Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3126/13.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: ARRESTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
SOCIEDADE UNIPESSOAL
DESCONSIDERAÇÃO
PERSONALIDADE JURÍDICA
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COIMBRA - 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.392, 406 CPC, 610, 619 CC, 270-A CSC
Sumário: 1.É possível o arresto em bens transmitidos pelo devedor a terceiro, desde que se verifiquem as condições de viabilidade de impugnação da transmissão face à norma do art. 392º, nº 2, do CPC.

2. Se um devedor, para se eximir ao cumprimento da sua obrigação, passar bens do seu património pessoal para uma sociedade unipessoal que entretanto criou, e de que passou a ser sócio, ceder a única quota de tal sociedade, que integra tais bens, à sua nora, e depois continua a comportar-se como dono de tais bens, bens que depois são postos à venda, há que convocar a figura da desconsideração ou do levantamento da personalidade jurídica da sociedade unipessoal nas situações em que a personalidade colectiva é usada de modo abusivo para prejudicar terceiros;

3. Havendo mais que uma solução plausível para a questão de direito a decidir, importa apurar a matéria substantiva constante do requerimento inicial de arresto, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação, sendo, nesse caso, defeso indeferir liminarmente tal providência.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. S (…), residente em Coimbra, requereu contra M (…) e N (…) ambas residentes em Montemor-o-Velho, arresto dos estabelecimentos comerciais de cabeleireiro denominados “ BC...” e “ GC...” alegando, em síntese, o seguinte: até 3.6.2011 prestou trabalho para a requerida M (…), então proprietária dos ditos salões de cabeleireiro “ BC...” e “ GC...”, data em foi despedida; por sentença, já transitada em Setembro de 2012, proferida na acção que instaurou contra aquela e que correu termos sob o nº 1191/11.0TTCBR, no 1º Juízo do Tribunal de Trabalho de Coimbra, foi declarada a ilicitude do seu despedimento e condenada a requerida M (…) a pagar-lhe a quantia de 17.550 €, a título de indemnização; em Novembro de 2012 requereu a execução da dita sentença visando o pagamento da importância de 17.478,22 €, acrescida dos juros vencidos até integral e efectivo pagamento, não logrando a penhora de bens da titularidade daquela requerida, designadamente dos referidos espaços comerciais, por os mesmos serem propriedade e explorados por terceiros; a requerida M (…)não é titular de bens de valor suficiente para a satisfação do crédito da requerente - actualmente no montante de 18.066,77 € - e de outros credores que contra ela instauraram execuções, que identificou; em 3.4.2012 a requerida M (…) cedeu gratuitamente à nora, a requerida N (…), a única quota, no valor de 5.000 €, de que era titular na firma B (…)Unipessoal, Lda, e renunciou à gerência que até ali exercia na referida sociedade continuando, no entanto, a comportar-se como se fosse a responsável pela exploração de ambos os estabelecimentos comerciais; a transferência da exploração dos estabelecimentos comerciais para terceiros visou impedir a satisfação do direito dos seus futuros credores, entre os quais a requerente, tendo as requeridas agido com consciência do prejuízo que estavam a causar-lhes, pelo que se mostram reunidas todas as condições para a procedência da acção de impugnação pauliana de que depende, nos termos do art. 373º do CPC, o arresto requerido; desde o dia 15.9.2013, que os aludidos estabelecimentos comerciais foram colocados à venda no sítio da Internet conhecido por OLX um por 40.000 € e outro por 20.000 €, sendo que, a concretizar-se tal venda, ficará comprometida a possibilidade de, através daquela acção de impugnação pauliana, lograr o ressarcimento do seu crédito sobre a requerida M....
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Foi, depois, proferido despacho que julgou manifestamente improcedente o pedido e, em consequência, indeferiu liminarmente o requerido.
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2. A requerente interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
(…)

II – Factos Provados

Os factos a considerar são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito


1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 684º, nº 3, e 685º-A do CPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.
Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.
- Fundamento legal para indeferimento liminar em p. cautelar de arresto, por não verificação dos respectivos requisitos legais.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:
“De harmonia com o disposto nos artigos 619º do Código Civil e 391º do Código de Processo Civil (diploma a que se reportam as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção expressa de proveniência) o direito de requerer arresto em bens do devedor é conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito.
(…)
Dispõe o n.º 1 do artigo 392º que “o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência”. Não é, assim, necessária a prova da existência do crédito, bastando-se o legislador com a mera verificação da probabilidade da existência do crédito - ou seja, é suficiente a prova indiciária ou perfunctória do mesmo, sendo a prova efectiva da existência do crédito a fazer na acção principal de que o procedimento cautelar é dependência.
No que concerne ao pressuposto consistente no justo receio de perda da garantia patrimonial para o seu preenchimento é suficiente um comportamento do devedor que faça perigar a garantia patrimonial do requerente, que corresponde e absorve o “periculum in mora” a que alude o n.º 1 do artigo 381º, devendo o justo receio “consubstanciar-se em factos ou circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob pena de perda da possibilidade de ver satisfeito o seu crédito”.
Assim, como tem vindo a ser sufragado pela generalidade da jurisprudência, “o justo receio de perda da garantia patrimonial do credor tem de assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objectivamente fundado”, podendo resultar “de haver indicação de o devedor estar em risco de se tornar insolvente, como de estar a ocultar o seu património ou de tentar alienar bens de modo que torne consideravelmente difícil ao credor promover a cobrança coactiva do seu crédito, como de aquele se furtar ao contacto com o credor ou, de qualquer modo, denotar pretender eximir-se ao cumprimento da obrigação”... Basta igualmente (...) que exista acentuada desproporção entre o montante do crédito e o valor do património do devedor, desde que este património seja facilmente ocultável” (3 Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. I, pag. 637).
O arresto há-de incidir, como decorre expressamente do n.º 1 do artigo 406º, sobre bens que integrem o património do devedor - em sintonia com o principio geral consignado no n.º 1 do artigo 601º do Código Civil segundo o qual “pelo cumprimento das obrigações respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (…)” – cabendo ao requerente, de harmonia com os critérios de repartição do ónus probatório, a prova dessa titularidade.
O n.º 2 do artigo 392º, em consonância com o n.º 2 do artigo 619º do Código Civil, confere ao credor o direito de requerer arresto contra o adquirente dos bens do devedor, prevendo que “sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda, os factos que tornem provável a procedência da impugnação”. A impugnação em causa …como consistir na sua impugnação pauliana nos termos do artigo 610º do mesmo diploma, sobre o requerente do arresto recaindo o ónus de alegar na petição do arresto e de provar sumariamente os factos que fundamentam a impugnação, no caso de não ter já proposto a respectiva acção (4 Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pag. 125 e 126).
No caso “sub judice”, o arresto foi requerido contra a devedora da requerente e contra a adquirente dos bens a arrestar, dois estabelecimentos comerciais, sustentando a requerente que a transmissão da titularidade desses bens colocaram a devedora na impossibilidade de satisfazer integralmente o seu crédito, de constituição anterior ao negócio havido entre as requeridas, devedora e adquirente dos bens, e, ainda, que estas agiram com a consciência do prejuízo que lhe estavam a causar, concluindo pela verificação dos requisitos necessários à procedência da acção de impugnação pauliana.
Esta acção constitui um meio de conservação da garantia patrimonial disciplinada no artigo 610º do Código Civil que confere ao credor “a possibilidade de reagir contra actos praticados pelo devedor que inconvenientemente diminuam o activo ou aumentem o património deste” (5 Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., pag. 434), mas que não enfermam de qualquer vício intrínseco enquanto actos válidos que são, dependendo a sua procedência da verificação simultânea de dois requisitos gerais enunciados naquela disposição.
O primeiro dos requisitos de que depende a procedência da impugnação pauliana é o do prejuízo causado pelo acto impugnado à garantia patrimonial do crédito (eventus damni), no sentido de que o acto impugnado há-de envolver a diminuição do conjunto de bens penhoráveis que, nos termos do artigo 601º, respondem pelo cumprimento da obrigação, diminuição que tanto pode traduzir-se numa perda ou decréscimo do activo, como num aumento do passivo.
Este requisito deve ser interpretado de harmonia com o preceituado na alínea b) do artigo 610º, segundo o qual é necessário que do acto resulte “a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade”, sendo que com tal formulação quis a lei abranger aqueles actos que, não determinando embora a insolvência do devedor, podem acarretar para o credor a impossibilidade prática (real, efectiva, de facto), de satisfazer integralmente o seu crédito através da execução forçada (6 Antunes Varela, in ob. cit., pag. 436 e 437; Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, pag. 626). O apuramento de tal impossibilidade vem a depender da conjugação de dois factores: o montante do passivo do devedor e a suficiência do seu activo face a tal passivo. Assim, a aludida impossibilidade “de facto” ocorrerá quando os bens remanescentes do devedor, ao contrário dos alienados, são de difícil, dispendiosa ou precária apreensão no processo executivo tornando praticamente impossível a cobrança coerciva do crédito à custa desses bens (7 Vaz Serra, in Responsabilidade Patrimonial, B.M.J. n.º 48, pag. 199).
Em segundo lugar, exige a alínea a) do artigo 610º como requisito da acção pauliana a anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado. Este requisito arranca da constatação que os credores só podem legitimamente contar com os bens existentes no património do devedor à data da constituição do crédito, e com aqueles posteriormente nele ingressados, como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito, de sorte que só os titulares de créditos anteriores ao acto impugnado se podem considerar lesados com a sua prática. Quanto aos credores cujo créditos nasceram após o acto de disposição ou oneração de bens realizado pelo devedor a acção pauliana é de admitir, excepcionalmente, quando o acto tenha sido realizado com dolo, para prejudicar a satisfação do direito do futuro credor, aqui se abrangendo aqueles casos “os em que o devedor, para obter o crédito, faz dolosamente crer ao credor que certos bens por ele alienados ou onerados ainda pertencem ao seu património, como bens livres de quaisquer encargos” (8 Antunes Varela, in ob. e loc. cit., pag. 438 e 439).
Tratando-se de acto oneroso o artigo 612º do Código Civil exige que tenha havido má-fé, tanto da parte do devedor como do terceiro adquirente (má-fé bilateral) - não se tratando, pois, apenas de uma fraude do devedor com conhecimento do terceiro adquirente - entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor. A má-fé, tal como o n.º 2 da citada disposição legal a configura, não exige a intenção ou propósito de causar prejuízo ao credor (“animus nocendi”) bastando-se com a “consciência do prejuízo” que o acto impugnado causa ao credor, ou seja, a consciência de que o acto celebrado é susceptível de provocar a impossibilidade para o credor de obter a integral satisfação do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, para o que bastará a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta do agente (o prejuízo patrimonial causado à garantia do credor) (9 Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. e loc. cit., pag. 629; Vaz Serra, in R.L.J. 102º, Acórdãos do S.T.J. de 12.Fevereiro.81, de 10.Novembro.98, de 15.Fevereiro.2000 e de 9.Maio.2002 – respectivamente, in B.M.J. 304º, pag. 358, CJ/STJ, Ano VI, Tomo III, pag. 106, CJ/STJ, Ano VII, Tomo I, pag. 91, e http://www.dgsi.pt – e Acórdãos das Relações de Lisboa de 12.Julho.2007 e do Porto de 6.Outubro.2005, respectivamente in http://www.dgsi.pt;).
Posto isto, importa averiguar se a requerente, em obediência ao princípio dispositivo, invocou factos susceptíveis de traduzirem os enunciados requisitos de que depende a procedência da providência cautelar requerida.
A requerente cumpriu o ónus de alegação de factos reveladores do direito de crédito invocado sobre a requerida M (…) e, bem assim, do justo receio de perda da garantia patrimonial, tendo em conta a factualidade invocada nos artigos 6º a 13º da petição de arresto reveladora que a devedora pretende eximir-se ao cumprimento da obrigação.
Mas a articulação da factualidade alegada nos artigos 2º e 14º da petição de arresto com os documentos que a instruíram, mormente a certidão permanente atinente à sociedade B (…)Sociedade Unipessoal, Ldª”, constante de fls. 16 e v.º a 18, não permite concluir, como faz a requerente, os dois estabelecimentos comerciais de salão de cabeleireiro “ BC...” e “GC....” a arrestar integrassem o património da requerida M (…) e que esta os tenha transmitido à requerida N (…) em 3.Abril.2011.
Segundo alega a requerente até Junho.2011 os referidos estabelecimentos comerciais integravam o património da requerida devedora (cf. artigo 2º), resultando da supramencionada certidão permanente que, em 17.Outubro.2011, a requerida M (…) constituiu a sociedade “B (…)Sociedade Unipessoal, Ldª” com o objecto de salão de cabeleireiro e instituto de beleza, com o capital social de 5.000 € correspondente a uma única quota com o mesmo valor nominal da titularidade daquela requerida, a esta incumbindo a gerência.
Trata-se de uma sociedade unipessoal por quotas cujo regime consta dos artigo 270º A a 270º-G, do Código das Sociedades Comerciais, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 257/96, de 31.Dezembro. (…)
Neste contexto, ponderando tratar-se de uma sociedade unipessoal por quotas constituída por um único sócio, a requerida devedora, cujo objecto social consiste na mesma actividade a que aquela se dedicava, de exploração de salão de cabeleireiro e instituto de beleza, e ponderando, ainda, que a firma dessa sociedade, “B (…)Sociedade Unipessoal, Ldª” (cf. artigos 10º e 270º-B do Código das Sociedades Comerciais), integra o nome dos dois estabelecimentos comerciais “ BC... “ e “ GC...” de que a sua única sócia era proprietária, não pode senão inferir-se que, com a constituição dessa sociedade, esses bens passaram a integrar o património social – o que parece ter sido intuído pela requerente a atentar no artigo 5º da petição de arresto.
E, como é sabido, mercê do reconhecimento de personalidade jurídica às sociedades comerciais (artigo 5º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais) a sociedade é uma verdadeira pessoa jurídica (colectiva), distinta da pessoa dos sócios e dos titulares dos seus órgãos, e, nessa medida, “o património social não é apenas um património separado do de cada um dos sócios, mas verdadeiramente um complexo de bens e de relações jurídicas pertencentes a um sujeito novo – um sujeito distinto dos associados e do aglomerado por eles constituído (…)” (10 Ferrer Correia, in Direito Comercial, Vol. II (Sociedades Comerciais. Doutrina Geral), pag. 58 e 59 e 83).
Por outro lado, como sublinha Ferrer Correia “a sociedade unipessoal e o sócio são sujeitos distintos. Uma coisa é a esfera dos direitos e deveres do sócio, outra, em princípio totalmente separada, a dos direitos e deveres da própria sociedade. Agindo como órgão social, o sócio não adquire quaisquer direitos para si próprio – assim como não é pessoalmente atingido pelas obrigações que assume para a sociedade. Por outro lado, as obrigações particulares do associado não são tão-pouco imputáveis á sociedade unipessoal” (11 in ob. cit., pag. 198 a 203).
A ser assim, o único bem da titularidade da requerida M (…) – e, como tal, susceptível de ser arrestado - era a quota social que detinha na sociedade “B (…)Sociedade Unipessoal, Ldª” que, em 13.Abril.2012, cedeu à requerida N (…), renunciando à gerência (cf. certidão permanente já mencionada).
Tanto basta para se concluir pela manifesta improcedência do pedido conducentes ao indeferimento liminar da petição de petição de arresto”.
Na generalidade, seguimos o discurso jurídico da decisão recorrida, alicerçada em doutrina e jurisprudência pertinentes.
Porém, temos de convocar o caso concreto à nossa apreciação. E analisado o mesmo, entendemos que a decisão é prematura.
Lida a mesma, repare-se que a julgadora considerou que a requerente cumpriu o ónus de alegação de factos reveladores do direito de crédito invocado sobre a requerida M (…) e, bem assim, do justo receio de perda da garantia patrimonial, tendo em conta a factualidade invocada nos artigos 6º a 13º da petição de arresto reveladora que a devedora pretende eximir-se ao cumprimento da obrigação. Quer dizer, considerou aparentemente demonstrados os requisitos legais do arresto, o fumus boni juris e o periculum in mora.
E ponderou que o arresto pode recair sobre bens do devedor que tenham sido transmitidos a terceiro, nos termos do transcrito art. 392º, nº 2, do CPC, mas já não entrou na verificação dos requisitos legais da impugnação pauliana que tinha previamente mencionado, porque, em síntese, considerou que a articulação da factualidade alegada nos artigos 2º e 14º da petição de arresto com a certidão permanente atinente à sociedade B (… )Sociedade Unipessoal, Lda, não permitia concluir que os dois salões de cabeleireiro “ BC...” e “ GC...” a arrestar integrassem o património da requerida M (…) e que esta os tenha transmitido à requerida N (…)em 3.4.2011, ao invés pertenciam à dita sociedade unipessoal, e tão-só foi cedida a quota da M (…) à N(…), pelo que, concluiu, o único bem da titularidade da requerida M (…) e, como tal, susceptível de ser arrestado, era a quota social que detinha na referida sociedade unipessoal.    
Ou seja, o tribunal a quo jugulou à nascença o presente procedimento cautelar de arresto, única e exclusivamente por a requerida M... não ser a dona dos aludidos estabelecimentos comerciais de cabeleireiro. É, contudo, decisão precipitada, se olharmos para a realidade dos factos que a requerente apresenta no requerimento inicial.     
Aí a sequência cronológica dos factos apresentados é a seguinte: a devedora M (…) era a proprietária dos dois referidos estabelecimentos comerciais de cabeleireiro; despediu a requerente ilicitamente; depois constituiu uma sociedade unipessoal, em que ela era a sócia, onde integrou tais estabelecimentos de cabeleireiro; seguidamente cedeu a única quota da sociedade, titular dos ditos estabelecimentos, à sua nora N (…); apesar disso continuou a comportar-se como dona dos mesmos; posteriormente tais salões de cabeleireiro foram postos à venda; com tal conduta a M (…) e a conivente N (…) querem impedir a satisfação do direito dos futuros credores, entre os quais a dívida da requerente/recorrente.
Podemos estar, efectivamente, perante uma “habilidade jurídica” da requerida M (…) e sua nora, para aquela fugir às suas responsabilidades de devedora perante a recorrente. A provar-se tal matéria haverá sinais claros de a devedora estar a ocultar o seu património ou de tentar alienar bens de modo que torne consideravelmente difícil ao credor promover a cobrança coactiva do seu crédito, ou, de qualquer modo, denotar pretender eximir-se ao cumprimento da obrigação, tudo circunstâncias que demonstrarão objectivamente o justo receio de perda da garantia patrimonial da credora/recorrente.     
Importa, pois, apurar se na realidade tais salões de cabeleireiro são efectivamente da requerida M (…), são seu património. Para tanto, face aos dados que os autos exibem, é necessário, como a recorrente apropriadamente invoca, ponderar a tese da desconsideração ou do levantamento da personalidade jurídica da sociedade unipessoal nas situações em que a personalidade colectiva é usada de modo abusivo para prejudicar terceiros. Um dos exemplos expressivos da vida real é-nos dado, aliás, pelo Ac. desta Relação, de 8.3.2006, Proc.3013/05, em www.dgsi.pt.
Sendo assim, havendo mais que uma solução plausível para a questão de direito a decidir, importa, para prolação de uma decisão conscienciosa e justa, apurar a matéria substantiva constante do requerimento inicial da requerente/recorrente, devendo os autos, para tal efeito, prosseguir a sua normal tramitação.
3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):
i) É possível o arresto em bens transmitidos pelo devedor a terceiro, desde que se verifiquem as condições de viabilidade de impugnação da transmissão face à norma do art. 392º, nº 2, do CPC;
ii) Se um devedor, para se eximir ao cumprimento da sua obrigação, passar bens do seu património pessoal para uma sociedade unipessoal que entretanto criou, e de que passou a ser sócio, ceder a única quota de tal sociedade, que integra tais bens, à sua nora, e depois continua a comportar-se como dono de tais bens, bens que depois são postos à venda, há que convocar a figura da desconsideração ou do levantamento da personalidade jurídica da sociedade unipessoal nas situações em que a personalidade colectiva é usada de modo abusivo para prejudicar terceiros; 
iii) Havendo mais que uma solução plausível para a questão de direito a decidir, importa apurar a matéria substantiva constante do requerimento inicial de arresto, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação, sendo, nesse caso, defeso indeferir liminarmente tal providência.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, e, em consequência, ordena-se o prosseguimento dos autos.
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Sem custas.
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Coimbra, 18.12.2013

  Moreira do Carmo ( Relator )