento e respectiva garagem referidos em C) e D), pela moradia referida em E) – resposta ao quesito 16.º.
16. Na referida moradia foram realizadas obras que incluíram pintura, mudança do chão, colocação de loiças novas nas casas de banho e colocação de armários novos na cozinha – resposta ao quesito 17.º.
17. A R. [mulher] adquiriu os materiais para as aludidas obras – resposta ao quesito 18.º.
18. No decurso do último trimestre de 1997, a R. [mulher] negociou com D... e esposa a compra das fracções descritas na alínea A) dos factos assentes – resposta ao quesito 19.º.
19. Posteriormente, solicitou ao A. que as adquirisse em nome dele, para uso dos RR. – resposta ao quesito 20.º.
20. Antes de passar a viver na fracção descrita na alínea A) dos factos assentes, a R. [mulher] recebeu quantia em dinheiro de I.... – resposta ao quesito 24.º.
21. Depois de passarem a viver na fracção descrita na alínea A) dos factos assentes, os RR. receberam quantias em dinheiro de I.... – respostas aos quesitos 27.º e 33.º.
22. A. e R. [mulher] acordaram a aquisição, por parte da empresa de mediação imobiliária que aquele dirigia ( I....), da referida moradia, sita na .... – resposta ao quesito 28.º.
23. Nos termos de tal acordo, a moradia [mencionada na alínea E) dos factos assentes] seria adquirida pelo preço de 12.000.000$00/€59.855,75 – resposta ao quesito 29.º.
24. Acordaram ainda A. e R [mulher] que todas as quantias entregues aos RR. pelo primeiro seriam abatidas no preço da compra – resposta ao quesito 30.º.
25. Em 9 de Março de 1998, a R. [mulher] recebeu de I...., a quantia de 6.000.000$00/€29.927,87 –, relativamente à moradia na .... – resposta ao quesito 31.º.
26. Em 8 de Abril de 1998, a R. [mulher] recebeu de I..., a quantia de 700.000$00/€3.491,59 –, relativamente à moradia na .... – resposta ao quesito 36.º.
[…]”
            [transcrição de fls. 264/268]

            Preliminarmente – e esta constitui, embora algo lateralmente, a primeira questão a tratar no presente Acórdão (a) –, discute o Apelante a fixação ao recurso de efeito suspensivo, pugnando pela não aplicação do condicionalismo previsto na segunda parte da alínea b) do nº 2 do artigo 692º do CPC. Subsequentemente – e este representa o fundamento substancial único da apelação (b) –, impugna o Apelante o elemento decisório da Sentença correspondente à não determinação da entrega a ele das fracções (andar e espaço de garagem), na sequência da declaração de ser ele (Apelante) o proprietário dessas mesmas fracções.

            São estas as duas questões que nos cumpre tratar, sublinhando-se – e estamos apenas a delimitar negativamente o objecto do recurso – que a proibição de reformatio in peius, induzida pela não impugnação da Sentença pelos RR.[9], torna inacessível a esta instância, além da improcedência dos pedidos reconvencionais, a afirmação, acima transcrita, contida no ponto 1.1. do pronunciamento decisório da Sentença apelada: o reconhecimento do direito de propriedade do A. sobre as fracções «X» e «A» (2/15 desta última) do prédio sito no nº .... da ...., na ....[10].

(a) O efeito do recurso

            2.1. A este respeito cumpre assinalar que competiria, em princípio, ao ora relator, dado tratar-se de questão estranha à decisão do objecto do próprio recurso, a apreciação do efeito fixado ao mesmo pelo Tribunal recorrido (artigo 700º, nº 1, alínea b) do CPC). Todavia, sendo tal questão suscitada nas próprias alegações e elevada às conclusões (corresponde à conclusão 1.) e tendo presente o mecanismo previsto no nº 3 do artigo 700º do CPC[11], optou-se por incluir, na economia expositiva deste Acórdão também a apreciação dessa questão.

Assim sendo, como dissemos antes, a fixação ao recurso de efeito suspensivo (pode dizer-se que o regime-regra da apelação é o efeito devolutivo, v. artigo 692º, nº 1 do CPC[12]) assentou no entendimento de estar integrada a facti species do trecho final da alínea b) do nº 2 do artigo 692º do CPC, através da consideração de que se estaria perante uma acção respeitante à posse ou à propriedade da casa de habitação dos RR./Apelados[13].

            Sabe-se – desde logo porque isso integra a matéria de facto (cfr. o ponto 10 do elenco acima transcrito) – que os RR. habitam a (vivem na) casa objecto da pretensão reivindicatória do Apelante (habitam-na até desde antes dessa aquisição, v. o texto transcrito na nota 27, infra), incidindo o recurso, precisamente, sobre a questão da entrega dessa casa a este, reconhecido que foi como proprietário da mesma, com a consequente privação dos RR. (a triunfar a pretensão recursória do A.) dessa mesma casa.

            Vale isto por dizer, que a aplicação, na fixação do efeito do recurso, do critério do nº 2, alínea b) do indicado artigo 692º foi correcta e atendeu plenamente ao sentido teleológico da norma. Com efeito, a caracterização doutrinária desta disposição vem sendo – referimo-nos ao regime processual recursório aqui aplicável[14] – entendida como “[abrangendo] as acções atinentes à casa de habitação do réu […], acrescentando-se que se “[trata] de norma de natureza especial, que não é afectada pelo regime-regra constante do nº 1 [do artigo 692º]” e que, em função dela, “[…] têm efeito suspensivo da exequibilidade os recursos interpostos de decisões proferidas nas acções  em que se aprecie «a validade ou a subsistência de contratos de arrendamento para habitação» (artigo 678º, nº 5 [CPC]) e ainda nas acções que respeitem à posse ou à propriedade da casa de habitação do réu”, sendo que “[p]retende-se evitar que alguém seja privado da sua habitação, na pendência de um recurso que pode levar à revogação de tal privação”, “[n]ão se exig[indo] que a habitação seja permanente[15].

            Confirma-se, assim[16], o efeito suspensivo fixado ao recurso de apelação pela decisão de admissão de fls. ...., tendo esta interpretado convenientemente o sentido da disposição legal atinente aos pressupostos da fixação de tal efeito.

(b) A não determinação da entrega da casa ao Apelante reconhecido na Sentença como proprietário

            2.2. Assente que a Sentença reconheceu o direito de propriedade do Apelante sobre as fracções por este reivindicadas – e reconheceu-o correctamente, como veremos –, importa recordar aqui o percurso argumentativo que conduziu a decisão recorrida a recusar a consequência decisória que, fossem outras as circunstâncias do caso concreto, corresponderia à efectiva demonstração desse direito de propriedade: a restituição ou entrega do respectivo objecto ao proprietário (artigo 1311º do CC).

            Disse-se a tal respeito na Sentença justificando a não entrega das fracções ao A. – e é importante recuperar aqui esse trecho expositivo:


“[…]
Apesar do direito do A., é certo que os RR. ocupam e utilizam o apartamento em questão.
Alega o A. que tal utilização é ilícita, dado que os RR. não têm título legítimo para ocuparem as fracções em questão e para [o] impedirem, enquanto legítimo proprietário das mesmas, do seu uso e fruição.
Os factos provados não permitem acolher esta pretensão do A..
Não se demonstrou que a utilização do apartamento por parte dos RR. tenha ocorrido em finais de 1998, na sequência de consentimento do A. e que este tenha consentido no pressuposto de que a R. lhe compraria as fracções logo que obtivesse resposta a um pedido de financiamento bancário, efectuando então o pagamento do preço[[17]].
Ao invés, provou-se que os RR. vivem desde Abril de 1998, portanto, desde data anterior à de aquisição por parte do A.; e demonstrou-se igualmente que a posterior compra das fracções pelo A. se realizou a solicitação da R. e para uso dos RR.
Perante estes factos, não pode afirmar-se a utilização ilegítima e infundada por parte dos RR.
É certo que a utilização das ditas fracções pelos RR. impede o A. de as arrendar e que, ao acordar a compra das mesmas a solicitação da R., o A. agiu no pressuposto da sua posterior transmissão para a R.[[18]]
Não se esclareceram, no entanto, as concretas circunstâncias em que deveria concretizar-se esta ulterior transmissão, quais os termos acordados pelas partes para esse efeito; por outro lado e independentemente de tais termos, não se demonstrou que o A. tenha efectuado quaisquer diligências no sentido da consumação da venda das fracções à R., nomeadamente que tenha feito qualquer interpelação admonitória da R. – definida como declaração receptícia que intima ao cumprimento, fixando prazo peremptório para o cumprimento, sob a admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não ocorrer o cumprimento dentro desse prazo […] – no sentido de se concretizar a transmissão das fracções para a R. – e daí retirar consequências no que concerne à legitimidade da ocupação do apartamento pelos RR.
Por isso, não pode afirmar-se, por um lado, que a ocupação e a utilização do apartamento pelos RR. configure um acto ilegítimo e não consentido; por outro, que deixem de relevar as razões que determinaram essa ocupação e utilização.
Conclui-se então que improcede a pretensão do A. quanto à condenação dos RR. a abandonar o andar e a restitui-lo de imediato ao A., livre e desocupado de pessoas e bens.
[…]”
            [transcrição de fls. 272/274, sublinhado acrescentado]

É este o quadro de justificação da não entrega das fracções propriedade do A. que importará considerar na subsequente dilucidação da questão suscitada no recurso.

2.2.1. Dirige-se a acção de reivindicação – e a tal espécie corresponde indubitavelmente a acção proposta pelo A. – ao reconhecimento do direito de propriedade e à entrega da coisa objecto desse direito. É neste sentido que o artigo 1311º, nº 1 do CC, fala, caracterizando a reivindicação nessa sua dupla essência instrumental, em o proprietário poder “[…] exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”. Articula-se esta dupla faceta nos termos que emergem da previsão do nº 2 do mesmo artigo 1311º: “[h]avendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

            Diz-se, pois, que “[a] acção de reivindicação é dirigida à entrega”, significando isto “[…] que a causa de pedir não é apenas a titularidade ou os factos constitutivos do direito, mas também uma situação de desconformidade ao direito na relação com a coisa, a que a entrega deve pôr termo”[19]. A reivindicação adjectiva as chamadas “razões absolutas” inerentes ao direito de propriedade, enquanto direito real[20] e, porque as razões do proprietário são de natureza absoluta, “[…] a coisa terá de lhe ser entregue […]”, salvo, claro, e esta ressalva encerra a essência do que se discute no presente recurso, “[…] se a outra parte tiver contra-razões (relativas) justificativas da manutenção da situação de facto”[21], quanto à circunstância de não dever coincidir, no caso daquelas pessoas concretas, em função de um determinado estado de coisas juridicamente apto a produzir esse efeito, a situação de propriedade com a detenção material da coisa.

É neste sentido – e estamos a ilustrar a situação fornecendo um exemplo verdadeiramente paradigmático de demonstração da propriedade ao qual corresponde uma válida recusa de (um “não direito” à) restituição (como diz o nº 2 do artigo 1311º do CC) – que o proprietário não pode obter a entrega do locatário[22]. E é também neste sentido – e estamos agora a referir-nos directamente ao fulcro do caso concreto – que o A. sendo, neste caso, proprietário das fracções prediais reivindicadas, como o são todos aqueles que adquirem algo em execução de um mandato sem representação (é o que resulta do artigo 1180º do CC), correspondendo ao A., dizíamos, o direito de propriedade das referidas fracções, a obrigação deste (enquanto mandatário) de entregar ao mandante o que adquire em execução do mandato (artigo 1161º, alínea e) do CC) paralisa, por si, enquanto excepção obrigacional, a reivindicação. Ou seja, como veremos, a relação obrigacional entre o mandante e o mandatário impede aqui a devolução, configurando essa relação (corresponde a mesma, aliás, a um dos “casos previstos na lei”, para usar a terminologia do artigo 1311º, nº 2 do CC, que fundam a recusa de entrega da coisa reivindicada, não obstante a demonstração da propriedade), configurando essa relação, dizíamos, uma excepção pessoal. É certo que a obrigação de entrega das coisas impendente sobre o mandatário não prejudicaria um possível direito de retenção deste – é, podemos dizê-lo um “direito obrigacional de retenção” (v. o artigo 1168º do CC, seguindo na prática o regime da excepção de não cumprimento[23]) –, só que este mandatário, e isto no que à retenção concerne, inviabilizou o recurso à mesma com a entrega antecipada à mandante do bem sobre o qual poderia exercer essa retenção correspondente à suspensão do cumprimento do mandato quanto à transferência da coisa.

É por isto, que a decisão da Sentença apelada de não entregar a casa ao A., não obstante o seu direito de propriedade, foi correcta e deverá ser – e será aqui – confirmada.  

            Neste caso, com efeito, alcançou-se – e repete-se ter o Apelante razão a respeito da questão do direito de propriedade, embora a tenha isolando argumentativamente essa questão, por referência ao disposto no artigo 1180º doCC, dos restantes problemas que a acção coloca quanto ao mandato – a demonstração de ser efectivamente ele, o A. (o reivindicante), proprietário da coisa reivindicada. A Sentença afirmou-o sem dúvida alguma, mas já foi escassa, embora correcta no resultado decisório, na caracterização desta asserção na sua incidência em todas as vicissitudes do caso concreto. É este défice de justificação que estamos a suprir neste Acórdão, sendo que será esse aprofundamento da questão que, confirmando a correcção da asserção decisória impugnada, potenciará uma solução argumentativamente apetrechada do recurso.

            2.2.2. É exacto, com efeito – e estamos a repetir o que acima enfatizámos no texto –, dizer que o Apelante é proprietário da coisa reivindicada e, sendo igualmente exacto dizer que o é porque adquiriu essa coisa através da compra e venda consubstanciada no contrato a essa espécie correspondente junto a fls. 11/14 (veja-se o item 1. dos factos) – e também porque goza da presunção decorrente do registo em seu nome dessa coisa (v. o item 2 dos mesmos factos)[24] –, sendo tudo isto exacto, dizíamos, é necessário acrescentar, para cabal esclarecimento da situação (rectius, do litígio que opõe o A. e os RR., ou aquele e a R. em particular), a peculiaridade que revestiu a aquisição desse direito de propriedade por banda do Apelante, mas assumidamente por conta da Apelada.

            2.2.2.1. É dessa peculiaridade já acima sublinhada, a propósito do regime de aquisição pelo mandatário no mandato sem representação, que teremos de nos ocupar seguidamente.

Induziu ela (a peculiaridade da situação à qual aludimos) elementos característicos no caso concreto, determinantes da decisão aqui contestada pelo Apelante – decisão essencialmente correcta, embora não suficientemente fundamentada – de não proceder à entrega das fracções prediais ao A., não obstante a propriedade delas lhe pertencer nas circunstâncias de tempo consideradas na Sentença.

            Com efeito, e não obstante a questão da propriedade se colocar nos termos em que o Tribunal a quo a definiu (efectivamente pertencem ao A. as fracções), não é indiferente o contexto em que essa propriedade se constituiu quanto a este (e o que de seguida se dirá resulta amplamente dos factos provados). Foi, com efeito, mediante solicitação da R., e no interesse desta, que o A., familiar da mesma, adquiriu (rectius, se tornou proprietário) do bem reivindicado (vejam-se, no elenco fáctico, a tal respeito, os itens 9., 18. e 19.[25]), correspondendo tal situação, inegavelmente, (e até é estranho que ninguém ao longo do processo o tenha referido) conforme se disse em anteriores passagens, à figura do mandato e, em particular, do mandato sem representação (artigos 1180º/1184º do CC), com a consequência que, um pouco à laia de definição, é estabelecida no artigo 1180º do CC: “[o] mandatário [aqui foi-o o A.], se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes”[26].

Tenha-se presente, desde logo, o carácter primordialmente (em geral) não formal do contrato de mandato, compatível com a consensualidade induzida por comportamentos concludentes, particularmente no caso correspondente ao mandato sem representação, natureza esta perfeitamente consentânea com a integração da figura através das manifestações de vontade que aqui retiramos exuberantemente dos factos provados[27].

Assim, a afirmação de ser o A./Apelante o proprietário das fracções reivindicadas, feita no quadro de um mandato sem representação, deve ser algo relativizada e, em qualquer caso, mais não expressa, enquanto incidência prática das relações entre mandatário e mandante, que esta realidade: adquiriu ele (o mandatário), no exercício de um mandato sem representação, essas fracções e, como sucede com todos os gestores nessas circunstâncias (artigo 1180º do CC), o contrato que celebrou produziu quanto a ele os efeitos reais típicos de todos os contratos de compra e venda: a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito. Mas essa propriedade ou esse direito – não o esqueçamos – foram adquiridos (e estamos no domínio das relações entre o mandante e o mandatário) para outrem, a quem devem ser transmitidos na execução de um contrato do qual constituem incidência necessária (artigos 1161º, alínea e) e 1181º, nº 1 do CC).

Ora, se isto é assim relativamente ao gestor/mandatário no mandato sem representação, haverá que considerar agora o outro elemento que, embora ainda não realizado neste caso, se prefigura como individualizador da situação. Referimo-nos, desta feita por referência ao artigo 1181º, nº 1 do CC, à obrigação do mandatário transferir para o dono/mandante o direito adquirido em execução do mandato[28].

Essa transferência neste caso, é claro, não ocorreu (sem pretendermos jogar com as palavras diríamos até, ainda não ocorreu), sendo que o Apelante não transferiu as fracções para os RR. e também não resolveu o contrato correspondente ao mandato (basta olhar para os pedidos que formulou e à circunstância de não ter sequer alegado qualquer declaração com esse sentido realizada à outra parte).

Valendo no nosso Direito, relativamente ao relacionamento entre o mandatário e o mandante, quanto ao encargo consubstanciado no mandato sem representação, a chamada “tese da dupla transferência”[29], constatamos esse elemento (a coisa é – ou ainda é – do mandatário que não realizou a transferência), mas constatamos, ainda, uma relevante conexão entre a posse dos RR. relativamente à coisa adquirida pelo Apelante/mandatário (veja-se a nota 27, supra) e a situação correspondente a este tipo de mandato, havendo que integrar essa situação (qualificar essa posse) por referência ao segmento das incidências respeitantes ao relacionamento entre os RR. (a R. em particular) e o A., em função dessa correspondência ao exercício por banda deste último de um mandato sem representação.

Ora, a obtenção dessa posse sobre as fracções, por banda da R. e do outro R. filho daquela, como que adiantou o conteúdo prático que a ulterior transferência das mesmas fracções formalmente adquiridas pelo Apelante realizaria, cumprindo, em certo sentido por antecipação, o objectivo do mandato sem representação quanto ao mandante. Não se pode dizer, pois, face aos factos provados, e principalmente aos que o A. não logrou provar (e note-se que a R. anuncia permanecer interessada no cumprimento da obrigação de transferência para ela dessas fracções e, paralelamente, o contrato ainda não está resolvido[30]), não pode dizer-se, com efeito, que a relação correspondente ao mandato se tenha esgotado, em termos de só ter ficado – ficado sem mais – a propriedade do Apelante sobre essas fracções.

A propriedade em rigor “não ficou” nele, “ainda está nele”, mas também é certo que ainda ficou (ainda aí está) o contrato de mandato (acaso alguém, cumprindo-o ou resolvendo-o, o extinguiu?) e também ficou, enquanto vicissitude da execução desse contrato, uma posse que tem sentido face à existência desse mesmo contrato. Essa posse poderá alicerçar, num contexto distinto daquele que nesta acção se colocou, o exercício de um direito a ver consideradas, eventualmente numa perspectiva indemnizatória referida ao incumprimento do contrato ou como excepção de não cumprimento[31], todas as vicissitudes que revestiram esta relação estabelecida entre a R. e o A. no quadro de uma relação contratual correspondente a um mandato sem representação.

O que por ora já se sabe – e constitui um dado relevante para a resolução dos problemas subsistentes respeitantes à atribulada execução deste contrato de mandato (sem representação) é que o A., o mandatário, como que se despojou do direito de retenção das fracções, restringindo a sua resposta à possível mora que imputa à R. à faculdade de suspensão da execução do mandato (aqui à não realização da transferência “jurídica” das fracções para os RR.) prevista no artigo 1168º do CC[32].

2.2.2.2. Para além disto – para além deste estado de coisas –, o que emerge da factualidade provada é, fundamentalmente, um non liquet quanto ao esgotamento da possibilidade de transferência (a afirmação desse esgotamento correspondia à tese do A. e esta não se provou neste particular contexto), e isso também corresponde – não pode deixar de também corresponder –, enquanto critério determinante da decisão, no aspecto particular criticado pelo Apelante, à permanência do sentido da posse exercida pelos RR. sobre as fracções, mesmo que isso corresponda aqui à simples conservação do status quo ante, por indemonstração do outro estado de coisas alegado pelo A. na acção, e que foi pretendido apresentar como incompatível com o status quo correspondente à posse dos RR.

Existe aqui, nesta perspectiva, com efeito – e também isso determinará o sentido decisório deste recurso, confirmando o entendimento da primeira instância –, um relacionamento entre o A. e a R. (os RR., se quisermos) originado numa situação que corresponde a um mandato sem representação; esse relacionamento deu lugar a uma situação possessória referida aos RR. (que fundamentalmente antecipou o sentido finalístico desse mandato na transferência da coisa adquirida para estes); esta incidência despojou o mandatário do direito de retenção que lhe seria referido pelos artigos 754º e ss. do CC. E, enfim, ainda existe espaço para uma definição, espaço não abrangido pelo thema decidendum desta acção (que não tratou em rigor das vicissitudes da relação contratual correspondente ao mandato sem representação[33]), da realização do fim visado pelo mandato, ou para uma liquidação de responsabilidades respeitantes à frustração da transferência das fracções para a R., ou até para o apuramento de se a R. (mandante) forneceu ao A. (mandatário) todos os meios para a execução do mandato (artigo 1167º, alínea a) do CC), o que inclui a entrega dos valores correspondentes aos pagamentos por este eventualmente efectuados do preço das fracções[34].

Existe ainda, em qualquer dos casos, fundamento para conservar o status quo ante. Traduz-se este aqui na relação de posse dos RR. com as fracções reivindicadas pelo A./Apelante, nos termos em que tal situação se nos deparava no início do processo movido pelo A. (o processo aspira à alteração desse status quo), isto até que a relação contratual estabelecida entre o A. e a R. seja definida ou até liquidada com o apuramento do “deve e do haver” prestacional de cada uma das partes no contrato[35].

2.3. O elemento decisório da Sentença da Primeira instância discutido nesta apelação cingia-se à não entrega das fracções prediais ao A./Apelante, face à afirmação de ser este o proprietário delas. Aqui, neste Acórdão, embora desenvolvendo uma linha argumentativa própria, concluiu-se pela correcção desse resultado decisório. O recurso improcederá com a consequente confirmação da Sentença apelada.

Resta-nos, pois, fixar tal consequência neste Acórdão, não sem que antes deixemos nota, em sumário, dos aspectos centrais do antecedente percurso argumentativo:



I – A fixação de efeito suspensivo a um recurso de apelação, nos termos do artigo 692º, nº 2, alínea b) do CPC, ocorre sempre que da eventual procedência da acção possa resultar o desapossamento ou a desapropriação, relativamente a quem ocupa a posição de réu, da respectiva casa de habitação, mesmo que não permanente;
II – A situação em que, por acordo entre A e B, o primeiro se obriga a adquirir – adquirindo efectivamente – uma fracção predial, à partida destinada a esta última (neste sumário referida como B), mesmo que tal situação seja conhecida do vendedor (do vendedor a A) dessas fracções, corresponde a uma situação de mandato sem representação (artigos 1180º/1184º do CC), sendo B o mandante e A o mandatário;
III – Este último (A, o mandatário) adquire o direito de propriedade dessas fracções, assumindo, em função do mandato, a obrigação de as transmitir para o mandante (artigo 1161º, alínea e) do CC);
IVEsta obrigação de transmissão (de entrega ao mandante do que recebeu em execução do mandato) paralisa, enquanto excepção obrigacional, o exercício da reivindicação pelo mandatário (não obstante a aquisição da propriedade por este, nos termos do artigo 1180º do CC), actuando tal excepção como “caso previsto na lei”, que obsta à reivindicação (artigo 1311º, nº 2 do CC);
V – O exercício da reivindicação por parte do mandatário – não obstante este ter adquirido o direito de propriedade da coisa visada pela outorga do mandato – pressupõe, quanto à entrega dessa coisa, a prévia resolução do contrato;
VIConstituindo obrigação do mandante fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato (artigo 1167º, alínea a) do CC), pode o mandatário suspender a respectiva execução, designadamente não transmitindo a coisa para o mandante, face à mora deste último no cumprimento dessa obrigação (artigo 1198º do CC), configurando-se assim, por parte do mandatário, uma situação relevante de exercício da excepção de não cumprimento.   


III – Decisão


            3. Assim, com base nas antecedentes considerações, na improcedência da apelação[36], confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo A/Reconvindo e aqui Apelante, A....


[1] Aplica-se ao presente processo, em função do dado de tempo indicado (processo iniciado anteriormente a 01/01/2008), o regime dos recursos prévio à reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, referir-se-á à versão anterior a este.
[2] Estes deixaram desertar, por falta de alegações, o recurso que interpuseram a fls. 286, v. o trecho inicial do despacho de fls. 322.
[3] Porque o presente recurso se restringe à questão da restituição da casa, prescindiremos aqui de indicar os aspectos referentes ao pedido indemnizatório do A (refere-se à impossibilidade de arrendar essa fracção). que foi desconsiderado na Sentença e foi deixado cair como possível fundamento da presente apelação.
[4] Dizem a este respeito na contestação:
“[…]

25º
O A. adquiriu em seu nome as fracções autónomas referidas no artigo 1º da p.i., acedendo a um favor que a R. sua familiar lhe pedira.
26º
Gastou como refere no artigo 2º da p.i. €53.150,00.
27º
Esquecendo-se, todavia, que o dinheiro que gastou era pertença da R., pelo que não teve qualquer prejuízo patrimonial.
[…]”
                [transcrição de fls. 64]
[5] Consta tal despacho (as respostas e a fundamentação) da acta de fls. 238/256.
[6] Refere-se este trecho absolutório ao pedido indemnizatório do A. que não constitui objecto deste recurso e ao pedido de entrega da casa também formulado pelo A. É a este último aspecto da Sentença (não condenação dos RR. a procederem à entrega da casa ao A.), conforme já se mencionou ao longo deste Acórdão, que se refere a presente apelação.
[7] Transcreve-se o despacho de admissão (que será apreciado, no que ao efeito suspensivo do recurso diz respeito, no presente Acórdão):
“[…]
Por legais e tempestivos, admito os recursos interpostos pelo A., por requerimento de fls. 284 […] que são de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. artigos 678º, 680º, 685º, 687º, 691º e 692º, nº 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil).
[…]”
                [transcrição de fls. ...., sublinhado acrescentado]
[8] V. a antecedente nota 9.
[9] “A proibição de reformatio in peius (que se encontra consagrada no artigo 684º, nº 4 [do CPC] traduz-se no seguinte: a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 465).
[10] Que, note-se, corresponde a uma asserção absolutamente exacta – como a ulterior exposição tornará claro (v. item 2.2., infra) – face à prova disponível e com base no enquadramento jurídico da situação do A. face a essas fracções prediais, no quadro (ausente do argumentário das partes e da Sentença) do mandato sem representação (v. o artigo 1180º do Código Civil).
[11] Sendo que deste – da faculdade de reclamação para a conferência – decorre a existência de uma legitimidade final, embora eventual, da conferência (a composição colegial da qual promana a decisão do recurso) para apreciar (também) essa questão.
[12] Diz este que “[a] apelação tem efeito meramente devolutivo”.
[13]
Artigo 692º
Efeito da apelação
1 – --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
2 – A apelação terá, porém, efeito suspensivo:
a) ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------;
b) Nas acções referidas no nº 5 do artigo 678º e nas que respeitem à posse ou à propriedade da casa de habitação do réu.
3 – --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[14] V. nota 2, supra.
[15] Citou-se, anotando o artigo 692º do CPC e com o ênfase acrescentado no presente texto, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, vol. 3º, Coimbra, 2003, p. 60 (a edição correspondente ao regime dos recursos aqui aplicável, v. a nota 2, supra).
[16] Dispensou-se a audição dos Apelados quanto à impugnação do efeito do recurso, sendo certo ter sido a questão suscitada pelo Apelante nas alegações de recurso e terem os Apelados usufruído de oportunidade de resposta em sede de contra-alegações (v. artigos 703º, nº 2 e 702º, nº 2 do CPC).
[17] Este trecho argumentativo da Sentença não é isento de alguma equivocidade, embora não contenha uma afirmação errada,  se nos ativermos à fundamentação das respostas à base instrutória, no trecho transcrito abaixo na nota 27 e a parte do texto do Acórdão que para ela remete. Foi o vendedor das duas fracções ( D...), com efeito, quem propiciou à R. e ao seu filho a ocupação e a utilização destas, sendo que o fez, conforme explicou em julgamento (esta Relação procedeu, para compreensão da situação, à audição deste depoimento) no pressuposto de ser a R. a adquirente destas fracções, correspondendo o aparecimento do A. no negócio à simples interposição de um “testa-de-ferro” da R., referindo-se a esta última a verdadeira aquisição das fracções prediais (foi isto, com efeito, o que o vendedor das fracções disse no julgamento). Como adiante explicitaremos tratou-se de uma situação de mandato sem representação, não obstante a Sentença ter omitido este enquadramento, que, salvo o devido respeito, se nos afigura como o adequado à situação criada com a intervenção do A. em toda esta situação.
[18] A Sentença apelada parece não ter vislumbrado aqui a figura do mandato sem representação, não obstante nos parecer a adequada ao enquadramento jurídico (e algum seguramente deveria ser feito) da complexa situação criada entre a R. e o A.
[19] José de Oliveira Ascensão, “Acção de Reivindicação”, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, s. d., p. 30.
[20] “Temos caracterizado o direito real como um direito absoluto porque se baseia em razões absolutas, enquanto que ao direito relativo é essencial assentar numa relação” (José de Oliveira Ascensão, “Acção de Reivindicação”, cit., p. 20).
[21] Ibidem.
[22] Esta articulação é feita no Código Civil alemão (BGB) nos §§ 985 (“[o] proprietário pode exigir do possuidor a restituição da coisa”) e 986 (1) [“[o] possuidor pode negar a restituição da coisa se a ele ou ao possuidor mediato, do qual deriva o seu direito de posse, é facultado possuir face ao proprietário […]” (http://dejure.org/gesetze/BGB/985.html e http://dejure.org/gesetze/BGB/986.html)]. É neste sentido que se entende que “[…] enquanto corresponder ao possuidor  um direito à posse, a pretensão de reivindicação está excluída” (Harry Westermann, Harm Peter Westermann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, Derechos Reales, tradução da 7ª ed. alemã, Heidelberg, 1998, Madrid, 2007, vol. I, p. 342).
[23] É o que indicam Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, no Estudo “Os direitos de retenção e o sentido da excepção de não cumprimento”, p. 11, disponível no sítio http://muriasjuridico.no.sapo.pt/, no endereço: http://muriasjuridico.no.sapo.pt/ExceptioVsDtsdeRetencao.pdf (o texto está publicado na Revista de Direito e Estudos Sociais, XLIX-XXII, da 2ª série, nºs 1-4, 2008, pp. 187/239).
A ideia da existência de um “direito obrigacional de retenção” (este constitui, fundamentalmente, o tema do Estudo que aqui referimos), contraposto a um “direito real de retenção” previsto nos artigos 754º e ss. do CC, correspondente grosso modo ao previsto no Código Civil alemão (no §273 – zurückbehaltungsrecht), é visto como dirigido “[...] a situações em que haja deveres recíprocos, mas não interdependentes. Do que se trata neste caso, é apenas de assegurar a suspensão do respectivo cumprimento  com fundamento na inexecução alheia [...]“ (p. 9).
[24] Como decorre do artigo 7º do Código do Registo Predial: “[o] registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. E aqui os RR. não elidiram essa presunção. Aliás, a aquisição da propriedade pelo A., enquanto mandatário sem representação, corresponde ao funcionamento desse tipo de mandato (no que à relação do mandatário com a coisa adquirida diz respeito, nos termos do artigo 1180º do CC).
[25] E veja-se, principalmente, a fundamentação desta asserção fáctica na fundamentação exarada pelo Tribunal a quo quanto a essas respostas à base instrutória, que aqui transcreveremos nos trechos mais impressivos:
“[…]
Confirmou [refere-se o Julgador ao depoimento da testemunha J..., que negociou como intermediário a venda do andar aqui em causa com a R.] a concretização da venda em Outubro de 1998, esclarecendo que, só pouco tempo antes da respectiva escritura, já em Setembro de 1998, é que a R. se dirigiu ao escritório da respectiva imobiliária e aí deu conta de que, por razões particulares, a escritura não podia ser feita em seu nome, indicando então o nome do A. como comprador.
A testemunha D..., anterior dono das fracções […], relatou as razões que o levaram a proceder à venda das mesmas […] e o aparecimento de vários potenciais clientes, onde se incluiu a R., estimando que o primeiro contacto com a mesma ocorreu em Outubro ou Novembro de 1997.
[…]
Salientou que a R., desde o início, afirmou que a escritura seria efectuada em nome de terceira pessoa por si indicada, dada a existência de problemas decorrentes de divórcio; que a mesma sempre disse que não havia necessidade de financiamento e que o pagamento seria realizado a pronto, com o produto da venda de uma casa que tinha em Alpiarça.
Descreveu as vicissitudes entretanto ocorridas, resultantes da dificuldade de venda desta casa, o que veio a determinar o adiamento da data da escritura de compra e venda; a R. deu conta da existência de um familiar seu, Sr. A... [trata-se do A.], tinha uma empresa de mediação imobiliária que procedeu entretanto à aquisição da moradia.
Relatou que, por acordo com a R. e tendo em vista ultrapassar as dificuldades que para si decorriam do atraso na concretização da venda, se dirigiu a Alpiarça, ao escritório do A. e deste recebeu a quantia de 2.500.000$00, confirmando ter sido por si assinada a declaração que faz fls. 100 e pormenorizando que recebeu para o efeito cheque que lhe foi entregue pelo A.; em breve conversa, este confirmou-lhe que comprava a casa, apesar de não ser negócio que lhe interessasse, para auxiliar a sua prima, reconhecendo a existência de dificuldades que então atravessava, relativos a divórcio e aos problemas de saúde do filho.
Confirmou o preço que consta da escritura e, relativamente aos pagamentos, esclareceu que, além dos 2.500.000$00 antes mencionados e que recebeu do A., foi-lhe paga pela R., no mês seguinte, a quantia de 3.500.000$00; no acto da escritura foi-lhe paga pelo A. a quantia de 4.400.000$00, através de cheque cujo duplicado faz fls. 101; posteriormente, a R. pagou-lhe a quantia remanescente de 230.000$00.
[…]”
                [transcrição, com sublinhado ora acrescentado, da acta de fls. 245/246]  
[26] “O que caracteriza o mandato sem representação, nos termos do artigo 1180º, é o facto de o mandatário agir em seu próprio nome (nomine proprio) […].
Em vez, assim, de os actos produzirem os seus efeitos na esfera jurídica do mandante [aqui foi mandante a R.] (cfr. artigo 258º), produzem-se na esfera jurídica do mandatário […].
A afirmação final do artigo de que os efeitos dos actos se verificam na esfera do mandatário, «embora o mandato seja conhecido dos terceiros que sejam participantes dos actos ou sejam destinatários destes», põe em relevo a licitude da interposição do mandatário sem representação, mesmo que este procure ocultar a sua posição em relação ao mandante. E é lícita essa interposição, porque é real e verdadeira, e não fictícia ou simulada, e porque não há interesse jurídico social ou moral em a proibir” (Fernando Andrade Pires de Lima, João de Matos Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II, 2ª ed., Coimbra, 1981, p. 663).
[27] “O mandato é normalmente um contrato consensual, dado que a lei não exige forma especial. [O] mandato sem representação (artigos 1180º e ss.) não é sujeito a forma especial” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 437/438).
[28] “O gestor fica, nos termos do artigo 1881º/1, obrigado a transferir, para o dono, os direitos adquiridos no âmbito da gestão […]” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, tomo III, Coimbra, 2010, p. 117), o que, aliás, mais não faz que expressar a obrigação estabelecida para o mandato em geral no artigo 1161º, alínea e) do CC: “[o] mandatário é obrigado: […] [a] entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste […]”.
[29] “No âmbito do mandato sem representação poderiam ser adoptadas em abstracto duas teses para resolver o problema da repercussão no mandante dos negócios celebrados entre o mandatário e terceiro: a tese da dupla transferência, segundo a qual os efeitos se repercutem na esfera do mandatário, sendo necessário um negócio autónomo para os transmitir para o mandante, e a tese da projecção imediata, segundo a qual os efeitos repercutem-se directamente na esfera do mandante, sem terem que passar pelo património do mandatário […].
No âmbito do mandato para adquirir, a lei portuguesa consagrou, no entanto, claramente a tese da dupla transferência, ao referir que se o mandatário agir em nome próprio adquire os direitos e assume as obrigações resultantes do negócio que celebra (artigo 1180º). Os efeitos dos negócios não se repercutem assim directamente na esfera do mandante, mas antes do mandatário, de onde terão de ser posteriormente transferidos para o mandante.
Adoptando a tese da dupla transferência, o artigo 1181º, nº 1, vem estabelecer uma obrigação para o mandatário de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato. Daqui resulta que como o bem é primeiramente adquirido pelo mandatário (cfr. artigo 1180º), a sua efectiva aquisição pelo mandante depende de um novo negócio de transmissão, a celebrar entre ele e o mandatário, negócio esse que o mandatário se obriga a celebrar” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, cit., pp. 459/460).
[30] E pouco sabemos, no deve e haver das entregas de dinheiro (entre o A., a R. e o vendedor das fracções) referidas nos factos, se existe ou não fundamento para o Apelante considerar não cumprida a obrigação da R./mandante de lhe entregar ou fornecer (a ele A./mandatário), como diz a lei na alínea a) do artigo 1167º do CC, “[…] os  meios necessários à execução do mandato […]”, que aqui poderia corresponder, grosso modo, ao preço das fracções ou bens propiciadores desse valor (a lei acrescenta na alínea a) citada “[…] se outra coisa não for convencionada”).
[31] V. supra, o Estudo indicado na nota 25 e a citação da nota que se segue.
[32] “No caso da faculdade concedida ao mandatário de suspender a execução do mandato enquanto o mandante não fornecer os meios necessários (cfr. artigo 1168º CC), pensamos que se aplica preferencialmente a disciplina da exceptio: p. ex., a recusa do mandatário não poderá ser contornada mediante a prestação de garantias (cfr. artigo 428º/2 CC). Vemos duas razões para isso. Por um lado, a suportação das despesas pelo mandante tem uma enorme importância na «economia do contrato», na estrutura do conjunto da relação atributiva. Num contrato em que essas despesas caibam ao «mandatário», a atribuição que este faz passaria a visar mais um resultado exterior à sua actividade do que a própria actividade. Só a disciplina dos artigos 428º e ss. do CC tutela suficientemente o mandatário contra a possibilidade de, de facto, ocorrer essa mudança de natureza. Por outro lado, a própria lei se refere a «meios necessários» à execução do mandato, determinando o carácter instrumental dessa obrigação relativamente à obrigação nuclear e revelando que esta, de alguma forma, é «dependente» do cumprimento da anterior. Não se divisando que o mandatário fornecesse os meios do próprio bolso, tal «dependência» justifica que os artigos 428º e ss. acompanhem o artigo 1168º.” (Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, “Os direitos de retenção e o sentido da excepção de não cumprimento”, cit. na nota 25, supra, p. 11).
[33] O A., em concreto, não formulou qualquer pedido a esse respeito e, por isso mesmo, só de si próprio (da sua estratégia processual) se pode queixar.
[34] A improcedência do pedido reconvencional dos RR. quanto a ser condenado o A. a outorgar a escritura de transferência das fracções expressou, sem o afirmarr explicitamente, isso mesmo, o non liquet quanto à performance contratual de ambas as partes na execução do mandato (não está tal improcedência impugnada neste recurso, mas vemo-la como decisão substancialmente correcta). Aliás, essa improcedência, dada a proximidade do pedido respectivo à execução específica ex artigo 830º do CC (António Menezes Cordeiro aceita essa possibilidade no mandato sem representação, v. Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, tomo III, cit., p. 117), não deixa de traduzir a ausência desses requisitos no caso concreto para essa possibilidade [nos termos em que a caracteriza Luís Manuel Teles de Menezes Leitão: “[p]arece […] ser de exigir, quando o mandato sem representação se destine a aquisição de bens imóveis, que seja celebrado por escrito, nos termos do artigo 410º, nº 2 do CC, em ordem a permitir a extensão analógica do artigo 830º do CC” (Direito das Obrigações, Vol. III, cit., p. 462)].
[35] Tem aqui sentido – também tem sentido – a convocação do critério de decisão referido como “princípio do agressor” (ou do “queixoso). Este princípio de decisão, na caracterização que dele faz Pedro Ferreira Múrias, “[…] exprime uma tendência do direito – aqui da distribuição do ónus – para favorecer a conservação de certo estado, em detrimento da sua alteração” (Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, p.106), tendência esta particularmente relevante em sede de litígios dominiais ou possessórios em sentido amplo.
Sendo esse critério de decisão fundamentalmente intuitivo, afigura-se-nos útil indicar as bases em que assenta:
“[…]

[P]arece de aceitar o mínimo de «individualismo» que obsta a privar um sujeito de um bem com o único sentido de o atribuir a outrem. A referência […] ao casum sentit dominus soa correcta […] pois a desvantagem do non liquet atinge primeiro o «queixoso». A decisão perante a incerteza parte da consideração de que um dos litigantes está numa posição desfavorecida, e o outro na posição contrária. O res perit dominum é a afirmação de que as desvantagens anteriores à decisão se conservam na esfera de quem as sofreu. Não há ganho em deslocar o dano só pela deslocação. O direito dos privados respeita a distribuição dos bens que lhe seja anterior. As ideias de «bem» e «desvantagem», ambas prévias à decisão actual, têm ainda algum valor acrescido em atenção à específica questão probatória. Quem não dispõe de um bem antes do processo judicial irá decerto tentar reunir meios de prova: a vítima de um acidente de viação preocupa-se em apontar a matrícula do automóvel causador, procura testemunhas ou, se puder, obtém uma declaração escrita do condutor. Pelo contrário, quem não causou um acidente de viação, apenas passou por ele, não toma quaisquer cuidados no sentido de demonstrar que é alheio aos acontecimentos. A diferença está no facto de um deles, previsivelmente, não poder dispensar o processo. O outro, pelo contrário, não quer obter mais do que aquilo que tem. O «possuidor em sentido amplíssimo» descura a sua posição juridicamente desprotegida. O «não possuidor» procura armas para fazer valer o direito. Por outro lado, parece exigível ao «queixoso» essa busca de meios de prova. Se estas considerações, embora plausíveis, não pretendem ter base empírica mais rigorosa do que o senso comum, já não pode negar-se que uma distribuição do ónus da prova favorável ao agressor fomentaria o desencadear de intervenções judiciais na esfera jurídica alheia, i.e., nos bens alheios, desprovidas de suporte substantivo. A esfera que se pretende agora defender, naturalmente, tem, mais uma vez de ser entendida no sentido de conjunto de bens anteriores ao processo. E o mesmo vale se ponderarmos que a tutela do status quo é uma forma de tutela do tráfego jurídico, i. e., dos terceiros que negoceiam com o «possuidor», e não com quem apenas se arroga esse direito.
Estes variados modos de justificar o princípio do agressor – o casum sentit dominus, a naturalidade e exigibilidade de cuidados probatórios do queixoso, a necessidade de não incentivar a propositura de acções sem fundamento e a tutela do tráfego jurídico – não permitem um alargamento do «estado possessório em sentido amplo» ao ponto de abranger qualquer «constituição de direitos», mas só aquela que já antes do processo surge como bem merecedor de tutela, como valor económico-social que caiba ao direito proteger.” (Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 112/113).
[36] E reafirmando, in itinere, como correcta a atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso (como se disse no item 2.1., supra).