Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4067/07.2TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INVENTÁRIO
TESTAMENTO
LEGADO
BEM COMUM
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1317, 1685, 2168, 2169, 2264, 2317 DO CC
Sumário: Se cada um de dois cônjuges tiver feito testamento em que legou, ao mesmo filho, o mesmo bem comum com o consentimento do outro cônjuge, por conta da quota disponível com o excesso a imputar na legítima, tal só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer, porque a partir daí o segundo testamento fica ineficaz.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              Neste processo de inventário procede-se à partilha por morte de dois cônjuges que foram casados num regime de comunhão geral de bens.

              Ela morreu (em 2003) primeiro que ele (que morreu em 2007).

              Ambos deixaram testamentos.

              O da Srª M L (…) dizia: lega a sua filha, M L (…) a fracção autónoma x. Que faz este legado pelas forças da sua quota disponível, sendo o excesso, se o houver, imputado na respectiva legítima. E o marido, que era segundo outorgante na escritura respectiva, disse: que presta a sua mulher o necessário consentimento para este acto.

              No testamento do marido, Sr. (…), feito no mesmo dia e lugar, as posições invertem-se: ele lega aquela fracção e ela consente.

                                                                 *

              A sentença destes autos homologa uma partilha feita nestes termos no que a esta questão respeita: acha-se o valor da herança da inventariada e depois o da quota disponível. E imputa-se nesta quota metade do valor da coisa legada. O mesmo se faz em relação à partilha por óbito do marido ocorrido depois: acha-se o valor da sua herança e depois o da quota disponível e imputa-se nesta quota metade do valor da coisa legada.

              Um dos herdeiros recorreu desta sentença, terminando as respectivas alegações – em que pede que se revogue a sentença e se altere o despacho determinativo da partilha, imputando-se o valor do legado, pela totalidade, na meação da inventariada - com as seguintes conclusões:
         1. Na espécie sucessória em que há dois testamentos de marido e mulher, de igual conteúdo, com um legado pela quota disponível, a coisa legada tem de imputar-se, na partilha, não por metade a cada um dos cônjuges, mas antes pela totalidade na meação do cônjuge que primeiro falecer.
         2. Na circunstância dos autos, dos dois testamentos, face à ordem de decesso dos testadores, só pode considerar-se o testamento da inventariada, por ser o único que produziu efeito.
         3. Nesse caso, o testamento do cônjuge sobrevivo não conta, por ter caducado, posto que o fim visado por ele consumou-se com o testamento da mulher, além de a coisa não pertencer sequer ao disponente na data da sua morte, isto é, ao tempo da abertura da respectiva sucessão.
         4. Em suma, por outras palavras, assim como a filha não pode receber do pai a coisa que já recebeu da mãe, também o pai não pode transmitir à filha por morte uma coisa que já pertence à filha nessa data.
         Normas violadas: arts. 2168, 2169 e 2317, todos do Código Civil.

                                                                 *

              A legatária contra-alegou, dizendo que o despacho que determinou a partilha era correcto.                     

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se cada um de dois cônjuges tiver feito testamento em que legou o mesmo bem comum ao mesmo filho com o consentimento do outro, por conta da quota disponível com o excesso a imputar na legítima, tal deve operar relativamente a cada testamento, ou só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer?

                                                                 *

              Os factos que têm relevo para a questão e que estão provados nos autos são os constantes dos cinco primeiros parágrafos deste acórdão.

              Posto isto:

              Se bem se reparar, a partilha operada nos termos do despacho em causa, implica, em termos práticos, o entendimento de que cada um dos inventariados legou metade da coisa em causa.

              Ora, não foi isso o que aconteceu. O que cada um deles fez, como decorre do respectivo testamento, na parte transcrita acima, foi legar a coisa toda, com o consentimento do outro, como a lei permite [art. 1685/2c) e 3b) do Código Civil = CC]. Com a consequência de que o testamento do cônjuge que faleceu depois, já não poderia ter eficácia, pois que a coisa já tinha sido adquirida pela morte do primeiro [art. 1317/b) do CC] – ineficácia, pois, e não caducidade, como pretende o recorrente, ao invocar a norma do art. 2317 do CC.

              Isto seria muito mais claro se, por morte da Srª. L (…), se tivesse procedido logo à partilha da sua herança.

              O legado seria todo imputado na sua herança, nos termos do testamento: primeiro na quota disponível, depois na legítima da legatária e o excesso sobre a soma destas reduzido por inoficiosidade (arts. 2168 e 2169, ambos do CC, normas por isso bem invocadas no despacho recorrido, embora sem inteira aplicação nos termos em que o foram).

              Por morte do Sr. A (…) já o bem seria da filha e nenhuma razão haveria para o ter em consideração.

              Tudo isto é também explicado no acórdão do TRG de 28/09/2006 (1711/06-1 da base de dados do ITIJ), secundado por Paulo Sobral Soares do Nascimento, na anotação a tal acórdão sob o título de: Legado de bem comum do casal por parte de ambos os cônjuges e ineficácia da disposição testamentária, publicada nos Cadernos de Direito Privado, nº. 30, Abril / Junho 2010, págs. 31 a 40), num caso que tem coincidência parcial com os dos autos, embora lhe acresçam particularidades. A anotação só discorda do acórdão do TRG na questão do momento em que a vontade dos dois testadores adquire relevância, o qual, segundo o anotador, que aqui se segue, é o da eficácia do primeiro testamento.

              As razões invocadas pela legatária, em defesa do despacho recorrido, limitam-se a assegurar a legitimidade do legado de bem comum por um dos cônjuges, o que não é algo que esteja em discussão, pelo contrário, bem como a necessidade de redução do legado por inoficiosidade, o que se está a aceitar, como se vê e se explicará ainda, mais à frente, mas que em nada releva a favor da legatária, pois que qualquer redução de um legado nunca pode favorecer os legatários….

                                                                 *

              Concretizando o que antecede (a fim de conferir a sua correcção e de discutir em termos práticos a questão colocada), a forma à partilha deve operar-se do seguinte modo:

              Soma-se o valor de todos os bens, tendo em conta o acordo e a avaliação dos imóveis.

              O total obtido (= 132.900€) será dividido em duas partes iguais (cada de 66.450€), sendo que uma constitui a meação/herança da inventariada e a outra a meação do inventariado.

              A herança da inventariada é dividida por três, para se achar a quota disponível – arts. 2156, 2159 e 2162, todos do CC (com o resultado de 66.450€ : 3 = 22.150€).

              Na quota disponível imputa-se o valor do legado (como determinado no testamento), que é de 40.000€, havendo um excesso de 17.850€.

              A quota indisponível, que é de 44.300€ (= 22.150€ x 2), divide-se em 4 partes iguais, por tantos serem os herdeiros da inventariada (ars. 2157 e 2139, ambos do CC), cabendo a cada um deles 11.075€. Na parte que cabe à filha a quem foi feito o legado, imputa-se o excesso do legado sobre a quota disponível.

              O valor do legado feito à filha, fica reduzido à soma da quota disponível com o da sua legítima, porque o excesso sobre esta soma atingiria a legítima objectiva, sendo por isso inoficioso (arts. 2168 e 2169 do CC).

              No caso dos autos temos pois, por expressa vontade da testadora, a mistura de um pré-legado (“quando a um herdeiro são atribuídos determinados bens para além do seu quinhão” – art. 2264 do CC) com um legado por conta da legítima (a atribuição, pelo testador, “de um ou mais objectos a certo herdeiro por conta” da sua legítima; “os bens designados não acrescem à quota, entram no seu conteúdo; o herdeiro não recebe a quota mais os bens tais e tais; recebe a quota preenchida por estes”: arts. 2163 e 1678/2d), ambos do CC – as expressões entre aspas são citações do Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, de Galvão Telles, 4ª edição, Coimbra Editora, 1980, págs. 168/169; no mesmo sentido, vejam-se as lições de Carvalho Fernandes, Quid Juris, 1999, págs. 389 e 451/452, respectivamente).

              Ou seja, a testadora fez aquilo que se tem visto defender doutrinalmente: “O legado feito a um dos legitimários, por conta da quota disponível do de cujus, consiste num pré-legado. Trata-se assim de uma deixa precípua ao cálculo das quotas hereditárias, sendo que o beneficiário é, igualmente, um herdeiro, que, à sua quota (idêntica à dos demais herdeiros), soma um legado. […] A imputação na quota disponível tem a consequência de o beneficiário alcançar uma posição privilegiada na sucessão. A solução não envolve, obviamente, qualquer fuga à eventual redução por inoficiosidades, uma vez que o legado está sempre sujeito a tal solução, tendo em vista a composição quantitativa da legítima […]. Mas, a não se suscitarem problemas de inoficiosidade [mesmo havendo questões de inoficiosidade, a questão pode ser resolvida, como aponta a doutrina, mediante a imputação subsidiária da deixa inoficiosa na legítima do obrigado à redução, com o que se obtém um resultado prático equivalente ao da redução], o beneficiário terá direito, para além do legado, à sua legítima e ao seu quinhão na quota disponível (caso esta se encontre vaga) […]” (anotação citada de Soares do Nascimento, págs. 34/35). 

              No caso, a filha herdeira legatária, vai receber a totalidade da quota disponível (porque o valor do legado a excede) e a sua legítima (preenchida por parte daquele excesso). O resto do excesso iria ofender a legítima objectiva, isto é, a parte da legítima dos seus irmãos, tendo portanto que ficar reduzida ao valor da soma referida.

              Teve que se fazer este excurso todo, nesta parte, devido à posição assumida pelo recorrente nas suas alegações e no requerimento em que sugeria a forma à partilha.

              Ele aqui diz que “a legítima divide-se por quatro, número dos herdeiros, sendo o quociente a quota de cada um, cônjuge e filhos (art. 2139.º-1), descontando à filha ML (…) o excesso do legado já imputado na legítima”.

              E isto tem reflexos nas contas finais pois que, ali, ele faz referência que o quinhão final de cada herdeiro não legatário será de 38.762€, mas, como se verá já abaixo, o valor correcto é de 36.916,67€.

              Mas a posição do recorrente não tem suporte legal. O excesso do legado é imputado, na medida do possível, na legítima da filha herdeira legatária e não, como quer o recorrente, “descontando à filha [legatária] o excesso do legado já imputado na legítima”….

                                                                 *

              Assim: o marido tem direito a 66.450€ (meação) + 11.075€ (quinhão hereditário) = 77.525€.

              Os 2 filhos não legatários recebem 11.075€ cada um.

              A filha legatária recebe 22.150€ (do legado) + 11.075€ (do quinhão hereditário) = 33.225€.

                                                                 *

              Note-se que no despacho determinativo à partilha não se está a proceder ao preenchimento do que cabe a cada um dos interessados, mas sim ao cálculo em abstracto do respectivo valor. Por isso, não tem qualquer relevância, aqui, o facto de a filha legatária ter direito a exigir o bem em espécie.

                                                                 *  

              A herança do marido, inventariado, que é assim de 77.525€, divide-se em 3 partes iguais, por tantos serem os seus herdeiros (arts. 2157 e 2139, ambos do CC), recebendo cada um deles 25.841,667€.

                                                                 *

              Das duas heranças, cada um dos 2 filhos não legatários recebe 11.075€ + 25.841,67€ = 36.916,67€.

              A filha legatária recebe: 22.150€ + 11.075€ + 25.841,66€ = 59.066,66€. 

                                                                 *

              O filho (…) recebeu bens no valor de 30.833,33€. Tem a receber tornas no valor de 6.083,34€.

              A filha (…) recebeu bens no valor de 30.833,33€. Tem a receber tornas no valor de 6.083,34€.

              A filha (…) recebeu bens no valor de 71.233,34€. Tem a pagar tornas de 12.166,68€.

                                                                 *

              Sumário: se cada um de dois cônjuges tiver feito testamento em que legou, ao mesmo filho, o mesmo bem comum com o consentimento do outro cônjuge, por conta da quota disponível com o excesso a imputar na legítima, tal só deve operar relativamente ao testamento do cônjuge que primeiro falecer, porque a partir daí o segundo testamento fica ineficaz.

                                                                 *

              Pelo exposto, e embora por fundamentos não inteiramente coincidentes, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho determinativo da partilha (o que implica, por arrastamento, a anulação dos subsequentes termos, incluindo da sentença de partilha), substituindo-se o mesmo por outro que imputa a totalidade da coisa legada na herança da inventariada, primeiro na quota disponível e depois na legítima da legatária, nos termos concretizados acima.

              Custas pelo herdeiro recorrente e pela legatária, na proporção do decaimento.

            


Pedro Martins ( Relator )
 Emídio Costa
 Gonçalves Ferreira