Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1140/07.0PTAVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: DECISÃO JUDICIAL
CORRECÇÃO DA DECISÃO
LIQUIDAÇÃO
PENA
ERRO MATERIAL
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL (COMARCA DO BAIXO VOUGA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 380.º DO CPP
Sumário: I - Por força dos princípios da segurança e confiança, a possibilidade de rectificação de decisões judiciais, ao abrigo do artigo 380.º do CPP, apenas existe até ao momento em que a decisão a rectificar continua a produzir efeitos, cessando a partir do momento em que se tenham esgotado os efeitos/situação que a mesma decisão pretendia regular.

II - Consequentemente, o despacho de liquidação da pena acessória imposta ao arguido, não obstante erro material ostensivo de que padeça, é insusceptível de correcção depois de o condenado ter cumprido, por defeito, a pena nos termos determinados.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular nº 1140/07.0PTAVR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro Juízo de Média Instância Criminal, Juiz 3, o arguido A... foi condenado por sentença transitada em julgado, pela autoria de um crime de desobediência p. e p. pelos artigos 348º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 152º, nº 3 do Código da Estrada e 69º do Código Penal, na pena principal de nove meses de prisão suspensa na sua execução por um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de dois anos.

Em decisão exarada em 16.1.2012 foi indeferida a realização de cúmulo jurídico, nomeadamente entre a pena acessória aplicada neste processo e aquele em que o arguido foi condenado no processo 190/07.1PTAVR, tendo-se declarado que "o arguido tem a cumprir sucessiva e integralmente as penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado no processo 190/07.1PTAVR (que já cumpriu entre 28.3.2008 e 28.9.2010 e aquela em que foi condenado no presente processo (cujo cumprimento se considera iniciado em 29.3.2010 e portanto previsivelmente terminará em 29.3.2012)." (negrito nosso).

Em 24 de Abril de 2012 foi proferido o seguinte despacho:

No despacho proferido em 16.01.2012, constante de fls. 264 a 266, consignou-se que o arguido teria de cumprir sucessiva e integralmente as penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado no processo n.º 190/07.1PTAVR e no presente processo n.º 1140/07.0PTAVR.

Todavia, em tal despacho ocorreu erro de escrita que se repercutiu no processado posterior. Com efeito, a pena aplicada no processo n.º 190/07.1PTAVR, com a duração de 2 anos e 6 meses, foi cumprida entre 28.03.2008 e 28.09.2010 (cfr. fls. 270-271).

E a pena acessória aplicada no presente processo tem a duração de 2 anos e o seu cumprimento iniciou-se em 29.9.2010 (após termo daquela outra pena), que não em 29.03.2010, como por lapso se fez constar do aludido despacho de fls. 266.

Assim, o cumprimento da pena acessória aplicada no presente processo terminaria em 29.09.2012, que não em 29.03.2012, como por lapso consequente ao anteriormente apontado se fez constar do mesmo despacho de fls. 266.

Sucede que, na sequência do mencionado equívoco, no dia 30.03.2012 foi restituída carta de condução ao arguido (fls. 277).

Todavia, até tal data apenas fora cumprida parcialmente a pena acessória, concretamente 1 ano e 6 meses (de 29.09.2010 até 29.03.2012), restando ainda por cumprir 6 (seis) meses da pena acessória de proibição de conduzir.

Atento o exposto

- notifique-se o arguido para, em dez dias, proceder à entrega dos títulos de condução de que seja titular, a fim de cumprir a parte da pena acessória de proibição de conduzir ainda em falta (seis meses);

- notifique-se o presente despacho ao Ministério Público e ao IL. Defensor.

Inconformado com o transcrito despacho, dele recorreu o arguido A (...), rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

A - Nos presentes autos foi proferido o último despacho, que data de 24 de Abril de 2012, do qual foi o arguido notificado, cujo teor se dá brevitatis causae por fielmente e integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais e no qual se (diz) rectifica um (arreliador) erro de escrita, ordenando que o arguido A (...), em dez dias proceda à entrega dos títulos de condução de que seja titular, a fim de cumprir a parte da pena acessória de proibição de conduzir ainda em falta (seis meses).

B – 1º razão - Salvo melhor e douto entendimento, a correcção de um erro implica dar sem efeito todos os actos que enfermam desse mesmo erro e proferir novo despacho com a respectiva correcção, o que assim não foi feito, pois não apenas não se deram sem efeito os actos (especificando-os) que enfermam desse mesmo vício, como também não foi proferido um "despacho de substituição" e encontramo-nos por isso, em crassa violação do art. 380° do CPP.

C – 2º razão -Salvo melhor e douto entendimento, o presente despacho enferma de nulidade, que desde já se deixa arguida para todos os devidos efeitos legais, na medida em que não se fundamenta, ou seja, não se sabe em que termos e em ao abrigo de que disposição legal se procede à (dita) rectificação, estaremos em sede uma rectificação nos termos do art. 380º nº 1 a) ou nº 1 b) em sede de erro ou nº 1 b) em sede de lapso ou qualquer outro dispositivo do CPP e com ou sem modificação essencial e porque motivo? Estamos assim, em sede de uma despacho que naufraga frente a lei expressa e (não) existe na nulidade de que padece nos termos do art. 379° nº 1 a), ex vi 374 nº 2 do CPP, pois não se fundamenta nem indica (nem sumariamente) o seu motivo de direito, a sua razão jurídica de ser.

D – 3º razão - No douto despacho em crise, refere-se que houve um lapso de escrita primário e que depois houve um lapso de escrita subsequente, ora salvo melhor luz, deveria-se rectificar (desde logo) o lapso primário - o que não se fez - e de outra senda, sempre se deverá considerar, então, que o subsequente despacho de entrega da carta ao arguido sanou o erro anterior, pelo que este último despacho terá valor jurídico de per si e assim, não estamos perante qualquer erro (digamos) eficaz ou capaz de produzir efeitos jurídicos, dada a sua sanação.

E – 4º razão - o segundo despacho enferma de um vício por erro nos seus motivos, que se originaram no primeiro despacho, pelo que nos encontramos na esteira do art. 252º do CC, não sendo enquadrável com a rectificação que o Tribunal a quo quer fazer nos termos e ditames do art. 380º do CPP, que assim o viola.

F – 5º razão - estaremos frente a uma notória violação do trânsito em julgado, volvido o prazo para interposição de recurso nos termos do art. 411º nº 4 do CPP, que assim o viola.

G – 6º razão - estamos também em violação de direitos adquiridos, uma vez que o arguido tinha o (por certo) dever, mas também direito de cumprir a sanção acessória de forma contínua, pelo que ordenar que ora venha a cumprir a sanção acessória, viola não apenas o direito do arguido, como lhe causa grave prejuízo, uma vez que já organizou a sua vida familiar, pessoal e profissional, no sentido de poder conduzir.

H - 7a razão estamos perante uma violação do sentido e racio da proibição da reformatio in pejus, uma vez que o despacho em crise vai agravar em prejuízo do arguido, violando assim, o art. 409 nº 1 do CPP.

I – 8º razão e na compreensão do arguido; sempre nos parece que não se enquadra numa situação prevista pelo art. 380º nº 1 b) CPP, uma vez que se trata de uma modificação essencial, pois a) causa prejuízo ao arguido que terá de cumprir mais 6 meses de inibição, b) viola a (legitima expectativa jurídica) e o direito que o arguido tem de cumprir a sua inibição de forma seguida ou continuada e bem se veja que se trata de uma modificação essencial porque agrava a sanção (in casu acessória), até na esteira do art. 1º f) do CPP.

J - Sendo que se trata de um erro autónomo, ou seja, apenas se trata de um "erro" porque assim o Tribunal o afirma, porque aos olhos do arguido, quando ele recebe a notificação para a carta lhe ser devolvida, o arguido não sabe que existe um erro, pois este não é susceptível de ser detectado ou conhecido nesse momento pelo arguido.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, que V. Excelência doutamente suprirá, deverá proceder por provado o presente recurso e em sua conformidade, procedendo as nulidades que se deixam arguidas, o arguido não ter de cumprir mais qualquer período de inibição de conduzir. Não sendo este o douto entendimento de V. Excelências, que por mera hipótese académica assim se coloca, sempre deverá considerar-se que o período de 30.03.2012 até à presente data, deverá ser descontado no período a que tenha, eventualmente, de cumprir por inibição de conduzir, com as advindas consequências legais.

Notificado, o Ministério Público respondeu, concluindo que não merece provimento.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Apreciação do Recurso

Sendo objecto do recurso delimitado pelas conclusões da respectiva motivação as questões que devem ser apreciadas, são as seguintes:

Se o despacho recorrido padece de nulidade;

Se o despacho recorrido viola o disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, o caso julgado e a proibição de reformatio in pejus.

Se o tempo entretanto decorrido deve ser tido em conta no cumprimento da pena acessória.

 

Invoca o recorrente que o despacho recorrido padece de nulidade "na medida em que não se fundamenta, ou seja, não se sabe em que termos e ao abrigo de que disposição legal se procede à (dita) rectificação, estaremos em sede uma rectificação nos termos do art. 380º nº 1 a) ou nº 1 b) em sede de erro ou nº 1 b) em sede de lapso ou qualquer outro dispositivo do CPP e com ou sem modificação essencial e porque motivo? Estamos assim, em sede de uma despacho que naufraga frente a lei expressa e (não) existe na nulidade de que padece nos termos do art. 379° nº 1 a), ex vi 374 nº 2 do CPP, pois não se fundamenta nem indica (nem sumariamente) o seu motivo de direito, a sua razão jurídica de ser".

Do despacho recorrido não consta efectivamente a disposição legal ao abrigo da qual foi efectuada a rectificação. Mas não se suscitará qualquer dúvida de que o foi ao abrigo 380º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal pois que é nesse normativo que vem prevista a possibilidade de rectificação de erros de sentenças e despachos.

À fala de fundamentação legal de um despacho não é aplicável o disposto nos artigos 374º, nº 2 e 379º do Código de Processo Penal que dizem respeito à sentença.

A necessidade de fundamentação dos restantes actos decisórios vem prevista no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, não se estabelecendo expressamente qualquer cominação para a não observância das exigências de fundamentação.

Preceitua o artigo 118º, nº 1 do Código de Processo Penal que "a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei" e o nº 2 que "nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular."

Do disposto neste preceito resulta, pois, que a falta de consignação de fundamentos de direito no despacho recorrido não o torna nulo, mas apenas irregular.

Tal irregularidade, porque não foi arguida em tempo (no prazo de três dias após notificação do despacho) encontra-se sanada como resulta do disposto no artigo 123º, nº 1 do Código Penal.

Tudo o demais alegado pelo recorrente reconduz-se no fundo a saber se o despacho de liquidação da pena acessória era susceptível de correcção depois de devolvida a carta de condução ao arguido por ter atingido o termo da pena segundo essa liquidação.

Não se consegue entender a primeira razão apontada pelo recorrente para a ilegalidade do despacho recorrido quando afirma que a rectificação não terá sido devidamente efectuada, posto que do despacho recorrido resulta claramente o que estava errado e o que foi corrigido. Aliás, trata-se de um erro ostensivo que se revela pela simples leitura do despacho que foi objecto de correcção.

A terceira razão apontada pelo recorrente assenta pura e simplesmente num jogo de palavras extraído do facto de no despacho recorrido se falar de um lapso primário que deu origem a outro lapso subsequente. O que significa tão só que ocorreram dois lapsos um primeiro na indicação da data do início da pena e outro lapso na indicação do termo da pena. Não se consegue mesmo alcançar o raciocínio do recorrente que a partir desse jogo de palavras chega à conclusão de que não existe qualquer erro eficaz ou capaz de produzir efeitos?!

Menos se compreende a alegação de que seja aplicável o disposto no artigo 252º do Código Civil "erro sobre os motivos" e que por consequência não seja aplicável o disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal.

Prossegue o recorrente invocando violação do trânsito em julgado. A possibilidade de rectificação de despachos sem dependência de prazo, constitui, porém, uma excepção à imutabilidade decorrente do trânsito em julgado e existindo previsão expressa nesse sentido não pode ter-se por violado o caso julgado. Tal entronca na questão do tipo de modificação que pode ser realizada.

Invoca o recorrente violação de direitos adquiridos porque tinha o direito de cumprir a pena acessória de forma contínua. Na realidade não existe o referido direito previsto expressamente na lei, antes existe um princípio geral, que comporta excepções, de que as penas devem ser cumpridas de forma contínua.

Ainda em favor da pretendida ilegalidade do despacho recorrido invoca o recorrente que viola a proibição de reformatio em pejus e que produz modificação essencial em violação do disposto no artigo 380º.

O artigo 380º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal permite que o tribunal oficiosamente proceda à correcção da sentença e de despachos ( nº 3) que contenham erro ou lapso e cuja eliminação não importe modificação essencial.

Não oferece qualquer dúvida que o despacho recorrido contém um primeiro erro material no que respeita à indicação da data de início do cumprimento da sanção acessória e consequentemente da indicação da data em que a mesma terminaria.

Que a correcção deste lapso não importa qualquer modificação essencial é a nosso ver manifesto mesmo sem cuidar de aprofundar o que seja modificação essencial, porque essa precisão no caso não é fundamental.

Se o arguido foi condenado em pena acessória de dois anos de proibição de conduzir e se por lapso apenas foi considerado o período de 1 ano e seis meses, não ocorre qualquer modificação essencial do decidido com a rectificação. Antes pelo contrário, com a correcção apenas se faz coincidir o tempo de pena da condenação com o tempo de pena a cumprir do óbvio conhecimento do arguido.

Com toda a evidência também tal não pode configurar violação da proibição da reformatio em pejus posto que a pena se manteve igual, precisamente igual.

A questão é diversa de todas as equações propostas.

O que se deve discutir é se efectivamente a correcção pode ocorrer a todo o tempo, mesmo depois de produzidos todos os efeitos da decisão viciada de erro ou lapso ou se pelo contrário existe um momento a partir do qual se deve considerar que a correcção não pode ter lugar em nome dos princípios da segurança jurídica, certeza e confiança de que se devem revestir as decisões dos tribunais.

Toda a decisão judicial tem associado um efeito preclusivo de maior ou menor intensidade que visa garantir o resultado adquirido ao longo do processo, evitando decisões contraditórias sobre as mesmas questões e garantindo pontos estáveis de certeza jurídica.

O primeiro grau de preclusão das decisões judiciais impede que o mesmo tribunal possa apreciar uma segunda vez a mesma questão, o que se designa de esgotamento do poder jurisdicional. Existe depois um grau intermédio de preclusão que consiste na proibição de reformatio in pejus pelo tribunal de recurso em determinadas situações.

O segundo grau de preclusão consiste no trânsito em julgado, impedimento a que também um tribunal diferente (de recurso) volte a apreciar a mesma questão. (cfr. Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, págs. 137 a 157).

Necessariamente que o trânsito em julgado garante de modo eficaz a segurança e a certeza de que se devem revestir as decisões dos Tribunais, o que necessariamente está ligado à tutela das expectativas dos sujeitos processuais no que toca aos resultados adquiridos no processo. Para além do trânsito em julgado todo o resultado adquirido, consolidado no processo, todo o efeito produzido por força de uma decisão judicial deve ser respeitado.

 Assim, o grau seguinte (terceiro) de preclusão consistirá no esgotamento dos efeitos decorrentes de uma decisão judicial, momento a partir do qual tudo se passa como se não existisse, porque nada mais de útil se pode dela extrair, passando a existir apenas como acontecimento histórico.

O que se verifica no caso é que o despacho de rectificação da liquidação da pena acessória ocorreu depois de o arguido ter cumprido a pena nos termos (embora errados) em que tinham sido ordenados. Depois de se terem esgotado os efeitos que o despacho rectificado era apto a produzir.

Cremos, porém, que quando o despacho a rectificar já não pode produzir qualquer efeito porque se esgotou a situação que pretendia regular, ocorre o que se denominou de terceiro grau de preclusão das decisões judicias que impede também que se proceda a qualquer alteração da mesma em nome do dos princípios da segurança e da confiança.

Pelo exposto se conclui que a possibilidade de rectificação de decisões judiciais nos termos do artigo 380º do Código de Processo Penal apenas existe até ao momento em que a decisão a rectificar continue a produzir efeitos, cessando a partir do momento em que se tenham esgotado os efeitos/situação que a mesma decisão pretendia regular.

E a presente conclusão prejudica o conhecimento da última questão suscitada no recurso.


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III. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando o despacho recorrido.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins)