Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
762/10.7TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 05/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 68.º DO CPP E 673.º DO CPC
Sumário: O despacho de admissão de assistente não faz caso julgado formal em relação a questões que não conhece directamente, como é o caso da verificação, ou não, dos pressupostos para o exercício da acção penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 762/10.7TAFIG do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz a ofendida A..., constituída assistente, deduziu acusação contra o arguidoB..., imputando-lhe a prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal.

Em 2.2.2010 a ofendida apresentou queixa que deu origem ao processo NUIPC n.º 97/10.5PBFIG que foi arquivado por falta de constituição de assistente.

Em 27.07.2010 a ofendida apresentou nova queixa que deu origem a estes autos, relativa aos mesmos factos, tendo-se constituído assistente. Os autos prosseguiram os trâmites legais, foi deduzida acusação particular (não acompanhada pelo Ministério Público) bem como pedido cível, foi recebida a acusação particular e agendada data de audiência de discussão e julgamento.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento a que se seguiu a prolação de sentença em que, seguindo-se o entendimento do Acórdão de fixação de Jurisprudência do STJ de nº 1/2011 no sentido de que “Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição de assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º2 do art. 68.º do CPP”, se decidiu julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido e ordenar o oportuno arquivamento dos autos.

Inconformada, recorreu a assistente, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.

Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que concluiu pela ilegitimidade da recorrente em dar início ao presente procedimento criminal, em virtude do facto de a mesma ter requerido a sua constituição de assistente em momento posterior ao arquivamento prévio de uma sua primeira participação criminal contra o aqui arguido, fundado no incumprimento do prazo previsto no artigo 68º nº 2 do Código de Processo Penal.

2.

Na verdade, nos termos de tal sentença, o tribunal recorrido erigiu esta mesma questão à categoria de «Questão Prévia», preclusiva de qualquer outro juízo que decidisse sobre o mérito da acusação entretanto deduzida.

3.

Como elemento essencial de tal decisão, que impediu o conhecimento da questão principal, encontra-se a questão da obrigatoriedade de adesão do tribunal a quo ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, nº 1/2011.

4.

Ora, desde logo, conveniente será referir que, com tais sinais, e conforme resulta dos autos, patente se mostra que o pedido de constituição de assistente, formulado pela recorrente, teve lugar em altura anterior à prolação de tal aresto.

5.

Altura essa em que ainda era existente a divergência relativa ao carácter que deveria ser atribuído ao prazo exposto no já referido n° 2 do artigo 68º do Código de Processo Penal.

6.

Não obstante ter o Supremo Tribunal de Justiça declarado a natureza peremptória de tal prazo, no caso de crimes dependentes de acusação particular, o certo é que, existem ainda ponderosas razões que nos levam a discordar, concluindo, outrossim, pelo carácter meramente ordenatório do mesmo.

7.

Na verdade, sempre diremos que não será lícito o entendimento segundo o qual se admita que uma certa norma de carácter meramente adjectivo pode estabelecer prazos mais curtos de prescrição de um direito - substantivamente previsto - em virtude do seu não atempado exercício.

8.

Ou seja, aderindo mesmo a tudo quanto é melhor dito pelos Meritíssimos Conselheiros que votaram «vencido» em tal acórdão uniformizador (e remetendo ainda, brevitatis causa, para o que no corpo do presente recurso se encontra exposto a este respeito), sempre diremos que ao ofendido será sempre lícita a sua constituição como assistente, nos casos de crimes dependentes de acusação particular, dentro do prazo de seis meses a contar da prática dos factos ou do conhecimento dos seus sujeitos.

9.

De qualquer modo, sempre se diga que, em boa verdade, nem é esse o verdadeiro problema aqui em causa.

10.

Na verdade, e sem prejuízo de o tribunal recorrido ter concluído pela necessidade de obediência ao que o Supremo Tribunal de Justiça consagrou em tal acórdão, o certo é que a mesma não lhe seria, neste momento, devida.

11.

Tudo porque, convém relembrar, aos presentes autos coube um efectivo due process, composto de decisões intermédias, não contestadas, e, por aí, TRANSITADAS EM JULGADO.

12.

Valendo o mesmo por dizer que, inexistindo à altura em que a recorrente requereu a sua constituição como assistente, qualquer tomada de posição uniformizadora, vinda do Supremo Tribunal de Justiça, foi a mesma admitida a intervir nos presentes autos naquela mesma qualidade.

13.

Decisão essa cujo mérito, logo aí - em que era latente a divergência sobre a natureza do prazo ínsito no n° 2 do artigo 68° - não foi sequer atacado; fosse pelo Ministério Público, fosse pelo próprio arguido.

14.

Desta feita, e tendo presente o facto de não se poder fazer equivaler um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência a um qualquer Assento - na acepção que lhe era dada, lá está, pelo revogado artigo 2° do Código Civil -, não se entrevê como teria ainda sido possível ao tribunal recorrido, na resolução desta suposta «questão prévia», revogar um despacho, proferido por Juiz de instrução, já transitado em julgado.

15.

A admissão da eficácia retroactiva e revogatória relativamente à figura dos Acórdãos Uniformizadores da Jurisprudência será sempre algo que, se a um passo põe em causa toda a integridade do sistema e hierarquia judiciárias, já a outro promove o «efeito-surpresa» das decisões, o «non-liquet» decisório e a própria denegação de justiça;

16.

Justamente porque será assim sempre possível, lançando mão de tais arestos, revogar decisões anteriores, já transitadas em julgado - que estabeleceram certos parâmetros de actuação e legitimação dos sujeitos processuais - e precludir, logo de seguida, a expectativa dos mesmos em «ouvirem o direito» que ao seu caso caberia.

17.

Se é certo que às instâncias cumpre sempre seguir, na falta de pressupostos argumentativos não valorados anteriormente, as orientações dadas pelos tribunais superiores, certo será também que àquelas não é lícito, a coberto de tal dever, obnubilar o caso julgado já anteriormente formado, nos processos de que se ocupam.

18.

A concordância prática que aqui teria sido exigida ao tribunal recorrido passaria sempre pela obrigatoriedade do mesmo concluir, de acordo com todo o circunstancialismo processual concreto, pela não aplicabilidade do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.

19.

Deste modo, foram violadas, entre outras, por erro de aplicação e interpretação, as normas dos artigos 68° nºs 2 e 4, 268° nº 1 al. f), 437° e seguintes do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE:

Deve o presente recurso ser declarado procedente, por provado, e a decisão ora posta em crise, substituída por outra que declare legítima a constituição como assistente da ora recorrente e ordene a prol acção de decisão final, quanto à matéria de facto e de direito, por parte do tribunal recorrido.

ASSIM FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS A ESPERADA E COSTUMADA JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos:

Coloca-se nestes autos a questão prévia de saber se o presente procedimento criminal poderia ou não ter lugar quando havia sido objecto de arquivamento prévio por falta de constituição de assistente e averiguar em que medida é válida a posterior apresentação de nova queixa relativa aos mesmos factos, ainda que dentro do prazo legal para o efeito.

A questão ora em apreço foi já analisada pelo STJ, tendo sido fixada Jurisprudência relativa a tal matéria no Acórdão do STJ de 1/2011, sendo tal entendimento aqui sufragado, não havendo qualquer razão ponderosa ou excepcional que determine a discordância com a jurisprudência assim uniformizada.
Efectivamente e “embora não seja vinculativa, a jurisprudência uniformizada do STJ tem a força persuasiva que é - e deve ser - inerente ao respeito pela sua qualidade e pelo seu valor intrínseco, devendo, por isso, ser ponderada e, em princípio, respeitada, a não ser que existam novos factos, argumentos, razões ou circunstâncias que, não tendo sido considerados no acórdão uniformizador, possam justificar uma nova e diferente decisão. A não aplicação da doutrina uniformizada pelo STJ não pode basear-se na mera discordância da interpretação da lei que lhe esteve subjacente e com base nos mesmos argumentos que já eram utilizados anteriormente pela corrente jurisprudencial que defendia posição diversa daquela que veio a ser acolhida no acórdão uniformizador. A não aplicação daquela doutrina terá que ser sempre devidamente fundamentada com base em novos argumentos e novas circunstâncias que justifiquem a sua desconsideração. Assim, inexistindo quaisquer razões ou circunstâncias específicas que justifiquem diverso procedimento, deverá ser acolhida nos autos a doutrina fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.” – (cfr. Ac do TRP de 13.10.2010, apelação n.º 2716/08.4TBPVZ-B.P1-3.ª secção)

Efectivamente há prazos e regras processuais que determinam e conformam a defesa de direitos, não podendo os processos arquivados renascer das cinzas salvo em casos excepcionais e balizados por pressupostos exigentes que salvaguardem determinados direitos num quadro de peso e contrapeso de interesses preponderantes.

 Assim, o prazo para a constituição de assistente (art. 68.º/2 CPP) é efectivamente um prazo peremptório, o que resulta não só da letra da lei como igualmente do seu espírito.

No teor literal do art. 68.º/2 do CPP nada permite concluir que fixando-se um determinado para a prática de um determinado acto, o mesmo acto poderá ser praticado noutro momento ou prazo que não o aí indicado, de igual modo e de um ponto de vista sistemático e tomando portanto como pano de fundo o próprio sistema processual penal, nenhum outro preceito legal permite admitir tal possibilidade ou operar sob tal pressuposto, por último e tendo em conta o espírito da lei - a essência ontológica da norma enquanto tal e nessa medida o factor que deve reger a interpretação de uma norma e prevalecer sobre qualquer dúvida - reiterando o supra exposto a respeito dos prazos e regras processuais, considera-se que também por esta via se encontra excluída a possibilidade de entender o prazo processual previsto no art. 68.º/2 CPP como um prazo ordenador. A intenção do legislador com esta norma é a de estabelecer limites temporais tidos por razoáveis para o exercício de um determinado direito – de constituição de assistente – a fim de evitar uma pendência indefinida de processos relativos a crimes particulares, ou seja, a ratio legis aqui subjacente é idêntica à ratio legis que subjaz à fixação de um limite temporal para a apresentação de queixa, sendo os valores protegidos os mesmos.

Face ao exposto não poderá a assistente que antes o não fez em prazo legal vir agora constituir-se enquanto tal e assim apresentar nova queixa e deduzir acusação particular pelos mesmos factos. A possibilidade de renovação da queixa não é, de resto, admissível em termos gerais, estando prevista para casos pontuais, especialmente previstos na lei.

Deste modo concorda-se com o Douto entendimento plasmado no referido acórdão nos termos do qual se conclui nos seguintes termos: “Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição de assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º2 do art. 68.º do CPP.”

Vertido tal entendimento para o caso em apreço resta concluir pela inadmissibilidade legal do presente procedimento criminal uma vez que a assistente não poderia ter apresentado nova queixa pelos mesmos factos quando antes deixou caducar tal direito.


***

            III. Apreciação do Recurso

É sabido que o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se o despacho que admitiu a recorrente como assistente está abrangido por caso julgado formal, não sendo alterável por força de Acórdão de Uniformização de jurisprudência posterior;

- Mesmo que assim não se entenda se deve decidir-se pela não aplicação da jurisprudência uniformizadora do Acórdão nº 1/2011, devendo entender-se que o prazo para constituição como assistente tem natureza meramente ordenadora.

Apreciando:

O recorrente depois de apresentar queixa pela segunda vez (o processo a que deu origem a primeira queixa foi arquivado porque não se constituiu como assistente e se trata de crime de natureza particular) foi admitido como assistente.

Na tese do recorrente o despacho da sua admissão como assistente transitou em julgado e não podia ser contrariado pela decisão recorrida, ainda que proferida ao abrigo de acórdão uniformizador de jurisprudência.

A questão do trânsito em julgado/caso julgado formal do despacho de admissão como assistente tem sido debatida. Desse debate dá nota Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao artigo 68º com citação jurisprudencial, expressando-se no sentido no sentido de que a admissão como assistente na fase de inquérito apenas faz caso julgado rebus sic stantibus, sendo alterável caso se verifique uma alteração do objecto do processo. A justificação da possibilidade de alteração desse despacho radica, pois, no facto de nessa altura ainda não se encontrar fixado o objecto do processo e de poderem ocorrer alterações que contendam com o estatuto do assistente já admitido.

Mas outras razões se podem encontrar para a justificação da natureza alterável do despacho de admissão como assistente, mormente nos crimes de natureza particular em que tal tem implicações no exercício da própria acção penal, sendo seu pressuposto.

Ora o despacho de admissão de assistente têm uma natureza quase tabelar que apenas declara a legitimidade de quem requer essa constituição, não apreciando directamente se se encontram verificados ou não os pressupostos de processibilidade.

Foi precisamente a falta de um pressuposto de processibilidade que foi conhecido na decisão recorrida, a falta de constituição no tempo devido como assistente que obsta ao exercício da acção penal.

Ora, o caso julgado forma-se nos precisos limites e termos em que julga como se preceitua no artigo 673º do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal). A própria definição de caso julgado formal constante do citado preceito importa a conclusão de que o despacho de admissão de assistente não faz caso julgado formal em relação a questões de que não conhece directamente, como é o caso da verificação ou não dos pressupostos para o exercício da acção penal.

Quer se entenda que não ocorre caso julgado, pura e simplesmente, ou que apenas se forma caso julgado rebus sic stantibus, certo é que tal despacho é alterável por decisão posterior que aprecie a verificação dos pressupostos do exercício da acção penal.

Aliás, também o despacho que recebe a acusação pela sua natureza tabelar não forma caso julgado quanto aos pressupostos processuais como se decidiu no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003.

Perante o exposto não se reconhece a existência de caso julgado formal que obstasse à prolação da decisão recorrida.

A decisão recorrida, fundando-se no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2011 que decidiu fixar jurisprudência no sentido de que "em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição de assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º2 do art. 68.º do Código de Processo Penal" concluiu pela inadmissibilidade legal do procedimento criminal uma vez que a assistente não poderia ter apresentado nova queixa pelos mesmos factos quando antes deixou caducar tal direito e consequentemente ordenou o arquivamento dos autos.

O recorrente pugna por decisão de sentido contrário.

Porém, como resulta do preceituado no artigo 445º, nº 3 do Código de Processo Penal, a decisão que resolva conflito de jurisprudência não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada. O que significa que este Tribunal, ainda assim, poderia decidir em apoio da tese do recorrente, mas com o especial dever de fundamentar a sua divergência em relação ao acórdão uniformizador e invocando argumentos que não tivessem sido considerados na decisão uniformizadora.

Não vemos, contudo, razões sustentáveis para divergir da jurisprudência produzida pelo dito Acórdão de uniformização, antes a ela aderimos, sendo certo que o recorrente não fornece argumentos sobre os quais esse acórdão se não tenha pronunciado.

Em consequência, não merece provimento o recurso interposto.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pela assistente, mantendo a decisão recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso vai a recorrente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC.


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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
 José Eduardo Fernandes Martins