Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5831/18.2T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 06/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.18, 186 Nº1, 186 Nº2, 186 Nº3 A) E B), 186 Nº5 CIRE, 29 C COMERCIAL, 123 CIRC, LEI Nº 158/2009 DE 13/7
Sumário: I - Os factos previstos alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor.

II - O n.º 2 do artigo 186.º do CIRE não só não requer, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção prevista nalguma das suas alíneas causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave, como veda a prova de que a acção em questão não causou ou agravou a situação de insolvência, bem como veda a prova de que os administradores não actuaram com dolo ou com culpa grave.

III – Quando na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º se faz menção “à obrigação de manter contabilidade organizada” tem-se em vista a obrigação que impende sobre todo o comerciante de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29.º do Código Comercial) e a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, a que se referem o n.º 2 do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o n.º 3 do artigo 17.º do mesmo diploma.

IV – “Organizar a contabilidade em termos substanciais” é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5831/18.2T8VIS-A

Insolvência

Incidente de qualificação da insolvência

Insolvência culposa

Sumário:

I - Os factos previstos alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor.

II - O n.º 2 do artigo 186.º do CIRE não só não requer, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção prevista nalguma das suas alíneas causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave, como veda a prova de que a acção em questão não causou ou agravou a situação de insolvência, bem como veda a prova de que os administradores não actuaram com dolo ou com culpa grave.

III – Quando na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º se faz menção “à obrigação de manter contabilidade organizada” tem-se em vista a obrigação que impende sobre todo o comerciante de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29.º do Código Comercial) e a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, a que se referem o n.º 2 do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o n.º 3 do artigo 17.º do mesmo diploma.

IV – “Organizar a contabilidade em termos substanciais” é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma.

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

    

A sociedade T (…), Lda, foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 25 de Março de 2019.

O administrador da insolvência apresentou parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de ser afectado pela qualificação da insolvência o gerente da sociedade, J (…)

O Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido.

Notificada, a insolvente não deduziu oposição à qualificação da insolvência.

Citado, J (…) opôs-se à qualificação da insolvência como culposa. 

Após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu:
1. Qualificar como culposa a insolvência da sociedade T (…) Lda(…), com sede (…), concelho de Viseu;
2. Declarar afectado pela qualificação o requerido J (…) e, em consequência:
a) Decretar a inibição J (…) para administrar patrimónios de terceiros pelo período trinta meses;
b) Declarar J (…) inibido, pelo período de trinta meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por J (…)
d) Condenar J (…), até às forças do respectivo património, o que inclui todos os seus bens susceptíveis de penhora, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos.

J (…)  não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo:
1. Se revogasse a sentença e se qualificasse a insolvência como fortuita;
2. Caso assim se não entendesse, se condenasse o mesmo num montante pecuniário fixo, a determinar pelo tribunal, que se afigurasse equitativo e que levasse em linha de conta o efectivo grau de culpa do recorrente, que inexistia ou foi manifestamente reduzido, e se reduzisse para o mínimo legalmente previsto a inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo no seguinte:
1. Na impugnação de dois segmentos da decisão relativa à matéria de facto, concretamente, o que julgou provado que “a contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não aceitou executar os respectivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior” e o que julgou não provado que “quando cessou a actividade, a insolvente não possuía qualquer activo”;
2. Na alegação de que não se verificavam os requisitos necessários à qualificação da insolvência como culposa.

O Ministério Público respondeu ao recurso sustentando a manutenção da decisão recorrida.


*

Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

O recurso suscita questões de facto e de direito. Visto que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, iremos começar o julgamento pelo conhecimento das questões de facto.

Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

O recorrente começou por impugnar a decisão de julgar provado que “a contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não aceitou executar os respectivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior”.

Pediu se julgasse provado que a “A contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não pôde executar os respectivos serviços de contabilidade, por força do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico dos Contabilistas Certificados pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior, o qual não manifestou a sua anuência a que a mesma fosse assegurada pela nova contabilística”.

Para o efeito invocou excertos dos depoimentos de (…) (a contabilista certificada a que se refere a decisão de facto) e de (…).

Ouvidas as declarações prestadas pelas testemunhas, a convicção deste tribunal não difere da do tribunal a quo.

(…)foi contratada para exercer as funções de contabilista da sociedade ora insolvente em Janeiro de 2018, em virtude de a anterior contabilista da sociedade, a sociedade J (…) Lda, da qual é sócio a testemunha R (…) ter renunciado às suas funções por a ora insolvente ter honorários em dívida para com ela.

E resulta também com clareza do depoimento de E (…)que não iniciou a organização da contabilidade da sociedade ora insolvente porque o gerente da sociedade, o ora recorrente, não regularizou a dívida para com o anterior contabilista e porque, de acordo com o Código Deontológico da Ordem dos Contabilistas, “sempre que um contabilista certificado tenha conhecimento da existência de dívidas ao contabilista certificado anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade [n.º 3 do artigo 74.º].

Contrariamente ao que pretende o recorrente, não se pode dizer que o facto de haver honorários, despesas e salários em dívida ao contabilista anterior impossibilita o novo contabilista de assumir a responsabilidade pela contabilidade. Tal facto não o impossibilita; constitui-o no dever ético de não assumir a responsabilidade da contabilidade. Porém, se não quiser observá-lo, poderá assumir a contabilidade, sendo que, se o fizer, ficará constituído na obrigação de pagar os valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.

 Pelo exposto, não se pode julgar provado que a nova contabilista certificada “não pôde executar os respectivos serviços de contabilidade, por força do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico”. A nova contabilista podia, mas decidiu não executar tais serviços.  

Em consequência, mantém-se a decisão do tribunal a quo.

O recorrente impugnou, em segundo lugar, a decisão de julgar não provado que “a insolvente, quando cessou a sua actividade, não possuía qualquer activo” [alínea b) dos factos julgados não provados].

O recorrente pede a alteração da decisão no sentido de se julgar provado o referido facto.

Para o efeito alegou:
1. Que a sentença de insolvência foi proferida com carácter limitado, o que pressupunha necessariamente a inexistência de bens;
2. Que ninguém requereu o seu complemento;
3. Que não foi aventada nos autos a possibilidade de existirem bens.

A pretensão do recorrente é de julgar improcedente.

É certo que a sentença que declarou a insolvência afirmou dos factos alegados e apurados resultava que não eram conhecidos bens à requerida e que, atendendo a tal facto e ao disposto no n.º 1 do artigo 39.º do CIRE, a sentença deu cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE.

Sucede que a afirmação da sentença acima referida não faz prova de que “a insolvente, quando cessou a sua actividade, não possuía qualquer activo”. Com efeito, a sentença, enquanto documento autêntico, faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo juiz assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções do juiz (n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil) e o facto que o recorrente quer ver julgado provado não está compreendido em tais categorias de factos.  

Em segundo lugar não é exacta a alegação do recorrente de que a circunstância de o juiz proferir sentença de declaração de insolvência com carácter limitado pressupõe necessariamente a inexistência de activo. Tal sentença também é compatível com a existência de activo, embora insuficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, como resulta claramente da parte inicial do n.º 1 do artigo 39.º do CIRE.

Em terceiro lugar, há indícios credíveis de que quando a ora insolvente cessou a sua actividade – o que aconteceu, o mais tardar, em 28 de Novembro de 2017, quando foi revogada a licença para o exercício da sua actividade económica – dispunha, pelo menos, do remanescente da caução depositada no Instituo de Emprego e Formação Profissional, no montante aproximado de cinquenta e três mil euros.

Em consequência, mantém-se a decisão de julgar não provado que “a insolvente quando cessou a actividade não possuía qualquer activo”.


*

Julgada improcedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. A insolvente, T (…), Lda, pessoa coletiva n.º(…), com sede (…), concelho de Viseu, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número e a respetiva constituição foi registada pela Ap. (…)/20120803.
2. Tem por objecto social a cedência temporária de trabalhadores, para utilização de terceiros utilizadores, podendo ainda desenvolver atividades de selecção, orientação e formação profissional, consultadoria e gestão na área exclusiva de recursos humanos.
3. Tem o capital social de € 10.000,00 (dez mil euros).
4. Tem como sócios J (…) e a sociedade T (…) Lda, esta com uma quota de mil euros.
5. O único gerente da sociedade é o sócio J (…)
6. A sociedade obriga-se com a assinatura de um gerente.
7. Na matrícula comercial da requerida só mostra depositada a prestação de contas dos exercícios de 2012 a 2015 e a data de encerramento do exercício é em 31 de Dezembro.
8. A insolvente obteve autorização para o exercício da actividade de trabalho temporário por deliberação do Conselho Directivo do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. de 30-04-2015, tendo obtido o alvará n.º 782/15 de 05-08-2015.
9. Para o exercício da actividade de trabalho temporário a insolvente constituiu, a favor do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., uma caução no montante de € 71.417,50, através de depósito bancário.
10. Para o depósito da importância de € 68.048,75, relativa à constituição daquela caução, foi depositada na conta bancária da insolvente, que naquela data apresentava o saldo de €35,84, a quantia de €68.500,00 relativa a um cheque sacado sobre conta da sociedade T (…) Lda.
11. Por carta datada de 17-05-2017 o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. comunicou à insolvente a suspensão da licença, relativa ao exercício de trabalho temporário, pelo período de dois meses, com fundamento na falta de requisitos para o exercício da actividade, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de Setembro.
12. A caução mencionada no artigo nono em 23-10-2017 foi accionada, a pedido do Instituto da Segurança Social, I.P., por dívida relativa a encargos com trabalhadores temporários, no montante de € 17.675,83.
13. Aquela licença foi revogada por deliberação de 28-11-2017 do Conselho Directivo do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., após suspensão da actividade por incumprimento dos deveres previstos no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de Setembro.
14. Em 21 de Julho de 2017, a insolvente apresentou à Administração Fiscal a declaração anual de IES (Informação Empresarial Simplificada) relativa ao exercício de 2016, onde declarou, entre outros, os seguintes valores: i. Vendas e serviços prestados €56.414,44; ii. Subsídios à exploração € 3.851,60; iii. Fornecimentos e serviços externos € 5.915,94; iv. Gastos com o pessoal € 53.633,24; v. Outros gastos e perdas € 24,97; vi. Juros e gastos similares suportados € 82,08; vii. Resultado líquido do período € 609,81; viii. Activo € 192.257,53, que engloba investimentos financeiros [35.386,42], clientes [76.351,08], Estado e outros entes públicos [500,00], outros activos correntes [74.273,75], caixa e depósitos bancários [5.746,28]; ix. Capital próprio € 11.160,50, que inclui o capital realizado [10.000], resultados transitados [550,69] e resultado líquido do período [609,81]; x. Passivo € 181.097,03, que inclui financiamentos obtidos [11.829,45], outras contas a pagar [115.035,96 – estes dois valores correspondem a passivo não corrente], fornecedores [3.758,08], Estado e outros entes públicos [25.096,53], outros passivos correntes [54.231,66].
15. Os últimos dados contabilísticos da insolvente dizem respeito ao balancete relativo ao mês de marco de 2017 em que apresentava os seguintes valores: i. Activo - Caixa € 5.678,00; - Depósitos à ordem € 94.167,73; - Clientes € 69.580,72; - Investimentos Financeiros € 35.530,27; - Fornecimentos e serviços externos € 19.138,28; ii. Capital próprio e resultados líquidos € 11.160,50; iii. Passivo:  Clientes € 3.710,97; Fornecedores € 36.531,3; Pessoal € 21.229,00; Financiamentos obtidos € 100.112,19; outras contas a pagar € 50.643,85; Prestações de serviços € 2.079,64.
16. O valor do passivo relativo a financiamentos obtidos, incluía a importância de € 90.000,00 de um empréstimo com garantias pessoais concedido pelo Banco (…) em 09-03-2017.
17. Depois de 31-03-2017, além de comissões de manutenção e débito de juros, foram efectuados os seguintes movimentos na conta bancária da insolvente junto do Banco (…):  i. 3-04-2017 transferência para a conta do valor de €479,64;  ii. 6-04-2017: levantamentos e pagamentos € 499,43; 4-05-2017: transferência da conta do valor de €479,64; iv. 10-05-2017: depósito €9 00,00; v. 11-05-2017: pagamento € 559,47; vi. Maio de 2017: movimentos do cartão de crédito € 463,08; vii. 17 e 29 de Junho de 2017: pagamentos (274,62+243,10) viii. 23 e 29 de Junho de 2017: depósitos (20+260) € 280,00; ix. 7-07-2017: transferência da T (…)a € 1 000,0; x. 7-07-2017: pagamento € 476,37; xi. Agosto de 2017: movimentos do cartão de crédito € 284,04; xii. 3-08-2017: transferência da T (…) € 1.000,00; xiii. 3-08-2017: transferência entre contas (crédito) € 1.048,77; xiv. 29-08-2017: pagamento do cartão Visa € 307,58; xv. 13-09-2017: transferência entre contas (crédito) € 1.000,00; xvi. 13-09-2017: transferência entre contas (débito) € 844,0; xvii. 20-09-2017: transferência da T (…) € 73.000,00; xviii. 20-09-2017: transferência para a T (…) € 9.000,00; xix. 20-09-2017: transferência para a T(…) € 16.000,00; xx. 22-09-2017: transferência para a T (…) € 9.000,00; 28-09-2017: transferência para a T(…) € 10.000,00; xxii. 29-09-2017: pagamento de impostos € 1.409,35; xxiii. 29-09-2017: transferência para a T (…) € 15.000,00; xxiv. 03-10-2017: débito em conta € 6.000,00; xxv. 04-10-2017: transferência para a T (…) € 3.500,00; xxvi. 04-10-2017: transferência para a T (…)€ 1.500,00; xxvii. 06-10-2017: transferência para a T (…) € 4.000,00; xxviii. 10-10-2017: transferência para a T(…) € 4.000,00; xxix. 12-10-2017: transferência para a T(…) € 2.000,00; xxx. 13-10-2017: débito em conta € 700,00.
18. No período de 02-10-2017 a 30-05-2018 nas contas bancárias da insolvente foram efectuados os movimentos descritos nos documentos n.º 73 a 78, juntos pela insolvente ao processo principal, e de fls. 48 a 49 destes autos, juntos pelo requerido em 25-11-2019, cujo teor se dá por reproduzido.
19. A insolvente não dispõe de contabilista certificado desde Outubro de 2017.
20. A insolvente deixou de exercer a actividade de trabalho temporário em data indeterminada de 2017, mas não posterior à notificação da revogação mencionada no artigo 13.º.
21. A última declaração de IES apresentada pela insolvente reporta-se ao exercício de 2016.
22. A contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018, não aceitou executar os respectivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior.
23. O remanescente da caução referida no artigo nono no montante de € 53.741,67 foi devolvido à insolvente por cheque precatório de 28-05-2018.
24. O montante mencionado no artigo anterior foi entregue à sociedade T (…), Lda, que liquidou a importância de três mil euros a trabalhadores da insolvente.
25. O principal cliente da insolvente era a sociedade T (…), Lda.
26. A partir de data indeterminada, mas ocorrida no período de Outubro a Novembro de 2016, a insolvente passou a exercer a sua actividade nos escritórios da sociedade T (…) Lda., sem pagar qualquer contrapartida pela utilização do espaço.
27. No processo n.º 1819/18.1T8VIS, que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Viseu, Juiz 1, intentado pelo requerente da insolvência contra a insolvente, por sentença proferida em 28 de Junho de 2018, foi declarado(a):
a) Que o requerente P (…)trabalhou por conta e sob as ordens da insolvente T (…), Lda. ininterruptamente desde 08/09/2016 até 26/02/2018, desempenhando as funções inerentes à categoria profissional de técnico administrativo;
b) Que à relação laboral entre autor e ré é aplicável a Portaria das Condições de Trabalho nº 210/2012 de 12 de Julho;
c) A ilicitude do despedimento operado pela ré.
28. Em consequência foi condenada a requerida a pagar ao requerente as seguintes quantias:
a) € 10.061,00 (dez mil e sessenta e um euros) a que acrescem juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação ocorrida em 15-05-2018 (sendo € 6.524,00 a título de créditos salariais, € 1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais e a quantia de € 2.037,00 a título de indemnização em substituição da reintegração pelo despedimento ilícito);
b) O valor das retribuições vencidas e vincendas desde 13-03-2018 até ao trânsito em julgado da sentença, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data do vencimento de tais retribuições, até efectivo e integral pagamento. A tais retribuições, terão que ser feitas as deduções previstas no nº 2, al.s a) e c) do artº 390º do CT, ou seja, ao montante apurado de tais retribuições são deduzidas as importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, sendo que o montante do subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador é deduzido na compensação, devendo a requerida entregar essa quantia à segurança social.
29. Em 14 de Dezembro de 2018, P (…)requereu a declaração de insolvência de T (…) Lda, que, citada para o efeito, não deduziu oposição e foi declarada insolvente por sentença proferida em 25 de Março de 2019, transitada em julgado.

Factos julgados não provados:

a) A insolvente deixou de exercer actividade a partir de Fevereiro de 2017.

b) A insolvente quando cessou a actividade não possuía qualquer activo.


*

Descritos os factos, passemos à apreciação dos fundamentos do recurso.

O recorrente insurgiu-se, em primeiro lugar, contra a decisão de qualificar a insolvência como culposa ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, cujos termos são os seguintes: “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência”.

Segundo a sentença impugnada, a insolvente tinha o dever de se apresentar à insolvência, pelo menos, no final do mês de Dezembro de 2017, início de Janeiro de 2018, o que não fez, vindo a insolvência a ser requerida apenas em 14 de Dezembro de 2018, por um ex-trabalhador da insolvente, P (…)

Ainda segundo a sentença, apesar de o n.º 3 do artigo 186.º ser objecto de interpretações divergentes tanto na doutrina como na jurisprudência, entendendo alguns que a norma consagra uma presunção de insolvência culposa e outros que ela contém apenas uma presunção de culpa grave do administrador, não dispensando a prova do nexo causal entre o facto que constitui a base da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência, “no caso dos autos, independentemente da posição que se assuma sobre o âmbito de aplicação daquelas presunções, …, resulta evidenciado que pelo facto de não se ter apresentado à insolvência, quando devia, foi agravada a situação de insolvência”.

E justificou esta conclusão dizendo o seguinte: “…, conforme consta da factualidade provada, em 28-05-2018 foi devolvido à insolvente o montante de € 53.741,67, correspondente a parte do valor que tinha depositado como caução para o exercício da sua actividade (artigos 9.º e 23.º). Aquele valor foi entregue à T (…) Lda. que liquidou a importância de três mil euros a trabalhadores da insolvente (art. 24.º). Ao proceder do modo descrito no artigo 24.º dos factos provados, a insolvente diminuiu a possibilidade da satisfação dos credores da insolvência, nomeadamente do requerente da insolvência a quem foram reconhecidos, na ação que instaurou contra a ora insolvente, os créditos mencionados no artigo 27.º dos factos provados. Por outro lado, o facto mencionado no artigo 10.º não afasta a conclusão mencionada no parágrafo anterior, já que estava em causa um direito de crédito da sociedade T (…), Lda. sobre a insolvente que, por ser sócia desta (cfr. art.º 4.º dos factos provados), nos termos previstos nos artigos 48.º, alínea a), 49.º, n.º 2, alínea a), tinha um crédito considerado subordinado que, consequentemente, seria liquidado só depois dos créditos garantidos, privilegiados e comuns (cfr. art.º 177.º)”.

O recorrente censurou a decisão com base na seguinte alegação:
1. Que a entrega do remanescente da caução à sociedade T (…) não agravou a situação de insolvência, pois tal entrega consistiu na devolução de um valor em dívida à sociedade T (…)e a devolução de um valor em dívida a um credor, independentemente da categoria de tal credor, não tem por efeito o agravamento da situação de insolvência;
2. Que à época os valores em dívida a credores existentes foram pagos pela insolvente, nomeadamente a trabalhadores, conforme resulta do ponto n.º 24 da matéria provada;
3. Que a insolvente entendia nada dever ao credor requerente desta insolvência, sendo certo que a sentença que a condenou ao pagamento respectivo de 28.06.2018 é ulterior aos factos supra referidos;
4. Que era certo que a partir de 28.06.2018 a insolvente não possuía qualquer bem, nem resulta destes autos que a partir desta data algum activo existisse, o que acabou por resultar que a sentença que a declarou tivesse carácter limitado sem que nenhum credor tivesse peticionado o seu complemento, pelo que impossível seria que a não apresentação voluntária à insolvência a partir da predita data a tivesse criado e/ou agravado.

Apreciação do tribunal:

Ao alegar no sentido acima exposto, o recorrente contesta, por um lado, a afirmação, feita na sentença, de que a entrega do remanescente da caução à sociedade T (…) agravou a situação de insolvência da sociedade T(…), e, por outro, a afirmação de que o ora recorrente, enquanto gerente desta última sociedade, tinha o dever de requerer a declaração de insolvência dela, pelo menos no final de Dezembro de 2017, início de Janeiro de 2018. Subjacente ao recurso está a interpretação do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE no sentido de que os factos previstos nas suas duas alíneas fazem presumir a culpa grave do administrador, mas não fazem presumir que a criação ou agravamento da situação de insolvência é consequência da sua actuação.

Comecemos por apreciar a alegação do recorrente sobre a questão do dever de requerer a declaração de insolvência, visto que a base da presunção da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º consiste precisamente no incumprimento, pelo administrador do devedor que não seja uma pessoa singular, do dever de requerer a declaração de insolvência.

A alegação não vale contra a sentença pelo seguinte.

Dizendo o n.º 1 do artigo 18.º do CIRE que “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”, e dizendo o artigo 19.º do mesmo diploma que “não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores”, e tendo a sociedade T(…) sido declarada em situação de insolvência, a pedido de um credor, o ora recorrente (gerente da T(…)) só não teria incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade por si administrada se, na data em que ela foi requerida [14 de Dezembro de 2018], não conhecesse ou não devesse conhecer a situação de insolvência há mais de 30 dias. Em tal hipótese, poder-se-ia dizer que o ora recorrente, não fosse o pedido do credor, ainda poderia requerer a declaração de insolvência dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 18.º.

A verdade é que há factos no processo que apontam claramente no sentido de que, quando foi requerida a declaração de insolvência, a sociedade já se encontrava nesta situação há vários meses e que o ora recorrente tinha conhecimento dela. Os factos são os seguintes.

Em primeiro lugar, o facto de a licença concedida à sociedade para o exercício da sua actividade ter sido suspensa em 17 de Maio de 2017 e, depois, revogada em 28-11-2017. Com a suspensão e a revogação da licença, a sociedade deixou de poder exercer a sua actividade e de obter meios para cumprir as suas obrigações.

Em segundo lugar, o facto de a sociedade ter passivo. Com efeito, apesar de, como alega o recorrente, não ter havido no processo de insolvência a fase da reclamação de créditos [e não houve por se verificar a situação prevista no n.º 1 do artigo 39.º do CIRE], tal não quer dizer que a sociedade não tivesse passivo. Como resulta da matéria assente, no balancete do mês de Março de 2017 figuram dívidas a clientes (€ 3.710,97), a fornecedores (€ 36.531,3), a pessoal (€ 21.229,00), a financiadores (€ 100.112,19), a outras pessoas (€ 50.643,85) e a prestadores de serviços (€ 2.079,64).

Destes factos, é legítimo extrair a ilação de que, depois de ser revogada a licença para o exercício da actividade da sociedade, esta ficou sem meios para cumprir a generalidade das suas obrigações e que o ora recorrente, enquanto gerente, tinha conhecimento desta situação, pelo que, como bem se afirmou na sentença, tinha o dever de requerer a declaração de insolvência até ao final de 2017, princípios de 2018.

Porém, ainda que se desconsiderasse o passivo que consta do balancete de Março de 2017 e nos ativéssemos apenas à dívida para com o requerente da insolvência [águas em que navega o recorrente], a verdade é que, mesmo nesta hipótese, seria de afirmar o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência. E seria de afirmar este incumprimento porque o ora recorrente, apesar de, enquanto gerente, saber necessariamente que a sociedade não tinha meios para pagar a dívida [o que ficou claro na execução instaurada para a cobrança coerciva dela, na qual não foram encontrados quaisquer bens à executada, como se colhe na cópia do auto de penhora junto com a petição de insolvência, datado de Dezembro de 2018], não requereu a declaração de insolvência da sociedade.     

Pelo exposto, não merece qualquer censura a decisão recorrida, na parte em que afirmou que o ora recorrente não cumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade T (…)

Contra a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE também não vale a alegação de que a entrega do remanescente da caução à sociedade T (…) não agravou a situação de insolvência da sociedade T (…).

Como se escreveu acima, a alegação do recorrente tem implícita a interpretação da norma acima indicada no sentido de que o facto nela previsto faz presumir a culpa grave do administrador, mas não faz presumir a insolvência culposa, ou seja não faz presumir que a criação ou agravamento de tal situação seja consequência da sua actuação.

No entender deste tribunal a norma é de interpretar, no entanto, no sentido de que os factos nela previstos [alíneas a) e b)] fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor. E assim, como se decidiu, entre outros, no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 22-11-2016, proferido no processo n.º 2675/13.1TBLRA-C.C1, e no acórdão do STJ proferido em 23-10-2018, no processo n.º 8074/16.6T8CBR-D, ambos publicados em www.dgsi.pt, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência faz presumir [presunção relativa ou juris tantum] a insolvência culposa. Segue-se daqui que, provando-se o não cumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, a qualificação da insolvência como culposa só é de afastar se o administrador provar que a insolvência da sociedade não foi causada culposamente por ele.

As razões deste entendimento são as seguintes.

Em primeiro lugar, esta interpretação tem cabimento na letra da lei. Com efeito, a expressão “presume-se a existência de culpa grave” acolhe sem esforço o seguinte sentido: “presume-se a existência de culpa grave na criação ou agravação da situação de insolvência...”.

Em segundo lugar, o pensamento legislativo, reconstituído a partir do preâmbulo do diploma que aprovou o Código da Insolvência (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) e de outras normas do CIRE, designadamente dos n.ºs 1, 2 e 5, do artigo 186.º, apontam no sentido de que o alcance da presunção é o que foi assinalado na decisão recorrida. Vejamos.

Ao falar sobre as soluções do CIRE relativas ao dever de apresentação à insolvência, escreveu-se no preâmbulo o seguinte: “Com o intuito de promover o cumprimento do dever de apresentação à insolvência, que obriga o devedor pessoa colectiva ou pessoa singular titular de empresa a requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data em que teve, ou devesse ter, conhecimento da situação de insolvência, estabelece-se presunção de culpa grave dos administradores, de direito ou de facto, responsáveis pelo incumprimento daquele dever, para efeitos da qualificação desta como culposa”.

No nosso entender, este trecho do relatório aponta no sentido de que o propósito da lei foi o de erigir o incumprimento do dever de apresentação à insolvência como base de presunção de insolvência culposa e não apenas como presunção de culpa referida ao não cumprimento de tal dever.

No mesmo sentido depõe a seguinte passagem do preâmbulo dedicada à explicação do novo incidente de qualificação de insolvência: “O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”.

No mesmo sentido depõe o n.º 5 do artigo 186.º cujos termos são os seguintes: “Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente”.

Com efeito, se o legislador, no caso de pessoa não obrigada a apresentar-se à insolvência, entendeu que a não apresentação ou a apresentação tardia, ainda que determinante de um agravamento da situação de insolvência, não era de considerar insolvência culposa, é de presumir, por aplicação do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que quando afirmou que presumia-se a existência de culpa grave dos que não cumpriram o dever de requerer a declaração de insolvência estava a presumir a culpa no agravamento da situação de insolvência.

A interpretação que se vem defendendo é ainda aquela que preserva melhor a unidade do sistema jurídico, designadamente a relação do n.º 3 com as normas antecedentes. Vejamos.

O CIRE distingue dois tipos de insolvência, a culposa e a fortuita [artigo 185º].

O n.º 1 do artigo 186º diz que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Esta noção geral de insolvência culposa é complementada pelo n.º 2 e pelo n.º 3 do mesmo preceito.   

Sobre o n.º 2 não há dúvidas de que, nas suas várias alíneas, tipifica acções que qualificam a insolvência como culposa. E qualificam-na sem necessidade de demonstração que causaram ou agravaram a insolvência e/ou que o devedor actuou com dolo ou com culpa grave. Mais: tal preceito não só não exige, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção do devedor causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que actuou com dolo ou com culpa grave, como veda ao devedor a prova de que a sua acção não causou a insolvência nem a agravou, bem como veda a prova de que não actuou com dolo ou com culpa grave.

Entre tais acções estão algumas que seguramente nem causaram nem agravaram a situação de insolvência. É o caso das tipificadas nas alíneas h) e i), respectivamente: incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou a prática de irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor [alínea h)]; incumprimento, de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º [alínea i)].

Porém, tais acções foram erigidas em presunções inilidíveis ou em ficções legais de insolvência culposa porque os dados da experiência revelam que elas estão associadas com elevada probabilidade a situações de insolvência culposa e porque, em tais situações, tornava-se difícil a prova da conduta que causou ou agravou a situação de insolvência.

Nesta linha, é de presumir que a norma do n.º 3 do artigo 186.º se insira no sistema que complementa o n.º 1 do artigo 186.º; e complementa-o mediante a indicação de condutas que fazem presumir (iuris tantum) uma situação de insolvência culposa.       

A favor desta interpretação cita-se ainda a seguinte nota de direito comparado.

Sabe-se, através do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, que o tratamento dispensado ao incidente de qualificação da insolvência inspira-se, quanto a certos aspectos, na Ley Concursal Espanhola [Lei 22/2003, de 9 de Julho].

O artigo 165.º desta lei, sob a epígrafe “presunções de culpabilidade”, estabelece no n.º 1 que a insolvência se presume culpável, salvo prova em contrário, quando o devedor ou os seus representantes legais, administradores ou liquidatários tiverem incumprimento o dever de requerer a declaração de insolvência.

Dadas as semelhanças notórias entre os termos deste preceito da lei Espanhola e os da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE pode dizer-se com segurança que aquele preceito serviu de inspiração à norma da lei portuguesa.

Ora, como se pode ler na sentença do Tribunal Supremo Espanhol proferida em 1/6/2015, no recurso n.º 1449/2013, publicada em http://www.poderjudicial.es/, constitui jurisprudência consolidada a que afirma que o artigo 165.º, n.º 1, da Lei Concursal é uma norma complementar do artigo 164.º, n.º 1 (cuja epígrafe é insolvência culposa), que contém a concretização do que pode constituir uma conduta gravemente culposa com incidência causal na criação ou agravação da insolvência e que estabelece uma presunção iuris tantum, que, no caso do incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, se estende tanto ao dolo ou culpa grave como à sua incidência causal na agravação da insolvência. Isto é, a norma da Lei Concursal que inspirou a alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE é interpretada pelo tribunal superior do poder judicial de Espanha no sentido de que estabelece uma presunção iuris tantum de insolvência culposa.  

Visto que – como se afirmou mais acima - o ora recorrente, enquanto gerente da sociedade T(…) não requereu a declaração de insolvência da sociedade, como era seu dever, há base para presumir, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, que a situação de insolvência da sociedade T(…)foi criada por ele com culpa grave.

E visto que o ora recorrente não ilidiu esta presunção [a ilisão da presunção obrigava, por força do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, à prova do contrário, ou seja, à prova de que a situação de insolvência não foi criada em consequência da actuação culposa do ora recorrente], é de manter a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, embora por razões não inteiramente coincidentes com as da decisão recorrida.                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

E, como é bom de ver, é de mantê-la sem necessidade de apreciar a questão de saber se a entrega do remanescente da caução à sociedade T (…) agravou a situação de insolvência, uma vez que, como se acabou de afirmar, é de presumir que a situação de insolvência foi criada com culpa grave pelo ora recorrente e, segundo o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”.


*

O recorrente insurge-se, em segundo lugar, contra a qualificação da insolvência com base na alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º, cujos termos são os seguintes: “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.

Fê-lo com base na seguinte alegação:
1. Não resultava da sentença qualquer facto e/ou argumento que consubstanciasse tal preenchimento, pois não bastava invocar o mero não depósito das contas para que se pudesse concluir pela existência de culpa grave em termos de qualificação de insolvência;
2. Para tanto não bastava a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre o recorrente recaía;
3. Não faria qualquer sentido que só porque não se procedeu ao depósito de contas de alguns anos, se qualificasse a insolvência como culposa, com os efeitos nefastos e graves para as pessoas visadas, quando para mais é bem patente que este facto não teve qualquer influência na situação de insolvência;
4. Como bem refere o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.01.2008, relativo ao processo n.º 0754886, disponível em www.dgsi.pt “I - Para que uma falência seja qualificada como culposa é sempre necessário que seja a actuação (ou omissão) que se classificou como dolosa ou com culpa grave do devedor e não outra a concorrer, intercedendo em termos de causalidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência. II - A não apresentação das contas anuais pelos seus administradores no prazo legal presume a existência de culpa grave. III - Mas para se qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário que esse facto ou omissão tenha criado ou agravado a situação de insolvência, não bastando a mera constatação objectiva desse comportamento omissivo.”.

Apreciação do tribunal:

Antes de mais deve dizer-se que não é claro que a sentença tenha qualificado a insolvência como culposa ao abrigo da alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE. Com efeito, apesar de ter afirmado, com base na matéria descrita nos pontos números 7, 14 e 21, que o ora recorrente violou o dever de elaborar as contas e o de as depositar (sem, contudo, especificar os exercícios em relação aos quais se verificou a violação), a sentença não tomou posição sobre a interpretação do n.º 3 do artigo 186.º, limitando-se a expor os sentidos que lhe têm sido dados na doutrina e na jurisprudência. Ora, só interpretando a alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º no sentido com que este tribunal a interpretou [no sentido de que prevê uma presunção de insolvência culposa] é que se justificava qualificar a insolvência como culposa ao abrigo de tal preceito. Na verdade, para quem veja na alínea b) apenas uma presunção de culpa grave do administrador, mas já não uma presunção de criação ou agravamento da situação de insolvência, não havia razão para qualificar a insolvência como culposa ao abrigo de tal norma pois, por um lado, é manifesta a inaptidão do incumprimento da obrigação de elaborar as contas ou a falta de depósito delas na Conservatória para criar ou agravar a situação de insolvência de uma sociedade e, por outro, da matéria de facto não resulta nenhuma acção do ora recorrente que tenha sido a causa da insolvência da sociedade.

A verdade é que, caso se entenda que a sentença qualificou a insolvência ao abrigo da alínea b), ela é de manter pelo seguinte:
1. Provou-se que o ora recorrente não elaborou as contas relativas ao exercício económico de 2017, não cumprindo, assim, a obrigação que lhe é imposta pelo n.º 1 do artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais, e que não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas do exercício de 2016, não cumprindo, agora, a obrigação que lhe é imposta pelo n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma e pelos artigos 3.º, n.º 1, alínea n), e 42.º, n.º 1, ambos do Código do Registo Comercial;
2. O não cumprimento destas obrigações faz presumir a insolvência culposa da sociedade;
3. O ora recorrente não ilidiu esta presunção.


*

Em terceiro lugar, o recorrente insurgiu-se contra a decisão de qualificar a insolvência como culposa ao abrigo da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, na parte em que dispõe: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, …”.

Segundo a sentença, o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada consistiu no seguinte: a contabilidade regista movimentos, concretamente os mencionados nos artigos 17.º e 18.º dos factos provados, sem que se conseguisse apurar, por um lado, o destino que foi dado aos activos mencionados no balancete de Março de 2017 e, bem assim, a finalidade dos montantes movimentados na conta bancária que somam quantias avultadas. Havia ainda que referir que a insolvente também era responsável pela falta de pagamento dos honorários que eram devidos ao contabilista certificado e consequente recusa da contabilista certificada em assumir a contabilidade.

O recorrente censura a decisão com a seguinte alegação:
1. Que o facto de existirem créditos por pagar junto do anterior contabilista não pode justificar o preenchimento da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE;
2. Que ficou provado que a insolvente e o recorrente sempre pretenderam ter a contabilista organizada e em dia e que tal só não foi possível pelo facto do anterior contabilista se ter recusado a tal e o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas impedir a entretanto contratada a fazê-lo;
3. Que não ficou provado que o incumprimento ocorrido pelos motivos supra referidos tenha qualquer tipo de relação com a declaração de insolvência, antes pelo contrário;
4. Que a declaração da presente insolvência deveu-se única e exclusivamente ao incumprimento no pagamento de um crédito laboral;
5. Que ao provar-se que a insolvente pretendeu contratar um novo contabilista, tal significa que ela não tinha nem teve qualquer intenção de ocultar documentos e/ou desrespeitar as boas práticas contabilísticas para ocultar qualquer tipo de situação patrimonial e/ou financeira.
6. Que independentemente do exposto, refere o n.º 1 do artigo 186.º do CIRE que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores;
7. Que desta forma terá sempre de ser provado um nexo de causalidade entre a criação ou agravamento da situação de insolvência e o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter uma contabilidade organizada com prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente;
8. Que a sentença recorrida é totalmente omissa relativamente ao nexo de causalidade existente entre as situações deparadas na contabilidade da insolvente e a criação e/ou agravamento da sua situação de insolvência.
9. Que a lei não se basta com a enumeração das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE que se entendem estarem preenchidas como bastante para desencadear a aplicação de uma insolvência como culposa, sendo antes exigido uma análise fundamentada e alicerçada em factos sólidos que constem do processo e que levem a uma conclusão, sem margem para dúvidas, de que a conduta do recorrente prevista no aludido n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, nos três anos anteriores ao processo de insolvência, agravou ou criou, com dolo ou culpa grave, a situação de insolvência;
10. Que dos presentes autos não resulta que o recorrente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tivesse criado ou agravado a sua situação de insolvência em consequência de actuação dolosa ou com culpa grave de sua parte.

Apreciação do tribunal:

Pelas razões a seguir expostas, é de julgar improcedente este fundamento do recurso.

Em primeiro lugar, não vale contra a sentença a alegação de que para qualificar a insolvência como culposa não basta a verificação das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, tornando-se ainda necessária, a prova de que as condutas previstas nalguma das alíneas do preceito criaram ou agravaram, com dolo ou culpa grave, a situação de insolvência. Vejamos.

O CIRE distingue dois tipos de insolvência, a culposa e a fortuita [artigo 185º].

Segundo o n.º 1 do artigo 186º, do mencionado diploma, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Esta noção geral de insolvência culposa é complementada pelos números 2 e 3 do mesmo preceito. Para o caso interessa-nos o n.º 2 pois foi ao abrigo deste número que a insolvência da sociedade T (…) foi considerada culposa.

Segundo ele considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, incorrido nalguma das situações previstas nas várias alíneas.

Ao dispor que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, levem a cabo alguma das condutas tipificadas nas suas várias alíneas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o n.º 2 do artigo 186.º significa que, quando ficar provado que os administradores, de direito ou de facto, sejam autores de alguma dessas acções, no mencionado período, a situação de insolvência da sociedade é de qualificar sem mais como culposa.

E é de qualificar sem mais como culposa, pois a expressão “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor” significa que não é necessário provar que a acção em causa causou ou agravou a insolvência e/ou que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave.

Mais: o n.º 2 do artigo 186.º não só não requer, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção prevista nalguma das suas alíneas causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave, como veda a prova de que a acção em questão não causou ou agravou a situação de insolvência, bem como veda a prova de que os administradores não actuaram com dolo ou com culpa grave.

Citam-se, em abono desta interpretação do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, o acórdão do STJ de 6-10-2011, proferido no processo n.º 46/07.8TBSVC, o acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2012, proferido no processo n.º 1053/10.9TJCBR e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2014, proferido no processo n.º 785/11.9TBLRA, todos publicados no sítio www.dgsi.pt.

Na doutrina citam-se em abono desta interpretação:
1. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvênc1ia e da Recuperação de Empresas Anotado, QUid Juris, que em anotação ao artigo 186, página 610, escrevem: “Da letra da lei (considera-se sempre) resulta claramente que no preceito em anotação se estabelece uma presunção iuris et de iure, em vista do que dispõe o n.º 2 do artigo 350º”;
2. Manuel A. Carneiro da Frada [A responsabilidade dos administradores na insolvência, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 66º, Volume II, disponível no sítio http://www.oa.pt] que escreve a este propósito o seguinte: “Tendo lugar alguma das situações previstas, a culpa presume-se, não havendo lugar a prova em contrário e estando portanto precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação (…) O n.° 2 do art. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores. Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador. Temos, portanto, que o art. 186 n.° 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência”;

Mesmo que se entendesse – como o fez o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008 (DR, 2ª série de 14 de Janeiro de 2009) - que era duvidoso, perante a noção de presunções legais constantes do artigo 349º, do Código Civil, que o n.º 2 do artigo 186º instituísse verdadeiras presunções, sempre se teria de entender que as situações em causa foram configuradas pelo legislador como situações típicas, características de insolvência culposa. A este propósito escreveu-se no citado acórdão: “Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa”. Acrescentou, porém, que “…numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de culpa, factos -índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência”.

Diga-se, por fim, que o tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 186º, n.º 2, no caso a alínea a), interpretada no sentido de que consagrava uma presunção de culpa iure et iure.

Em síntese: a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE basta-se com o concurso dos seguintes factos:
1. Com a declaração de insolvência;
2. Com a prática, pelos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, de alguma das acções previstas nas suas alíneas, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Interpretado com o sentido exposto o n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, é bom de ver que, no caso de a sociedade T(…) não ter cumprido a obrigação de manter a contabilidade organizada, era de qualificar a sua insolvência como culposa. Foi o que, na realidade, aconteceu. Vejamos.

Quando na alínea h) do n.º 2 se faz menção “à obrigação de manter contabilidade organizada” tem-se em vista a obrigação que impende sobre todo o comerciante de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29.º do Código Comercial) e a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, a que se referem o n.º 2 do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o n.º 3 do artigo 17.º do mesmo diploma.

Quanto ao sentido de “organizar a contabilidade em termos substanciais”, é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma, ou seja, é organizá-la com observância do requisito da materialidade a que se refere o ponto 2.5.1 do Sistema de Normalização Contabilística, segundo o qual “Considera-se que as omissões ou declarações incorrectas de itens são materiais quando podem, individual ou colectivamente, influenciar as decisões económicas dos utentes tomadas com base nas demonstrações financeiras. A materialidade depende da dimensão e da natureza da omissão ou do erro, ajuizados nas circunstâncias que os rodeiam”.

Este sentido é concordante com a parte final da alínea h), quando atribui relevância, para efeitos de qualificação da insolvência, às irregularidades que prejudiquem de forma relevante a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Com interesse para a decisão do recurso está provado que, em relação ao exercício de 2017, o único documento da contabilidade que existe é o balancete relativo ao mês de Março. Faltam todos os outros documentos, designadamente os relativos às demonstrações financeiras. Ora, sem eles, não se consegue ter uma representação fiel da situação patrimonial e financeira da empresa e dos resultados da mesma em tal exercício. É, pois, de afirmar que o ora recorrente, enquanto gerente, incumpriu a obrigação de manter a contabilidade organizada no exercício de 2017.

De resto, nem tinha condições para cumprir tal dever, visto que a planificação, organização e coordenação da execução da contabilidade das entidades sujeitas ao regime fiscal da contabilidade organizada cabe a um contabilista certificado [n.º 1 do artigo 10.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados] e a insolvente, a partir de Outubro de 2017, deixou de ter ao seu serviço um profissional com esta qualificação.

Diga-se, por fim, que é totalmente impertinente para afastar a aplicação ao caso da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º a alegação do recorrente segundo a qual procurou ter a contabilidade organizada e que só não o conseguiu pelo facto de o anterior contabilista se ter recusado a tal e o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas impedir a contratação de outro técnico. E é irrelevante porque, como se escreveu acima, verificada a situação prevista na alínea l) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, está vedado ao devedor ou ao respectivo administrador provar que o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada não procede de culpa sua.


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Por fim, em matéria de qualificação da insolvência como culposa, o recorrente insurgiu-se contra a decisão de a qualificar com base na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE.

A sentença impugnada qualificou a insolvência ao abrigo desta norma com base no facto de o remanescente da caução que a sociedade ora insolvente depositou no Instituto do Emprego e Formação Profissional para o exercício da actividade de trabalho temporário no montante de € 53 741,67, depois de devolvido, ter sido entregue à sociedade T (…). Ainda segunda a sentença, a entrega preenche hipótese da alínea d) já que a sócia da insolvente só teria possibilidade de receber aquele valor depois de satisfeitos os credores garantidos, privilegiados e comuns.

O recorrente critica esta decisão com a seguinte alegação:
1. O valor em causa não se destinou ao proveito pessoal do recorrente;
2. O valor em causa não destinou ao proveito pessoal de terceiros;
3. A sociedade “T (…) a quem se destinou este valor não era um terceiro da insolvente mas sim um seu credor, independentemente da categoria que tivesse;
4. O valor não foi para proveito próprio desta sociedade, pois a insolvente limitou-se a devolver parte do valor que aquela lhe havia anteriormente entregue para depósito desta mesma caução;
5. Existia um crédito anterior que foi parcialmente devolvido;
6. Acresce que à data de tal devolução foram pagos todos os créditos em dívida a trabalhadores da insolvente, pelo que em momento algum pode a predita alínea ser enquadrada nos factos provados nesta lide.

Apreciação do tribunal:

Pelas razões a seguir expostas, é de julgar improcedente o fundamento do recurso ora em apreciação.

Em primeiro lugar não tem sentido esgrimir contra a sentença o argumento de que o valor em causa não se destinou ao proveito pessoal do devedor, visto que a sentença não considerou que a entrega do remanescente da caução tivesse sido feita em proveito pessoal da insolvente.

Em segundo lugar também não colhe contra a sentença a alegação de que a entrega não beneficiou a sociedade T (…) por a insolvente se ter limitado a devolver parte do valor que aquela lhe havia anteriormente entregue para depósito desta mesma caução, existindo, assim, um crédito anterior que foi parcialmente satisfeito.

Ao alegar neste sentido, o recorrente argumenta como se o dinheiro que foi usado para constituir a caução para o exercício da actividade de trabalho temporário tivesse sido emprestado à ora insolvente pela sociedade T(…).

Sucede que a matéria de facto é insuficiente para se concluir neste sentido. Com efeito, resulta da noção de mútuo constante do artigo 1142.º do Código Civil que, para que se afirme o mútuo de dinheiro, é necessário que uma parte (mutuante) empreste dinheiro a outra (mutuária) e que a segunda se obrigue a restituir o dinheiro recebido.

No caso, apesar de se ter provado que o dinheiro usado na constituição da caução proveio de uma conta da sociedade Tuvmetálica, podendo, assim, dizer-se que esta última sociedade entregou o dinheiro à ora insolvente, não há prova do acordo que esteve subjacente a tal entrega, designadamente se ele implicava a obrigação de restituição do dinheiro.

E assim não se podendo afirmar que, com a entrega do remanescente da caução, a ora insolvente estava a restituir o dinheiro que havia recebido de empréstimo. O que se nos depara é a entrega de um bem da devedora (remanescente da caução) em benefício de um terceiro (a sociedade T(…)). E esta interpretação é de afirmar não obstante se ter provado que aquela sociedade liquidou a importância de 3 mil euros a trabalhadores da insolvente. É que o montante do remanescente da caução era de € 53 741,67, largamente superior ao que foi despendido pela T(…) com o pagamento a trabalhadores da insolvente.

Mantém-se, pois, a decisão de qualificar a insolvência ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.

Para o caso de não proceder o pedido de revogação da sentença, na parte em que qualificou a insolvência como culposa, o recorrente pediu a alteração dos seguintes segmentos da decisão:
1. Do que decretou a inibição dele para administrar patrimónios de terceiros pelo período trinta meses;
2. Do que o declarou inibido, pelo período de trinta meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
3. Do que o condenou, até às forças do respectivo património, o que inclui todos os seus bens susceptíveis de penhora, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos.

Pediu a alteração no sentido de o período de inibição a que se referem os pontos números 1 e 2 ser reduzido para o mínimo [2 anos] e no sentido de a condenação na indemnização aos credores ser fixada em montante pecuniário fixo, a determinar pelo tribunal segundo a equidade.

O recorrente assenta a sua pretensão na alegação de que não teve culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência ou, a existir culpa, ela foi manifestamente reduzida.

A pretensão do recorrente é de julgar improcedente.

Quanto à duração do período de inibição a que se referem os pontos números 1 e 2

É certo que resulta da alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, combinada com as alíneas b) e c) do mesmo preceito, que a duração do período de inibição para administração de patrimónios de terceiros bem como a duração do período de inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de cargos em sociedades, associações ou empresas devem ser fixados em função do grau de culpa da pessoa afectada pela qualificação da insolvência.

Sucede que, no caso, contrariamente ao que alega o recorrente, o seu grau de culpa nem é inexistente, nem reduzido. Com efeito, por um lado, a qualificação da insolvência como culposa teve por base 3 presunções de culpa grave, concretamente a prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º e as previstas nas alíneas d) e h) do n.º 2 do mesmo preceito. Por outro, o ora recorrente é o único culpado na criação da situação de insolvência, pois é o único afectado pela qualificação da insolvência como culposa.

Não se justifica, assim, que os períodos de inibição correspondam ao mínimo previsto na lei [2 anos].

Quanto à sua pretensão de alteração da decisão no sentido de ser condenado num montante pecuniário fixo segundo a equidade.

Esta pretensão não tem apoio na lei, designadamente na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º e n.º 4 do mesmo preceito. Vejamos.

Segundo a alínea e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, na sentença que qualificar a insolvência como culposa, o juiz deve condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados.

Por sua vez o n.º 4 do artigo 189.º do CIRE estabelece que, ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2 [condenação das pessoas afectadas pela qualificação a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até á força dos respectivos patrimónios] da insolvência o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em sede de liquidação.

Resulta destas duas normas:
1. Que a qualificação da insolvência como culposa tem por efeito para as pessoas declaradas afectadas por tal qualificação a constituição delas na obrigação de indemnizar os credores da pessoa declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças dos respectivos patrimónios;
2. Que caso disponha dos elementos necessários para calcular os prejuízos causados aos credores é dever do juiz proferir uma condenação líquida;
3. Que no caso de ter elementos para proferir uma condenação líquida o juiz profere uma condenação ilíquida, mas com a indicação dos critérios a utilizar para a sua quantificação.

Vê-se, assim, que está vedado ao juiz, quando não dispuser de elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, fixar a indemnização de acordo com a equidade, como se prevê no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, quando não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.

Improcede, assim, a pretensão do recorrente no sentido de a indemnização devida aos credores da insolvente ser fixada em montante calculado segundo juízos de equidade.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Visto o disposto no n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas respectivas custas.

Coimbra, 1 de Junho de 2020

Emídio Santos ( Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias