Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/10.0YEPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: INTERDIÇÃO DE ENTRADA E PERMANÊNCIA ILEGAL
TERRITÓRIO NACIONAL
VIOLAÇÃO DE MEDIDA
Data do Acordão: 01/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 187º, Nº 1 E Nº 2 DA LEI Nº 23/2007 DE 4.7
Sumário: 1.Para o preenchimento do tipo objectivo do crime de violação de medida de interdição de entrada e permanência ilegal em território nacional é que o agente seja cidadão estrangeiro, que tenha entrado em território nacional e que o tenha feito durante período de tempo abrangido por interdição.

2. Não se tendo o Tribunal a quo pronunciado sobre o momento em que o arguido terá entrado em território nacional, manifesto é que a decisão recorrida padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo sumário nº 1/10.0YEPBL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal o arguido A..., devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática de um crime de violação de medida de interdição de entrada e permanência ilegal em território nacional p. e p. pelo artigo 187º, nº 1 e nº 2 da Lei nº 23/2007 de 4.7.

Por sentença de 10 de Fevereiro de 2007 foi decidido absolver o arguido do crime que lhe foi imputado.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
a) A sentença ora posta em crise padece de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada porquanto na fundamentação de facto nada se diz quanto à presença do arguido em território nacional, constituindo tal facto um dos elementos do tipo objectivo do crime de violação de interdição de entrada p e p. pelo artº 187º do DL 23/2007, de 4 de Julho;
b) Ao considerar que o arguido devia beneficiar do princípio in dúbio pró reo e, simultaneamente, entender que agira sem culpa, a sentença recorrida incorre em contradição insanável da fundamentação;
c) Ao considerar, em audiência de julgamento, que o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, tendo decidido, a final, que agira sem culpa por ter actuado em erro sobre a qualificação normativa, incorreu a sentença proferida em erro notório na apreciação da prova;
d) Ao entender que existiu erro sobre a ilicitude não censurável, a decisão recorrida fez errada apreciação da prova e da lei;
Impunha-se que:
a) Se desse por provado que o arguido, estrangeiro, se encontrava em território nacional durante o período em que estava interdito de o fazer;
b) Que face à confissão integral e sem reservas feita em juízo se considerasse provado que, ao entrar em território nacional, o arguido actuou de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
c) Considerando-se, além do mais que, a existir qualquer erro sobre a ilicitude, tal erro é censurável;
d) Sendo, por isso, o arguido condenado.
Mostram-se violados os artºs 410º n.º 2, als. a), b) e c), 344º, e 127º do Cód. Proc. Penal, e art.º 17° do Cód. Penal.
Deve por isso a sentença proferida ser substituída por outra que se mostre em conformidade com as presentes conclusões e que condene o arguido como autor do crime de violação de medida de interdição de entrada, p. e p. pelo art.º 187º da Lei 23/2007, de 4 de Julho.
Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA I

Notificado, o arguido respondeu ao recurso interposto, concluindo o seguinte:
Não se verifica a insuficiência da matéria de facto porque a matéria de facto não é impeditiva de adequada subsunção jurídico-criminal.
Se tal é alegado devido a ausência de menção na sentença de um dos elementos do tipo objectivo, isto é, "(…) que no dia 22 de Janeiro de 2010, cerca das 16h o arguido se encontrava na Rua Dr. ... em .... Portugal." - vide fls. 3 do Douto requerimento de recurso - tal mais não é de que um lapso desculpável com a consequência única de ter de ser objecto de correcção (art. 380º n.º 1 al. b).
No que concerne ao erro na apreciação da prova com base na alegada "confissão integral e sem reservas" também não assiste razão ao Recorrente;
Em parte alguma da Douta sentença considera o Tribunal a quo, como facto provado a confissão integral e sem reservas por parte do arguido.
Tal menção existe unicamente na Acta de Audiência de Discussão e Julgamento e deve-se apenas a lapso material corrigível (no nosso entendimento) pelo Tribunal a quo ou ad quem.
A não ser assim, não se entenderia, dados os efeitos decorrentes da mesma mormente no que concerne à produção de prova complementar porque é que esta foi requerida (conforme decorre da mesma Acta) pelo Ilustre Subscritor deste recurso.
Ponto assente é que não houve confissão integral e sem reservas.
Quanto à alegada contradição insanável entre a fundamentação e a decisão fundada na violação do In Dúbio Pró Reo.
Afigura-se que o Recorrente pretende é insurgir-se contra a convicção que o Tribunal formou com base nas provas apresentadas, sobretudo no que concerne ás declarações do arguido, fazendo tábua rasa do Princípio da livre Apreciação da Prova ínsito no art. 127º do C.P.P. e da oralidade e imediação na produção da prova (art. 355º do C.P.P.).
Tal princípio. não é um meramente relativo à prova: é um princípio autónomo, é um princípio geral de direito, com a consequência de que quando se invoca significa que a prova foi feita: só que não foi suficiente, sendo que nada impede a sua aplicação para aferir da culpa.
No que ao erro sobre a ilicitude não censurável diz respeito: da análise da factualidade apurada. é indubitável que estamos perante um vício da consciência ética do agente.
A falta de consciência da ilicitude não é censurável porque o erro que se exprime no facto não se fundamente em qualidade desvaliosa da personalidade do arguido.
A questão da ilicitude concreta dos factos é controvertida: da notificação da interdição do arguido não ressalta qualquer referência expressa relativa aos efeitos do recurso, sendo coerente que os considerasse suspensivos, e, em consequência, que lhe assistisse o direito de deslocação ao território nacional.
O arguido actuou com o cuidado de uma pessoa portadora de recta consciência ético-jurídica, procurando informar-se sobre a proibição legal só frustrada no caso por circunstâncias especiais que o fizeram errar sobre a ilicitude do acto.
Termos em que e nos demais de direito. ressalvadas as correcções mencionadas, deve ser negado total provimento ao recurso.
FAZENDO-SE, ASSIM,. A COSTUMADA JUSTIÇA

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que acompanha o recorrente.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentos da Decisão Recorrida
Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto e de direito:
Fundamentação de Facto
Factos Provados:
Da acusação:
1 - No dia 19-10-2009, o arguido foi notificado de que lhe estava vedada a sua entrada em território nacional pelo período de três anos.
Mais se provou que:
2 - Consta do teor da decisão administrativa do SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de fls. 57, sob a epígrafe “Notificação”, o seguinte: “Aos dezanove do mês de Outubro de 2009, pelas 10h40, neste CCPA Castro Marim/Ayamonte ( ... ) notifico o supra mencionado cidadão do teor da decisão proferida, bem como dos respectivos fundamentos, mediante entrega de cópia e após esta lhe ter sido lida na língua árabe, que compreende perfeitamente. Notifico ainda o referido cidadão de que lhe está vedada a entrada em Território Nacional, pelo período de três anos e que será submetido a entidade competente a sua inscrição na Lista Nacional de Pessoas não Admissíveis. Fica ainda notificado que caso não seja acatada a determinação de interdição de entrada no país pelo período de 3 anos, fixada nos termos do art. 167º da Lei nº23/07, de 04 de Julho, incorre no crime de desobediência por força do art. 348°, nºl, al. b) do Cód. Penal. Desta decisão cabe recurso para sua Exª o Ministro da Administração Interna, a interpor no prazo de 30 dias nos termos do art. 166° do supracitado diploma legal ( ... )”.
3 - O arguido apresentou recurso hierárquico dirigido ao Ministro da Administração Interna, da decisão administrativa referida em 1) e 2), no dia 17 de Novembro de 2009.
4 - Nada consta no CRC do arguido.
5 - O arguido aufere cerca de 650€ pela prestação de serviços agrícolas, e paga cerca de 200€ de renda de um quarto.
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Factos Não Provados:
Que o arguido ao entrar em território nacional tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Motivação da convicção do Tribunal
A convicção do tribunal no que concerne aos factos provados e não provados resulta da conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, nas declarações e postura do arguido em tribunal, no teor da decisão administrativa de fls. 57, nos documentos de fls. 22 a 35, na ausência de outras informações complementares carreadas pelo SEF para os autos, tendo como pano de fundo os princípios da livre apreciação da prova, in dubio pro reo, e juízos de experiência comum.
No que respeita aos factos provados (factos sob os itens nº1 e nº2), a convicção do tribunal resultou, sobretudo das declarações do próprio arguido - corroboradas posteriormente pelo teor do documento de fls. 57 -, que reconheceu que lhe foi entregue cópia da decisão administrativa, a qual foi por si assinada, que sabia que a mesma lhe vedava a entrada em Portugal durante 3 anos, mas também que era concedido o prazo de 30 dias para interpor recurso dessa mesma decisão. Recurso hierárquico esse que o arguido, após contacto com advogada com escritório no Algarve, veio a interpor no dia 17 de Novembro de 2009.
Todavia, pese embora dúvidas não restem de que o arguido tenha sido regularmente notificado da decisão administrativa do SEF de fls. 57, no dia 19 de Outubro de 2009, porquanto lhe foi entregue cópia da mesma, após lhe ter sido lida por intérprete na língua árabe, já o mesmo não ocorre no que concerne à sua consciência do teor e efeitos da mesma e de incorria na prática do crime que lhe vem imputado, designadamente, dos concretos efeitos do recurso, uma vez que apenas se faz alusão na referida notificação à identificação do preceito legal respeitante ao recurso hierárquico (art. 167° da Lei 23/2007, de 04 de Julho), e a parte do seu conteúdo "prazo de 30 dias", e já não ao efeito do recurso propriamente dito "devolutivo".
Ora, as declarações do arguido no sentido de estar convencido que apenas corria o risco de violar o teor da decisão administrativa que lhe foi lida, no caso de, decorrido o período de 30 dias, não apresentar o competente recurso hierárquico junto do Ministério da Administração Interna; e, ainda, no sentido da advogada lhe ter transmitido que o recurso tinha efeitos suspensivos, o que nas suas palavras, o levou a ter pensado que ao interpor o recurso "estaria ainda legal e livre"; e finalmente no sentido de que se teria deslocado a Portugal apenas de forma esporádica (passagem) para, acompanhado do tio que reside no concelho de Pombal e domina a língua portuguesa, se deslocarem ao escritório da advogada no Algarve para apurar o “resultado” do recurso, são plausíveis de conduzir o tribunal a um estado de dúvida acerca da culpabilidade do arguido, considerando a idade do arguido (cerca de 24 anos), a sua origem (Marroquina), condição sócio-económica precária e humilde, e, os sinais externos que foi manifestando com a sua postura, em conjugação com as regras da experiência comum e juízos de normalidade e razoabilidade (note-se que o facto que se extrai do teor formal da decisão administrativa, não é a única conclusão plausível que se pode retirar para a conduta posterior do arguido). Pelo que, neste caso, tem de aplicar necessariamente, como critério de valoração da prova produzida, o princípio in dubio pro reo, ou seja, em caso de dúvida deve-se decidir a favor do réu. Trata-se de um corolário do princípio mais vasto da presunção de inocência, com assento constitucional no artigo 32° nº2 da Constituição da República Portuguesa, com o qual não se confunde.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência cria a “favor do acusado, um verdadeiro direito subjectivo, justamente o direito a ser considerado inocente até que se produza prova do contrário”1. O que implica, por um lado, que o esforço de produção e recolha de prova deve ser desenvolvido pela entidade que acusa, não sendo exigível ao arguido qualquer esforço para provar a sua inocência, e, por outro lado, exige a “existência de prova bastante que o desvirtue”2, ou seja, que afaste essa presunção com a certeza da culpabilidade do arguido. Por sua vez, o princípio in dubio pro reo é uma “norma de interpretação que se dirige ao juiz quando, pese embora o facto de se ter realizado uma actividade probatória mínima, essa prova não é suficiente para dissipar o estado de dúvida em que o tribunal se encontra quanto à culpabilidade do acusado.
A título complementar sublinhe-se, apenas, que os termos da notificação que constam no item nº 2 dos factos provados. Apenas advertem o arguido de que poderá incorrer na prática do crime de desobediência, nos termos do artigo 348º, nº 1, al. b) do Cód. Penal, não fazendo qualquer alusão sequer ao tipo legal pelo qual foi acusado e está a ser julgado (note-se que é o despacho de acusação que fixa o objecto do processo e a vinculação temática do tribunal).
Relativamente às condições pessoais de vida do arguido considerou-se as suas declarações e quanto aos seus antecedentes criminais atendeu-se ao certificado de registo criminal de fls. 50.
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Fundamentação de Direito
Enquadramento jurídico-penal dos factos:
Vem o arguido acusado da prática de um crime de violação da medida de interdição de entrada e permanência ilegal em território nacional, p. e p. pelo art. 187º, nº1 e 2 da Lei nº23/2007, de 04-07.
Como é sabido as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros em território português são reguladas pela Lei nº23/2007, de 04 de Julho, regulamentada pelo D. Reg. 84/2007, de 05/11.
Para efeitos deste regime normativo, considera-se estrangeiro todo aquele que não prove possuir a nacionalidade portuguesa.
Nos termos do nº 1 do artº 17°, para a entrada ou saída do território português os estrangeiros têm de ser portadores de documento de viagem válido reconhecido, sendo certo que a validade de tal documento deverá ser superior à da duração da estada conforme resulta do art. 9º do citado diploma. Ademais, para a entrada em território português devem os estrangeiros em regra serem titulares de visto válido e adequado à finalidade da deslocação concedida nos termos da referida Lei e ressalvadas as hipóteses decorrentes de convenções internacionais de que Portugal seja parte nos termos do artº 10º, nº1, nº3, al. b) do referido diploma.
A lei portuguesa recusa a entrada em território nacional aos cidadãos estrangeiros que não reúnam cumulativamente os requisitos legais de entrada (art. 32º, nº1, al. a), ou que não estejam habilitados com título de residência, prorrogação de permanência ou com o cartão de identidade previsto no nº2, do art. 87º. Al. b).
Nos termos previstos no artº 134° do regime jurídico que vimos seguindo, e sem prejuízo de disposições constantes de tratados ou convenções de que Portugal seja parte, são expulsos do território nacional os estrangeiros:
- que penetrem ou permaneçam ilegalmente no território português;
- que atentem contra a segurança nacional, a ordem pública ou os bons costumes;
- cuja presença ou actividades no País constituam ameaça aos interesses ou à dignidade do Estado Português ou dos seus nacionais;
- que interfiram de forma abusiva no exercício de direitos de participação política reservados aos cidadãos nacionais;
- ou que tenham praticado actos que, se fossem conhecidos pelas autoridades portuguesas, teriam obstado à sua entrada no País.
- Em relação ao qual existam sérias razões para crer que cometeram actos criminosos graves ou que tencionem cometer actos dessa a natureza.
Aqui chegados, e debruçando-nos agora directamente sobre o enquadramento penal do supra descrito regime, dispõe o art. 181º da Lei nº23/2007, de 04 de Julho, no seu nº1 que “Considera-se ilegal a entrada de cidadãos estrangeiros em território português em violação do disposto nos arts. 6º, 9º, e 10º e nos nºs 1º e 2º do art. 32º”; e o seu nº2 que “Considera-se ilegal a permanência de cidadãos estrangeiros em território português quando esta não tenha sido autorizada de harmonia com o disposto na presente lei ou na lei reguladora do direito de asilo, bem como quando se tenha verificado a entrada ilegal nos termos do número anterior”; e finalmente, o seu nº3 que “Considera-se ilegal o transito de cidadãos estrangeiros em território português quando estes não tenham garantida a sua admissão no pais de destino”.
Portanto, são elementos objectivos deste tipo legal de crime: tratar-se de um cidadão estrangeiro; e a sua entrada em território nacional durante o período por que essa entrada lhe for interditada.
Quanto aos elementos do tipo subjectivo, este ilícito apenas poderá ter lugar a título doloso, nos termos gerais dos artigos 13º e 14º, ambos do CP.
Transpondo estes parâmetros legais e doutrinais para os autos, com a conduta descrita de 1), o arguido preencheu o tipo objectivo do crime em análise, uma vez que se encontrava em território nacional durante o período por que essa entrada lhe for interditada.
Todavia, a nível do plano subjectivo, não se provou que o arguido soubesse que ao entrar em território nacional a sua concreta conduta era proibida e punida nos termos deste tipo legal de crime, e portanto, que tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente.
Assim, afigura-se-nos que o agente acreditou erroneamente que os efeitos da decisão administrativa continuavam suspensos, ou seja, que ao ter interposto recurso hierárquico da decisão administrativa que lhe aplicou a medida de interdição de entrada em território nacional pelo período de 3 anos, não tinha conhecimento dos efeitos efectivos do recurso previstos no art. 166º da lei que vimos acompanhando.
Portanto, no que concerne à culpa, e tendo por base a factualidade assente, podemos concluir que o arguido actuou em erro sobre o conhecimento da qualificação normativa agindo assim sem culpa, já que actuou sem consciência da ilicitude do facto, o que configure um erro sobre a ilicitude, que neste caso não é censurável - art. 17º, nº1 do CP. Tal erro sobre a ilicitude não lhe é censurável, já que a falta de consciência não ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente. Com efeito, é imperioso ponderar que o arguido é um jovem marroquino de 24 anos, inexperiente, de condição sócio-económica humilde, sem conhecimento da língua nacional e das leis portuguesas. Por outro lado, atento o teor do recurso hierárquico apresentado pelo arguido junto do Ministro da Administração Interna, afigura-se que a questão da ilicitude concreta subjacente à aplicação da medida de interdição de entrada em território nacional, poderia, em abstracto, revelar-se discutível e controvertida; e consequentemente tornar aos olhos do arguido igualmente controvertido os efeitos do referido recurso e a “legalidade” da sua passagem/presença em Portugal na pendência do mesmo.
Face ao exposto, conclui-se, assim, que o arguido não actuou, nos termos descritos, de forma livre, deliberada e conscientemente, pois não sabia que praticava actos criminalmente puníveis. Em suma, o arguido não revelou uma personalidade desconforme com o direito e, por isso, ético-juridicamente censurável.
Por conseguinte, terá o arguido que ser absolvido da prática do crime pelo qual vem acusado.
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III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.
E vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:
1. Se a sentença recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável de fundamentação e de erro notório na apreciação da prova;
2. Se, a existir erro sobre a ilicitude, deve o mesmo ser considerado censurável com a consequente condenação do arguido.

Apreciando:

Dos invocados vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal

Vejamos se a sentença recorrida padece dos alegados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável de fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, começando por citar a norma legal que os prevê.
Preceitua o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Imediatamente importa reter que estamos perante vícios cuja verificação deve resultar exclusivamente do texto da própria decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, sem apelo a elementos a ela externos, como o conteúdo da prova produzida.

A insuficiência alegada, a que se reporta este preceito é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (cfr. Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal, Volume II, em anotação ao artigo 410º).
Para fundamentar a existência do vício de insuficiência o recorrente invoca que na fundamentação de facto da sentença recorrida nada se diz sobre a presença do arguido em território nacional, constituindo tal facto um dos elementos do tipo de crime de violação de interdição de entrada.
Tal alegação não corresponde à realidade uma vez que na sentença recorrida, na fundamentação de facto e elenco dos factos não provados, vem consignado "que o arguido ao entrar em território nacional tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei". Como na factualidade consignada como provada nenhum referência existe relativamente à entrada do arguido em território nacional, tal significa a consideração como não provado de que o arguido tenha entrado em território nacional (caso tal referência constasse dos factos provados, já tal significaria apenas a falta de prova da actuação livre, voluntária e consciente com conhecimento da proibição e punição).
Mas para se alcançar se ocorre o mencionado vício de insuficiência importa analisar o tipo de crime em causa. O artigo 187º, nº 1 da Lei nº 23/2007 dispõe o seguinte "o cidadão estrangeiro que entrar em território nacional durante o período por que essa entrada lhe foi interditada …".
Para o preenchimento do tipo objectivo de tal ilícito necessário é que o agente seja cidadão estrangeiro, que tenha entrado em território nacional e que o tenha feito durante período de tempo abrangido por interdição.
Factualmente tal terá de ser traduzido por prova de que o arguido é cidadão estrangeiro, que lhe foi interditada a entrada em território nacional e que nela entrou em determinadas circunstâncias de tempo e lugar e no tempo de vigência da interdição.
Se é certo que o tribunal se pronunciou sobre a entrada em território nacional do arguido, considerando tal facto não provado, não se pronunciou sobre o facto da entrada no período da medida de interdição (sempre o arguido poderia nunca se ter ausentado de Portugal após o decretamento da interdição). O Tribunal teria que se pronunciar sobre o momento em que o arguido entrou em território nacional ou, pelo menos, estabelecer que essa entrada ocorreu em período de tempo não concretamente determinado, mas no período de interdição, para o considerar provado ou não provado e, consoante a resposta positiva ou negativa, proceder à subsunção jurídica pertinente.
Assim, não se tendo o Tribunal a quo pronunciado sobre o momento em que o arguido terá entrado em território nacional, manifesto é que a decisão recorrida padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, como decorre do disposto no artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal, preceito de que resulta a obrigação de pronuncia sobre os factos relevantes para a tipificação da conduta imputada como crime.
Sem embargo do exposto outro vício se pode detectar na consignação como não provado do facto de o arguido ter entrado em território nacional como adiante veremos.

No que concerne à alegada contradição insanável de fundamentação, segundo Simas Santos/Leal-Henriques em Código de Processo Penal, II Volume 2ª edição, em anotação ao artigo 410º do Código de Processo Penal, consiste no facto de se afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e ou qualidade, sendo insanável a contradição que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência, que não possa ser esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Consignada a noção fundamental do que seja o vício invocado, vejamos o que o recorrente alega neste domínio. Segundo este, existe contradição insanável de fundamentação porque na sentença recorrida o tribunal a quo simultaneamente considerou que o arguido deve beneficiar do princípio in dubio pro reo e entendeu que o mesmo agiu sem culpa.
Apenas na motivação, já não nas conclusões desta, refere o recorrente a existência de contradição porque, ao contrário do que consta da fundamentação de facto, consta da fundamentação de direito que o arguido preencheu o tipo objectivo do crime imputado, uma vez que se encontrava em território nacional durante o período por que essa entrada lhe foi interditada.
Com efeito, na fundamentação da convicção do tribunal consignada na sentença recorrida refere-se o recurso ao princípio in dubio pro reo para justificar a falta de prova do dolo e na fundamentação de direito invoca-se o disposto no artigo 17º, nº 1 como fundamento para a exclusão do dolo.
Se o fundamento para a falta de dolo foi o dito princípio probatório, não faz efectivamente sentido que, para o afastar, se recorra ao disposto no artigo 17º, nº 1 do Código Penal (erro sobre a ilicitude) o que pressuporia a prova positiva de que o arguido agiu sem conhecimento dos elementos normativos do tipo de crime e das circunstâncias que determinaram essa falta de conhecimento, das quais resultaria a sua censurabilidade ou não censurabilidade.
A falta de prova do dolo nos termos que se encontram consignados na sentença recorrida importaria pura e simplesmente a falta de prova de um dos elementos do tipo de crime e a consequente absolvição do arguido sem recurso ao regime do artigo 17º, nº 1 do Código Penal.
Mas análise de eventual contradição insanável na decisão recorrida deve analisar-se de uma forma mais lata.
Em primeiro lugar o Tribunal a quo consigna como não provado que o arguido tenha entrado em território nacional para depois, na fundamentação da sua convicção, referir precisamente o contrário, que o arguido entrou em território nacional, como o próprio declarou, alegando que o fez para se deslocar ao escritório da sua advogada (além de contradição revela-se também por essa via erro notório na apreciação da prova posto que o raciocínio exposto levaria a uma convicção positiva sobre o facto de o arguido ter entrado no território nacional na vigência de medida de interdição).
Esta é a contradição de base que começa por inquinar toda a decisão recorrida. Pela leitura da exposição factual efectuada pareceria que o tribunal não se tinha convencido de que o arguido, após a decisão de expulsão, teria abandonado o território nacional e só assim faria sentido a convicção negativa expressa porque se o arguido foi julgado em Portugal e detido em Portugal inegável é que cá se encontrava.
Mas pela fundamentação da decisão factual já é manifesto que o Tribunal se convenceu que o arguido entrou em Portugal no período em que estava interdito de o fazer.
Também o recurso ao principio in dubio pro reo para justificar a falta de prova do dolo e por outro lado o recurso a factos que não constam como provados para justificar a aplicação do regime previsto no artigo 17º, nº 1 do Código Penal, para além de manifesta confusão conceptual que se poderia reconduzir a um simples erro de direito, revela uma indefinição entre o que o tribunal teve em mente dar como não provado genericamente o dolo (elementos factuais e normativos do tipo de crime) ou apenas estes últimos (falta de consciência da ilicitude). Claro que esta questão seria desprovida de utilidade, partindo do pressuposto da não prova da entrada do arguido em território nacional. Por isso que se começou por salientar que é essa primeira contradição que vicia toda a decisão (do mesmo modo a insuficiência apontada).

Quanto ao alegado erro notório na apreciação da prova, trata-se daquele que é de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum e pode traduzir-se na violação do princípio contido no artigo 127º do Código de Processo Penal (o tribunal dá como provado facto que afronta ostensivamente as regras da experiência).
Como é sabido, o conceito de erro notório na apreciação da prova tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. por ex. Ac. do S.T.J. de 6.4.94 in Col. Jur. Acs. do STJ, II, tomo 2, 186).
Na definição de M. Simas Santos e M. Leal Henriques em Código de Processo Penal Anotado, Volume II, 2ª edição, pag. 740, existe erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão. Mais existe esse erro quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (cfr. também Ac. do S.T.J. de 13.10.99 in C.J., Ano VII, Tomo III, pag. 184 entre outra jurisprudência abundante).
Segundo o recorrente revela a existência de erro notório ter-se considerado na audiência de julgamento que o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado tendo-se, a final, considerado que agiu sem culpa por ter actuado em erro sobre a qualificação normativa.
Na sentença recorrida em nenhum momento se menciona que o arguido tenha confessado integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado e que tal meio de prova tenha servido para formar a convicção do Tribunal. A referência que existe a essa meio de prova consta exclusivamente da acta de audiência de discussão e julgamento.
Mas, como começou por se acentuar, o vício de erro notório na apreciação da prova diz exclusivamente respeito à sentença enquanto texto escrito e é o que resulta desse texto sem recurso a outros elementos do processo.
Logo, o alegado nunca poderia revelar o vício de erro notório na apreciação da prova.
O facto de na acta constar a existência de confissão integral dos factos e de tal meio de prova não ter sido considerado na sentença recorrida poderia sim revelar um erro de julgamento da matéria de facto e motivar em sede de recurso a impugnação da matéria de facto com esse fundamento, via de recurso que o recorrente não utilizou.
Mas já revela a existência de erro notório na apreciação da prova o facto de o Tribunal na fundamentação da sua convicção ter mencionado que o arguido referiu que efectivamente entrou em território nacional e no período de interdição e, não obstante, ter consignado como não provado tal facto que o próprio arguido não contesta e que o Tribunal não vislumbrou motivo para depreciar nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.

Porque os vícios apontados não são supríveis por este Tribunal, desde logo porque não ocorreu impugnação da matéria de facto que permita a sua alteração com recurso ao conteúdo da prova oral produzida, os vícios apontados têm como consequência que o processo deva ser reenviado para novo julgamento, como decorre do disposto no artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Prejudicada fica a apreciação da última questão suscitada pelo recorrente.
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IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento recurso interposto e em consequência ordenar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do artigo 426º, nº 1 e 426º-A do Código de Processo Penal, mantendo-se a forma do processo.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)

José Eduardo Fernandes Martins